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Processo nº 776/2024/A
(Suspensão de Eficácia)

Data do Acórdão: 14 de Novembro de 2024

ASSUNTO:
- Suspensão de eficácia
- Revogação de autorização de residência


____________________
Rui Pereira Ribeiro










Processo nº 776/2024/A
(Suspensão de Eficácia)

Data: 14 de Novembro de 2024
Requerente: A
Entidade Requerida: Secretário para a Administração e Justiça
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  A, com os demais sinais dos autos,
  vem requerer a suspensão de eficácia do despacho do Secretário para a Administração e Justiça de 04.09.2024 que indeferiu o recurso hierárquico, confirmando a decisão de declarar a nulidade do acto de emissão à Requerente do Bilhete de Identidade de Residente Permanente e do Passaporte, ambos da RAEM.
  Para tanto alega a Requerente que nasceu e sempre viveu em Macau onde estudou e actualmente trabalha, não tendo documentos de qualquer outro país ou região, sendo em Macau que tem todas as suas relações de amizades e familiares e a onde está emocionalmente ligada, pelo que, ter de deixar de viver em Macau sem ter documentos de qualquer outro país ou região onde viver lhe causa um prejuízo emocional e psíquico que não é passível de reparação.
  
  Citada a Entidade Requerida para contestar veio esta fazê-lo impugnando a verificação dos prejuízos invocados pela Requerente.
  
  Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido o seguinte parecer:
  «1.
  A, melhor identificada nos autos, veio instaurar o presente procedimento cautelar de suspensão de eficácia do acto praticado pelo Secretário para a Administração e Justiça, com data de 4 de Setembro de 2024, o qual, em recurso hierárquico, manteve a declaração de nulidade dos actos de emissão do Bilhete de Identidade de Residente Permanente do Requerente e bem assim do seu passaporte da RAEM.
  2.
  (i)
  Decorre do disposto no artigo 121.º. n.º 1 do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), que a suspensão de eficácia dos actos administrativos que tenham conteúdo positivo ou que, tendo conteúdo negativo, apresentam uma vertente positiva é concidadã quando se verifiquem os seguintes requisitos:
  (#) a execução do acto causar previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que estre defenda ou venha a defender no recurso contencioso;
  (#) a suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente produzido pelo acto;
  (#) do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso.
  Estes requisitos do decretamento da providência cautelar da suspensão de eficácia são de verificação cumulativa, bastando a não verificação de um desses para que tal decretamento resulte inviável, sem prejuízo, no entanto, do disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do citado artigo 121.º do CPAC (assim, entre outros, o Ac. do Tribunal de Última Instância de 4.10.2019, processo n.º 90/2019).
  (ii)
  No caso, o acto suspendendo é, fora de dúvida, um acto positivo por isso que dele decorre uma alteração na prévia situação jurídica da Requerente.
  Além disso, a ser decretada a suspensão de eficácia do acto não vemos que daí resulte grave lesão para o interesse público concretamente prosseguido pelo acto, pelo que se pode dizer preenchido o requisito da providência a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do CPAC.
  Do mesmo modo, do processo não resultam fortes indícios de ilegalidade do recurso contencioso, mostrando-se assim verificado o requisito previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 121.º do citado diploma legal.
  Resta a questão de saber se a execução do acto causa previsivelmente prejuízo de difícil reparação ao Requerente.
  A nosso ver, a resposta a tal questão não pode deixar de ser positiva.
  Na verdade, como a propósito de situação em tudo idêntica decidiu o nosso mais alto Tribunal, é de considerar que o cancelamento do Bilhete de Identidade de Residente de Macau de um residente permanente da Região com 25 anos de idade e que aqui nasceu e residiu de forma regular e contínua, com a sua consequente necessidade de ter de se deslocar para o exterior de Macau sem que lhe seja conhecida a posse de qualquer outro documento de identificação ou de viagem e qualquer outra relação familiar, constitui dano merecedor de tutela jurídica que integra o conceito de prejuízo de difícil reparação para efeitos do artigo 121.º, n.º 1, alínea a), do CPAC (adaptámos ao caso, com a devido vénia, a formulação lapidar que consta do sumário do acórdão do Tribunal de Última Instância de 13.1.2021, processo n.º 212/2020. No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 7.11.2019, tirado no processo n.º 1013/20219/A, também versando sobre uma situação concreta análoga à que se aprecia nos presentes autos).
  Estão, pois, verificados, em nosso modesto entendimento, todo os requisitos de que o artigo 121.º, n.º 1 do CPAC faz depender o decretamento da requerida suspensão de eficácia.
  (iii)
  Pelo exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que deve ser deferido o pedido de suspensão de eficácia.».
  
  II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  
  O Tribunal é o competente.
  O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
  Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
  
  III. FUNDAMENTAÇÃO
  
1) Factos

a) Em XX.XX.19XX nasceu em Macau A – cf. fls. 9 -;
b) Por despacho de 04.09.2024 do Secretário para a Administração e Justiça foi indeferido o recurso hierárquico interposto pela ora Requerente da decisão da Direcção dos Serviços de Identificação que declarou a nulidade dos actos de emitir, renovar e substituir o bilhete de identidade de residente permanente e o passaporte da RAEM, dos quais a ora Requerente era titular com os seguintes fundamentos:
«(…)
Relativamente ao recurso hierárquico necessário que V.Ex.ª interpôs, em 13 de Agosto de 2024, em representação de A (adiante designada por “Parte”), para o Sr. Secretário para a Administração e Justiça, contra a decisão destes Serviços que declarou a nulidade dos actos de emitir, renovar e substituir o bilhete de identidade de residente permanente e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau da Parte e que cancelou o seu bilhete de identidade de residente permanente e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau, o Sr. Secretário para a Administração e Justiça concordou, através do despacho de 4 de Setembro de 2024 por si proferido, com o teor da Informação n.º 33/DAG/DJP/D/2024 destes Serviços e indeferiu o recurso interposto por V.Ex.ª, mantendo a decisão destes Serviços.
A seguir vem o teor da Informação n.º 33/DAG/DJP/D/2024:
“Relativamente ao recurso hierárquico necessário que a advogada de A (adiante designada por “Parte”) interpôs para o Sr. Secretário para a Administração e Justiça, contra a decisão destes Serviços que declarou a nulidade do acto de emitir, renovar e substituir o bilhete de identidade permanente e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau da Parte e que cancelou o seu bilhete de identidade permanente e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau, nos termos do artigo 159.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, é da nossa opinião que:
I. Factos
1. A Parte A nasceu em Macau no dia XX de XX de 19XX, titular do assento de nascimento n.º 1885 emitido pela Conservatória de Registo de Nascimento, donde constava a seguinte indicação: o pai B, residente de Macau (titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau n.º 12XXXX1(4)), a mãe C, residente do Interior da China.
2. A 21 de Junho de 1999, B pediu, em representação da Parte, pela primeira vez, a estes Serviços a emissão do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, tendo estes Serviços, com base nos dados constantes do assento de nascimento acima referido, emitido, pela primeira vez, à Parte o Bilhete de Identidade de Residente de Macau sob o n.º 1/3XXXX7/3.
3. A 25 de Julho de 2005, B pediu, em representação da Parte, a estes Serviços a substituição do BIR por bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, tendo estes Serviços, com base nos dados constantes do assento de nascimento acima referido, emitido à Parte o bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau n.º 13XXXX7(3), o qual foi renovado em 25 de Maio de 2010, 23 de Julho de 2014 e 6 de Maio de 2019, respectivamente.
4. A 30 de Novembro de 2021, estes Serviços receberam um ofício do Corpo de Polícia de Segurança Pública, informando que na apreciação do pedido de fixação de residência em Macau da mãe da Parte, o Corpo de Polícia de Segurança Pública descobriu que a filha (a Parte) de C e do pai, B, que nasceu naquela altura, se envolveu num caso de pai biológico falso.
5. A 29 de Dezembro de 2021, por terem dúvidas sobre a relação entre a Parte e os seus pais, estes Serviços enviaram ofício à Parte, exigindo-lhe a apresentação de certidão de teste de paternidade entre ela, B e C.
6. A 12 de Janeiro de 2024, estes Serviços receberam a notificação enviada pelo Ministério Público, indicando que foi instaurada contra a Parte uma acção declarativa comum de impugnação de paternidade que corria termos no Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base sob o n.º FM1-22-0040-CAO. A decisão da acção foi proferida em 28 de Novembro de 2023 que já transitou em julgado, cujo teor foi averbado pela Conservatória do Registo Civil ao assento de nascimento da Parte.
7. Para tal, estes Serviços enviaram ofício em 23 de Janeiro de 2024 à Conservatória do Registo Civil para pedir o registo de nascimento mais recente da Parte.
8. A 6 de Fevereiro de 2024, estes Serviços receberam o assento de nascimento n.º 1885/1999/CR da Parte que já foi actualizado, donde consta a seguinte indicação: o pai ***, a mãe C.
9. Além disso, a Parte possui o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau n.º MB01XXX13 que foi emitido em 6 de Julho de 2023 e é válido até 6 de Julho de 2033.
10. Como o pai era incógnito e a mãe não era residente da Região Administrativa Especial de Macau no tempo do nascimento da Parte, esta não tinha o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, a ela não deveria ser emitido o bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau. Assim, por ofício n.º 1360/DSI-DAG/OFI/2024 de 28 de Maio de 2024 destes Serviços, foi a Parte notificada de que estes Serviços iam cancelar o bilhete de identidade de residente permanente n.º 13XXXX7(3) e o passaporte n.º MB01XXX13 da Região Administrativa Especial de Macau possuídos por ela. Além disso, foi realizada audiência escrita.
11. A advogada da Parte apresentou, em 7 de Junho de 2024, as alegações escritas e o respectivo documento comprovativo a estes Serviços.
12. Após uma análise, visto que a advogada não conseguiu provar nas alegações escritas o facto de a Parte reunir os requisitos legais para a aquisição do estatuto de residente permanente de Macau, em 8 de Julho de 2024, estes Serviços tomaram, na Proposta n.º 28/DAG/DJP/D/2024, a decisão de declarar a nulidade dos actos de emitir, renovar e substituir o bilhete de identidade de residente permanente e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau da Parte, bem como de cancelar o bilhete de identidade de residente permanente e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau da mesma. Tal decisão foi notificada à advogada em 22 de Julho do mesmo ano mediante o ofício n.º 1606/DSI-DAG/OFI/2024.
13. A 13 de Agosto de 2024, de tal decisão a advogada da Parte interpôs recurso hierárquico necessário junto do Sr. Secretário. Estes Serviços receberam os documentos encaminhados pelo Gabinete do Sr. Secretário em 14 de Agosto.
II. Direito
(1) A Parte não preenche os requisitos legais para o estatuto de residente de Macau
14. Prevê o artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 19/99/M de 10 de Maio, «Aprova o novo regime de emissão do Bilhete de Identidade de Residente» que “se consideram residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento.” E segundo a alínea a) do n.º 1 do seu artigo 26.º, “o pedido do BIR deve ser acompanhado de: a) Certidão de narrativa de registo de nascimento ou documento equivalente”.
15. Uma vez que a Parte nasceu em XX de XX de 19XX em Macau, do assento de nascimento daquela altura constava que o pai era residente de Macau B, pelo que, em 21 de Junho de 1999, estes Serviços emitiram pela primeira vez o Bilhete de Identidade de Residente de Macau, sob o n.º 1/3XXXX7/3, à Parte.
16. Depois, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, da Lei n.º 8/1999 « Lei sobre Residente Permanente e Direito de Residência da Região Administrativa Especial de Macau» - “São considerados residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau, os cidadãos chineses titulares do BIR emitido antes de 20 de Dezembro de 1999 que preencham um dos seguintes requisitos:1) Constar do BIR que o local de nascimento é Macau; 2) Ter decorrido sete anos desde a data da primeira emissão do BIR; …” e do artigo 2.º, n. 2, alínea 1), da Lei n.º 8/2002 «Regime do bilhete de identidade de residente da Região Administrativa Especial de Macau» - “O Bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, que é concedido aos residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau”, estes Serviços emitiram, em 25 de Julho de 2005, o bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau n.º 13XXXX7(3) à Parte.
17. Ao abrigo do artigo 2.º, n.º 2, alínea 1), da Lei n.º 8/2002 e do artigo 23.º do Regulamento Administrativo n.º 23/2002 «Regulamento do bilhete de identidade de residente da Região Administrativa Especial de Macau», tal BIR foi renovado, respectivamente, em 25 de Maio de 2010, 23 de Julho de 2014 e 6 de Maio de 2019.
18. A 12 de Janeiro de 2024, estes Serviços receberam a notificação do Ministério Público, informando que foi instaurada contra a Parte uma acção declarativa comum de impugnação de paternidade que corria termos no Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base sob o n.º FM1-22-0040-CAO. A decisão da acção foi proferida em 28 de Novembro de 2023 que já transitou em julgado, cujo teor foi averbado pela Conservatória do Registo Civil ao assento de nascimento da Parte. Actualmente, do assento de nascimento consta que o pai é ***, a mãe é C.
19. Uma vez que a mãe biológica não era residente de Macau na altura em que a Parte nasceu, além disso, nem se conseguiu confirmar a identidade do pai biológico, do que resultou que a Parte não preenche os requisitos previstos no artigo 5.º, n.º 1 e no artigo 26.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, não se deve conceder o Bilhete de Identidade de Residente de Macau àquele que não possua o estatuto de residente de Macau. A Parte também não satisfaz as disposições do artigo 9.º, n.º 2, da Lei n.º 8/1999, do artigo 2.º, n.º 2, alínea 1), da Lei n.º 8/2002 e do artigo 23.º do Regulamento Administrativo n.º 23/2002, não se deve conceder o Bilhete de Identidade de Residente de Macau àquele que não possua o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau.
20. Acresce que, dado que a Parte não possui o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, não se encontra preenchido o requisito indicado no artigo 5.º da Lei n.º 8/2009 «Regime dos documentos de viagem da Região Administrativa Especial de Macau», a ela não deve ser emitido o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau n.º MB01XXX13.
(2) Falta de elemento essencial ao acto de emissão do documento
21. A lei estabelece rigorosamente os requisitos para adquirir o estatuto de residente de Macau. Segundo o artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio: “Consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento.” Para ser o residente de Macau, há que verificar os dois requisitos a seguir indicados: para um indivíduo adquirir o estatuto de residente de Macau, ele (1) deve nascer em Macau; (2) o pai biológico ou a mãe biológica reside legalmente em Macau à data do seu nascimento.
22. Segundo os diplomas legais citados, a veracidade do facto provado (a veracidade do facto de que a Parte adquiriu o Bilhete de Identidade de Residente de Macau por o pai ser o residente de Macau) é considerada como elemento essencial do acto administrativo.
23. Dispõe o artigo 122.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo que: “São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.”
24. Dado que não é verdadeira a identidade do pai registada no assento de nascimento e a falsidade desse facto equivale à falta absoluta do conteúdo ou objecto do acto administrativo. Perante a insatisfação dos requisitos legais, os actos destes Serviços de emitir os documentos são actos sem base legal, os quais prejudicam o interesse público e devido à gravidade dos danos causados, sofrem do vício de nulidade por falta de elemento essencial.
25. Deste modo, nos termos do artigo 122.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, por falta de elementos essenciais são nulos os actos administrativos de emitir uma série de documentos à Parte, os quais nunca produziram efeitos.
(3) São nulos os actos consequentes do acto de emissão do documento
26. De acordo com o artigo 122.º, n.º, alínea i), do Código do Procedimento Administrativo, os actos nulos abrangem: “Os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na manutenção do acto consequente.”
27. O referido acto administrativo destes Serviços de emitir o documento de identificação à Parte é nulo por omissão de elemento essencial, o que, nos termos do artigo 122.º, n.º 2, alínea i), do Código do Procedimento Administrativo, implica a nulidade dos posteriores actos de conceder à Parte a renovação e substituição do BIR que foram praticados com base no acto administrativo nulo.
28. Não há, no caso vertente, contra-interessados com interesse legítimo, portanto, não existe a situação excepcional prevista na segunda parte daquele artigo.
III. Análise do recurso hierárquico
(1) Quanto à identidade do pai biológico da Parte (pontos 1 a 14 do recurso hierárquico)
29. Apontou a advogada que, no assento de nascimento actual da Parte consta que o pai é desconhecido, mas não indica que o seu pai não é residente de Macau. Como o espaço para a identidade do pai foi deixado em branco, a Parte ainda tem oportunidade de reunir os requisitos legais para ter o estatuto de residente de Macau, pelo que entende que se deve manter, pelo menos, o estatuto de residente de Macau da Parte até que seja confirmada a identidade do seu pai. Além disso, acrescentou a advogada que a Parte tem o ónus da prova quanto à identidade do seu pai e, ao mesmo tempo, a Administração também tem o dever de apurar o facto, não devendo transferir todos os deveres para a outra parte. Entende que na situação em que a identidade do pai é desconhecida e a mãe já se tornou residente de Macau, a decisão de cancelamento do Bilhete de Identidade de Residente de Macau da Parte viola manifestamente os princípios da proporcionalidade, da boa fé, da justiça, violando ainda o direito fundamental à vida consagrado na «Lei Básica».
30. Não podemos concordar com o ponto de vista da advogada expresso no número anterior. Estipula o artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, «Aprova o novo regime de emissão do Bilhete de Identidade de Residente» que estava vigente na altura em que nasceu a Parte: “consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento.” A norma especifica que apenas pode adquirir o estatuto de residente de Macau aquele que nasceu em Macau e o pai ou a mãe resida legalmente em Macau à data do seu nascimento.
31. In casu, a Parte obteve naquela altura o estatuto de residente de Macau por causa de que do assento de nascimento dela constava que o seu pai, B, era residente de Macau. Agora a Conservatória do Registo Civil rectificou o registo do nascimento da Parte, indicando que o pai: ***, a mãe: C, residente do Interior da China. Uma vez que não se conseguiu provar que o pai biológico ou a mãe biológica da Parte residia legalmente em Macau à data do seu nascimento, não se encontrava preenchido o requisito previsto no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, portanto, a Parte não possui o estatuto de residente de Macau, não lhe devendo ser emitido o Bilhete de Identidade de Residente de Macau.
32. Nesta situação, estes Serviços não podem fazer como a advogada disse, não podendo continuar a emitir à Parte o Bilhete de Identidade de Residente de Macau tão só porque a mesma “tem oportunidade” para possuir o estatuto de residente de Macau, enquanto a identidade do seu pai é desconhecida. Isso violará necessariamente o princípio da legalidade.
33. No que concerne à identidade do pai biológico da Parte, há que apontar que estes Serviços não têm competência para investigar e determinar a identidade do pai biológico da Parte, é impossível para a Administração saber da identidade do pai biológico da mesma. De facto, só a mãe da Parte é que sabe melhor da identidade do pai biológico da Parte.
34. Ainda mais, nos termos dos artigos 62.º, n.º 2, 87.º e 88.º do Código do Procedimento Administrativo e do artigo 335.º , n.º 1 “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, do Código Civil, cabe à Parte o ónus de provar o seu estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau. Caso entenda reunir os requisitos legais para a aquisição do estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, deve apresentar à Administração as informações ou prova.
35. É de salientar que a lei estipula directamente quem tenha o estatuto do residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau e que, para verificar se uma pessoa tem o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, tanto o Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, como o posterior regime do bilhete de identidade de residente, exigem que a identidade dos pais do requerente seja determinada com base no assento de nascimento do requerente para determinar se o requerente tem o estatuto do residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau.
36. A este respeito, pelo Ministério Público foi emitido o parecer na sua sentença sobre um caso semelhante de informações falsas sobre a paternidade, indicando expressamente que é claramente errado o entendimento de que o ónus da prova da paternidade cabe à Administração quando não constava do assento de nascimento a paternidade, não considerando que a decisão da Administração de declarar da nulidade do documento tenha violado o princípio da inquisitório (vide o acórdão do Tribunal de Segunda Instância no processo n.º 809/2021, de 16/6/2022, em que o Juiz do Tribunal de Segunda Instância concordou e reproduziu os pareceres pertinentes da decisão):
“Começa a Recorrente por alegar que é uma cidadã chinesa que residiu habitualmente em Macau por mais de 7 anos e que, por isso, face ao disposto no artigo l.º, n. e 1, alínea 2) e artigo 4.º e da Lei n.º 8/1999 adquiriu o estatuto de residente permanente.
Diz mais. Diz que, actualmente, do seu assento de nascimento não resulta quem é o seu pai, pelo que era sobre a Administração que recaia o ónus da prova quanto à questão da paternidade da Recorrente em virtude do princípio do inquisitório previsto no artigo 86.º do Código do Procedimento Administrativo (Código do Procedimento Administrativo).
Salvo o devido respeito, a Recorrente labora em manifesto equívoco.
Na verdade, a Administração declarou a nulidade do acto da emissão e dos actos de renovação do BIR da Recorrente no pressuposto da sua nulidade em virtude da desconformidade verificada judicialmente entre a paternidade da Recorrente constante do registo e a paternidade biológica. Ficou judicialmente demonstrado que o pai da Recorrente não é o residente de Macau que ficou a constar do seu assento de nascimento.
Ora, por força da declaração de nulidade da emissão do BIR e bem assim das respectivas renovações, atento o efeito retroactivo das mesmas, é evidente que se não pode dizer que a Recorrente tenha residido legalmente em Macau e, portanto, face ao disposto no n.º 1 do artigo 4.º e da lei n.º 8/1999 que aqui tenha residido habitualmente.
Parece-nos deslocada, neste contexto, a invocação do princípio do inquisitório para procurar justificar a anulação do acto recorrido tendo em conta os seus concretos fundamentos.”
   (Sublinhado nosso)
37. A advogada referiu que, na situação em que a mãe já passou a ser residente de Macau e não foi confirmada a paternidade, a decisão de cancelar o Bilhete de Identidade de Residente de Macau da parte violava claramente os princípios da proporcionalidade, da boa fé e da justiça. É de frisar novamente que, uma vez que não conseguiu comprovar que o pai biológico ou a mãe biológica residia legalmente em Macau à data do nascimento da parte em Macau, pelo que a parte não preencheu os requisitos legais de obter a qualificação de residente de Macau, a Direcção dos Serviços de Identificação tem de declarar a nulidade do acto da emissão do documento nos termos da lei. Este é um acto vinculado, a Administração não tem qualquer direito de opção quanto ao conteúdo daquele acto, nem tem margem para discricionariedade.
38. Nestas circunstâncias, a Direcção dos Serviços de Identificação não pode, a pedido apresentado pela advogada (vide a última parte do recurso hierárquico), exercer o poder discricionário para conservar o estatuto de residente de Macau da parte e conservar o seu Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau e o seu passaporte da Região Administrativa Especial de Macau, uma vez que o legislador não concedeu qualquer margem à Administração para exercer o poder discricionário.
39. No que diz respeito à função dos princípios gerais fundamentais do direito administrativo para o acto vinculado, o Tribunal de Segunda Instância no acórdão dos casos semelhantes de informações falsas sobre a paternidade (acórdão do proc. n.º 1191/2019, de 10/12/2020) referiu que não tem significado para invocar os princípios gerais do direito administrativo (princípio da boa fé, da confiança e da proporcionalidade e da justiça) previstos no Código do Procedimento Administrativo em relação ao acto vinculado:
“De seguida, passemos a ver a 3.ª e 4.ª questão em conjunto.
Violação de lei por a administração ter considerado que o acto de declaração de nulidade é vinculado e
Violação dos princípios da boa fé da confiança da proporcionalidade e da justiça;
Nos termos acima analisados, não resta dúvida que a situação de reconhecimento do direito a residir em Macau é uma situação vinculativa, desde que estejam preenchidos os pressupostos legalmente fixados, o agente administrativo tem de reconhecer tal direito, não lhe restando quase nenhum espaço da opção. Pelo que, torna-se inútil invocar os princípios gerais do Direito Administrativo, já que o controlo do acto administrativo praticado no exercício do poder vinculado é muito apertado.
Nesta óptica, improcede também estes argumentos do Recorrente, julgando-se também improcedente o recurso nesta parte.”
40. Alem disso, o Tribunal de Última Instância, no seu acórdão do processo n.º 26/2019, de 18/9/2019, indicou que “Por outro lado, é de reafirmar aqui o entendimento uniforme deste Tribunal de Última Instância no sentido de que no âmbito da actividade vinculada não se releva a alegada violação dos princípios da boa fé e da igualdade (e ainda dos princípios da justiça, da proporcionalidade, da tutela da confiança).”
41. É de indicar também o acórdão do Tribunal de Última Instância, no proc. n.º 14/2014, de 9/4/2014, que:
“Ora, como se sabe, em sede de vinculações legais, não está em causa a infracção de princípios como o da proporcionalidade ou da justiça, que só têm razão de ser naquelas matérias em que os órgãos administrativos têm poderes discricionários, o que não é o caso.
Como referimos no acórdão de 14 de Dezembro de 2011, no processo n.º 54/2011, quando a Administração não dispõe, face ao tipo legal do acto, de margem de discricionariedade ou liberdade decisória, é inoperante a alegação de violação dos princípios da boa-fé, da igualdade, proporcionalidade ou justiça.”
42. Nesta base, como a declaração da nulidade de uma série de actos de emissão de documentos à parte é um acto vinculado, os princípios gerais do direito administrativo não se aplicam, ou seja, a decisão não viola os princípios da proporcionalidade, da boa fé e da imparcialidade referidos pela advogada representante.
43. No que diz respeito a que a advogada indicou que, após o cancelamento dos documentos da parte, o desconhecimento da paternidade impossibilitou-a de obter um registo domiciliar e de reconstruir a sua vida, considerou que a decisão de cancelar os documentos violava a Lei Básica no que diz respeito ao direito fundamental à vida. Como já foi referido, uma vez que a decisão de declarar a nulidade de um documento é um acto vinculado, nestas circunstâncias, a Direcção dos Serviços de Identificação não pode, pelo mero facto de a parte não poder obter o registo domiciliar e restabelecer a sua vida, continuar a emitir o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau à parte que não tem o estatuto de residente permanente de Macau, o que é contrário ao princípio da legalidade.
44. Apesar disso, não obsta a que a parte apresente à entidade competente um pedido de fixação de residência em Macau, nos termos do artigo 11.º, n.º 1 da Lei n.º 16/2021 (Regime jurídico do controlo de migração e das autorizações de permanência e residência na Região Administrativa Especial de Macau), “O Chefe do Executivo pode, por razões humanitárias ou por outros motivos excepcionalmente atendíveis e fundamentados, conceder autorizações de entrada, de permanência e de residência, e respectivas renovações ou prorrogações, com dispensa dos requisitos, condições e formalidades legalmente previstos.” Contudo, a concessão de autorização do pedido de fixação de residência em Macau é um procedimento diferente do procedimento de cancelamento de documentos aqui previsto, e a concessão ou não de autorização da fixação de residência em Macau a título excepcional, também não é uma questão a apreciar no procedimento de cancelamento de documentos aqui previsto.
(2) Relativamente ao aspecto de concessão de efeitos jurídicos putativos a acto administrativo nulo (pontos 15 a 19 do recurso hierárquico)
45. A advogada considerou que, embora a concessão de efeitos jurídicos putativos a um acto administrativo nulo e a declaração de nulidade da emissão de documentos fossem dois procedimentos distintos, não era necessariamente impossível tratá-los no mesmo procedimento. E não concordou com que a Direcção dos Serviços de Identificação tivesse de aguardar até que a decisão da nulidade da emissão de documento fosse definitiva ou inimpugnável antes de tratar do pedido da atribuição de efeitos jurídicos putativos a acto administrativo nulo, e considerou que a Direcção dos Serviços de Identificação deveria ter tratado o pedido no presente processo administrativo ao mesmo tempo.
46. De acordo com o artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, “O disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito.”
47. Relativamente à aplicação das disposições legais acima referidas, vide o parecer do Ministério Público no acórdão do Tribunal de Segunda Instância, proc. n.º 1078/2020, que refere o seguinte:
“6. No nosso prisma, a palavra ‘possibilidade’ significa que o n.º 3 do art.º 122.º do Código do Procedimento Administrativo confere poder discricionário à Administração. No aresto tirado no Processo n.º 147/2018, o douto TSI explanou: Cremos, no entanto, que o recorrente não pode obter por esta via (recurso contencioso contra o acto de cancelamento do Bilhete de Identidade de Residente de Macau) aquilo que só estará em causa, se e quando pedir à entidade administrativa competente que lhe atribua o direito à residência com fundamento no art.º 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo e 326.º do CC, ‘a contrario sensu’ , e se quando tal lhe for negado. Ou seja, só se não lhe for deferido esse pedido é que poderá tentar os mecanismos reactivos apropriados, seja pela via do recurso contencioso com a expressa invocação do respectivo vicio, seja pela via da acção a que se refere o art. 103.º, do Código do Processo Administrativo Contencioso, ou se tal for o caso, da acção reconhecimento de direito a que alude o art. 100.º.
Esta tese leva-nos a inferir que o exercício do poder discricionário consignado no referido n.° 3 carece do requerimento do interessado, e tem como pressuposto a prévia declaração da nulidade, por isso, a declaração da nulidade dum acto administrativo não coincide com a decisão de atribuição ou não certos efeitos jurídicos favoráveis, sendo distintos.”
48. Além disso, o Juiz do Tribunal de Segunda Instância, já em 19/5/2022, fez uma declaração para exprimir o seguinte entendimento:
“Por outro lado, a atribuição de efeitos jurídicos de fixação de residência em Macau à recorrente a situações de facto decorrentes de actos nulos, é necessário haver um pressuposto de declaração de nulidade. Assim, não é possível, por um lado, anular o acto recorrido (manter a decisão da declaração de nulidade do Director da Direcção dos Serviços de Identificação) e, por outro lado, conferir à recorrente o efeito jurídico do direito da fixação de residência em Macau com base nas circunstâncias de facto decorrente do acto nulo.
Com respeito das diferentes opiniões, considero que se pretender obter a atribuição de efeitos jurídicos de fixação de residência em Macau à recorrente a situações de facto decorrentes de actos nulos, é necessário em primeiro confessar o estabelecimento da declaração de nulidade feita pela Administração, sucessivamente, exigem à Administração a atribuição de efeitos jurídicos de fixação de residência em Macau à recorrente a situações de facto decorrentes de actos nulos.”(sublinhado nosso)
49. A partir daí verifica-se que o pressuposto da atribuição dos efeitos jurídicos putativos a acto nulo necessita de ter uma decisão de declaração de nulidade, e aguarda até que a decisão sobre a declaração da nulidade de emissão de documentos à parte fosse definitiva ou inimpugnável, só pode tratar do pedido apresentado nos termos do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, caso contrário, iria surgir uma circunstância em que, por um lado, havia uma impugnação daquele acto nulo, e por outro lado, exigem a atribuição dos efeitos jurídicos putativos a acto nulo.
50. Por outras palavras, a atribuição ou não dos efeitos jurídicos putativos a situações de factos decorrentes do acto nulo, com a declaração da nulidade quanto à emissão de documentos, sendo os dois diferentes procedimentos distintos, opinião a qual é também aceitável na prática jurídica.
51. Por conseguinte, face ao pedido apresentado nos termos do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, é necessário aguardar até que a decisão sobre a declaração da nulidade de emissão de documentos à parte fosse definitiva ou inimpugnável, só pode tratar de tal pedido, isto é, atribui ou não à parte os efeitos jurídicos putativos a acto nulo, não é a matéria que o presente processo administrativo deve apreciar.
52. Além disso, indicam os acórdãos do Tribunal de Última Instância, nos processos n.ºs 53/2021, 56/2021, de 27/7/2022 e de 21/9/2022:
“Se é aplicado ou não o poder conferido pelo art.º 123.º, n.º 3, para a “conservação” dos certos efeitos jurídicos decorrentes do acto nulo, sendo o âmbito do poder discricionário do órgão administrativo.
Quanto ao exercício do poder discricionário, salienta este TUI nos vários acórdãos, salvo a situação excepcional, no âmbito em que a Administração exerce o poder discricionário, a decisão feita pela Administração não sujeita à apreciação do tribunal no caso de não envolver a que a matéria deve ser resolvida através da decisão vinculada.”
53. Além disso, vide o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, no proc. n.º 782/2017, de 11/10/2018, no qual indica:
“Em relação aos eventuais efeitos putativos do acto nulo previstos pelo n.º 3 do art.º 123.º do Código do Procedimento Administrativo, salientamos que se trata duma excepção da regra geral prevista no n.º 11 do mesmo preceito.
Sendo regra de excepção, cabe à própria Administração ponderar, dentro do seu poder discricionário, se deve ou não atribuir certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes do acto nulo.
E consabido que o exercício do poder discricionário por parte da Administração só é sindicável pelo tribunal nos casos de erro manifesto, da total desrazoabilidade e do desvio de poder - als. d) e e) do n.º 1 do art.º 21.º do Código do Processo Administrativo Contencioso, que não é o caso.
Não ignoramos que o Recorrente não tem qualquer intervenção no processo de crime de falsificação de documento que lhe permitiu obter o estatuto de residente permanente e tem vivido na Região Administrativa Especial de Macau há mais de 16 anos.
Perante a necessidade de combate às situações fraudulentas de obter o estatuto de residente e o interesse do Recorrente em continuar a viver na Região Administrativa Especial de Macau, nada a censurar a Administração em dar mais relevância à primeira, ou à segunda.
Trata-se duma opção político-administrativa dentro do seu poder discricionário.
Pois, ao permitir o Recorrente continuar a residir na Região Administrativa Especial de Macau a título de residente permanente pode trazer à sociedade a mensagem errada no sentido de poder obter o estatuo (sic.) de residente permanente por aquela forma, o que equivale encorajar as pessoas a fazerem o mesmo no futuro.
Pelas razões expendidas, entendemos que o exercício do poder discricionário por parte da Administração no caso em apreço não padece do erro manifesto, da total desrazoabilidade e do desvio de poder, nem violou os princípios orientadores da actividade administrativa, nomeadamente os da boa fé, da justiça, da adequação e da proporcionalidade.”
54. Verifica-se que, para a atribuição dos efeitos jurídicos putativos a situações do facto decorrente do acto nulo ou não, sujeitar ao poder discricionário da Administração, e que, embora a lei confira esse poder à Administração, não a obriga a tomar essa decisão. Mesmo que a Administração decida, finalmente, não atribuir um efeito jurídico putativo ao acto administrativo nulo, a prática em causa não envolve a qualquer erro manifesto ou total desrazoabilidade, nem viola os princípios orientadores da boa fé, da justiça e da proporcionalidade na actividade administrativa.
55. A Direcção dos Serviços de Identificação tinha dito que nunca atribuiu os efeitos jurídicos putativos a situações do facto decorrentes do acto nulo, o que é meramente para explicar à advogada a situação real dos casos relevantes que a Direcção dos Serviços de Identificação já tratou, não é para ser o motivo de não exercer o poder discricionário, pois, desde o início até ao fim, a Direcção dos Serviços de Identificação sempre considera que a atribuição de efeitos jurídicos putativos a actos administrativos nulos como uma excepção no regime de nulidade é um procedimento diferente da declaração de nulidade do acto de emissão de documentos. Por conseguinte, a Direcção dos Serviços de Identificação não fez por enquanto qualquer análise e decisão sobre a atribuição ou não dos efeitos jurídicos putativos, já para não falar da alegação da advogada de que a decisão violava o princípio da legalidade.
IV. Sugestão
Pelo exposto, visto que, quando a parte nasceu em Macau, a sua mãe biológica não é residente de Macau, e não foi confirmada a identidade do seu pai biológico, assim, a parte não satisfaz a disposição do artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10/5, pois não tem o estatuto de residente de Macau, pelo que não deve ser atribuído o Bilhete de Identidade de Residente de Macau, e que não satisfaz a disposição no artigo 9.º, n.º 2 da Lei n.º 8/1999, a mesma não tem o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, também não preenche o artigo 2, n.º 2, alínea (1) da Lei n.º 8/2002 e o artigo 23 do Regulamento Administrativo n.º 23/2002, não deve ser atribuído o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau, e não deve ser atribuído o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau por não preencher o artigo 5.º da Lei n.º 8/2009, 《Estabelece os princípios gerais do Regime do bilhete de identidade de residente da Região Administrativa Especial de Macau》.
A paternidade constante do assento de nascimento da parte não é verdadeira, a falsidade do facto iguala à falta absoluta do conteúdo ou objecto do acto administrativo, pelo que o acto da emissão de documentos da Direcção dos Serviços de Identificação, por carecer da autenticidade do facto comprovado (que a parte tem estatuto de residente de Macau) e da base da lei, pelo que padece do vício de nulidade por falta de elemento essencial, simultaneamente, devido à consideração da gravidade do prejuízo e do interesse público, o respectivo acto de emissão também sofre do vício de nulidade, pelo que uma série de acto da emissão de documentos à parte por parte da Direcção dos Serviços de Identificação, é nula de acordo com o artigo 122.º, n.º 1 e n.º 2, alínea i) do Código do Procedimento Administrativo.
Pelo exposto, não existe na decisão da Direcção dos Serviços de Identificação o vício indicado pela advogada, quanto à atribuição dos efeitos jurídicos putativos aos actos administrativos nulos relativos à parte ou não nos termos do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, não é a matéria que este processo administrativo deve apreciar, visto que a advogada nas alegações de recurso hierárquico ainda não conseguiu comprovar que a parte tem o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau conforme fixado por lei, é improcedente o fundamento indicado pela advogada, segundo o qual deve conservar o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau da parte.
Por conseguinte, sugere-se ao Sr. Director que proponha ao Exmo. Secretário a manutenção da decisão de declarar a nulidade dos actos administrativos da emissão à parte do Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º 1/3XXXX7/3, e da renovação e substituição do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau n.º 13XXXX7(3) e da emissão do passaporte da Região Administrativa Especial de Macau n.º MB01XXX13, bem como de cancelar, nos termos da lei, o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau n.º 13XXXX7(3), que foi emitido à parte pela 1.ª vez em 21/6/1999, e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau n.º MB01XXX13, e em consequência, rejeita-se o recurso hierárquico apresentado pela Advogada da parte.’
Se não conformar com a decisão acima referida, poderá recorrer contenciosamente junto do Tribunal de Segunda Instância no prazo de 30 dias a partir da recepção deste ofício.».
c) A Requerente em 16.06.2021 licenciou-se em Ciências Sociais (Comunicação – Comunicação Pública) pela XX – cf. fls. 50 -;
d) A Requerente trabalha em Macau na firma “XX” Personal Studio, desde Setembro de 2023 – cf. fls. 51 -.
  
2) Do Direito
  
  De acordo com o disposto no artº 120º do CPAC «a eficácia dos actos administrativos pode ser suspensa quando os actos:
  a) Tenham conteúdo positivo;
  b) Tendo conteúdo negativo, apresentem uma vertente positiva e a suspensão seja circunscrita a esta vertente.».
  No caso dos autos o acto em causa nega à Requerente o estatuto de residente da RAEM, o que, tal como se refere no Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público, é um acto de conteúdo positivo, uma vez que dele resulta a alteração da situação jurídica que autorizava a permanência da Requerente na RAEM.
  Por sua vez o CPAC no seu artº 121º consagra os requisitos para que a suspensão seja concedida, a saber:
«Artigo 121.º
(Legitimidade e requisitos)
  1. A suspensão de eficácia dos actos administrativos, que pode ser pedida por quem tenha legitimidade para deles interpor recurso contencioso, é concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos:
  a) A execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso;
  b) A suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto; e
  c) Do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso.
  2. Quando o acto tenha sido declarado nulo ou juridicamente inexistente, por sentença ou acórdão pendentes de recurso jurisdicional, a suspensão de eficácia depende apenas da verificação do requisito previsto na alínea a) do número anterior.
  3. Não é exigível a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 para que seja concedida a suspensão de eficácia de acto com a natureza de sanção disciplinar.
  4. Ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito previsto na alínea b) do n.º 1, a suspensão de eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente.
  5. Verificados os requisitos previstos no n.º 1 ou na hipótese prevista no número anterior, a suspensão não é, contudo, concedida quando os contra-interessados façam prova de que dela lhes resulta prejuízo de mais difícil reparação do que o que resulta para o requerente da execução do acto.».
  
  Vejamos então.
  
  No caso em apreço a autorização de residência em Macau foi concedida à Requerente aquando do seu nascimento por ser filha de residente de Macau.
  Verificando-se que a paternidade atribuída ao residente de Macau era falsa foi declarada a nulidade dos actos que autorizaram a emissão do bilhete de identidade de residente de Macau e do respectivo passaporte.
  Alega a Requerente que nasceu e sempre viveu em Macau onde estudou e actualmente trabalha, não tendo documentos de qualquer outro país ou região, sendo em Macau que tem todas as suas relações de amizades e familiares e a onde está emocionalmente ligada, pelo que, ter de deixar de viver em Macau sem ter documentos de qualquer outro país ou região onde viver lhe causa um prejuízo emocional e psíquico que não é susceptível de reparação.
  Da execução imediata do despacho cuja suspensão se pede inquestionavelmente resulta que a Requerente não mais pode comparecer ao trabalho o que implica a perda do emprego para além de ficar impedida de continuar a privar com a sua família e amigos no meio social onde nasceu, cresceu e sempre viveu.
  Por outro lado a Requerente é forçada a sair de Macau, único local onde até hoje viveu e mudar-se para outro país ou região sem ter quaisquer documentos de identificação e de viagem.
  Qualquer indemnização que pudesse vir a ser arbitrada no futuro pela perda salarial não equivale a que quem perdeu o emprego o volte a recuperar, pelo que, o prejuízo resultante da perda do emprego nunca poderá ser completamente reparado através de uma indemnização em que se paguem os valores perdidos a título de salário, seja porque o emprego “já se perdeu” seja pela perca de realização profissional, valores que também têm de ser equacionados, isto sem falar no período que decorre entre a perda e a reparação e as carências que inexoravelmente estão associadas à perda de emprego e de rendimentos.
  Situação essa que no caso é agravada pela necessária perturbação emocional e de insegurança decorrente de ser obrigada a mudar-se do local onde nasceu e com que se identifica para um outro que lhe será maioritariamente estranho, ficando privada da companhia do seu grupo social e familiar.
  Tal é para nós o bastante para concluirmos estar verificado o requisito da al. a) do nº 1 do artº 121º do CPAC, posição que é também sustentada no Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público.
  
  Acompanhamos o parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público de que estão verificados os requisitos das alíneas b) e c) do nº 1 do artº 121º do CPAC, uma vez que não resultam indícios em sentido contrário.
  Destarte, estando preenchidos os requisitos cumulativos do nº 1 do artº 121º do CPAC impõe-se decidir em conformidade deferindo a requerida suspensão de eficácia do acto.
  
  IV. DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos vai deferido o pedido de suspensão de eficácia do despacho do Secretário para a Administração e Justiça de 04.09.2024 que indeferiu o recurso hierárquico interposto da decisão de declarar a nulidade do acto de emissão à Requerente do Bilhete de Identidade de Residente Permanente e do Passaporte, ambos da RAEM, da Requerente A.
  
  Sem custas por delas estar isenta a Entidade Requerida.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 14 de Novembro de 2024
  
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)

Seng Ioi Man
(1o Juiz-Adjunto)

Fong Man Chong
(2o Juiz-Adjunto)

Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto)
  



776/2024/A SUPSENSÃO 1