Processo nº 630/2023
(Autos de Revisão e Confirmação de Decisões)
Data do Acórdão: 17 de Outubro de 2024
ASSUNTO:
- Revisão de sentença estrangeira
- Dívida
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 630/2023
(Autos de Revisão e Confirmação de Decisões)
Data: 17 de Outubro de 2024
Requerente: XXX Pte. Ltd.
Requerida: YYY
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
XXX Pte. Ltd., com os demais sinais dos autos,
vem instaurar a presente acção para Revisão e Confirmação de Decisão Proferida por Tribunal Exterior de Macau, contra
YYY, também com os demais sinais dos autos.
Citada a Requerida editalmente para querendo contestar esta silenciou, pelo que, nomeando-se defensor para o efeito, veio este contestar alegando que da decisão a rever não consta que a Requerida haja sido citada nem o trânsito em julgado da decisão.
A Requerente respondeu invocando que à Requerida cabia fazer a prova da falta de citação e de que a decisão não tinha transitado em julgado.
Pelo Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer no sentido de nada opor ao pedido de revisão e confirmação formulado.
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
1. Pela Divisão Geral do Tribunal Superior da República de Singapura foi proferida decisão nos termos do O 13 com o seguinte teor:
«CÓPIA CERTIFICADA
Rubrica
%%%
Advogado e Solicitador
Singapura
CÓPIA CERTIFICADA
NA DIVISÃO GERAL DO TRIBUNAL SUPERIOR DA REPÚBLICA DE SINGAPURA
Processo n.º : HC/S ***/2018
Doc. n.º HC/JUD ***/2023
Apresentado em: 15-Maio-2023 02:14PM.
Entre
XXX PTE LTD
(Singapura UEN n.º 200******R)
… Autora(s)
E
YYY CODIGO QR
(Passaporte de Macau n.º M0******)
… Réu (s)
DECISÃO NOS TERMOS DO O 13
NÃO FOI REGISTADA QUALQUER COMPARÊNCIA do ora Réu.
FOI DECIDIDO NESTE DIA, que o Réu pague à Autora a quantia de S$982,265 (“Montante do Crédito em Dívida”), juntamente com juros sobre o Montante do Crédito em Dívida à taxa de juro de 12% ao ano calculados desde 22 de Dezembro de 2015, até à data de pagamento integral e S$21,837,68 em custos.
Datado de 15 de Maio de 2023
1. Contrato de Concessão de Crédito XXX Pte Ltd datado de 11 de Abril de 2015
2. Markers
(assinatura)
~~~
ESCRIVÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE SINGAPURA»
b) Do Direito
De acordo com o disposto no nº 1 do artº 1199º do CPC «Salvo disposição em contrário de convenção internacional aplicável em Macau, de acordo no domínio da cooperação judiciária ou de lei especial, as decisões sobre direitos privados, proferidas por tribunais ou árbitros do exterior de Macau, só têm aqui eficácia depois de estarem revistas e confirmadas.».
Como é sabido nos processos de revisão e confirmação de decisões proferidas no exterior de Macau o Tribunal não conhece do fundo ou mérito da causa limitando-se a apreciar se a decisão objecto dos autos satisfaz os requisitos de forma e condições de regularidade para que possa ser confirmada.
Esses requisitos são os que vêm elencados no artº 1200º do CPC, a saber:
«1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.».
Vejamos então.
Da certidão junta aos autos resulta que pelo Divisão Geral do Tribunal Superior da República de Singapura foi a Ré condenada a pagar os valores ali indicados, nada havendo que ponha em causa a autenticidade da mesma e o sentido da decisão, estando assim preenchido o pressuposto da al. a) do nº 1 do artº 1200º do CPC.
Invoca a Requerida que não resulta da certidão junta que a Ré haja sido citada nem que a decisão trânsitou em julgado.
Contudo, não se invoca que a Ré, ora Recorrida, não haja sido citada nem que a decisão não tenha transitado em julgado e menos ainda se demonstra tal facto.
De decisão a rever não resulta que não haja sido feita a citação mas apenas que “não foi registada qualquer comparência do ora Réu” o que pressupõe que se não compareceu é porque tinha conhecimento do processo e foi citado, não resultando em passo algum que seja evidente que não haja sido citado.
Da certidão igualmente não resulta expressamente que a certidão haja transitado em julgado ou seja definitiva, mas também o contrário não se evidencia, sendo certo que resulta que foi emitida a sentença sem nada se acrescentar que ponha em causa ser exequível e definitiva.
Sobre esta matéria é esclarecedora a Jurisprudência consagrada no Acórdão do TUI de 15.03.2006 proferido no processo que ali correu termos sob o nº 2/2006:
«(…)
Examinemos, agora, se os requisitos necessários para a revisão e confirmação de sentença do exterior, previstos nas alíneas b) e e) do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil – que a decisão a rever tenha transitado em julgado segundo a lei local em que foi proferida e que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local de origem – têm de ser provados pelo requerente ou, pelo contrário, se se devem presumir verificados, cabendo ao requerido a prova da sua não verificação.
Foi proposta no TSI uma acção com processo especial de confirmação e revisão de sentença do exterior, mais concretamente de uma sentença proferida por um tribunal da Região Administrativa Especial de Hong Kong que condenou o requerido B a pagar uma quantia em dinheiro e ainda outras prestações.
O requerido foi citado editalmente, por estar ausente em parte incerta e não contestou. Fê-lo o Ministério Público, em representação do ausente, suscitando a questão de a requerente não ter feito prova dos requisitos previstos nas alíneas b) e e) do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil – que a decisão a rever tenha transitado em julgado segundo a lei local em que foi proferida e que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local de origem.
Mas o TSI, por meio do 1.º Acórdão – seguindo, aliás, jurisprudência anterior uniforme na matéria – considerou que o tribunal de revisão só deve negar oficiosamente o exequatur quando o exame do processo ou o conhecimento derivado do exercício da função o convencer de que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil, pelo que não se verificando estes casos apontados, se presume que esses requisitos concorrem, estando, assim, o requerente dispensado de fazer a prova positiva e directa dos mesmos. E, ponderando a falta de demonstração concreta em sentido contrário pelo requerido, representado pelo Ministério Público, considerou preenchidos os dois requisitos que estavam em causa e procedeu à revisão e confirmação da sentença.
Deve acrescentar-se que esta também era a jurisprudência do Tribunal Superior de Justiça, expressa, por exemplo, no Acórdão de 25 de Fevereiro de 1998, no Processo n.º 786.
(…)
O nosso sistema é, em regra, de revisão meramente formal porque as condições da confirmação da sentença do exterior exigidas e enumeradas nas várias alíneas do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil - que no Código português corresponde ao art. 1096.º - “não respeitam senão à regularidade da decisão e do processo de que ela constitui o último termo”.
Já existe, no entanto, revisão de mérito, de aplicação do direito, numa situação específica: quando a decisão tiver sido proferida contra residente de Macau, este pode impugnar o pedido de reconhecimento de sentença do exterior com fundamento em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se tivesse sido aplicado o direito material de Macau, quando por este devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos de Macau (n.º 2 do art. 1202.º do Código de Processo Civil).
No caso dos autos estamos perante a revisão formal, visto que não foi deduzida impugnação pelo requerido com fundamento nesta última norma, que protege um interesse meramente disponível e renunciável.
(…)
Vejamos, então, o que dispõe o art. 1200.º do Código de Processo Civil:
(…)
Se fosse apenas este o preceito do Código de Processo Civil a ter em conta para resolver a questão em apreço, teria o recorrente, possivelmente, razão na sua tese, já que, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, a prova dos factos constitutivos do direito alegado cabe àquele que invocar o direito (art. 335.º, n.º 1 do Código Civil).
Mas há que considerar ainda outro preceito, do Código de Processo Civil, que já vem, aliás, do Código de 1939, e que é o art. 1204.º:
“Artigo 1204.º
(Actividade oficiosa do tribunal)
O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200.º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
O Código de 1961 continha um preceito semelhante a este (o art. 1101.º) e o mesmo acontecia no Código de 1939 (o art. 1105.º), com uma diferença respeitante à revisão de mérito, a que há pouco se fez referência, mas irrelevante na matéria que nos ocupa.
Pois bem, o art. 1200.º contem seis requisitos necessários para a confirmação da decisão proferida por tribunal do exterior. Mas o art. 1204.º faz uma nítida distinção entre os requisitos das alíneas a) e f) do n.º 1 do art. 1200.º (respectivamente, que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão e que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública) – impondo a sua verificação oficiosa pelo tribunal – e os restantes requisitos do art. 1200.º - entre os quais os dois que estão em causa, a propósito dos quais o tribunal só deve negar oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum desses requisitos.
Foi por causa desta distinção que a doutrina começou a defender que o requerente está dispensado da prova directa destes quatro requisitos, que se devem presumir verificados. Assim é que ALBERTO DOS REIS defendeu o seguinte na vigência do Código de 1939:
“Desde que o tribunal só deve negar oficiosamente a confirmação quando o exame do processo ou o conhecimento derivado do exercício da função o convencer de que falta algum dos requisitos exigidos nos n.ºs 2.º, 3.º, 4.º e 5.º do art. 1102.º, segue-se que, não se verificando os casos apontados, presume-se que esses requisitos concorrem; entendida assim a disposição, é claro que o requerente está dispensado de fazer a prova positiva e directa dos requisitos indicados”.
Também FERRER CORREIA, na vigência do Código de 1961, se pronunciou em idêntico sentido:
“36. 2.º - Trânsito em julgado. – O segundo requisito de confirmação é o que consta do art. 1096.º, al. b): “Para que a sentença seja confirmada é necessário que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida”.
Para que a sentença possa ser confirmada é necessário, portanto, que seja uma sentença definitiva, uma sentença da qual não caiba recurso ordinário, segundo a lei do tribunal de origem.
Mas será necessário que a parte interessada faça a prova do trânsito em julgado?
O tribunal só negará oficiosamente a confirmação se pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções apurar que falta o requisito da alínea b), ou seja, se apurar que a sentença ainda não transitou em julgado.
…
O simples facto de não constar do processo a prova de que a sentença transitou em julgado não é, pois, suficiente para o tribunal recusar a confirmação. Em tal hipótese, há-de o tribunal presumir que o trânsito em julgado ocorreu”.
O mesmo autor, nas recentes lições do ano 2000, mantém o mesmo entendimento:
“O simples facto de não constar do processo a prova do trânsito em julgado não constitui impedimento à confirmação; tal impedimento existirá, contudo, se o tribunal, por conhecimento derivado do exercício das suas funções, chegar à conclusão de que no caso vertente esse requisito falta. É esta a solução mais consentânea com o preceito do art. 1101.º”.
Também RODRIGUES BASTOS se pronuncia no mesmo sentido.
E da mesma opinião é a restante doutrina internacional privatista.
Assim, MARQUES DOS SANTOS abonando o entendimento de Alberto dos Reis e Ferrer Correia, já mencionados, escreve:
“Tal doutrina parece-nos ser aceitável, na medida em que se entenda que, só por si, a não existência, no processo, de prova de que a sentença estrangeira transitou em julgado não é bastante para ser recusada a confirmação, podendo, porém, esta vir a ser negada sem que a parte contrária tenha de provar que não houve trânsito em julgado, desde que o tribunal português de revisão, por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta o requisito da alínea b) do artigo 1096.º do Código”.
LUÍS DE LIMA PINHEIRO emitiu idêntica opinião.
Em contrário só se conhece a doutrina de MACHADO VILELA, expressa na vigência do Código de Processo Civil de 1876, para quem deve ser o requerente a provar todos os requisitos de confirmação de sentença estrangeira. Mas neste Código (arts. 1087.º a 1091.º) não havia preceito semelhante ao actual art. 1204.º, pelo que se aceita que, nesse caso, valessem as regras gerais do ónus da prova. Não é o caso do direito vigente, como já se disse.
Em conclusão, é de sufragar o entendimento tomado pelo Acórdão recorrido, na sequência da jurisprudência do Tribunal Superior de Justiça e abonado pela doutrina, de que se devem considerar verificados os requisitos das alíneas b) e e) do n.º 1 do art. 1200.º, na falta de prova em contrário, por parte do requerido, sem prejuízo de o tribunal dever negar a confirmação quando pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções apure que falta algum deles.
(…)».
Acompanhando-se a Jurisprudência do TUI consagrada no indicado Acórdão, não estando demonstrada a falta de citação da Ré nem que a decisão não transitou em julgado, impõe-se concluir que se presumem estar preenchidos os os requisitos das alíneas b) e e) do nº 1 do artº 1200º do CPC.
Igualmente não resulta que a decisão a rever provenha de Tribunal cuja competência haja sido provocada em fraude à lei e não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau, estando, assim, preenchido o requisito da alínea c) do nº 1 do artº 1200º do CPC.
Não consta que a questão tenha sido submetida a qualquer tribunal de Macau, não havendo sinais de poder ser invocada a litispendência ou caso julgado, pelo que se tem por verificada a condição da alínea d) do nº 1 do artº 1200º do CPC.
A sentença revidenda procede à condenação da Ré no pagamento de dívida, direito que a legislação de Macau igualmente prevê, pelo que, a decisão não conduz a um resultado incompatível com a ordem pública, tendo-se também por verificada a condição da alínea f) do nº 1 do artº 1200º do CPC.
Termos em que, se impõe concluir no sentido de estarem verificados os requisitos para a confirmação proferida por tribunal exterior a Macau.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em conceder a revisão e confirmar a decisão da Divisão Geral do Tribunal Superior da República de Singapura nos termos acima transcritos.
Custas pela Requerente.
Fixam-se os honorários ao defensor nomeado à Requerida em MOP3.000,00 por analogia com o nº 6.7. da tabela anexa ao despacho do Chefe do Executivo nº 59/2013.
Registe e Notifique.
RAEM, 17 de Outubro de 2024
(Juiz Relator)
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(1º Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong
(2º Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
630/2023 1
REV e CONF DE DECISÕES