Processo nº 378/2024
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 28 de Novembro de 2024
ASSUNTO:
- Ineptidão da petição inicial
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 378/2024
Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 28 de Novembro de 2024
Recorrente: A
Recorridas: B,
C,
Gestão e Investimento D Limitada, e
Companhia de Gestão de Restauração E Limitada
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
veio instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
B (1ª Ré),
C (2ª Ré),
Gestão e Investimento D Limitada (3ª Ré), e
Companhia de Gestão de Restauração E Limitada (4ª Ré),
todos, também com os demais sinais dos autos,
Pedindo que:
1. Sejam condenadas as 1ª, 2ª, 3ª e 4ª rés, por forma solidária, a efectuar à autora a restituição dos 13 empréstimos, nomeadamente, o capital e os juros vencidos, no valor de trinta e cinco milhões, duzentas e sessenta e sete mil e cento e dezanove patacas e sessenta avos (MOP35.267.119,60) (cujo capital equivalente a 27.464.100,00 patacas, e os juros vencidos que ainda não foram pagos, a contar até à data de instauração da presente accão, equivalentes a 7.803.019,60 patacas), conjugado os juros calculados com a taxa convencionada (caso não houver, sejam calculados por forma legal) em cada empréstimo, até ao pagamento integral; ou
2. Caso não entendesse assim, condene a 1ª ré a efectuar à autora a restituição do capital de 9.574.000,00 renminbi e 2.150,000.00 dólares de Hong Kong, conjugado os juros calculados com a taxa convencionada (caso não houver, sejam calculados por forma legal) em cada empréstimo, até ao pagamento integral, bem como condene a 2ª ré a efectuar à autora a restituição do capital de 11.926.000,00 renminbi, conjugado os juros calculados com a taxa convencionada (caso não houver, sejam calculados por forma legal) em cada empréstimo, até ao pagamento integral;
3. Condene as rés o pagamento das despesas de taxa de justiça, custas e procuradoria.
Citadas as Rés para querendo contestarem vieram estas fazê-lo invocando a ineptidão da p.i. por ser ininteligível o pedido e a causa de pedir.
Proferido despacho saneador veio a ser julgada procedente a ineptidão da p.i. “por constar ininteligibilidade e incompatibilidade material na causa de pedir, pois que, deve ser indeferida a demanda”.
Não se conformando com a decisão proferida veio a Autora interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Pela sentença proferida pelo juízo a quo em 21/12/2023 absolveu-se a instância deduzida pela recorrente.
2. No parecer do juízo a quo, a recorrente não deixou claro com quem tinha celebrado os 13 contratos de empréstimo aqui em causa, pelo que se verificava a ininteligibilidade; além disso, propôs várias versões de factos que são incompatíveis.
3. A recorrente, discordando do fundamento e da conclusão da sentença acima referida (doravante designada por “sentença recorrida”), vem por este meio recorrer do conteúdo acima mencionado para o TSI.
4. A causa de pedir é composta por factos necessários para os direitos e interesses invocados pelas partes e para fundamentar os pedidos formulados pelas partes, ou por factos necessários para concretizar as circunstâncias subjectivas invocadas. A ininteligibilidade da causa de pedir está prevista no art.º 139.º, n.º 2, alínea a) do CPC. A ineptidão da petição inicial determina a nulidade da toda a acção.
5. Conforme o princípio da economia processual, tanto na doutrina como na prática judicial, tende-se a julgar se é caso de ineptidão da petição inicial com base em critérios rigorosos, não todos os vícios na causa de pedir são consideráveis como casos de ininteligibilidade.
6. Acerca da ininteligibilidade da causa de pedir, só quando os factos concretos que servem como fundamento para as pretensões da autora são impercetíveis em si mesmos ou quando os factos concretos não podem ser considerados como factos constitutivos dos pedidos processuais ou da dívida é que se pode considerar que está viciosa; além disso, os documentos anexos (à petição inicial) são indispensáveis para a perceção da causa de pedir.
7. A recorrente frisa sempre e em particular logo no início da petição inicial nos artigos 18.º – 22.º (que se dão por integralmente reproduzidos aqui) que a causa de pedir do presente caso é o seguinte: a 1.ª ré (doravante designada por “1.ª recorrida”) pediu empréstimos à recorrente em nome da sua própria pessoa, da 2.ª ré (doravante designada por “2.ª recorrida”), da 3.ª ré (doravante designada por “3.ª recorrida”) e da 4.ª ré (doravante designada por “4.ª recorrida”).
8. Na parte da petição inicial que se segue, há, sobretudo, mas não só, os artigos 18.º – 97.º, os artigos 102.º – 113.º, os artigos 119.º – 125.º e os artigos 127.º – 136.º (todos artigos acima referidos se dão por integralmente reproduzidos aqui), que alegam concretamente e demonstram a causa de pedir indicada claramente nos artigos 18.º – 22.º.
9. Só que no parecer do juízo recorrido, na petição inicial, a autora não deixava claro com quem a autora tinha celebrado os 13 contratos de empréstimo. Contudo, tal como referido atrás, nos artigos 18.º – 97.º está alegado em termos concretos como é que a 1.ª recorrida pediu 13 empréstimos em nome da sua própria pessoa, da 2.ª recorrida, da 3.ª recorrida e da 4.ª recorrida – ou seja, a recorrente alegou pormenorizadamente com quem o celebrou para cada um dos empréstimos.
10. Para tal, a recorrente juntou provas documentais para demonstrar os factos acima referidos, sobretudo as conversações entre a recorrente e a 1.ª recorrida aquando de cada empréstimo, bem como os movimentos bancários correspondentes. Bastava isso para que as recorridas e o juízo recorrido ficassem com uma ideia sobre a causa de pedir do presente processo.
11. Nos 13 empréstimos a recorrente às vezes disponibilizou o dinheiro através de transferência de contas de seus amigos; e que às vezes, a pedido da 1.ª recorrida, a recorrente creditou o dinheiro na conta dos indivíduos indicados pela 1.ª recorrida. Só que as alegações dos factos acima referidas não mudam a causa de pedir do presente processo, pois os factos têm a ver somente com a modalidade de operação concreta das transferências, que não afectam o facto alegado pela recorrente, de que tinha emprestado dinheiro para a 1.ª recorrida e para as recorridas 2.ª, 3.ª e 4.ª representadas pela 1.ª recorrida.
12. As alegações sobre tais factos não fazem com que a causa de pedir seja “confusa, ambígua ou ininteligível”, o que seria um caso extremo. Além disso, tendo lido a réplica da recorrente, o juízo recorrido já percebeu perfeitamente a causa de pedir da recorrente, já para não mencionar o facto de que referia o seguinte na sentença recorrida: “apesar de quanto invocado pela autora na réplica de que a 1.ª ré tinha pedido os 13 empréstimos em nome da sua própria pessoa e das rés 2.ª, 3.ª e 4.ª, …”
13. Portanto, a recorrente já indicou a causa de pedir, que é verificável através dos factos constitutivos dos direitos (créditos) em causa alegados (a celebração dos contratos de empréstimo, provada através das provas documentais).
14. Além disso, a recorrente agiu em conformidade com quanto prescrito pelo art.º 5.º, n.º 1 do CPC sobre o princípio dispositivo das partes e já cumpriu o seu ónus, alegando os fundamentos de facto que possam sustentar a procedência da acção e formulando os seus pedidos.
15. Quanto à questão de quem deve responsabilizar-se pela relação material controvertida invocada pela recorrente e à de determinar se é suficiente a prova apresentada pela recorrente para tal, cabe ao tribunal (recorrido) conhecer do mérito da causa, ou seja, se (apenas) é procedente o pedido da recorrente.
16. O tribunal (recorrido) devia ter cumprido a função, em vez de absolver liminarmente a instância deduzida pela recorrente.
17. Além disso, exactamente como a recorrente referia nos artigos 25.º, 28.º, 42.º, 48.º – 51.º, 58.º – 64.º, 72.º – 76.º da réplica (que se dão por integralmente transcrito aqui), que as recorridas 1.ª – 4.ª conseguiram todas perceber o conteúdo das alegações da recorrente; nos termos do art.º 139.º, n.º 3 do CPC, mesmo supondo que a causa de pedir na petição não esteja clara (uma mera hipótese, não querendo dizer que a recorrente concorde), é de considerar que o vício ficou já sanado.
18. Com base no acima referido, no presente processo não há ininteligibilidade da causa de pedir, ou mesmo supondo a sua existência, com toda a razão é de considerar que já ficou sanada.
19. No que respeita à incompatibilidade substancial de causas de pedir, segundo o juízo recorrido, a recorrente apresentou várias versões (substancialmente incompatíveis) que não podem ser todas verdadeiras ao mesmo tempo ao alegar sobre as 13 relações de empréstimo.
20. Verdade seja dita, é uma proposição falsa a discussão acerca da eventual incompatibilidade substancial da causa de pedir no presente caso, pois embora esteja aqui em causa uma abundância de factos, tomando uma visão global, verificamos que há apenas uma única versão da causa de pedir deduzida pela recorrente: que a 1.ª recorrida pediu os 13 empréstimos à recorrente em nome da sua própria pessoa, da 2.ª recorrida, da 3.ª recorrida e da 4.ª recorrida.
21. Da “dúvida” do juízo recorrido resulta fácil de perceber que as outras versões que no seu parecer existiriam não passam de ser, na realidade, uma dúvida em torno da questão de se a 1.ª recorrida agiu em nome das recorridas 2.ª – 4.ª. O que é uma dúvida de direito sobre a interpretação da relação jurídica. Não é que a causa de pedir em si apresente várias versões.
22. Segue daqui que cá a causa de pedir é livre do vício previsto pelo art.º 139.º, n.º 2, alínea c) do CPC, de “cúmulo de causas de pedir substancialmente incompatíveis”.
23. Analogamente, como a causa de pedir deduzida pela recorrente tem uma única versão, a recorrente não tem motivo para (na “réplica”) “modificar a causa de pedir ao mesmo tempo para modificar ou para eliminar a multiplicidade das versões de factos acima referida”, como referia o juízo recorrido.
24. O art.º 217.º, n.º 1 do CPC prevê que na falta de acordo, a causa de pedir pode ser alterada ou ampliada na réplica da autora; quanto às finalidades da disposição, citando o parecer do Prof.º Dr.º Viriato Manuel Pinheiro de Lima, é para que o autor possa completar, rectificar ou concretizar a matéria de facto alegada na petição;
25. No presente caso, o que a recorrente alega na petição inicial inclui, mas não só, factos sobre como a 1.ª recorrida tinha agido em nome da sua própria pessoa e das recorridas 2.ª, 3.ª e 4.ª e sobre as operações concretas das transferências. Trata-se precisamente e factos importantes que constituem e concretizam a causa de pedir do presente processo. Não há motivo para “eliminar” tais factos tal como referia o juízo recorrido.
26. Para a prudência, mesmo supondo a multiplicidade das versões de causa de pedir (puramente como hipótese, que não quer dizer que a recorrente concorde), por outras palavras, há a versão de que “a 1.ª recorrida pediu os 13 empréstimos à recorrente em nome da sua própria pessoa, da 2.ª recorrida, da 3.ª recorrida e da 4.ª recorrida”, e as outras versões que “negam parcial ou totalmente que a 1.ª recorrida tenha representado as recorridas 2.ª, 3.ª e 4.ª”; não é verdade que as versões sejam incompatíveis substancialmente.
27. Citando o parecer do Prof.º Dr.º Viriato Manuel Pinheiro de Lima, mesmo que as várias causas de pedir aparentemente não podem ser precedentes simultaneamente, desde que estejam apresentadas subsidiariamente, então não é caso de incompatibilidade substancial das causas de pedir.
28. O que é exactamente o caso do presente processo. Aqui o pedido principal da recorrente é “Condenar a 1.ª ré, a 2.ª ré, a 3.ª ré e a 4.ª ré a restituir solidariamente à autora o capital e com o juro vencido dos 13 empréstimos no montante de MOP 35.267.119,60 (o capital equivalente a MOP 27.464.100,00 e o juro vencido ainda não pago até à dedução do presente processo equivalente a MOP 7.803.019,60), bem como os juros a calcular segundo a taxa de juros fixada pelos respectivos acordos de empréstimo (na falta de acordo, então segundo a modalidade prevista pela lei) até ao reembolso integral”; julgado improcedente o primeiro, então se pede subsidiariamente o seguinte: “condenar a 1.ª ré a restituir à autora o capital no valor de RMB 9.574.000,00 e de HKD 2.150.000,00, bem como os juros a calcular segundo a taxa de juros fixada pelos respectivos acordos de empréstimo (na falta de acordo, então segundo a modalidade prevista pela lei) até ao reembolso integral; e condenar a 2.ª ré a restituir o capital no valor de RMB 11.926.000,00, bem como os juros a calcular segundo a taxa de juros fixada pelos respectivos acordos de empréstimo (na falta de acordo, então segundo a modalidade prevista pela lei) até ao reembolso integral”.
29. Foi precisamente para que o segundo pedido completasse o primeiro é que a recorrente os apresentou ambos nos termos do art.º 390.º do CPC.
30. A causa de pedir correspondente ao primeiro pedido é que “a 1.ª recorrida pediu 13 empréstimos à recorrente em nome da sua própria pessoa, da 2.ª recorrida, da 3.ª recorrida e da 4.ª recorrida”; salvo aquela, todas as outras versões de causa de pedir que se consideram existentes servem para completar a causa de pedir acima referida.
31. Com base no acima referido, cá a causa de pedir não constitui incompatibilidade substancial.
32. Além disso, conforme os fundamentos acima referidos e o princípio da economia processual, quando a petição inicial apresente insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada, o juízo a quo convida o recorrente a completá-los ou corrigir os articulados nos termos do art.º 427.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3 do CPC, em vez de proceder à absolvição da instância.
33. Com base no acima referido, a sentença recorrida violou o previsto nos art.º 139.º, n.º 1, n.º 2, alíneas a) e c), art.º 427.º, n.º 1 e n.º 3 do CPC.
Contra-alegando vieram as 2ª, 3ª e 4ª Rés e agora Recorridas pugnar para que fosse negado provimento ao recurso, não apresentando, contudo, conclusões.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Ineptidão da petição inicial
A 1.ª ré invocava na contestação que não percebia a relação entre os valores de indemnização nos pedidos principal e subsidiário, ao mesmo tempo, não tendo autora esclarecido, com clareza quem era o credor ou devedor, o local do acto de empréstimo, a situação concreta de restituição do respectivo capital de empréstimo, bem como os juros, e muito menos qual era a relação entre o empréstimo com as 2.ª a 4.ª rés, pelo que julgava-se com ininteligibilidade entre o pedido e a causa de pedir, fazendo com que devesse indeferir a demanda da autora.
Tendo as 2.ª a 4.ª rés apontado na contestação que os cálculos constantes no pedido subsidiário da autora, não eram unânimes, apresentavam-se mesmo como contraditórios, ademais, a autora por um lado indicava que a 1.ª ré representava as 2.ª a 4.ª rés em pedir o empréstimo, mas, ao mesmo tempo, indicava que a 1.ª Ré não tinha competência em representar a 2.ª ré a pedir o empréstimo, pois, havendo contradições ou inconciliações entre as duas situações, pelo que julgava-se com falta ou ininteligibilidade na indicação de pedido ou causa de pedir e/ou com contradição entre o pedido e a causa de pedir, fazendo com que devesse indeferir a demanda da autora.
A autora indicava na réplica que o seu pedido principal apresentado foi devido aos cálculos dos montantes das 13 vezes dos pedidos de empréstimo efectuados por 1.ª ré em representação de si própria e das 2.ª a 4.ª rés, à autora, enquanto a lei, não exige ligação entre os pedidos principal e subsidiário, não obstante a apresentação do pedido subsidiário de diferentes moedas, ao mesmo tempo, foi somente a 1.ª ré que tinha pago as partes de juros, e no pedido subsidiário solicitava-lhe meramente a restituição do capital, pelo que o pedido não constava qualquer ininteligibilidade; a 1.ª ré representava as 2.ª a 4.ª rés para pedir a autora o empréstimo, solicitando à autora a transferência dos montantes para as contas bancárias de si própria, de F e de G, pois que, não são pertencentes aos créditos e obrigações dos últimos dois com H e I, enquanto a autora tinha recebido os juros pagos por 1.ª ré, foi baseada com o respectivo empréstimo oneroso, cujo juros contados, pelo que a restituição dos montantes feita por esta última em posterior, devia ser considerada em primeiro, para o efeito de pagamento de juros, mais, tendo também alegada na p.i. que a 1.ª ré na qualidade de membro de órgão de administração das 3.ª e 4.ª rés, as representava (pelo menos como representante aparente) para efectuar o pedido de empréstimo, ao mesmo tempo, a autora só depois de 2 anos decorridos é que tinha solicitado à 1.ª ré a assinatura da declaração do pedido de empréstimo ou o fornecimento da garantia, pois que, não seja incompreensível, enfim, a 1.ª ré representava ela própria para efectuar o pedido de empréstimo, pelo que é justificável a razão de autora ter sido apresentado os pedidos principal e subsidiário contra a 1.ª ré, por isso, a causa de pedir não constava qualquer ininteligibilidade; tendo a 1.ª ré mostrado à autora a sua qualidade de exploradora de 3.ª e 4.ª rés, e para o objectivo da sua exploração, em nome própria, e das 2.ª a 4.ª rés, pediu à autora o empréstimo, enquanto a autora também tinha alegado a relação entre a 2.ª ré e o empréstimo, as aludidas alegações e os artigos 18.º a 125.º da p.i. continham a respectiva complementaridade, por isso, não consta a ineptidão da p.i., invocada por 2.ª a 4.ª rés.
Em presente conhecemos do caso.
Nos termos do artigo 139.º do Código de Processo Civil: “1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial. 2. Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. 3. Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, não se julga procedente a arguição quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial. 4. No caso da alínea c) do n.º 2, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo.”
Em primeiro lugar, salvo o respeito por diferentes opiniões, o presente Juízo entende que o pedido constante da p.i., não é ininteligível.
De acordo com o douto Acórdão n.º 235/2006, do Tribunal de Segunda Instância, “1. Um pedido é ininteligível quando atento os termos em é formulado não se puder descobrir qual a espécie de providência que o seu autor se propôs obter do Tribunal. Porém, se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.
Também não é de se considerar a petição inepta por inintelegibilidade do pedido, se as RR. Nas suas contestações, (e, não obstante terem invocado tal inintelegibilidade), demonstrarem que alcançaram suficiente e convenientemente a petição inicial.”
In casu, o pedido principal constante da p.i. da autora, era a condenação das quatro rés a efectuar, solidariamente, o pagamento de uma certa quantia do capital de empréstimo, conjugado com os juros vencido e vincendo, mais, pediu-se, subsidiariamente, que o pagamento do capital e dos juros de empréstimo pela 1.ª ré seja efectuado em moedas de renminbi e dólares de Hong Kong e o pagamento do capital e juros de empréstimo pela 2.ª ré seja efectuado em moeda de renminbi. Mesmo que a autora não tivesse declarado qual era a forma de cálculo do valor de pedido subsidiário, bem como não tivesse convertido as aludidas moedas em patacas, isso constitui meramente um vício de alegações, o qual pode ser sanado por conversão das moedas. Dado que os pedidos principal e subsidiário de autora, tiveram expressamente indicado as medidas de tutela jurisdicional (condenação de uma certa quantia) pretendidas, não há ininteligibilidade do pedido.
Em relação à causa de pedir, vejamos as alegações constantes da p.i. da autora:
- Nos artigos 18.º a 22.º e 124.º da p.i., alegava que desde Setembro de 2020, a 1.ª Ré, representava ela própria, e as 2.ª a 4.ª rés para pedir à autora o empréstimo, em 13 vezes;
- Nos artigos 23.º a 76.º da p.i., alegava que as aludidas 13 vezes de empréstimo, foram pedidos por 1.ª ré à autora, desde 14 de Setembro de 2020 a Agosto de 2022, com os juros convencionados e, ao mesmo tempo, conforme a indicação da 1.ª ré, os empréstimos foram transferidos às contas bancárias de F, de G e da própria 1.ª ré;
- Nos artigos 98.º a 100.º da p.i., alegava que a 1.ª ré foi sempre na qualidade de membro de órgão de administração das 3.ª e 4.ª rés, e para a necessária exploração, pedindo à autora o empréstimo;
- Nos artigos 101.º a 103.º, 108.º, 110.º, 113.º e 127.º da p.i., alegava que a 1.ª ré na qualidade de representante, emprestava os montantes para as 2.ª a 4.ª rés, ademais, F e a filha da autora, confirmaram em Maio e Dezembro de 2021, respectivamente, que a 1.ª ré representava as 2.ª a 4.ª rés para efectuar o pedido de empréstimo;
- Nos artigos 104.º e 109.º da p.i., alegava que F tinha salientado à filha da autora, que a 1.ª ré representava ela própria, e as 3.ª e 4.ª rés para efectuar o pedido de empréstimo.
Conforme as supras alegações, na realidade, a 1.ª ré pediu à autora as 13 vezes de empréstimo, em seu próprio nome (artigos 23.º a 76.º da p.i.)? Ou, em seu próprio nome e em representação das 2.ª a 4.ª rés, para efectuar o pedido de empréstimo, por 13 vezes (artigos 18.º a 22.º e 124.º da p.i.)? Ou, em seu próprio nome e em representação das 3.ª e 4.ª rés, para efectuar o pedido de empréstimo, por 13 vezes (artigos 104.º e 109.º da p.i.)? Ou, meramente em nome de representante das 2.ª a 4.ª rés, para efectuar o pedido de empréstimo, por 13 vezes? (artigos 101.º a 103.º, 108.º, 110.º, 113.º e 127.º da p.i.)? Ou, meramente em nome de representante das 3.ª e 4.ª rés, para efectuar o pedido de empréstimo, por 13 vezes? (artigos 98.º a 100 da p.i.)? Ou, as aludidas 13 vezes de empréstimo, foram parcialmente efectuadas meramente em seu nome próprio, ou parcialmente efectuadas meramente em representante das 2.ª a 4.ª rés ou 3.ª e 4.ª rés, ou parcialmente efectuadas em seu próprio nome e em representação das 2.ª a 4.ª rés?
A autora para além de não ter alegado nitidamente na p.i. com quem é que a autora tinha celebrado os 13 contratos de empréstimo, ademais, tinha ela alegado as supras diferentes versões na mesma p.i., essas diferentes versões eram impossíveis de serem procedentes ao mesmo tempo. Ponderando que os aludidos 13 contratos de empréstimo não foram celebrados por escrito, pelo que o que foi alegada por autora na p.i. sobre a forma de celebração dos 13 contratos de empréstimo em causa, é bastante relevante para a decisão da relação jurídica material controvertida, deste processo. Apesar de a autora ter indicado na réplica que a 1.ª ré em seu próprio nome e em representação das 2.ª a 4.ª rés pediu o empréstimo, por 13 vezes, mas, a mesma, em diferente momento, tinha requerido a alteração da causa de pedir ou a eliminação de várias versões de facto, acima referidas, pelo que a supra causa de pedir consta ainda a respectiva incompatibilidade.
Assim, nos termos dos artigos 139.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e c), 230.º, n.º 1, alínea b) e 413.º, alínea b) do Código de Processo Civil, in casu, encontra-se com estado de ineptidão da p.i., por constar ininteligibilidade e incompatibilidade material na causa de pedir, pois que, deve ser indeferida a demanda.
Nesta conformidade, é indeferida a demanda contra as rés.
Custas suportadas por autora.
Inscreva e notifique.».
Vejamos então.
Na petição inicial a Autora vem nos artigos 1 a 17 invocar os factos relativos às relações entre as Rés entre si e com a Autora.
Nos factos dos artigos 18 a 22 vem a Autora alegar que a 1ª Ré por si e em representação das 2ª, 3ª e 4ª Rés lhe pediu emprestado dinheiro o que a Autora fez usando as contas que ali indica.
Dos artigos 23 a 76 a Autor descreve como e quando aconteceram os 13 empréstimos.
Dos artigos 77 a 83 a Autora vem invocar factos e direito relativos aos juros que seriam devidos pelos empréstimos.
Dos artigos 84 a 97 a Autora vem invocar factos relativos aos incumprimentos.
Dos artigos 98 a 138 a Autora vem invocar os factos que entende envolver a responsabilidade solidária das quatro Rés.
Quanto aos pedidos vem a Autora:
- Pedir (sob o nº 1) a condenação solidária das Rés a pagar as quantias de capital e juros que entende resultar serem devidas dos empréstimos feitos;
Subsidiariamente,
- Vem pedir (sob o nº 2) a condenação da 1ª Ré a pagar uma quantia e da 2ª Ré a pagar outra quantia, ambas acrescidas de juros.
Na decisão recorrida diz-se que “encontra-se com estado de ineptidão da p.i., por constar ininteligibilidade e incompatibilidade material na causa de pedir” e fundamenta-se, entre outros preceitos, nas alíneas a) e c) do nº 2 do artº 139º do CPC.
Artigo 139.º
(Ineptidão da petição inicial)
1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2. Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3. Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, não se julga procedente a arguição quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
4. No caso da alínea c) do n.º 2, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo.
Face às disposições legais invocadas parece que se conclui pela ineptidão da p.i., por ser “ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir” e por “se cumularem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.
Comecemos por apreciar a causa de pedir.
Sumariamente o que a Autora alega é que havendo relações de amizade entre uma das suas filhas e uma sobrinha da 1ª Ré, a Autora e a 1ª Ré se conheceram e no âmbito desse relacionamento a Autora teve conhecimento da actividade desenvolvida pelas 1ª e 2ª Rés no âmbito de actividade das sociedades 3ª e 4ª Rés e dos estabelecimentos comerciais que estas exploravam.
Por existir esse relacionamento a 1ª Ré por si e em representação das demais Rés pediu-lhe por 13 vezes dinheiro emprestado.
A causa de pedir são os empréstimos que a Autora fez às Rés.
Ininteligível é aquilo que não se entende.
O que para nós é “ininteligível” é como é que alguém medianamente conhecedor das regras de direito ao ler o texto da p.i. não percebe que a causa de pedir são os 13 empréstimos.
É manifesta a falta de fundamento do argumento da ininteligibilidade da causa de pedir.
Se a causa de pedir é constituída por 13 empréstimos distintos entre si e separados no tempo, que poderíamos até dizer ter 13 causas de pedir autónomas e independentes entre si, não conseguimos perceber onde é que há “uma cumulação da causa de pedir incompatível”.
Incompatível seria se invocasse que pediu emprestado e logo a seguir invocasse que doou ou que pagou.
Agora 13 empréstimos distintos e separados no tempo que aqui apenas se cumulam, de forma alguma há incompatibilidade entre as causas de pedir invocadas.
Concluindo, a causa de pedir invocada – 13 empréstimos feitos às Rés – nem são ininteligíveis nem são incompatíveis.
O pedido é de condenação das Rés a pagarem solidariamente à Autora a quantia que a Autora alega ainda estar em dívida acrescida dos juros vencidos e vincendos.
Mais uma vez não percebemos o que é não é inteligível.
Trata-se de um pedido de condenação de uma quantia pecuniária acrescida de juros.
O pedido principal é apenas um único pedido que visa a condenação das Rés solidariamente.
Para o caso daquele pedido improceder formula-se um pedido subsidiário – por isso se diz “caso não se entendesse assim – pede a condenação da 1ª Ré e da 2ª Ré a pagar cada uma delas uma quantia pecuniária acrescida de juros”.
Ora, não só os pedidos são inteligíveis como não são incompatíveis.
A leitura a fazer é que a Autora pede a condenação solidária das 4 Rés mas caso essa não proceda então pede a condenação da 1ª Ré e da 2ª Ré, pedidos estes que estão numa relação de subsidiariedade.
Improcede também a argumentação da ininteligibilidade e incompatibilidade de pedidos.
Da petição inicial poderíamos dizer que não foi elaborada da melhor forma pois muito se perde em considerações e factos que só instrumentalmente poderão ter interesse para a decisão.
Será que invoca todos os factos para que se possa concluir que efectivamente foram feitos os empréstimos pela Autora às Rés pelos valores e sujeitos aos juros que invoca?
Será que invoca todos os factos para que se possa concluir pela responsabilidade solidária das Rés quanto aos alegados empréstimos?
Será que invoca todos os factos para que se possa concluir, subsidiariamente, pela responsabilidade da 1ª Ré e pela responsabilidade da 2ª Ré pelas quantias e juros que pede?
Estas são todas as questões a decidir em sede de instrução e discussão da causa se o Tribunal “a quo” não concluir ter já os elementos necessários para o efeito, uma vez que já nos encontramos na fase após os articulados, em saneamento do processo.
Contudo, sendo manifesto que não se verifica a ininteligibilidade nem a incompatibilidade entre a causa de pedir nem entre os pedidos, não ocorre a invocada ineptidão da p.i., impondo-se a remessa dos autos ao Tribunal “a quo” para decidir como tiver por conveniente que não seja nulidade de todo o processado nos termos invocados.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos concedendo-se provimento ao recurso revoga-se a decisão recorrida, ordenando a remessa dos autos à 1ª instância para decidir como houver por conveniente que não seja nos termos e com os fundamentos da decisão recorrida.
Custas pelas Rés uma vez que invocaram a ineptidão com os fundamentos constantes da decisão recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 28 de Novembro de 2024
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(1º Adjunto)
Ho Wai Neng
(2º Adjunto)
378/2024 CÍVEL 1