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Processo nº 196/2024
(Autos de Recurso Contencioso)

Data do Acórdão: 28 de Novembro de 2024

ASSUNTO:
- Habitação Económica
- Dispensa de requisitos impedientes
- Prova

SUMÁRIO:
- A falta de prova dos factos integradores dos pressupostos que eventualmente conduziriam à dispensa de requisitos impedientes não pode deixar de conduzir à improcedência do pedido.


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Rui Pereira Ribeiro






Processo nº 196/2024
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 28 de Novembro de 2024
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para os Transportes e Obras Públicas
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  A, com os demais sinais dos autos,
  veio interpor recurso contencioso do Despacho de 01.12.2023 de desaprovação da dispensa de requisitos impedientes para a candidatura à habitação social proferido pelo Secretário para os Transportes e Obras Públicas na proposta nº 7070/DHP/DHS/2023, formulando as seguintes conclusões:
A. O Recorrente não se conformou com a decisão do despacho da proposta n.º 7070/DHP/DHS/2023, feita pela Entidade Recorrida, com todo o respeito, considerando que o acto recorrido padecia de vício, violando o disposto no artigo 8.º, n.º 2, da Lei n.º 17/2019 - “Regime Jurídico da Habitação Social”, e ao mesmo tempo violando os princípios da justiça e da imparcialidade previstos no artigo 7.º do Código do Procedimento Administrativo, pelo que interpôs Recurso Contencioso para Vossa Excelência.
B. Uma vez que os direitos do Recorrente foram lesados pelo acto administrativo que é objecto do presente Recurso Contencioso, o Recorrente tem legitimidade para interpor o presente Recurso Contencioso nos termos do art.º 33.º, alínea a), do CPAC.
C. O Recorrente, em 28 de Dezembro de 2022, foi apresentado(sic.) para o Instituto de Habitação um Boletim de Candidatura a Habitação Social (“Boletim de Candidatura”), com o número 31202005146. E o representante do agregado familiar é o Recorrente. (Ver Documento 2)
D. Ao mesmo tempo, o Recorrente requereu que fosse dispensado do requisito impediente por ter sido um adquirente de habitação económica.
E. O Recorrente foi forçado a vender a referida fracção da habitação económica a B quando adquiriu a fracção devido às dificuldades financeiras em que se encontrava.
F. Em 15 de Fevereiro de 2008, o Recorrente assinou com C a escritura de compra e venda, que foi levado pelo amigo do Recorrente, D, ao referido Cartório Notarial para assinar a mesma.
G. De facto, o Recorrente não conhecia C, nem sabia a quem a fracção em questão tinha sido vendida.
H. Como o Recorrente era analfabeto, e naquela altura, D levou-o a assinar a escritura de compra e venda e lhe disse que se trata de uma formalidade governamental necessária, e que lhe disse apenas para assinar, e que D trataria dos assuntos subsequentes.
I. O Recorrente também não pensou muito sobre o assunto, pensando que poderia simplesmente assinar os documentos relevantes tal como exigido por D e que isso não o afectaria de forma alguma.
J. O Recorrente também não foi claro quanto às circunstâncias efectivas da transferência da fracção da habitação económica em 2008, razão pela qual não foi capaz de explicar claramente o resultado final da venda da fracção da habitação económica quando apresentou a sua justificação ao IH.
K. Olhando para a situação actual, o Recorrente tem agora 67 anos de idade (66 anos de idades à data da apresentação do presente pedido de habitação social), sofreu de tuberculose e, embora tenha basicamente recuperado após o tratamento, sente obviamente que as suas funções físicas não são tão boas como eram antes.
L. Consequentemente, o Recorrente teve de recorrer à pensão para idosos do FSS e ao subsídio do IAS durante muitos anos para fazer face às despesas. O Recorrente não tinha residência fixa há muitos anos e tinha alugado uma fracção de baixa renda, tendo sido mesmo forçado a mudar-se para a E em 2020. (Vide Doc. 5.)
M. Foi apenas por esta razão que o Recorrente não teve outra alternativa senão solicitar ao Governo uma habitação social, na esperança de que as autoridades lhe dessem uma ajuda para que pudesse ter um lugar para viver.
N. Por fim, em 1 de Dezembro de 2023, a Entidade Recorrida deu o seu “consentimento” na Proposta n.º 7010/DHP/DHS/2023, isto é, concorda que não seja permitido o pedido relativo à dispensa do requisito impediente. (Vide Doc. 2)
O. Com o devido respeito, o Recorrente considera que o acto recorrido enferma de vício e que a Entidade Recorrida não exerceu a discricionariedade que lhe foi conferida de acordo com as disposições legais do artigo 8.º, n.º 2, da Lei n.º 17/2019, “Regime Jurídico da Habitação Social”, violando o princípio da justiça e da imparcialidade, conforme estipulado no artigo 7.º do CPA.
P. É verdade que o Recorrente foi adquirente de uma habitação económica, mas foi obrigado a vendê-la devido às suas dificuldades financeiras na altura e não usufruiu verdadeiramente dos recursos de uma habitação económica.
Q. O Recorrente considera que, ao considerar que a entidade recorrida satisfez o elemento de dispensa do requisito impediente, não pode apenas centrar-se nas circunstâncias que envolveram a venda da fracção da habitação económica pelo Recorrente, e mesmo exigir-lhe que prove por si só os factos de mais de 20 anos de história, o que equivale a colocar o Recorrente numa posição difícil.
R. O Recorrente considera que todas as circunstâncias da sua aquisição da fracção da habitação económica até ao presente momento, devem ser analisadas em pormenor e, se necessário, deve ser prestada assistência para descobrir a verdade antes de se decidir conceder uma oportunidade excepcional para se candidatar a uma oportunidade de arrendamento de habitação social.
S. A entidade recorrida deve equilibrar o interesse público com os interesses legítimos dos particulares. Todos os interesses protegidos por lei devem ser tidos em conta na medida do possível.
T. No presente caso, é evidente que a entidade recorrida não teve uma visão global e equilibrada de todas as circunstâncias, incluindo todos os factos, tanto favoráveis como desfavoráveis ao Recorrente, na sua decisão.
U. Ao centrar-se no facto de o Recorrente ter beneficiado de recursos da habitação económica, a entidade recorrida, de modo obstinado, ao considerar as circunstâncias desfavoráveis que impediram o Recorrente de se candidatar a um arrendamento de habitação social.
V. Do exposto, resulta claro que a decisão da Entidade recorrida viola o princípio da imparcialidade previsto no artigo 7.º do CPA.
W. Nesta base, o acto recorrido deve ser anulado, nos termos do art.º 124.º do CPA e do artigo 21.º, n.º 1, alínea d), do CPAC.

  Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas contestar, apresentando as seguintes conclusões:
A) Quanto à alegada violação do disposto no n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019 (Regime jurídico da habitação social) e do princípio da justiça e da imparcialidade, em conformidade com o artigo 2.º do Regime jurídico da habitação social, a lei visa apoiar os residentes da RAEM em situação económica desfavorecida na resolução dos seus problemas habitacionais.
B) O número de fracções de habitação social é extremamente limitado, a Administração deve assegurar a atribuição de habitação social aos indivíduos que se encontrem, de facto, em situação económica difícil e que reúnam os requisitos de candidatura, evitando o abuso daqueles que já usufruíram dos benefícios das habitações do Governo, sendo que o objectivo legislativo da alínea 2) do n.º 1 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social é o de restringir as candidaturas ao arrendamento de habitação social aos indivíduos que foram adquirentes de habitação económica.
C) Embora o n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social tenha estipulado uma situação excepcional para dispensar o requisito impediente, não se pode esquecer que apenas pode ser dispensado quando o adquirente da habitação económica puder comprovar que procedeu à venda da fracção devido a problemas de saúde, dificuldades económicas, alterações adversas das circunstâncias familiares e acentuada diminuição do rendimento da família previstos no n.º 2.
D) O legislador elaborou um conjunto de critérios objectivos de avaliação socialmente aceitáveis para o integral cumprimento da lei pela Administração. A Entidade Recorrida está obrigada a cumprir a lei, verificando se o Recorrente está abrangido pelas situações legalmente previstas que permitam a dispensa dos requisitos impedientes, de modo a cumprir os princípios gerais consagrados no CPA, que naturalmente incluem o princípio da justiça e da imparcialidade previstos no artigo 7.º. O Recorrente alegou que deve ser efectuada uma análise concreta de acordo com as suas circunstâncias em que se encontra até ao presente momento, mas não há fundamento legal para sustentar a sua alegação.
E) O conteúdo dos pontos 17.º a 19.º, 21.º, 22.º, 24.º, 28.º a 30.º da petição do Recorrente são factos objectivos que devem ser comprovados por documentos objectivos, mas devido à falta de provas destes factos, a Entidade Recorrida não concorda com o seu conteúdo.
F) O Recorrente limitou-se a alegar, de forma vaga que o pagamento da entrada inicial e da amortização da habitação adquirida foi sempre efectuado por outrem e que se encontrava em situação de insolvência, mas não apresentou provas documentais, tais como recibos de empréstimos de terceiros, e também não prestou qualquer prova testemunhal.
G) É de notar que a alegação do Recorrente no ponto 24.º da petição se limita a adoptar expressões incertas de “presumir”, “muito provavelmente enfrentar dificuldades económicas” (a Entidade Recorrida não concorda com o ponto 24.º), daí se depreende que, mesmo na óptica do Recorrente, as razões invocadas para a venda da fracção não podem ser “comprovadas”.
H) Na ausência de qualquer prova objectiva, a Entidade Recorrida entendeu que o Recorrente não provou que procedeu à venda da fracção devido a problemas de saúde, dificuldades económicas, alterações adversas das circunstâncias familiares e acentuada diminuição do rendimento da família, configurando, assim, um exercício razoável do poder discricionário.
I) Neste caso, o acto recorrido foi praticado de acordo com o princípio da legalidade, e não violou o princípio da justiça e da imparcialidade previsto no artigo 7.º do CPA.
J) Quanto à alegada violação do princípio da averiguação, é certo que o dever de averiguação é um dever da Administração, mas não significa que a Administração tem de esgotar todos os meios de averiguação disponíveis para o apuramento dos factos, ou seja, a Administração tem a liberdade e o poder de escolher as diligências instrutórias que considera úteis, sendo que só fazem sentido quando “sejam convenientes para justa e rápida decisão do procedimento”.
K) A Entidade Recorrida cumpriu o dever de averiguação nos termos das disposições referidas e adoptou os métodos ao seu alcance. A Entidade Recorrida, através do Instituto de Habitação, procedeu à averiguação dos registos entre 2006 e 2008 referentes à contribuição e às prestações do regime de segurança social, ao imposto profissional, contribuição industrial da Direcção dos Serviços de Finanças e às informações relativas à transmissão da fracção.
L) Além disso, como as provas apresentadas pelo Recorrente não foram suficientes para comprovar que o motivo da venda da fracção se enquadrava numa das situações previstas no n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social, a Entidade Recorrida concedeu-lhe a oportunidade de audiência, enviando uma notificação para apresentação dos documentos comprovativos específicos, bem como todas as provas testemunhais, materiais, documentais ou outros meios de prova para provar os factos relevantes, nos termos dos artigos 93.º e 94.º do CPA.
M) Os factos alegados pelo Recorrente são de natureza pessoal, a Entidade Recorrida não tinha condições para a investigação oficiosa, nem sequer pôde indagar sobre a realidade dos factos que a Recorrente alegou.
N) O pedido de dispensa do requisito impediente foi apresentado pelo Recorrente por sua própria iniciativa. Nos termos do artigo 87.º do CPA, cabe ao Recorrente provar os factos que alega.
O) O legislador indicou expressamente no n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico que o sujeito da prova é o adquirente da habitação económica, ou seja, o Recorrente.
P) Como o Ilustre Tribunal de Segunda Instância tão perspicazmente afirmou, em 31 de Março de 2022, no Processo n.º 692/2021: “O princípio da averiguação não é supérfluo nem se sobrepõe à repartição do ónus da prova prevista no n.º 1 do artigo 87.º do CPA”.
Q) Ao mesmo tempo que a Entidade Recorrida cumpre o seu dever de averiguação nos termos da lei, o papel da Recorrente na produção de prova também é indispensável e insubstituível.
R) Pelo exposto, não existe erro manifesto no acto recorrido, não violou o disposto no n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social, nem os princípios da justiça, da imparcialidade e da averiguação, também não padece do vício de violação de lei previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 21.º do CPAC, pelo que deverá ser mantido e nunca anulado.
  
  Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, veio a Entidade Recorrida fazê-lo, reiterando a posição antes assumida.
  
  Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer pronunciando-se pela improcedência do recurso.
  
  Foram colhidos os vistos.
  
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  
  O Tribunal é o competente.
  O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
  Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
  
  Cumpre assim apreciar e decidir.
  
III. FUNDAMENTAÇÃO

a) Dos factos

1. Por Despacho do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas datado de 01.12.2023 foi indeferido o pedido formulado pelo Recorrente relativo à dispensa do requisito impediente com base nos fundamentos constantes na proposta nº 7010/DHP/DHS/2023 cujo teor aqui se dá por reproduzido e que consta o seguinte:
«Assunto: Candidatura a habitação social
Proposta de não autorização do pedido de dispensa do requisito impediente por ter sido adquirente de habitação económica
Boletim de candidatura n.º 31202005146
Informações do caso:
1. A (adiante designado por candidato) apresentou o boletim de candidatura a habitação social, tendo-lhe sido atribuído o n.º 31202005146, e o seu agregado familiar é constituído por 1 elemento.
O candidato pediu a dispensa do requisito impediente por ter sido adquirente de habitação económica, uma vez que, em 7 de Setembro de 1994, a título individual (agregado familiar com 1 elemento), comprou a fracção sita no Edifício XX, Bloco XX, XX.º andar XX, e celebrou a escritura pública de compra e venda em 30 de Setembro de 1997, no valor de 115 310 patacas, hipotecou a supracitada fracção ao Banco da F e pediu um empréstimo no valor de 60 000 patacas. No entanto, devido a dificuldades económicas, não lhe foi possível suportar o pagamento da entrada inicial e das prestações da fracção em causa. Na altura, a entrada inicial e as prestações foram pagas por um amigo do seu amigo, D, e o amigo de D já residia nesta fracção desde 1994. Em 17 de Maio de 1995, o candidato assinou o contrato-promessa de compra e venda da supracitada fracção e prometeu vendê-la ao amigo de D. Em 2008, ele assinou a escritura de compra e venda, no valor de 115 000 patacas. Uma vez que o pagamento da entrada inicial e das prestações da fracção acima referida foram efectuadas por um amigo de D, não lhe foi possível receber qualquer reembolso ou valor de venda, nem nunca residiu na referida fracção.
2. Após a apreciação da habilitação e comparação das informações da candidatura, efectuadas pelo Instituto de Habitação (IH), verificou-se que o candidato foi adquirente de uma habitação económica, sita na “Rua da XX, n.º XX, Edifício XX, Bloco XX, XX.º andar XX”, estando este facto abrangido pelo requisito impediente da candidatura a habitação social, previsto na alínea 2) do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019 (Regime jurídico da habitação social).
Fundamentação legal:
3. De acordo com o n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social, se o adquirente de habitação económica provar que procedeu à venda da fracção devido a problemas de saúde, dificuldades económicas, alterações adversas. das circunstâncias familiares e acentuada diminuição do rendimento da família, ou que tenha sido efectuada venda judicial da habitação para pagamento empréstimo concedido pela entidade bancária, devido a situação de insolvência, poderá ser dispensado o requisito impediente para a candidatura a habitação social.
Análise e proposta:
4. Nos termos do artigo 87.º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/99/M, de 11 de Outubro, cabe aos interessados provar os factos que alegam, considerando que os factos alegados pelo candidato são de natureza pessoal, o IH não tem condições para proceder a uma investigação oficiosa, nem sequer pode indagar sobre a realidade dos factos alegados. Nesse sentido, o IH notificou o candidato, através do Ofício n.º 2305250027/DHS, para o procedimento de audiência, de modo a apresentar as provas para justificar os factos alegados.
5. De acordo com as informações dos Correios de Macau, o candidato assinou a confirmação da recepção do ofício no dia 2 de Junho de 2023.
6. No dia 6 de Junho de 2023, o candidato apresentou uma justificação escrita, cujo conteúdo é considerado integralmente reproduzido na presente proposta.
Para conhecer a situação do candidato durante o período de venda da fracção, o IH, através de ofícios e interconexão de dados do sistema informático, solicitou ao Fundo de Segurança Social (FSS) e à Direcção dos Serviços de Finanças (DSF) informações sobre os registos de pagamento de contribuições e prestações da segurança social, data de transferência da habitação, imposto profissional, contribuição industrial, entre outros, durante o período de venda da fracção.
De acordo com os dados obtidos relativos ao registo das contribuições do FSS, em 2006 e 2008, o candidato não tem registo de quaisquer prestações e, entre Janeiro de 2006 e Fevereiro de 2007, tem registo de pagamento de contribuições de um empregador referentes à Companhia de G, S.A.R.L... No período compreendido entre Março de 2007 e Dezembro de 2008, existem registos de pagamentos voluntários de contribuições. De acordo com as informações da DSF, a data de transferência da fracção de habitação económica do candidato é de 15 de Fevereiro de 2008, tendo registo de imposto profissional de 2006 a 2007, sendo o seu empregador a Companhia de G, S.A.R.L., e o rendimento anual foi de 61 445,90 patacas e 5 466,64 patacas, respectivamente. Quanto aos anos de 2006 a 2008, o candidato não tem qualquer registo de contribuição industrial.
7. Na justificação escrita do candidato, este referiu que, em 1994, quando adquiriu a habitação económica, não conseguiu suportar o montante da entrada inicial, por isso, pediu um empréstimo a um amigo de D para pagar a entrada inicial e as prestações. Como não conseguiu pagar as prestações bancárias e o empréstimo do amigo de D, após negociação verbal com o amigo, transferiu a fracção para o amigo de D; por ser analfabeto não assinou qualquer documento e a transação foi efectuada em numerário, pelo que não lhe foi possível apresentar qualquer documento comprovativo. O amigo de D já faleceu, sendo por isso difícil efectuar qualquer prova. Após a análise, verifica-se que durante o período de venda da fracção pelo candidato, este não tinha idade avançada e ainda tinha emprego, e o candidato não apresentou qualquer documento complementar que comprovasse a necessidade de venda da fracção por se encontrar em situação económica difícil. Além disso, o que o candidato referiu ter sucedido após a venda da fracção nada tem a ver com a venda da fracção, pelo que, com base na análise dos fundamentos acima referidos, não se pode provar que o candidato vendeu a supracitada fracção devido à situação prevista no n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social.
A par disso, segundo o referido pelo candidato, ele já é suspeito de ter violado o disposto no n.º 1 do artigo 22.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 13/93/M, de 12 de Abril, então aplicável, ou seja, prometer vender a habitação económica durante o prazo de inalienabilidade, bem como dar à fracção finalidade diversa da de habitação própria.
8. Nos termos do n.º 1 da Ordem Executiva n.º 184/2019, alterada pela Ordem Executiva n.º 88/2021, foi delegada no Secretário para os Transportes e Obras Públicas, a competência do Chefe do Executivo para poder dispensar os requisitos impedientes previstos nas alíneas 2) e 3) do n.º 1 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social, pelo que a entidade competente para a tomada de decisão é o Secretário para os Transportes e Obras Públicas.
9. De acordo com a alínea 2) do n.º 1 do artigo 8º e o n.º 2 do artigo 8.º do Regime jurídico da habitação social, por não ter sido possível comprovar que se encontrava na situação mencionada, que procedeu à venda da habitação económica devido a problemas de saúde, dificuldades económicas, alterações adversas das circunstâncias familiares e acentuada diminuição do rendimento da família, ou que tenha sido efectuada venda judicial da habitação para pagamento do empréstimo concedido pela entidade bancária, devido a situação de insolvência, propõe-se a não autorização do pedido relativo à dispensa do requisito impediente.
À consideração superior.».
  
b) Do Direito
  
  É do seguinte teor o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público:
  «1.
  A, melhor identificado nos autos, veio interpor recurso contencioso do acto administrativo praticado pelo Secretário para os Transportes e Obras Públicas, que decidiu não dispensar o Recorrente da satisfação do disposto na alínea 2) do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019, pedindo a respectiva anulação.
  A Entidade Recorrida apresentou contestação, pugnando pela improcedência do recurso contencioso.
  2.
  Alega o Recorrente que a Administração ao praticar o acto impugnado incorreu em violação dos princípios da imparcialidade e da justiça previstos no artigo 7.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) e o disposto no artigo 86.º do mesmo diploma legal.
  Salvo o devido respeito, não nos parece.
  (i)
  O acto administrativo recorrido foi praticado ao abrigo da norma de competência constante do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019. Aí se preceitua que «o Chefe do Executivo pode dispensar a satisfação do disposto nas alíneas 2) e 3) do número anterior, mas apenas quando o adquirente da habitação económica ou quem obteve a bonificação aí referida comprove que procedeu à venda da fracção devido a problemas de saúde, dificuldades económicas, alterações adversas das circunstâncias familiares e acentuada diminuição do rendimento da família, ou quando tenha sido efectuada venda judicial da habitação para pagamento do empréstimo concedido pela entidade bancária, devido a situação de insolvência».
  A transcrita norma legal utiliza, do lado da respectiva hipótese, diversos conceitos normativos indeterminados ou imprecisos («problemas de saúde», «dificuldades económicas», «alterações adversas das circunstâncias familiares» e «acentuada diminuição do rendimento familiar», os quais no entanto, não nos parece que sejam daqueles através dos quais o legislador atribui discricionariedade à Administração pois que não remetem para valorações próprias desta) e, mais do que isso, implica a formulação de um juízo de causalidade entre o circunstancialismo verificado e a venda da fracção autónoma [«(…)procedeu à venda da fracção devido(…)»: sublinhado nosso] e, do lado da estatuição, concede ao Chefe do Executivo um poder discricionário que resulta da utilização do conector deôntico «pode» e que é, justamente, o poder de dispensar o candidato à habitação social de satisfazer os requisitos a que aludem as alíneas 2) e 3) do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019.
  Na aplicação da norma são, assim, discerníveis, ao menos abstractamente, dois momentos. Um primeiro, atinente ao preenchimento fáctico-jurídico dos conceitos indeterminados contidos na norma e ao juízo de causalidade acima referido; e um segundo que é o respeitante à decisão discricionária propriamente dita.
  (ii)
  Ao contrário do que acontece quando está em causa o controlo do exercício de uma actuação vinculada por parte da Administração, os poderes de fiscalização do tribunal administrativo relativamente à legalidade do exercício do poder discricionário não são plenos. Ao tribunal cabe apenas a sindicância do respeito por parte da Administração dos limites jurídicos ao exercício de tal poder e da observância dos critérios que constituem as condições jurídicas do seu exercício legítimo (seguimos de perto a lição de PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, 2020, p. 234).
  No que especificamente tange aos critérios jurídicos do exercício do poder discricionário, a boa doutrina aponta no sentido de que um desses critérios é precisamente o conhecimento integral, exacto e correcto dos elementos de facto que se mostrem pertinentes à boa decisão administrativa (os outros são o exercício adequado do poder de apreciação e a exigência de respeito pelos princípios gerais da actuação administrativa). De acordo com este critério, «o agente administrativo tem, sempre, o dever de identificar e avaliar todas as circunstâncias e elementos relevantes ou pertinentes para se colocar em posição de exercer o seu poder discricionário» (assim, PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual…, p. 243) em obediência ao princípio segundo o qual o exercício desse poder tem de assentar no conhecimento correcto das circunstâncias de facto (assim, JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, in Comentários à Revisão do Código do Procedimento Administrativo, Coimbra, 2016, p. 135).
  Em rigor, o que está em causa é o efectivo exercício do poder de apreciação que a lei defere à Administração pois que isso implica como sua condição necessária «a tomada em consideração de todos os elementos e circunstâncias pertinentes da situação em causa». É isto mesmo, aliás, que é imposto pela norma do n.º 1 do artigo 86.º do CPA («o órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito»), a qual, não sendo privativa das decisões proferidas no exercício de poderes discricionários, adquire aí uma importância fundamental para um correcto exercício de tais poderes (continuamos a acompanhar a lição de PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual…, p. 244). Desta norma resulta, pois, que, no procedimento administrativo, ao contrário do sucede nos processos judiciais, não vigora o princípio dispositivo. Pelo contrário, rege o princípio do inquisitório. No mesmo sentido, aliás, aponta o disposto no artigo 59.º do CPA («os órgãos administrativos, mesmo que o procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados, podem proceder às diligências que considerem convenientes para a instrução (…)»), sendo de interpretar o poder a que se refere o transcrito inciso legal como um verdadeiro poder-dever. Irreleva, pois, que a iniciativa procedimental tenha sido do particular. Mesmo aí, a Administração não deixa de estar legalmente vinculada ao esclarecimento tão exaustivo quanto possível dos pressupostos de facto da decisão, de tal modo que insuficiência na instrução, na medida em que possa reflectir-se na insuficiência da base factual indispensável à justa e legal decisão do procedimento, em especial a um adequado exercício do poder discricionário, não pode deixar de se repercutir de modo invalidante nessa decisão.
  (iii)
  (iii.1)
  Apesar de a letra da norma do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019 poder inculcar que é ao interessado que cabe a comprovação das razões pelas quais vendeu a fracção autónoma adquirida no regime da habitação económica, a verdade é que assim não é, podendo antes dizer-se que essa disposição em nada se afasta do regime geral já decorrente do artigo 87.º, n.º 1 do CPA. Ainda que se trate de um procedimento da iniciativa do particular, é de reconhecer que a Administração tem de proceder às diligências necessárias ao completo esclarecimento da base factual indispensável à prolação de uma decisão justa e ao exercício correcto do poder discricionário.
  (iii.2)
  Ora, no caso em apreço, estamos modestamente em crer que a Administração desenvolveu o indispensável e possível esforço instrutório no sentido de apurar os factos alegados pelo Recorrente e eventualmente outros susceptíveis de integrarem os pressupostos da contidos na hipótese da norma do n.º 2 do artigo 8.º da Lei 17/2019, para, à sua luz, proferir a decisão discricionária que legalmente se impunha, nomeadamente, se o Recorrente, vendeu a casa devido a problemas de saúde ou dificuldades económicas tal como foi por ele alegado.
  Não se vê, pois, que nessa actividade procedimental, que é aquela que aqui está em causa, a Administração tenha afrontado os princípios da imparcialidade e da justiça a que se refere o artigo 7.º do CPA, segundo o qual, «no exercício da sua actividade, a Administração Pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação». O que aconteceu foi que, após a realização dessas diligências, a Administração concluiu no sentido negativo, ou seja, no sentido de que não estavam provados factos que justificassem a dita dispensa. Daí que a questão já não seja a da insuficiência da base factual necessária à prolação da decisão resultante de uma violação do princípio do inquisitório, mas, antes, a de uma eventual falta de prova dos factos integradores dos pressupostos da actuação administrativa.
  (iv)
  O Recorrente, para fundamentar a sua pretensão anulatória, embora de forma não inteiramente clara, dizemo-lo com todo o respeito, parece, igualmente, que pretende colocar a questão de saber se a decisão administrativa enferma ou não de erro por ter considerado que se não provaram os factos integradores dos pressupostos da dispensa da satisfação do disposto na alínea 2) do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 17/2019.
  Cremos, no entanto, que também neste ponto o Recorrente não tem razão. Pelo seguinte.
  Como acima referimos, a Administração levou a cabo as diligências instrutórias que se impunham e possíveis tendo em visto o cabal apuramento da factualidade relevante. Acresce que o Recorrente teve plena oportunidade para, em sede procedimental, primeiro, e processual contenciosa, depois, produzir a prova que lhe afigurasse conveniente.
  Sem prejuízo de reconhecermos a dificuldade da prova dos factos relevantes, a verdade é que, o respectivo ónus recaía sobre o Recorrente, pois que se tratam de factos constitutivos da sua pretensão de aceder à habitação social. Significa isso que a falta de prova ou a dúvida quanto à realidade de determinado facto, reverte contra ele. O ónus da prova, como se sabe, é uma regra de decisão que transforma uma situação de non liquet numa situação de liquet contra a parte onerada.
  Deste modo, a partir da prova produzida, parece-nos acertada a conclusão da Administração que fundou o acto recorrido de que não se podem dar por demonstrados os factos indispensáveis à conclusão de que o Recorrente procedeu à venda da fracção autónoma que adquiriu no regime da habitação económica devido a problemas de saúde, dificuldades económicas, alterações adversas das circunstâncias familiares ou a acentuada diminuição do rendimento da família, tal como exigido por lei, ou, pelo menos, cremos que sempre será de considerar existir a esse propósito uma situação de dúvida inultrapassável quanto à verificação de tais factos, a qual tem de ser valorada contra o Recorrente, considerando-se tais factos como não provados, o que, na perspectiva da aferição da legalidade do acto recorrido, vai dar ao mesmo (no mesmo sentido, a propósito de situação idêntica, veja-se o ac. do TSI de 30.11.2023, processo n.º 120/2023).
  3.
  Pelo exposto, deve ser julgado improcedente o presente recurso contencioso.
  É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público.».
  
  Concordando com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual integralmente aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta entendemos que o acto impugnado não enferma dos vícios que o Recorrente lhe assaca, sendo de negar provimento ao recurso contencioso.
  
  No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
  
IV. DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso mantendo-se a decisão recorrida.
  
  Custas a cargo do Recorrente fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 28 de Novembro de 2024


Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)

Seng Ioi Man
(1o Juiz-Adjunto)

Fong Man Chong
(2o Juiz-Adjunto)

Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto)





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