Processo nº 468/2024
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 21 de Novembro de 2024
ASSUNTO:
- Direito de propriedade e violação da lei básica
- Direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção
- Usucapião
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 468/2024
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 21 de Novembro de 2024
Recorrente: Companhia de Investimento Predial A (Macau) Limitada (Recurso Interlocutório / Recurso Final)
Recorrida: B (Recurso Interlocutório / Recurso Final)
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
B, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
C (1º Réu),
Companhia de Investimento Predial A (Macau) Limitada (2ª Ré),
Interessado incerto de C (3º Réu),
Restante herdeiro incerto de C (4º Réu),
todos com os demais sinais dos autos, pedindo que:
1. seja declarada a aquisição por si por usucapião do direito de propriedade da fracção autónoma designada por “J2”, do 2º andar da fase 2, bloco 3, do Edifício XX, sito em Macau, na XXX.
A 2ª Ré Companhia de Investimento Predial A (Macau) Limitada veio deduzir contestação e Reconvenção pedindo que:
1. Seja julgada procedente a excepção da 2.ª ré, rejeitando-se todos os pedidos formulados pela autora na petição inicial;
2. Seja julgada procedente a contestação da 2.ª ré, declarando-se que a autora não tem posse do imóvel nem o obteve por usucapião, rejeitando-se todos os pedidos formulados pela autora na petição inicial;
Caso não se entenda assim, pede-se que
3. Seja declarada infundada, oculta e de má fé a posse da autora em relação ao imóvel em causa e que ainda não começa o cálculo do prazo de usucapião, não se verificando os requisitos de usucapião, devendo-se rejeitar todos os pedidos formulados pela autora na petição inicial;
4. Seja julgada procedente a reconvenção da 2.ª ré e condenada a autora a reconhecer a Companhia de Investimento e Predial A (Macau) Lda. (ou seja a 2.ª ré/reconvinte) como titular de propriedade da fracção autónoma designada por “J2”, do 2.º andar da fase 2, bloco 3, do Edifício XX, sito em Macau, na XXX, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o número XXX, a fls. XXX do livro XXX e inscrita na madriz predial sob o n.ºXXX, com finalidade habitacional;
5. Seja condenada a autora na restituição à 2.ª ré/reconvinte da fracção autónoma designada por “J2”, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.ºXXX com finalidade habitacional;
6. Seja condenada a autora no pagamento mensal à 2.ª ré da quantia não inferior a MOP3.000,00, desde a data de notificação da reconvenção até à restituição efectiva do imóvel.
A Autora replicou pedindo que:
1. Sejam julgadas improcedentes a excepção, impugnação e reconvenção deduzidas pela 2.ª ré, rejeitando-se todos os pedidos por si formulados;
2. Sejam julgados procedentes todos os pedidos formulados pela autora na petição inicial.
Por despacho de fls. 474, traduzido a fls. 595, foi indeferido o requerimento da 2ª Ré de fls. 470 em que em síntese pedia que fosse junto aos autos o certificado de óbito e elementos de identificação de D ou seus sucessores, pessoa que era conjuntamente com a Autora co-titular da conta onde aquela recebia as rendas da fracção autónoma a que se reportam os autos.
Não se conformando com aquele despacho veio a 2ª Ré e agora Recorrente interpor recurso apresentando as seguintes conclusões:
1. No referido despacho, o Tribunal a quo decidiu: “Ponderando os fundamentos deduzidos pela autora na fls. 473, o requerimento da 2ª ré na fls. 470 é obviamente irrelevante para o exame e decisão, pelo que, é de indeferir o requerimento da 2ª ré.”
2. Na fls. 470 dos autos, a recorrente apresentou o seguinte requerimento: 1. A autora afirmou que D faleceu em 2020, mas não entregou certificado de óbito, conforme o princípio da cooperação, pede-se que a autora forneça o respectivo certificado de óbito. 2. A 2ª ré tem procurado por muitos anos o promitente-comprador do bem imóvel em impugnação e não consegue nada, enquanto que D, outra receptora da renda, morreu em 2020, o tempo é muito correspondente ao período da posse pacífica alegada pela autora, portanto, a 2ª ré não pode suspeitar.1 3. Para descobrir a realidade e conforme o princípio da cooperação, pede-se que a autora forneça mais dados de D, se realmente morreu, forneça os dados do sucessor.
3. A autora declarou que, possui pacifica e publicamente, como proprietária, a fracção autónoma “J2”, destinada à habitação, descrita na CRP sob o n.º XXX, inscrita na matriz predial sob o n.º XXX, situada em XXX, 2ª fase, Bloco 3, 2º andar, Apartamento J.
4. Também afirmou nos art.º 31.º e 32.º da petição inicial que, “desde 18 de Março de 2008, a Autora arrendou a “fracção” para um senhor denominado E por uma renda mensal de HKD$1.800,00, e o contrato de arrendamento só foi resolvido em Agosto de 2020. Foi a autora que celebrou o referido contrato de arrendamento e recebeu integralmente as rendas, que eram o seu bem próprio e estavam à livre disposição da autora sem necessidade de obter consentimento ou aprovação de terceiro.
5. Aqui, a recorrente gostava de assinalar que, a celebração do contrato de arrendamento pela autora não implica que é proprietária ou possuidora do Apartamento.
6. Segundo o acórdão n.º 90/2021 de 3 de Novembro de 2021, “Nesta conformidade, e na medida em que sendo o contrato de arrendamento um contrato meramente obrigacional, a legitimidade para a celebração desse tipo contratual não está dependente da qualidade de “proprietário” do senhorio em relação ao imóvel arrendado”.
7. Então, no documento na fls. 446 dos autos, entregue pelo Banco da China ao Tribunal, demonstra-se que a conta n.º XXX, mencionada pela autora, é uma conta conjunta, os titulares são B e D.
8. Como se sabe, é fácil para os cidadãos de Macau abrir uma conta individual de HKD em bancos, basta satisfazer as disposições gerais.
9. Pelo contrário, para abrir uma conta conjunta, é necessário entregar os dados de identificação da outra pessoa ou adicionar uma pessoa como titular à conta original. Os documentos exigidos são mais do que os para conta individual.
10. E ambos titulares da conta conjunta têm direito de disposição do património na conta, ou seja, o dinheiro na conta pertence a ambas partes.
11. Importa apontar que, no documento na fls. 380 dos autos, entregue pela autora ao Tribunal em 7 de Fevereiro de 2022, demonstra-se que a conta n.º XXX do Banco da China é uma conta conjunta, a caderneta de depósito bancário em HKD dos titulares B e D é datada de 18 de Julho de 1996.
12. Todavia, a autora indicou que é a única possuidora do Apartamento, recebeu todas as rendas, que eram o seu bem próprio e estavam à livre disposição da autora sem necessidade de obter consentimento ou aprovação de terceiro. Evidentemente, isso não é verdade, portanto, carece de informações para fazer investigação como a recorrente pediu.
13. O teor dos documentos das fls. 380 a 446 dos autos não está conforme à alegação da autora, nomeadamente à alegada posse do Apartamento (por cautela de patrocínio, a 2ª ré não acompanha a ideia de que a autora é possuidora), durante o período da alegada posse do Apartamento, a autora depositou as rendas na conta conjunta, disso se emerge dúvida razoável da recorrente sobre a relação entre a Sr.ª D e a autora.
14. Tendo em que a Sr.ª D e a autora tinham uma conta conjunta, revela-se que a Sr.ª D sabia que o Apartamento estava arrendado e eram cobradas as rendas, segundo os documentos nas fls. 380 a 397 dos autos, há registos de receitas das rendas e de despesas na referida conta conjunta, afinal, uma metade do património dessa conta pertence à Sr.ª D.
15. Na fls. 473 dos autos, a autora afirmou que a Sr.ª D faleceu no início do ano 2020 em Hong Kong, é possível que o seu sucessor também saiba a matéria do Apartamento em causa.
16. A autora sabe a situação da Sr.ª D, mas recusa-se a oferecer o certificado de óbito e os dados do sucessor.
17. Mesmo que a autora não possa oferecer o certificado de óbito da Sr.ª D e os dados do sucessor, se a autora e a Sr.ª D não tenham qualquer relação, porque se opõe à diligência probatória requerida pela recorrente?
18. A relação entre a Sr.ª D e a autora está conforme ao tempo da posse sobre o Apartamento alegada pela autora (sic.), portanto, é relevante para o caso investigar se a autora e a Sr.ª D possuem juntos o Apartamento.
19. Pelo que, é consideravelmente importante para descobrir a realidade averiguar por carta o certificado de óbito da Sr.ª D e os dados do sucessor, especialmente os segundos.
20. Se a Sr.ª D e a autora possuam juntos o Apartamento, nos termos do art.º 61.º n.º 1 do CPC, deve ser intentado litisconsórcio necessário pelo sucessor e a autora. Então, a falta do sucessor constitui a ilegitimidade de autor, ao abrigo do art.º 413.º alínea e) do CPC, trata-se duma excepção dilatória, a petição inicial da autora deve ser rejeitada.
21. Salvo o devido respeito, a recorrente não concorda com o despacho referido do Tribunal a quo de fls. 474 dos autos, pela violação dos art.º 431.º n.º 1 e 433.º do CPC.
22. Nos termos do art.º 431.º n.º 1 do CPC, “Quando o processo tiver de prosseguir, a secretaria notifica as partes do despacho saneador ou, não havendo a ele lugar, do despacho que procedeu à selecção da matéria de facto ou que decidiu as reclamações, para, em 15 dias, requererem as provas, alterarem os requerimentos probatórios que tenham feito nos articulados e requererem a gravação da audiência de discussão e julgamento e a intervenção do tribunal colectivo.”
23. Primeiro, a recorrente requereu ao Tribunal a quo a diligência probatória dentro do prazo com fundamentação, nomeadamente a respeito de recepção das rendas pela conta conjunta da autora e a Sr.ª D, tendo como objectivo descobrir a realidade.
24. Segundo, como disse a autora, a Sr.ª D faleceu no início de 2020 em Hong Kong, a recorrente solicitou à autora, conforme o princípio da cooperação, oferecer o certificado de óbito da Sr.ª D e os dados do seu sucessor, mas a autora não cooperou, portanto, a recorrente tinha de requerer ao Tribunal com legitimidade solicitar por carta a Hong Kong os referidos elementos. Entretanto, o Tribunal indeferiu o requerimento da recorrente.
25. No entanto, a recorrente entende que, o facto é muito importante, especialmente para contraprovar a posse da autora e a recepção das rendas (sic.).
26. Nos termos do art.º 433.º do CPC, “A instrução tem por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova.”
27. Na doutrina, o art.º 433.º do CPC é interpretado de forma seguinte: “o objecto da prova são factos (art.º 433.º) mas não disposições legais. Aqui, os factos não se referem a todos os factos, mas sim apenas os da base instrutória.”
28. Os factos nos pontos 15) a 21) da base instrutória, constantes da fls. 362v. dos autos, referem-se ao arrendamento do Apartamento alegado pela autora.
29. Como acima disse, a Sr.ª D e a autora tinham uma conta conjunta, portanto, a Sr.ª D sabia a situação do Apartamento, então, o requerimento da prova do certificado de óbito da Sr.ª D e dos dados do seu sucessor tem como objectivo verificar os referidos factos da base instrutória.
30. Pelo que, o requerimento da recorrente está conforme ao disposto do art.º 433.º do CPC, a diligência probatória requerida é muito relevante para o exame e decisão.
31. O despacho de 6 de Fevereiro de 2023 do Tribunal a quo, constante da fls. 474 dos autos, viola os art.º 431.º e 433.º do CPC, pelo que, pede-se que seja revogado o despacho do Tribunal a quo a fls. 474 e admitido o requerimento da recorrente a fls. 470.
Contra-alegando veio a Autora e agora Recorrida apresentar a seguintes conclusões:
1. A recorrente interpôs o presente recurso contra o despacho do Tribunal a quo na fls. 474, que indeferiu o requerimento na fls. 470.
2. Com fundamento em que, quando arrendava o Apartamento, a recorrida usou a conta conjunta n.º XXX, aberta com a Sr.ª D no Banco da China, a recorrente concluiu que a Sr.ª D sabia a situação do Apartamento e era a outra locadora, no entanto, a recorrida entende que não há nexo de forma qualquer.
3. Isso não passa de ser juízo individual da recorrente, não há qualquer fundamento de facto, nem prova.
4. A recorrente também atacou que a recorrida não cooperou, não entregou o certificado de óbito da Sr.ª D e os dados do seu sucessor, entretanto, o certificado de óbito constitui uma intimidade da vida privada, a recorrida não tem legitimidade de solicitar o certificado perante as autoridades de Hong Kong, nem sabe se D tem sucessor.
5. O contrato de arrendamento tem como objecto a relação obrigacional e contratual entre o senhorio e o inquilino, a recorrida podia receber rendas por qualquer meio à sua vontade, mesmo que usasse a conta conjunta aberta com D, isso não implica que D era a outra locadora.
6. De acordo com o contrato de arrendamento constante dos anexos 103 a 104 (sic.) da petição inicial, entregue pela recorrida, a locadora e a proprietária eram apenas a recorrida, não se envolvia um indivíduo chamado de D, portanto, D não tinha qualquer relação com o arrendamento do Apartamento.
7. Os factum probandum como se a recorrida (autora) celebrou o contrato de arrendamento na qualidade de proprietária e se as rendas foram integralmente recebidas pela recorrida (autora) podem ser provados ou contraprovados por testemunha em audiência.
8. O requerimento das informações de D e seu sucessor é obviamente irrelevante para os factum probandum a averiguar e a decisão, já supera o âmbito de investigação.
9. Pelo que, ao abrigo dos art.º 9.º e 87.º do CPC, não é lícito realizar no processo actos inúteis, deve ser mantida a decisão do despacho do Tribunal a quo na fls. 470 (sic.) e rejeitado o recurso da recorrente.
Foi proferida sentença a julgar procedente a acção intentada pela Autora/Recorrida e improcedente a reconvenção da 2ª Ré/Recorrente, decidindo consequentemente:
1. Declarar que a autora B adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade da fracção autónoma designada por “J2”, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o número XXX, a fls. XXX do livro XXX;
2. Julgar improcedentes todos os pedidos reconvencionais deduzidos pela 2.ª ré COMPANHIA DE INEVESTSIMENTO PREDIAL A (MACAU), LIMITADA contra a autora B, absolvendo a autora dos pedidos reconvencionais.
Não se conformando com a decisão proferida veio a 2ª Ré/Recorrente interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões:
1. Na sentença recorrida, o douto TJB decidiu:
“1. Declarar que a Autora B era proprietária da fracção autónoma “J2”, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXX a fls. XXX do livro XXX, por usucapião;
2. Julgar integralmente improcedentes os pedidos reconvencionais deduzidos pela Recorrente Companhia de Investimento Predial A (Macau), Limitada, contra a Autora B, absolvendo a Autora dos pedidos reconvencionais em causa.”
2. O objecto do presente recurso consiste nas partes da sentença recorrida em que se procedeu o pedido da Autora e se improcederam os pedidos reconvencionais da Recorrente. No entendimento da Recorrente, a sentença recorrida enferma de erro na interpretação e aplicação dos artigos 1185º, 1186º, 1222º e 1225º do Código Civil em que se preceitua a aquisição da posse.
3. No ponto 34 dos factos descritos na sentença (resposta ao 18º factum probandum), o Tribunal a quo concluiu que a Autora tinha recebido a renda da fracção em causa, mas a Recorrente não concorda com isso, considerando que a apreciação da matéria de facto efectuada pelo Tribunal a quo violou as provas documentais e as regras da experiência.
4. O Tribunal a quo concluiu que tal aspecto de facto tinha provas documentais e testemunhais. (sic)
5. Quanto às provas testemunhais, sabe-se que tal facto está relacionado com as pessoas que têm relações de família com a Autora e têm relações de interesse indirecto, com grau de credibilidade relativamente baixo.
6. Existe incompatibilidade entre o montante depositado na conta destinada à recepção de rendas apresentado pela Autora e o montante descrito no contrato de arrendamento.
7. De acordo com os elementos constantes de fls. 380 dos autos, a conta destinada à recepção de rendas é uma conta contitulada, cujos comproprietários são a Autora e D.
8. Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 1299º do Código Civil, as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo.
9. Segundo os documentos fornecidos pelo banco em questão e pela Autora, não se verifica nenhum acordo, pelo que, como é evidente, o dinheiro existente na conta é comummente pertencente aos supracitados dois indivíduos, em quantidade igual.
10. As provas testemunhais são insuficientes para ilidirem a presunção em causa e, por cima, não existe nenhum facto nos autos que assinale o eventual acordo.
11. Além do mais, não existe nenhum facto que demonstre que o dinheiro recebido na conta pertencia à Autora.
12. Porquanto, não se provou que as rendas pertencessem somente à Autora, embora essa conta seja destinada à recepção de rendas.
13. As regras da experiência mostram-nos que um Homem médio não irá depositar na conta doutra pessoa ou na conta contitulada aberta com outra pessoa as rendas provenientes do arrendamento do seu imóvel.
14. Assim sendo, segundo as provas documentais e as regras da experiência em causa, é muito óbvio que, pelo menos, a Autora recebia rendas juntamente com D.
15. No decurso do processo judicial, a Recorrente pediu à Autora que prestasse informações sobre D, mas ela não cooperou e apenas especificou simplesmente que D já estava morto, o que foi tratado também noutro recurso.
16. A Autora tem rejeitado a revelação das informações concretas de D ou informações relativas a sucessor desta, sendo evidentemente incompatível com as regras da experiência.
17. Normalmente, se for verdade aquilo que a Autora disse, D ou os seus descendentes devem ser arrolados como testemunhas, com vista a apurar os factos expostos.
18. Ademais, quando D estava vivo, a Autora ignorou a Recorrente que se deslocava a casa dela à procura, ocultando propositadamente o facto de ela estar a controlar o imóvel em causa, e, quando D estava morto, ela adquiriu o direito de propriedade sobre o dito imóvel por posse pacífica, conduta essa contraria o senso comum e as regras da experiência.
19. Pelas aludidas provas e regras da experiência, entende a Recorrente que é mais adequada a Autora assumir o papel de administradora para auxiliar D a administrar o imóvel em causa.
20. Além disso, no contrato de arrendamento não se revela expressamente que a Autora seja proprietária do imóvel no momento da celebração do referido contrato, lá apenas se revela que ela era locadora.
21. Pelo facto de as rendas não serem recebidas pelas pessoas referidas, não se demonstrou que a Autora tenha celebrado o contrato de arrendamento na qualidade de proprietária.
22. O Tribunal a quo violou manifestamente as provas documentais e as regras da experiência por ter dado como provado o aludido facto – a Autora recebeu as rendas da fracção em apreço.
23. Portanto, tal facto deve, pelo menos, ser alterado para “o contrato de arrendamento em causa foi celebrado pela Autora e as rendas foram integralmente recebidas pela Autora e D”.
24. Se houver a alteração do facto, devido à impossibilidade da demonstração do facto de as rendas serem recebidas somente pela Autora, deve improceder a qualidade de possuidora da Autora, não merecendo provimento a acção.
25. De acordo com o ponto 21 dos factos assentes, ao mesmo tempo, o 1º Réu entregou ao pai da Autora todos os documentos relativos à “fracção”, mormente o “contrato de compra e venda de imóvel”, o “certificado de alineação de imóvel” e os respectivos recibos e facturas, bem como as chaves da “fracção”. (resposta ao 5º factum probandum)
26. Segundo o ponto 22 dos factos assentes, posteriormente, o pai da Autora fez algumas reparações e, a seguir, a sua família (pais, a 2ª irmã mais velha e a Autora) passou a residir na referida “fracção”. (resposta ao 6º factum probandum)
27. Segundo o ponto 28 dos factos assentes, “o pai da Autora faleceu a 11 de Dezembro de 1981, e, a partir dessa data até ao ano de 1991, só residiam nessa “fracção” a Autora e sua mãe.” (resposta ao 12º factum probandum)
28. Dos pontos 21, 22 e 28 dos factos assentes em apreço se constata que a Autora não é a única sucessora de seu pai, havendo pelo menos uma irmã mais velha.
29. Apesar da Recorrente não aceitar que o pai da Autora possuía a “fracção” na qualidade de possuidor, o Tribunal a quo não apreciou o facto da posse singular do imóvel em causa pela Autora, verificando-se a evidente falta de sustento fáctico.
30. De antemão, conforme os factos assentes, não existe nenhum facto que demonstre a posse singular do imóvel pela Autora; verifica-se apenas a posse do imóvel pelo pai da Autora, F, ainda que haja.
31. Nos termos do art.º 1179º do Código Civil: “Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa”.
32. Após a morte do pai da Autora, ocorrida a 11 de Dezembro de 1981, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, ou seja, a posse continua no cônjuge do possuidor, na Autora e na 2ª irmã mais velha da Autora.
33. A posse da “fracção” em causa deve ser exercida por todos os sucessores do pai da Autora. De acordo com os factos assentes, evidentemente, o pai da Autora tem mais do que uma sucessora.
34. Por conseguinte, a conclusão tirada pelo Tribunal a quo sobre a verificação da posse singular do imóvel em causa pela Autora enferma de manifesta escassez de fundamentos de facto e de direito.
35. In casu, F tem várias sucessoras e cada uma delas usufrui do aludido direito, pelo que nesta causa se trata dum litisconsórcio necessário.
36. Nesta conformidade, deve ser anulada a sentença do Tribunal a quo, por ter cometido erro na legitimidade.
37. Dos artigos 40º-42º da sentença (respostas aos 26º, 27º e 28º factum probandum) se averigua que a Recorrente tinha tentado, por várias formas, procurar o 1º Réu para concluir a escritura pública de compra e venda em causa.
38. A par disso, isto revela justamente que a Recorrente tem agido como proprietária.
39. Daí se vislumbra que a Recorrente tem despercebido a existência da Autora, e que, na cognição subjectiva da Recorrente, a fracção em causa tem sido usada pelo 1º Réu C.
40. A Recorrente tolerou a situação, deixando de entrar na fracção em questão por arrombamento, justamente por ter prometido vender a sobredita fracção a C.
41. A Recorrente tolerou o uso do imóvel litigioso por terceiro, deixando de intentar uma acção de despejo, justamente por ter celebrado o contrato-promessa de compra e venda com o 1º Réu C.
42. Contudo, a Recorrente tem exercido constantemente, por formas diferentes, os seus direitos como proprietária, só que ainda não chegou à fase de propositura das acções de resolução de contrato e de restituição de objecto.
43. Se a Recorrente tiver conhecimento da ocupação do aludido imóvel pela Autora, teria intentado necessariamente uma acção de despejo para assegurar os seus direitos e interesses legítimos.
44. Tal interpretação harmoniza precisamente com as regras da experiência e lógica normal.
45. Entretanto, a Autora tem escapado da Recorrente que tinha chegado a casa dela à procura e das mensagens fixadas para motivarem a conclusão da transacção, bem como não tem comunicado à Recorrente o facto da sua ocupação do imóvel.
46. Conduta essa da Autora manifesta o dolo e má fé da ocultação.
47. Como ensina o académico Orlando de Carvalho: “No sistema de posse moderno e universal, é dominante o sistema subjectivo. A teoria de SAVIGNY pode ser encontrada na tradição do Código Civil da França. Ela é fiel à trajectória de possessio rei, mas temperada por Quais possessio, ou seja, jus possessionis. Para além da apreensão material da coisa, envolve também uma intenção ampla de dominação, ou seja, para além do corpus, exige-se ainda o animus da posse. Tal animus da posse é diferente do animus detinendi da mera detenção, mas pode ser tanto o animus do direito de propriedade como o animus do direito real”.
48. Deste modo, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 1777º do Código Civil de Macau (sic), a fracção em causa foi usada tanto pelo 1º Réu (como pela Autora que, porém, a situação foi despercebida pela Recorrente), entende a Recorrente que esses indivíduos só podem ser os meros enriquecidos sob tolerância da titular e não possuidores.
49. Ademais, tanto o 1º Réu como a Autora devem ter sempre conhecimento de que a Recorrente é a proprietária descrita no registo predial, por isso, é difícil considerar que eles têm animus possidendi, não devendo proceder a posse exercida pelos mesmos.
50. Pelo exposto, a Autora não é possuidora, mas sim, uma mera detentora que apreende o imóvel sob tolerância da Recorrente.
51. Por conseguinte, como é evidente, a sentença do Tribunal a quo deve ser anulada, por falta de ponderação do disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 1777º do Código Civil.
52. O Tribunal a quo indicou o seguinte na parte da aplicação da lei: “Nos termos dos artigos 1185º e 1186º do Código Civil, a posse exercida pelo pai da Autora é pacífica e também pública, por ter sido adquirida sem violência. Ora, é de salientar que, conforme os factos assentes no caso, a fracção em causa tem sido usada e chegou a ser arrendada para outras pessoas, pelo que o pai da Autora (e, posteriormente, a Autora) usou a fracção de modo a poder ser conhecido pelo público, ou seja, possuía publicamente a fracção em causa e não se trata aqui duma mera posse oculta assacada pela Recorrente.”
53. E, “Do acima exposto se vislumbra que a posse exercida pelo pai da Autora foi oriunda dum acordo de dação em cumprimento verbalmente estabelecido, ainda que não revesta a forma legal, pelo referido acordo alcança-se abstractamente o efeito de transmissão da propriedade. Nestas circunstâncias, nos termos do art.º 20º do Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto, e do art.º 1183º, n.º 1, do Código Civil vigente, e segundo a tese do TSI supracitada, o pai da Autora adquiriu uma posse titulada. Portanto, a posse em apreço presume-se de boa fé, ao abrigo do art.º 1184º, n.º 2, do Código Civil.”
54. “Tendo-se em conta que a Autora e seu pai começaram a possuir a fracção em causa desde 1978, tal posse manteve-se por um período contínuo superior a 15 anos, contado a partir do momento da propositura da presente acção pela Autora (11 de Setembro de 2020).”
55. Salvo o devido respeito, a Recorrente não se conforma com a aplicação da lei feita pelo Tribunal a quo a pedido da Autora.
56. Entendeu o Tribunal a quo que a posse exercida pela Autora era pacífica e também pública, por ter sido adquirida sem violência pelo pai da mesma.
57. Como especifica o Professor Orlando de Carvalho na página 287 da sua obra “DIREITOS DAS COISAS” quanto à posse pública: “A publicidade, conforme resulta da lei, mede-se pelos padrões da cognoscibilidade (“… de modo a poder ser conhecida…”), não pelo efectivo conhecimento. A semelhança da “doutrina da impressão do destinatário” que a lei acolhe em sede de declaração negocial (art.º 236º), pode dizer-se que a posse é cognoscível se um interessado razoável (medianamente diligente e sagaz), colocado na posição do real interessado, dela tivesse percepção”.
58. O que exige a posse pública não é o conhecimento por “todas as pessoas que conheçam a Autora, amigos e vizinhos dela”, indicado no ponto 23 dos factos assentes, mas sim “poder ser conhecida pelos interessados”.
59. A Recorrente, como proprietária legal, é a “interessada” referida na lei.
60. De acordo com a sentença a quo, “o pai da Autora (e, posteriormente, a Autora) usou a fracção de modo a poder ser conhecido pelo público, ou seja, possuía publicamente a fracção em causa e não se trata aqui duma mera posse oculta assacada pela Recorrente”.
61. Pelos factos assentes, para Recorrente é difícil concordar com a óptica da conclusão em apreço, a par disso, afigura-se que o Tribunal a quo não atendeu a todos os negócios jurídicos praticados pela Recorrente em relação à propriedade em causa.
62. À luz dos artigos 40º, 41º e 42º dos factos dados como provados depois da audiência de julgamento, demonstra-se que a Recorrente invocou o processo n.º CV1-18-009-CPE, onde se pediu ao 1º Réu C que concluísse a celebração da escritura pública de compra e venda.
63. Transitou-se em julgado a sentença proferida no processo n.º CV1-18-0009-CPE, onde se designou um prazo de 60 dias que terminou em 9 de Janeiro de 2021, e , por seu turno, o 1º Réu C não apareceu nem cumpriu o aludido contrato.
64. A Recorrente necessita apontar que, no processo n.º CV1-18-0009-CPE, o Tribunal adoptou todos os métodos possíveis para procurar o 1º Réu C, incluindo, mas não exclusivamente, as citações pessoal e edital, bem como a fixação de edital do Tribunal na fracção referida no caso.
65. No processo n.º CV1-18-0009-CPE, o Tribunal não sabia que, para além de C, havia mais outras pessoas que usufruíssem dos direitos sobre o imóvel em questão, tampouco sabia sobre a posse.
66. Durante o processo de vários anos em que a Recorrente andava à procura do comprador do imóvel em causa que, no seu entendimento, estava a usar o dito imóvel, a Autora, mesmo sabendo que a Recorrente andava à procura do aludido indivíduo, tem fugido dela e não tomou iniciativa para lhe comunicar a situação.
67. Por essa conduta, a Autora ocultou evidentemente o uso ou a posse do imóvel em causa pela mesma.
68. Isto mostra que a posse exercida pela Autora não é pública.
69. A Recorrente contactou o 1º Réu por meio do Tribunal. Isto significa que a Recorrente não sabia que a Autora estava a possuir o imóvel, não sendo igual à situação referida na sentença a quo – o público podia conhecer o uso da fracção.
70. Mais, conforme o ponto 33 dos factos dados como provados depois da audiência de julgamento, “desde 18 de Março de 2008, a Autora arrendou a “fracção” para um senhor denominado E por uma renda mensal de HKD1.800,00, e o contrato de arrendamento só foi resolvido em Agosto de 2020”.
71. Isto é, no período entre a propositura da acção do processo n.º CV1-18-0009-CPE e o trânsito em julgado da sentença, a Autora sabia que a Recorrente tem procurado o 1º Réu.
72. A Autora tem escapado da Recorrente que tinha chegado a casa dela à procura e das mensagens fixadas para motivarem a conclusão da transacção, bem como não tem comunicado à Recorrente o facto da sua ocupação do imóvel.
73. Concluiu-se na sentença a quo que a Autora tinha usado a fracção de modo a poder ser conhecido pelo público, sendo esta uma inferência errada. A Recorrente adoptou todos os métodos possíveis e por meio do Tribunal para procurar o 1º Réu, por essa conduta, ao menos, revela-se que nem todas as pessoas sabiam que a Autora estava a possuir o imóvel.
74. Conforme o ponto 38 dos factos dados como provados depois da audiência de julgamento, “a Autora tinha chegado à sede da Recorrente para pedir informações e solicitar o tratamento das formalidades de transferência, mas o empregado da Recorrente lhe respondeu que as formalidades de transferência só poderiam ser concluídas com a presença do 1º Réu e a outorga do respectivo documento. (resposta ao 22º factum probandum)”
75. Se a Autora entender que ela é a proprietária da fracção em causa, por que razão ela se deslocava à sede da Recorrente para pedir informações e solicitar o tratamento das formalidades de transferência.
76. Claro é que, no ponto 34 dos factos descritos na sentença (resposta ao 23º factum probandum), o Tribunal a quo apenas apurou que “todas as pessoas que conhecem a Autora, os amigos e vizinhos dela consideravam que a Autora era proprietária da “fracção” e nunca lhe apresentaram qualquer questão ou oposição”.
77. Facto invocado pela Autora: “Para as pessoas, sobretudo todas as pessoas que conhecem a Autora, os amigos e vizinhos dela consideravam que a Autora era proprietária da “fracção” e nunca ninguém lhe apresentou qualquer questão ou oposição, mormente a Recorrente”.
78. Por este facto, averigua-se que, na audiência de julgamento, o Tribunal a quo não apurou que a Recorrente soubesse que a Autora era proprietária da fracção, nem demonstrou que a Autora não tivesse apresentado questão ou oposição sobre seu direito de propriedade.
79. A posse exercida pela Autora é, ao máximo, oculta, mesmo que tenha possuído a fracção em apreço.
80. Nos termos do disposto no art.º 1186º do Código Civil, “posse pública é a que foi adquirida ou se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados”, caso contrário, é uma posse oculta.
81. Como acima mencionado, se, realmente, a Recorrente tiver conhecimento da posse exercida pela Autora, só pode haver dois resultados: 1. Aceitar a posse e prestar auxílio na conclusão da escritura pública de compra e venda; 2. Não aceitar e intentar brevemente no Tribunal uma acção de restituição da coisa.
82. Pelo facto de a Recorrente ter continuado, ao longo desses anos, a procurar C para concluir a escritura pública de compra e venda, infere-se expressamente que a Recorrente não sabia que a Autora possuía o imóvel em causa.
83. Os factos assentes não demonstram que a Recorrente tenha conhecimento da posse e não tenha deduzido oposição, pelo que se verifica a contradição entre a inferência do Tribunal – a Recorrente tinha conhecimento da posse – e os factos dados como provados pelo Tribunal.
84. Isto significa, em destaque, que a posse exercida pela Autora é, ao máximo, oculta.
85. Nos termos do disposto no art.º 1222º do Código Civil de Macau: “Se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 1225º”. E, o n.º 1 do art.º 1225º prevê: “Se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública”.
86. Por a posse da fracção pela Autora ser oculta desde princípio, o prazo da usucapião só começa a contar-se desde que a posse se torne pública, ou seja, contar-se desde que a posse seja adquirida ou se exerça de modo a poder ser conhecida pelos interessados, como se preceitua no art.º 1186º do Código Civil.
87. Nos termos do art.º 1186º do Código Civil, em conjugação com os factos do caso, a publicidade da posse exercida pela Autora deve ser contada a partir da citação da Recorrente, ou seja, a partir do momento em que a posse podia ser conhecida pela Recorrente como interessada.
88. Nos termos do disposto no art.º 1221º do Código Civil: “Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse for de boa fé, e de 20 anos, se for de má fé, independentemente do carácter titulado ou não da posse”.
89. A posse exercida pela Autora é não titulada, por não ter sido adquirida pelo título que possa transmitir idoneamente o direito. A par disso, é impossível que a Autora não saiba que a Recorrente tem sido descrita no registo predial como proprietária da fracção em causa, sobretudo, a Autora tinha chegado à sede da Recorrente para pedir informações e solicitar o tratamento das formalidades de transferência, por outras palavras, é de má fé a posse exercida pela Autora, uma vez que ela, ao exercê-la, “sabia que lesava o direito de outrem”.
90. Salvo o devido respeito, entende a Recorrente que na sentença a quo se concluiu erradamente que a posse exercida pela Autora era pública e, em consequência, cometeu-se erro na aplicação dos artigos 1180º, n.º 2, 1222º e 1225º do Código Civil. O prazo da usucapião para aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel pela Autora só começa a contar-se desde que a posse se torne pública, pelo que ainda não foi decorrido o referido prazo, devendo ser anulada a sentença a quo e indeferido o pedido da usucapião formulado pela Autora.
91. Na aplicação da lei efectuada face às reconvenções deduzidas pela Recorrente, o Tribunal a quo apontou: “No caso sub judice, embora não haja ninguém questionar o facto de a Recorrente gozar do direito de propriedade sobre a fracção em causa, e assim seja descrito no respectivo registo, a usucapião é uma forma de adquirir originariamente o direito de propriedade, conforme a análise acima exposta, a Autora reuniu todos os pressupostos para ser reconhecida como proprietária da fracção em causa por usucapião, declaração essa implica a extinção do direito de propriedade originalmente usufruído pela Recorrente, impossibilitando a invocação dessa qualidade para opor à Autora.
92. Todos os pedidos reconvencionais apresentados pela Recorrente fundamentam-se no pressuposto de a mesma ser proprietária da fracção em causa. Dado que o direito de propriedade usufruída pela Recorrente se extinguiu devido à aquisição originária por parte da Autora, é de julgar improcedentes as reconvenções deduzidas pela Recorrente”.
93. Salvo o devido respeito, a Recorrente não se conforma com a aplicação da lei efectuada pelo Tribunal a quo face às reconvenções deduzidas pela mesma.
94. Segundo a alínea M) dos factos assentes, a Recorrente intentou a acção do processo n.º CV1-18-0009-CPE contra o 1º Réu e as demais pessoas, com vista a tratar dos assuntos relativos ao contrato-promessa de compra e venda da fracção em questão.
95. Segundo a alínea N) dos factos assentes, a Recorrente é proprietária da “fracção”.
96. Nos termos do disposto no art.º 7º do Código do Registo Predial de Macau, o imóvel em causa tem registado a favor da Recorrente, Companhia de Investimentos e Construções G, Limitada (sic), presumindo-se que lhe pertence o respectivo direito de propriedade.
97. Independentemente do método adoptado pela Autora na aquisição da detenção (ou posse, embora assim não entenda a Recorrente) do imóvel em causa, não se pode denegar que a Reconvinte é precisamente proprietária do imóvel.
98. A Recorrente intentou no Tribunal a acção do processo n.º CV1-18-0009-CPE, requerendo a fixação dum prazo para o 1º Réu, assim, na sentença proferida nesse processo, que se transitou em julgado, designou-se um prazo de 60 dias que terminou em 9 de Janeiro de 2021, e, por seu turno, o 1º Réu não apareceu nem cumpriu o contrato em questão.
99. A Recorrente ainda é a proprietária da aludida fracção, por o 1º Réu não ter aparecido nem cumprido o contrato.
100. O art.º 1235º do Código Civil preceitua: “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”.
101. No entendimento da Recorrente, a sentença a quo concluiu erradamente que a Autora tinha adquirido a fracção em causa por usucapião; a posse exercida pela Autora é oculta, só começa a contar-se desde a citação da Recorrente, e só se torna pública quando seja conhecida pela Recorrente como interessada, pelo que, independentemente do carácter titulado ou não da posse exercida pela Autora, o tempo dessa posse é incompatível com os prazos referidos no art.º 1221º do Código Civil, não sendo decorrido o prazo da usucapião.
102. Além disso, a Autora usou o imóvel em causa sem o consentimento da Recorrente, por isso, a Recorrente, sendo proprietária da fracção, tem o direito de exigir à Autora que lhe restitua o imóvel.
103. Pelo exposto, a sentença a quo concluiu erradamente que o direito de propriedade usufruído pela Recorrente sobre a fracção em causa tinha sido extinto devido à aquisição originária por parte da Autora, cujo prazo só começa a contar-se desde que a posse se torne pública, por conseguinte, ainda não foi decorrido o prazo da usucapião pretendida pela Autora, devendo conceder-se provimento ao recurso interposto pela Recorrente, anulando-se a sentença a quo e julgando-se procedentes as reconvenções deduzidas pela Recorrente.
Contra-alegando veio a Recorrida apresentar as seguintes conclusões:
1. A recorrente entende que a sentença a quo padece dos seguintes erros na apreciação dos factos e, em consequência, de erros na aplicação da lei: a recorrida é uma mera detentora e não uma possuidora; a posse da recorrida é comum mas não exclusiva; a posse da recorrida é oculta e não pública: a recorrente entende que a posse da recorrida não lhe foi dada a conhecer, pelo que se trata de uma posse oculta, e que o prazo de usucapião não se completou.
2. De acordo com os artigos 1.º a 14.º e 20.º a 26.º dos factos provados, por volta da primeira metade de 1978, o promitente-comprador/1º réu C pediu dinheiro emprestado ao pai da recorrida, F, por causa da sua doença grave, e entregou, a título de dação em cumprimento, a “fracção em litígio”. Para o efeito, C entregou a F o “contrato de compra e venda do prédio”, o “certificado de alienação do prédio”, os recibos do sinal da aquisição do imóvel e das despesas de limpeza, assim como as chaves da fracção. Posteriormente, F solicitou à recorrente que se procedesse às formalidades da transferência do registo da propriedade para seu nome, mas esta recusou com o fundamento de que era necessária a presença do promitente-comprador C. O mesmo procurou C, mas sem sucesso. Ele geria e habitava na “fracção em litígio”.
3. Dos artigos 27.º a 39.º dos factos provados e de diversas provas documentais constantes dos autos resulta que, antes do falecimento do possuidor anterior F em 1981, este doou à recorrida, como dote, a “fracção em litígio”, entregando-lhe todos os documentos e chaves. A partir desse momento, a recorrida, agindo como única proprietária, e de forma ininterrupta, residiu e arrendou o imóvel, tratando das questões relativas à manutenção e ao arrendamento e pagando as despesas de água e electricidade, contribuições prediais, foros e contribuições especiais, etc., actuações que não eram diferentes das dos proprietários em geral. O que é suficiente para demonstrar que ela sucedeu e juntou à sua a posse de F. A sua apreensão exclusiva, contínua, pacífica, pública e material da “fracção em litígio” dura mais de 20 anos.
4. Em primeiro lugar, de acordo com os artigos 31.º a 37.º dos factos provados da sentença recorrida, o Tribunal a quo andou muito bem ao considerar provado o ponto(sic) 34 dos factos provados.
5. O Tribunal a quo considera que, a prova documental constante dos autos e o depoimento das várias testemunhas, entre as quais duas testemunhas neutras e objectivas na sua qualidade, sem relação de parentesco ou interesse, a saber, H e I (agente imobiliária da Agencia Predial J (J地產)), que prestaram depoimento coerente com as outras provas, permitem provar que a recorrida tem arrendado a “fracção em litígio” e recebido a renda na qualidade de proprietária desde 1991, altura em que dela se mudou.
6. A lei não impede os familiares de ser testemunhas. As testemunhas têm o dever de depor com verdade. A recorrente não tem qualquer razão ao pôr em causa a livre convicção do julgador a quo formada sobre o depoimento testemunhal.
7. A recorrida se moveu da “fracção em litígio”, arrendou o imóvel a K e a E, sucessivamente. Os contratos de arrendamento e os acordos de cessação do arrendamento assinados pela recorrida como única locadora durante mais de 30 anos, bem como os extractos da(s) conta(s) bancária(s) utilizada(s) para receber as rendas, são prova suficiente de que arrendou a “fracção em litígio” como única proprietária para receber as rendas.
8. A recorrente ao questionar o acto da recorrida de receber as rendas através de uma conta colectiva confundiu o facto de a recorrida ter arrendado a “fracção em litígio” na qualidade de possuidora com a utilização das rendas.
9. Da história (sic) e dos autos nada resulta que D tenha quaisquer direitos sobre a “fracção em litígio”.
10. A testemunha L (marido da recorrente(sic)) salientou no seu depoimento prestado em tribunal que D morreu em Hong Kong em 2020 e foi enterrado no cemitério de Hong Kong, e que não se tratava de um caso de não colaboração por parte da recorrida.
11. Em segundo lugar, de acordo com os artigos 27.º a 29.º dos factos provados e com o depoimento da irmã mais velha da recorrida, M, o possuidor anterior F deu à recorrida a “fracção em litígio” como dote antes de falecer em 1981, e a “fracção em litígio” passou a ficar até hoje, na disposição e apreensão exclusiva da recorrida. Não há dúvida de que a recorrida está na posse exclusiva da “fracção em litígio”, pelo que não está em causa a legitimidade do litisconsórcio necessário.
12. Em terceiro lugar, de acordo com os artigos 5.º a 14.º e 40.º a 48.º dos factos provados, a recorrente, depois de ter recebido a totalidade do preço de compra da “fracção em litígio” e de tê-la efectivamente entregue ao promitente-comprador, não pagou quaisquer impostos e despesas de água e electricidade em relação ao imóvel. Além disso, em 2001, a recorrente emitiu um aviso exigindo que C pagasse os foros. A recorrente é apenas uma titular aparente.
13. De acordo com os pontos 24.º, 38.º e 39.º dos factos provados, a recorrida ou o seu pai foram à sede social da recorrente para fazer perguntas e pedir o tratamento das formalidades como a transferência do registo da propriedade, mas o pessoal da recorrente disse que o 1º réu tinha de estar presente e assinar os respectivos documentos para poder concluir a transferência do registo da propriedade.
14. Como poderia a recorrente não ter conhecimento do facto de a recorrida estar na posse da “fracção em litígio”.
15. A propriedade de outra “fracção em litígio” (sic) sita no XXX foi adquirida por usucapião. O Tribunal logrou citar a recorrente, a qual todavia não contestou.
16. Agora, a recorrente vê que a “fracção em litígio” e outros bem imóveis relacionados são muito procurados, pelo que reivindica subitamente a propriedade, que perdeu completamente, da “fracção em litígio” e de outras fracções sitas no XXX.
17. Em quarto lugar, como se refere incisivamente a fls. 14 da sentença recorrida, a posse é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, pelo que a propriedade da recorrente nada impede a aplicação da lei relativamente ao facto de a recorrida adquirir a propriedade da “fracção em litígio” por usucapião. Logo, não há erro na aplicação da lei.
18. A recorrente, alicerçada na sua intenção(sic) subjectiva, pôs em crise a livre convicção do Tribunal a quo.
19. Os referidos factos são suficientes para provar que a recorrida agiu na qualidade de proprietária, o que basta para demonstrar o seu animus e corpus da posse.
20. Face ao exposto, a recorrida mantém a posse pública, pacífica e fundada há mais de 20 anos. O Tribunal a quo andou bem na apreciação dos factos e aplicação da lei relativamente à existência de posse e de usucapião, devendo a sua decisão ser mantida.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Do Recurso interlocutório
É do seguinte teor o despacho recorrido:
«(…)
Ponderando os fundamentos deduzidos pela autora na fls. 473, o requerimento da 2” ré na fls. 470 é obviamente irrelevante para o exame e decisão, pelo que, é de indeferir o requerimento da 2ª ré.
(…).».
O que está em causa neste recurso é o despacho onde se nega a realização das diligências requeridas com vista a saber se faleceu e deixou herdeiros a pessoa que era co-titular com a Autora da conta bancária onde esta recebia as rendas da fracção autónoma.
Ora, esta matéria é completamente irrelevante face à causa de pedir quanto ao pedido da Autora como adiante melhor se explicará no que concerne à impugnação da matéria de facto, uma vez que nada releva da conta bancária onde as rendas eram depositadas ser apenas da Autora ou ter um co-titular.
Por outro lado, aquilo que a 2ª Ré invoca são meras especulações sem nada de concreto, sendo certo que, se a 2ª Ré queria invocar qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da Autora a si lhe cabia fazê-lo concretamente nos articulados, bem como, a prova do mesmo, e não à Autora – artº 335º nº 2 do C.Civ. –
Pelo que, sem necessidade de outras considerações bem se andou ao indeferir a realização das diligências requeridas, improcedendo as conclusões de recurso quanto a esta matéria.
2. Do Recurso da Decisão Final
Nas suas conclusões de recurso vem a Recorrente ao que parece impugnar a resposta dada ao Quesito 18º da Base Instrutória.
No Quesito 18º da base Instrutória perguntava-se:
上述租約皆由原告以所有權人的身份去簽署,租金全部由原告收取?
E a resposta dada foi como provado.
O que dali resulta é que a Autora deu a fracção a que se reportam os autos em arrendamento como se fosse sua, como se fosse sua proprietária e recebeu as respectivas rendas.
Por sua vez a Recorrente pretende extrapolar de que as rendas foram recebidas pela Autora e pela pessoa que também era titular da conta bancária.
Ora, a titularidade da conta bancária onde as rendas eram pagas não é sequer objecto da matéria destes autos e é aqui totalmente irrelevante.
Qualquer pessoa pode ter uma conta bancária em conjunto com outra pessoa e aí receber as quantias que lhe são pagas a qualquer título.
Pelo facto da conta bancária ter mais do que um titular não faz com que as quantias ali depositadas porque um dos titulares a elas tenha direito, pressuponha que o direito de onde emergem seja comum.
Por exemplo se a conta é titulada por duas pessoas e uma delas ali recebe o ordenado não é porque ambos os titulares da conta são funcionários da empresa que paga o salário.
É perfeitamente possível que por uma qualquer razão – que não vem ao caso nem é objecto dos autos – duas ou mais pessoas tenham uma conta bancária em conjunto e algumas delas ali recebam rendas que lhes são pagas pelos imóveis de que são donos ou se consideram como tal, sem que por isso os co-titulares da conta passem a ser donos dos respectivos imóveis.
Quanto à titular do dinheiro que é depositado na conta é algo a ser resolvido no domínio das relações entre os titulares da conta e que não é, seguramente, objecto destes autos nem aqui cabe apreciar, sendo certo que, a presunção de que metade pertence a cada um dos titulares – no caso de serem só dois – é meramente “uma presunção” e mais uma vez a resolver nas relações entre os titulares da conta que aqui não são objecto de decisão.
Destarte, é manifestamente infundada toda a argumentação usada quanto à titularidade da conta onde as rendas eram depositadas, sendo certo que o que apenas releva, é que as rendas foram depositadas numa conta de que a Autora era titular e que podia movimentar livremente e de que foi a Autora quem deu em arrendamento a fracção autónoma como sendo coisa sua.
Quanto à “suposta” impugnação da matéria dos quesitos 5º, 6º e 12º da Base Instrutória – factos 21, 22 e 28 da sentença – não se impugna a resposta dada pelo Tribunal mas invoca-se a eventual existência de outros sucessores do pai da Autora que segundo a Recorrente haviam de continuar a posse do falecido.
Esquece a Recorrente que o que se deu como provado foi que o pai da Autora antes de falecer “lhe doou” a fracção autónoma. Pelo que, quando faleceu já não tinha a posse da mesma precisamente porque a havia doado.
Se por acaso dessa doação resultou alguma inoficiosidade quanto à legítima dos demais herdeiros – se é que os havia – na herança do “de cujos” é matéria a ser tratada em sede de partilha dessa herança o que não é objecto destes autos.
Pelo que quanto a toda a esta matéria é irrelevante o que se alega.
No que concerne à impugnação da decisão sobre a matéria de facto é abundante a Jurisprudência deste Tribunal no sentido da improcedência deste género de argumentação.
O que resulta do princípio da livre apreciação da prova é que o tribunal de primeira instância, que beneficiou da imediação quanto à produção da prova, decide de acordo com a sua convicção face à prova produzida, havendo que fundamentar a sua decisão.
Ao tribunal de recurso não cabe fazer um novo julgamento sobre a matéria de facto em face da prova que foi produzida e apreciar se o tribunal recorrido decidiu bem ou mal.
Nos termos do nº 4 do artº 629º do CPC só quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre determinado ponto da matéria de facto é que o tribunal de recurso a pode anular.
Igualmente apenas nos termos previstos no nº 1 do mesmo preceito legal o tribunal de recurso apenas pode alterar a decisão sobre a matéria de facto se os meios probatórios produzidos e indicados nos termos do artº 599º do CPC demandarem decisão diversa, ou quando houver erro grosseiro na apreciação da prova e dos elementos existentes resultar decisão diversa.
No caso em apreço, a fundamentação apresentada pelo Tribunal “a quo” mostra-se adequada não se descortinando erro grosseiro na apreciação da prova.
Por sua vez, a Recorrente não convoca nas suas conclusões de recurso – a indicar nos termos do artº 599º do CPC - qualquer meio de prova que demandasse decisão diversa, para além de expor em jeito de alegações sobre a matéria de facto as razões pelas quais entende que a decisão havia de ser outra e que como vimos são totalmente irrelevantes.
Assim sendo, no que concerne à impugnação da decisão sobre a matéria de facto deve improceder o recurso.
a) Factos
Na decisão sob recurso foi apurada a seguinte factualidade:
1. Em 19 de Fevereiro de 1973, a 2.ª ré celebrou com N o “contrato de compra e venda de prédio” n.ºYHG/262/73 e vendeu a N a fracção autónoma do 3.º andar do bloco G do Edifício XX, sito no XXX, n.º262 (vd. fls. 15, 16 e 16v, 17 a 36 dos autos, cujos conteúdos aqui se dão por integralmente reproduzidos). (al. A dos factos assentes)
2. O “contrato de compra e venda de prédio” não foi celebrado por escritura pública. (al. A-1 dos factos assentes)
3. No contrato de compra e venda de prédio, nele não foi estipulado qualquer prazo para a conclusão de transacção nem o prazo para a celebração da escritura pública. (al. A-2 dos factos assentes)
4. A fracção autónoma do 3.º andar do bloco G do Edifício XX, sito no XXX, n.º262 (daqui em diante “fracção”) é a fracção que actualmente se encontra registada na Conservatória do Registo Predial, sendo fracção autónoma designada por “J2”, do 2.º andar da fase 2, bloco 3, do Edifício XX, sito em Macau, na XXX, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o número XXX, a fls. XXX do livro XXX e inscrita na madriz predial sob o n.ºXXX, com finalidade habitacional. (al. B dos factos assentes)
5. Logo após a celebração do “contrato de compra e venda de prédio”, N pagou à 2.ª ré o sinal de MOP4.417,50 (al. C) dos factos assentes)
6. Segundo a cláusula 1.ª, al. B) do “contrato de compra e venda de prédio”, deveria N pagar à 2.ª ré HK$2.906,70 quando for concluída a obra de alicerce. (al. D dos factos assentes)
7. Em 18 de Junho de 1974, na presença da 2.ª ré como testemunha, a promitente-compradora N celebrou com o 1.º réu o “certificado de alienação de prédio”, tendo transmitido ao 1.º réu a posição contratual de comprador do “contrato de compra e venda de prédio” (al. E dos factos assentes)
8. Segundo a cláusula 1.ª, al. C) do “contrato de compra e venda de prédio”, deveria o 1.º réu pagar à 2.ª ré a quantia acordada quando for concluída a obra de pavimento do 3.º andar. (al. F dos factos assentes)
9. Em 26 de Fevereiro de 1975, o 1.º réu pagou à 2.ª ré MOP2.945,00 (vd. fls. 90 dos autos). (al. G dos factos assentes)
10. Segundo a cláusula 1.ª, al. D) do “contrato de compra e venda de prédio”, deveria o 1.º réu pagar à 2.ª ré a quantia acordada quando for concluída a obra de terraço. (al. H dos factos assentes)
11. Em 23 de Julho de 1975, o 1.º réu pagou à 2.ª ré MOP2.945,00 (vd. fls. 91 dos autos). (al. I dos factos assentes)
12. Segundo a cláusula 1.ª, al. E) do “contrato de compra e venda de prédio”, deveria o 1.º réu pagar à 2.ª ré a quantia remanescente quando for emitida a licença de utilização. (al. J dos factos assentes)
13. Em 31 de Julho de 1975, o 1.º réu pagou à 2.ª ré a quantia remanescente de MOP1.472,50 e a caução da despesa de limpeza de MOP36,00. (al. K dos factos assentes)
14. De seguida, a 2.ª ré entregou ao 1.º réu a fracção autónoma referida no “contrato de compra e venda de prédio”. (al. L dos factos assentes)
15. Para resolver a matéria sobre o contrato-promessa de compra e venda da fracçaõ autónoma em causa, a 2.ª ré chegou a intentar a acção n.ºCV1-18-0009-CPE contra o 1.º réu e outros indivíduos,. (al. M dos factos assentes)
16. A 2.ª ré é proprietária da “fracção autónoma” em causa. (al. N dos factos assentes)
- Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos (vd. fls. 529 a 534v, os fundamentos em que foram dados como provados os factos)
17. O 1.º réu era cidadão de Hong Kong e trabalhava em Hong Kong, pretendendo adquirir a fracção autónoma referida na al. B) dos factos assentes para viver em Macau depois de aposentação. (Resposta dada ao art.º 1.º dos factos por provar)
18. Quando veio a Macau, o 1.º réu viveu na referida fracção autónoma e reuniu-se com o pai da autora, F. (Resposta dada ao art.º 2.º dos factos por provar)
19. Por volta dos anos 50 e 60, o pai da autora, F, durante o trabalho em Hong Kong, conheceu o 1.º réu e ambos tinham uma boa relação como bons amgios. (Resposta dada ao art.º 3.º dos factos por provar)
20. Por volta do primeiro semestre de 1978, por sofrer doença grave, o 1.º réu necessitou de dinheiro para o tratamento médico e pediu dinheiro emprestado junto do pai da autora e lhe entregou a fracção referida na al. B dos factos assentes a fim de liquidar a sua dívida. (Resposta dada ao art.º 4.º dos factos por provar)
21. Ao mesmo tempo, o 1.º réu entregou ao pai da autora todos os documentos respeitantes à “fracção”, nomeadamente “o contrato de compra e venda de prédio”, “certificado de alienação de prédio”, bem como os respectivos recibos e chaves da “fracção”. (Resposta dada ao art.º 5.º dos factos por provar)
22. Depois, o pai da autora procedeu a algumas remodelações, e toda a família de quatro membros (pais, a segunda irmã mais velha e a autora) mudou para viver na “fracção”. (Resposta dada ao art.º 6.º dos factos por provar)
23. Desde então, a autora e seu pai nunca mais viram o 1.º réu e perderam notícias sobre ele. (Resposta dada ao art.º 7.º dos factos por provar)
24. O pai da autora deslocou-se à companhia da 2.ª ré para exigir proceder às formalidades da transmissão do titular de propriedade da fracção em causa, mas tal pedido foi rejeitado pela 2.ª ré, tendo o seu funcionário referido que devia o 1.º réu estar presente também para fazer as formalidades tais como a transmissão da posição contratual. (Resposta dada ao art.º 8º dos factos por provar)
25. A fim de proceder às formalidades de transimissão do direito de propriedade da “fracção”, o pai da autora deslocou-se a Hong Kong para procurar o 1.º réu, mas não conseguindo encontrá-lo. (Resposta dada ao art.º 9.º dos factos por provar)
26. O pai da autora geriu a “fracção” e viveu nela, na qualidade do proprietário. (Resposta dada ao art.º 10.º dos factos por provar)
27. Em 1981, antes de falecer, o pai da autora ofereceu a “fracção” à autora para servir do futuro dote da filha e lhe entregou todos os documentos respeitantes à fracção em causa. (Resposta dada ao art.º 11.º dos factos por provar)
28. Em 11 de Dezembro de 1981, o pai da autora faleceu, desde então a autora e sua mãe viviam na fracção e só deixaram de viver nela em 1991. (Resposta dada ao art.º 12.º dos factos por provar)
29. Desde a entrega da fracção ao pai da autora F pelo 1.º réu e desde que à autora foi oferecida a fracção pelo pai, até à presente data, a autora tem vindo a dispor a “fracção” de forma contínua, pública e efectiva, na qualidade da única titular de propriedade. (Resposta dada ao art.º 13.º dos factos por provar)
30. Todas as despesas respeitantes à “fracção” foram pagas pela autora, e não se exigiu a terceiros para o reembolso incluindo o pagamento de contribuição predial, de foro, de contribuições especiais, de despesas de electricidade e de água, bem como de despesas de manutenção da fracção, etc.. (Resposta dada ao art.º 14.º dos factos por provar)
31. Por volta de 1991, a autora e sua mãe deixaram de viver na fracção, tendo a autora entregado a fracção ao parente para viver e dar de arrendamento. (Resposta dada ao art.º 15.º dos factos por provar)
32. Desde 2001 até Novembro de 2007, a autora deu de arrendamento a fracção a uma senhora de nome “K” pela renda mensal de HK$700,00, até o falecimento desta. (Resposta dada ao art.º 16.º dos factos por provar)
33. Desde 18 de Março de 2008, a autora deu de arrendamento a fracção a um senhor de nome E pela renda mensal de HK$1.800,00 até a resolução do contrato de arrendamento em Agosto de 2020. (Resposta dada ao art.º 17.º dos factos por provar)
34. Todos os contratos acima indicados foram celebrados pela autora na qualidade do titular de propriedade e também por si foram recebidas as rendas. (Resposta dada ao art.º 18.º dos factos por provar)
35. Sempre que os arrendatários se deparassem com problemas de arrendamento ou de manutenção da “fracção” e que precisassem de entrar em contacto com o titular de propriedade para o acompanhamento, iriam directamente contactar a autora para o tratamento. (Resposta dada ao art.º 19.º dos factos por provar)
36. Durante a vivência, o cano de água da cozinha quebrou e causou infiltrações de água, a autora reparou e substituiu os canos de água e os armários, a despesa de reparo foi de cerca de algumas centenas de dólares que foi totalmente suportada pela autora. (Resposta dada ao art.º 20.º dos factos por provar)
37. Ao dar de arrendamento a fracção à senhor K, o concreto que sustentava a lava-louça de aço inoxidável da cozinha descascou e causou infiltrações de água, a arrendatária K entrou em contacto com a autora e exigiu a reparação, tendo a autora procedido à obra de reparação com despesas de cerca de quinhentos que foram suportadas totalmente pela autora. (Resposta dada ao art.º 21.º dos factos por provar)
38. A autora chegou a deslocar-se à sede da 2.ª ré para perguntar e solicitar as formalidades de transmissão do titular de propriedade, tendo o funcionário da 2.ª ré referido que devia o 1.º réu estar presente também para fazer as formalidades tais como celebração dos respectivos documentos. (Resposta dada ao art.º 22.º dos factos por provar)
39. Todas as pessoas, amigos e vizinhos que conhecem a autora acreditam que a autora é proprietária da “fracção” e nunca têm qualquer dúvida ou oposição a isso. (Resposta dada ao art.º 23.º dos factos por provar)
40. Dado que o 1.º réu C não apareceu para celebrar a escritura pública de compra e venda, a reconvinte (2.ª ré) chegou a procurá-lo no sentido de concluir as formalidades para a celebração da escritura pública de compra e venda, mas foi em vão. (Resposta dada ao art.º 26.º dos factos por provar)
41. A reconvinte (2.ª ré) intentou a acção n.ºCV1-18-0009-CPE, nela tendo pedido a fixação de um prazo para que pudesse o 1.º réu C concluir a celebração da respectiva escritura pública de compra e venda. (Resposta dada ao art.º 27.º dos factos por provar)
42. Segundo a decisão do supracitado processo já transitada em julgado, foi fixado o prazo de 60 dias, tal prazo caducou em 9 de Janeiro de 2021, mas o 1.º réu C não apareceu nem cumpriu o respectivo contrato. (Resposta dada ao art.º 28.º dos factos por provar)
43. Desde 1975 até à presenta data, nunca a 2.ª ré pagou quaisquer foros, contribuições especiais e prediais em relação ao imóvel em causa. (Resposta dada ao art.º 31.º dos factos por provar)
44. A ré construiu vários edifícios em Macau. (Resposta dada ao art.º 32.º dos factos por provar)
45. A ré tem perfeito conhecimento de que os imóveis implicam vários impostos. (Resposta dada ao art.º 32.º dos factos por provar)
46. Em 2001, a 2.ª ré mandou carta exigindo ao 1.º réu C que pagasse o foro de 2001 (fls. 342 e 343) (Resposta dada ao art.º 32.º dos factos por provar)
47. Durante muitos anos, desde 1975 até à presente data, a 2.ª ré nunca fez caso do nome de utente e despesas do contador da electricidade da fracção em causa. (Resposta dada ao art.º 33.º dos factos por provar)
48. Quanto um edifício residencial em Macau (especialmente um edifício antigo sem elevador) for entregue a um comprador, se o promotor já tiver pedido e instalado o contador de água, o comprador e o proprietário subsequente normalmente utilizam o contrato de abastecimento de água originalmente celebrado e não alteram o nome de utente. (Resposta dada ao art.º 34.º dos factos por provar)
b) Do Direito
Resulta da certidão do registo predial junta a fls. 38 a 86 que a fracção autónoma designada por “J2”, do 2.º andar da fase 2, bloco 3, do Edifício XX, sito em Macau, na XXX, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o número XXX, a fls. XXX do livro XXX e inscrita na madriz predial sob o n.ºXXX, com finalidade habitacional, que é objecto destes autos, faz parte de um prédio concedido por arrendamento.
Face ao disposto no artº 7º da Lei Básica não se pode reconhecer o direito de propriedade privada sobre qualquer imóvel que não o tivesse sido antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial.
A indicada norma da Lei Básica da RAEM decorre dos artigos 9º e 10º da Constituição da República Popular da China que determina que os terrenos nas cidades são propriedade do Estado.
A Lei Básica enquanto Lei Constitucional e enformadora do sistema jurídico de Macau não pode ser violada sob pena do acto legislativo, administrativo ou judicial que o fizer ser inconstitucional.
Fazendo a fracção autónoma objecto destes autos parte de prédio construído em terreno concedido por arrendamento, o direito real maior que pode ser adquirido sobre a mesma nunca pode ser mais do que “o direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção”.
Porém, a decisão recorrida decidiu pela aquisição do direito de propriedade.
Pese embora não tenha sido objecto de recurso, mas sendo uma violação da Lei Básica e como tal de conhecimento oficioso, impõe-se revogar a decisão recorrida quando reconhece que a Autora adquiriu o “Direito de propriedade”.
Contudo, entendemos que o facto de se pedir o reconhecimento do direito de propriedade relativamente a prédio sujeito a enfiteuse ou a concessão por arrendamento não é obstáculo a que se conheça sobre o pedido mas adaptado à realidade jurídica do prédio de acordo com o direito real a que se encontre sujeito, cabendo ao juiz do processo proceder à adaptação que tiver por conveniente.
Numa tentativa de aproveitar os actos já praticados foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre esta matéria tendo silenciado, pelo que, se entende que nada obsta a que, caso venha a ser reconhecido a existência de direito algum sobre a fracção autónoma em causa este seja de acordo com o direito que se encontra inscrito no registo predial e único possível que não o de propriedade, a saber, o direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção.
É do seguinte teor a decisão recorrida:
«Cabe ao Tribunal analisar concretamente os factos dados como provados nos autos e aplicar a lei, a fim de resolver os litígios das partes.
De acordo com os factos provados nos autos, a 2.ª ré é titular do direito de propriedade da fracção em causa.
Através do presente processo, pretende a autora aproveitar o mecanismo de usucapião no sentido de pedir ao Tribunal que seja declarada ela como proprietária do imóvel em causa.
Invoca a 2.ª ré a improcedência do pedido da autora. Além disso, a 2.ª ré ainda deduziu reconvenção exigindo ao Tribunal que condenasse a autora a reconhecer que fosse a 2.ª ré proprietária da fracção em causa, bem como a restituir a fracção e pagar indemnização.
Analisados os fundamentos e pedidos de ambas as partes, logicamente deve-se, em primeiro lugar, apreciar os pedidos formulados pela autora.
- Pedidos da autora
Nos termos do art.º 1212.º do Código Civil, “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.”.
Mas o que é a posse? O Código Civil dispõe no seu art.º 1175.º que, posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”
Através dos art.ºs 1175.º e 1177.º, al. a) do Código Civil, podemos saber que a posse é composta por duas partes, sendo nomeadamente o corpus da posse e o animus do proprietário (ou outro direito real).
O corpus refere-se ao acto material praticado pelo autor ao exercer certo direito sobre a coisa, enquanto o animus se refere à mentalidade do autor como seja o titular do direito de propriedade ao agir.
De acordo com os pontos 1 a 3 dos factos dados provados, entre a 2.ª ré e N existe uma relação de promessa de compra e venda.
De acordo com os pontos 7 a 14 dos factos provados, em 18 de Junho de 1974, a promitente-compradora N, na presença da 2.ª ré como testemunha, celebrou com o 1.º réu o “certificado de alienação de prédio”, tendo N transmitido ao 1.º réu a posição contratual de comprador do “contrato de compra e venda de prédio”.
Segundo o facto supra referenciado, o valor do imóvel em causa já foi pago integralmente e a 2.ª ré, por sua vez, também já entregou ao 1.º réu a correspondente “fracção” no “contrato de comora e venda de prédio”.
Tal como mostram os pontos 20 a 22 e 25 dos factos provados, por volta do primeiro semestre de 1978, por sofrer doença grave, o 1.º réu necessitou de dinheiro para o tratamento médico e entregou ao pai da autora a fracção referida na al. B) dos factos assentes, a fim de liquidar a sua dívida. Ao mesmo tempo, o 1.º réu entregou ao pai da autora todos os documentos respeitantes à “fracção”, nomeadamente “o contrato de compra e venda de prédio”, “certificado de alienação de prédio”, bem como os respectivos recibos e chaves da “fracção”. Depois, o pai da autora procedeu a algumas remodelações, e toda a família de quatro membros (pais, a segunda irmã mais velha e a autora) mudou para viver na “fracção” em causa. Desde então, o pai da autora geriu a “fracção” e viveu nela, na qualidade do proprietário.
De acordo com as circunstâncias acima indicadas, o 1.º réu, a título de dação em cumprimento (art.º 828.º do Código Civil) entregou (ao pai)2 da autora a fracção em causa, Nessa circunstância, segundo o ponto 20 dos factos provados e o art.º 1187.º, al. b) do Código Civil, deve-se considerar que o pai da autora obteve do 1.º réu a posse da propriedade em causa. Mesmo assim não se entenda, depois de lhe ter sido entregue o imóvel em causa, o pai da autora, durante muitos tempos, procedia, pública e repetidamente, à apreensão do imóvel, na qualidade de proprietário, sendo isto também capaz de sustentá-lo de ser considerado como possuidor do imóvel em causa, nos termos do art.º 1187.º, al. a) do Código Civil. Na verdade, de acordo com as circunstâncias existentes nos autos, em particular, o valor de compra e venda já foi pago integralmente, o vendedor já entregou efectivamente ao promitente-comprador o prédio, e ao pai da autora já foi entregue o prédio a título de dação em cumprimento e este também exercia, durante muitos tempos, o poder de apreensão sobre o imóvel em causa, tal como agem todos os proprietários, pelo que, para o pai da autora, a fracção em causa pertence a ele, mas a celebração oficial de escritura pública não passa de uma formalidade jurídica.
Nos termos dos art.ºs 1185.º e 1186.º do Código Civil, o pai da autora obteve a posse não por meio de violência, pelo que tal posse pertence à posse pacifica, também à posse pública. Assim é de salientar que, segundo mostram os factos provados, a fracçaõ em causa tem vindo a ser utilizada por pessoas, e a autora também chegou a dar de arrendamento a outra pessoa a fracção em causa, pelo que, o pai da autora (e depois, a autora) utilizava a fracção de forma a ser conhecida pelo mundo exterior, ou seja procedia à posse pública da fracção em causa, mas não foi a posse oculta tal como invoca a 2.º ré.
Depois, tal como indica o ponto 27 dos factos provados, em 1981, antes de falecer, o pai da autora ofereceu a “fracção” em causa à autora para servir do futuro dote da filha e lhe entregou todos os documentos respeitantes à “fracção” em causa.
Nos termos do art.º 1180.º, n.º1 do Código Civil, “Aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor.”
De acordo com esta disposição legal, pode a autora que obteve a possa do imóvel em causa por lhe ter sido oferecido pelo pai antes de falecimento, juntar à sua a posse do seu pai F (art.º 1187.º, al. b) do CC).
Segue-se a análise acima feita, nos termos do art.º 1180.º, n.º2 do Código Civil, deve-se considerar a posse da autora e a posse do seu pai com mesma natureza, sendo também a posse pacifica e pública.
Uma vez que a posse pertence à pacífica e pública (pelo que não existem situações previstas nos art.ºs 1222.º e 1225.º do Código Civil), os dois autores (sic.) não procederam ao registo dos fundamentos da posse, nos termos do art.º 1221.º do Código Civil, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse dos dois autores (sic.) for de boa fé, e de 20 anos, se for de má fé.
Nos termos do art.º 1183.º, n.º1 do Código Civil, “Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo abstractamente idóneo para adquirir o direito nos termos do qual se possui, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade do negócio jurídico.”
Tal como indica o TSI no seu acórdão proferido em 25 de Setembro de 2014 no processo n.º254/2014 que, “Por conseguinte, presentemente,, qualquer que seja a invalidade do negócio (não apenas a substancial, mas também a formal), a posse será sempre titulada se o título for um modo abstractamente idóneo para adquirir o direito e se for por via dele que a pessoa possui a coisa. Dito de outra forma, a posse titulada implica a existência de um título (o facto, o negócio jurídico), mas não um título válido.”
Daí podemos verificar que a posse do pai da autora resultou de um acordo de dação em cumprimento fixado verbalmente, embora não reúna a forma legal, abstractamente o acordo pode atingir o efeito da transmissão de propriedade. E nessa circunstância, nos termos do art.º 20.º do D.L n.º39/99/M, de 3 de Agosto e do art.º 1183.º, n.º1 do Código Civil em vigor, bem como do douto entendimento do TSI acima indicado, o que obteve o pai da autora é uma posse fundada. Pelo que, nos termos do art.º 1184.º, n.º2 do Código Civil, a supracitada posse pode ser deduzida como posse de boa fé.
Tendo em consideração a posse da autora e do seu pai em relação à fracção em causa iniciada em 1978, com base nisso, a partir do momento em que a autora intentou a presente acção (em 11 de Setembro de 2020), a referida posse já dura mais de 15 anos.
Pelo acima exposto, deve-se julgar procedente o pedido da autora.
*
- Reconvenção da 2.ª ré
Invoca a 2.ª ré na sua contestação que a posse da autora em relação ao imóvel em causa é infundada, oculta e de má fé e que ainda não começa o cálculo do prazo de usucapião, não reunindo os requisitos legais para a aquisição por usucapião.
Salvo o devido respeito e, o que é diferente da invocação da 2.ª ré, tal como a supracitada análise feita pelo presente Tribunal, os factos provados nos autos sustentam o pedido de usucapião formulado pela autora. Pelo que, os supracitados fundamentos da defesa da 2.ª ré não dão para prejudicar a procedência do pedido da autora.
O pedido reconvencional da 2.ª ré consiste em exigir ao Tribunal que condene a autora a reconhecer a 2.ª ré como proprietária do imóvel em causa, bem como a restituir à 2.ª ré o imóvel e a pagar, a título de indemnização, o valor não inferior a MOP3.000,00 por mês, desde a notificação do pedido reconvencional até à restituição efectiva do imóvel em causa.
Nos termos do art.º 1235.º do Código Civil;
“1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.”
Segundo a disposição legal acima indicada, a acção de restituição de coisa é composta por duas partes; em primeiro lugar, cabe à pessoa quem invoque ser proprietário provar a propriedade; em segundo lugar, explorar se a parte requerida tem uma razão legítima para não proceder à restituição da coisa, e uma vez provada e reconhecida a propriedade de quem invoque ser proprietário da coisa, pode a parte requerida recusar-se a restituir ao autor a coisa, apenas nas circunstâncias previstas na lei.
No presente caso, embora ninguém questione o direito de propriedade da 2.ª ré em relação à fracção em causa, e isto também consta do registo, a usucapião constitui uma forma de aquisição originária da propriedade, segundo a análise acima feita, a autora já dispõe de todos os requisitos para ser reconhecida como proprietária da fracção em causa por usucapião, a declaração disto é suficiente para extinguir a propriedade originária da 2.ª ré e consequentemente não podendo a 2.ª ré, na mesma qualidade, usar tal invocação contra a autora.
Todos os pedidos reconvencionais da 2.ª ré baseiam-se no pressuposto como proprietária da fracção em causa, e já que o seu direito de propriedade foi extinto devido à aquisição originária da autora, deve ser julgada improcedente a reconvenção deduzida pela 2.ª ré.».
Vejamos então.
Nas suas alegações de recurso pretende a Recorrente sustentar que como nunca reconheceu a posse da Recorrente esta não teria a posse e se a tivesse seria oculta.
Ora como bem se conclui na decisão recorrida o que resulta da factualidade apurada é que a posse sobre a fracção autónoma foi transmitida pela 2ª Ré a C aquando da entrega da fracção no âmbito do contrato então celebrado e que apelidaram de “contrato de compra e venda de prédio”.
A seguir o que acontece são transmissões da posse entre C e F (pai da Autora) e deste para a Autora, todas elas ao abrigo de contratos de compra e venda, dação em cumprimento e doação que ainda que não sejam formalmente válidos eram meios idóneos para adquirir o direito sobre a fracção autónoma a que se reportam os autos.
Tal como tem vindo a ser pacificamente entendido pela Jurisprudência e Doutrina desde o Código de Seabra – Código Civil Português de 1867 – diz-se titulada a posse que tem “origem num facto jurídico em abstracto idóneo para provocar a aquisição do próprio direito real”3.
Por sua vez no que concerne à validade formal ou substancial do negócio jurídico a redacção do artº 1183º do C.Civ. de Macau diverge da do artº 1259º do C.Civ. Português, ressalvando-se neste último a “validade substancial do negócio” enquanto no diploma de Macau se fala apenas de “validade do negócio”, o que, considerando o debate doutrinal que esteve na base da redacção do preceito aquando da aprovação do Código Civil Português de 19664 nos obriga a concluir que a opção do legislador de Macau ao referir apenas “validade do negócio” admitiu que as invalidades formais também não eram bastantes para eliminar a existência de título.
Assim sendo, e uma vez que no caso dos autos como decorre da factualidade apurada a posse tem “origem num facto jurídico em abstracto idóneo para provocar a aquisição do próprio direito real”5, bem se andou ao concluir pela posse titulada.
Por outro lado como também resulta da factualidade apurada – resposta dada ao quesito 8º da Base Instrutória e facto 24 da sentença, bem como, resposta dada ao Quesito 22º da Base Instrutória e facto 38 da sentença – quer o pai da Autora quer a Autora contactaram a 2ª Ré no sentido da escritura pública de compra e venda ser feita consigo porque se consideravam os donos da fracção autónoma, pelo que, improcede toda a argumentação da posse oculta ou “escondida” da 2ª Ré.
Destarte, sem necessidade de outras considerações improcedem as conclusões de recurso, nada mais havendo a acrescentar aos fundamentos da decisão recorrida, para os quais remetemos e aderimos integralmente nos termos do nº 5 do artº 631º do CPC, impondo-se negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida, salvo no que concerne à qualificação do direito adquirido.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento aos recursos interpostos, mantendo-se a sentença proferida nos seus precisos termos salvo no que concerne à qualificação do direito adquirido pela Autora, declarando-se em substituição que a Autora B adquiriu, por usucapião, o direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção da fracção autónoma designada por “J2” do 2º andar, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o número XXX, a fls. XXX do livro XXX.
Custas a cargo da Recorrente.
Registe e Notifique.
RAEM, 21 de Novembro de 2024
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(1º Adjunto)
Ho Wai Neng
(2º Adjunto)
1 Nota do tradutor: aqui trata-se dum lapso de escrita, que se deve ler como “é natural que a 2ª ré se leve a suspeitar”.
2 Lapso de escrita no original e resulta da matéria de facto.
3 A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, pág. 673.
4 Veja-se Pires de Lima e Antunes Varela em Código Civil Anotado, Vol. III, Edição 1972, pág. 13 e 14.
5 A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, pág. 673.
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468/2024 CÍVEL 4