Processo nº 133/2022
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), A., propôs no Tribunal Judicial de Base, acção declarativa de condenação com processo ordinário contra “B” (“乙”), R., ambos devidamente identificados nos autos.
A final, formulou pedido no sentido de ser a R. condenada a:
“A) reconhecer o direito de propriedade do ora Autor sobre a referida fracção” – AR/C, da Rua Nova à Guia n.° XXX, Macau – “e, em consequência, na sua restituição efectiva ao Autor, livre e devoluta de pessoas e bens; e,
B) pagar uma indemnização ao Autor no valor de MOP$2,129,880.00 (dois milhões, cento e vinte e nove mil, oitocentas e oitenta patacas) a título de ressarcimento pelos danos sofridos, ou, subsidiariamente, de enriquecimento sem causa, acrescida do valor mensal de MOP$23,450.00 por cada mês que mediar entre Fevereiro de 2019 e a data da efectiva restituição do imóvel, tudo acrescido de juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento”; (cfr., fls. 2 a 14 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Na sequência do processado, após contestação da R., (cfr., fls. 56 a 66-v), e réplica do A., com alteração do pedido, (cfr., fls. 116 a 136-v), proferiu o Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base “despacho saneador” onde – na parte que agora interessa – julgou improcedentes as pela R. invocadas questões da “inviabilidade do pedido” pelo A. deduzido assim como da sua “ilegitimidade”, admitindo a pelo A. deduzida “alteração do pedido” e procedendo também à selecção dos factos que considerava assentes e dos que integravam a base instrutória; (cfr., fls. 169 a 173).
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Notificados do assim decidido, a R. recorreu da decisão de improcedência das suas referidas “excepções”, reclamando, também, A. e R. da dita selecção da matéria de facto; (cfr., fls. 175 a 177 e 178 a 184).
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Oportunamente, admitiu-se o dito “recurso interlocutório” (com subida diferida), e decidiu-se das aludidas reclamações; (cfr., fls. 187).
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Seguidamente, após Acórdão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, proferiu o Mmo Juiz Presidente do Colectivo sentença julgando a acção improcedente e absolvendo a R. do pedido; (cfr., fls. 538 a 553).
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Tempestivamente, recorreu o A. (A), com este “recurso” subindo o pela R. (“B”) antes interposto recurso interlocutório; (cfr., fls. 564 a 587).
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Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 29.07.2022, (Proc. n.° 921/2021), decidiu-se:
“- negar provimento aos recursos interlocutórios interpostos pela ré B;
- conceder parcial provimento ao recurso da decisão final interposta pelo autor A, bem como conceder parcial provimento à ampliação do âmbito do recurso deduzida pela ré B e, em consequência, revogando a sentença recorrida, passando a ré a ser condenada a pagar ao autor o montante de MOP686.845,00 (seiscentas e oitenta e seis mil, oitocentas e quarenta e cinco patacas), acrescido de juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento”; (cfr., fls. 741 a 790-v).
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Inconformada com o assim decidido pelo Tribunal de Segunda Instância, traz agora a R. o presente recurso, pedindo a revogação do Acórdão proferido; (cfr., fls. 799 a 810).
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Adequadamente processados os autos, com resposta do A. a pugnar pela “inadmissibilidade do recurso” relativamente à matéria do anterior “recurso interlocutório da R.” assim como pela confirmação do decidido, (cfr., fls. 819 a 849), e, atentos os termos do art. 52°, n.° 2 e 3 da Lei n.° 9/1999, cumpre apreciar e decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
Dos factos
2. O Tribunal Judicial de Base considerou provados os factos seguintes:
“a) A fracção autónoma “AR/C”, rés-do-chão, que se localiza na Rua Nova à Guia n.º XXX, Macau, para comércio, registada na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o número XXXX e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo XXXXXX está registada em nome do Autor e sua ex-cônjuge C.
b) A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à venda de medicamentos e de medicamentos de medicina tradicional e tem a sua sede na fracção autónoma melhor identificada na alínea precedente.
c) Para além de ali ter a sua sede, a Ré também desenvolve a sua actividade naquela fracção, onde explora a farmácia denominada B.
d) O Autor e a C casaram em Macau, em 15 de Dezembro de 1973.
e) Por sentença transitada em julgado, em 28/11/2011, proferida no âmbito do processo que correu termos pelo 2.º Juízo Cível sob o número CV2-10-0007-CDL, foi decretado o divórcio entre o Autor e a C.
f) No âmbito do processo de divórcio, os bens comuns do casal foram arrolados e a C nomeada fiel depositária dos mesmos por decisão proferida em 02/07/2010.
g) De entre os bens arrolados inclui-se fracção autónoma em discussão nos presentes autos.
h) Depois de decretado o divórcio, o ora Autor deu início ao processo de partilha dos bens comuns do casal, o qual se encontra ainda pendente junto do Juízo de Família e de Menores deste douto tribunal, correndo sob o número de processo FM1-10-0002-CDL-B e no âmbito do qual a C exerce as funções de cabeça-de-casal.
i) Em data que não consegue precisar, o Autor e C, na qualidade de senhorios, e a Ré, na qualidade de arrendatária, celebraram um contrato de arrendamento da fracção em discussão nos presentes autos.
j) Sendo que o valor da última renda em vigor entre as partes foi de MOP$15,000.00.
k) A Ré pagou rendas pela ocupação da fracção “AR/C” até Junho de 2010.
l) No dia 01 de Julho de 2012 a C comunicou junto da Repartição de Finanças a cessação do contrato de arrendamento, com efeitos desde 07 de Julho de 2010.
m) A Ré não entregou ao Autor a fracção autónoma supra referida livre e devoluta de pessoas e bens.
n) Continuando até hoje a ocupar a aludida fracção.
o) O Autor propôs à sua ex-mulher C, que não se cobrassem mais rendas à Ré pela utilização da fracção em causa (Ponto 1º da base instrutória).
p) C confirmou, na Assembleia Geral da sociedade B realizada no dia 2 de Dezembro de 2011, que a referida sociedade paga o valor de MOP$15,000.00 relativo à renda das instalações que ocupa.
q) A Ré tem pleno conhecimento da objecção apresentada pelo Autor no âmbito do processo de inventário entre o Autor e sua ex-mulher.
r) Depois de cessado o arrendamento referido na alínea l) a ré continua a ocupar o imóvel, estando o autor impedido de o fruir por outra forma.
s) O local onde se situa a referida fracção, ou seja, na Rua Nova à Guia, mesmo à saída do elevador que dá acesso ao Hospital Conde São Januário, é muito procurado por sociedades que se dedicam ao ramo farmacêutico.
t) Na Rua Nova à Guia existem, pelo menos, três farmácias.
u) Não havendo assim qualquer dificuldade em arrendar o dito imóvel a qualquer outra sociedade que se dedicasse ao mesmo ramo que a Ré.
v) Durante o período que a Ré ocupou, sem qualquer título para o efeito, a fracção ora em apreço, o valor de mercado das rendas do imóvel seria de:
- No ano de 2010 ---------- MOP$35,320.00 mensais.
- No ano de 2011 ---------- MOP$35,320.00 mensais.
- No ano de 2012 ---------- MOP$38,850.00 mensais.
- No ano de 2013 ---------- MOP$38,850.00 mensais.
- No ano de 2014 ---------- MOP$42,700.00 mensais.
- No ano de 2015 ---------- MOP$42,700.00 mensais.
- No ano de 2016 ---------- MOP$46,000.00 mensais.
- No ano de 2017 ---------- MOP$46,000.00 mensais.
- No ano de 2018 ---------- MOP$46,900.00 mensais”; (cfr., fls. 541 a 542).
Do direito
3. Como resulta do que se deixou relatado, tem o presente recurso como objecto o decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 29.07.2022, (Proc. n.° 921/2021), contra o qual se insurge a R., ora recorrente, pedindo, em síntese, a revogação da:
- decisão tomada quanto à improcedência do recurso interlocutório que incidiu sobre a “inviabilidade da acção” e sobre a “ilegitimidade substantiva” do A.; e da,
- decisão que julgou parcialmente procedente a acção e que a condenou a pagar ao A. a quantia de MOP$686.845,00.
–– E, assim, e antes de mais, importa desde já clarificar um aspecto que se prende com “recorribilidade” do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância na parte em que se pronunciou sobre a alegada “inviabilidade da acção” e “ilegitimidade do A.”.
Vejamos.
Preceitua o art. 638°, n.° 2 do C.P.C.M. que: “Não é admitido recurso do acórdão do Tribunal de Segunda Instância, que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diverso fundamento, a decisão proferida na primeira instância que não conheça do mérito da causa ou que não ponha termo ao processo, salvo se o acórdão for contrário a jurisprudência obrigatória”.
Com tal dispositivo tem-se em vista estabelecer a regra da “dupla conforme”, impedindo o recurso para um terceiro grau de jurisdição de “decisões interlocutórias”, quando essas decisões da 1ª Instância sejam confirmadas sem votos de vencido pelo Tribunal de Segunda Instância; (como foi o caso dos presentes autos).
Apoiando-nos na jurisprudência comparada, adequado se mostra de considerar que “Decisão interlocutória (ou intercalar) é toda a decisão que, apreciando uma questão autónoma, não põe fim ao processo. É toda a decisão (que pode ser de forma ou de índole material) de natureza incidental que surja no decorrer do processo (v. Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed. Revista e Ampliada, pp. 829 e 830)”; (cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de Portugal de 09.06.2021, Proc. n.° 1155/20, podendo-se também sobre o tema ver o Ac. do S.T.J. de 02.03.2021, Proc. n.° 1257/13).
Caberá nesse “âmbito” a decisão – como a nestes autos – proferida em sede do “despacho-saneador” onde o Tribunal Judicial de Base se pronunciou sobre a pela R. suscitada questão da “(in)viabilidade da acção” e a “(i)legitimidade substantiva do A.”?
A nosso ver, a resposta é (forçosamente) negativa.
Apesar de o C.P.C.M. não esclarecer inteiramente o que seja “conhecer do mérito da causa”, afigura-se que o recurso ao elemento histórico permite ultrapassar qualquer (eventual) dúvida.
Na verdade, na vigência do anterior C.P.C. de 1961 – que vigorou na R.A.E.M. e só foi revogado com a entrada em vigor do actual C.P.C.M. – dispunha o seu art. 691°:
“1. O recurso de apelação compete da sentença final e do despacho saneador que conheçam do mérito da causa.
2. A sentença ou o despacho saneador que decidem sobre a procedência de alguma excepção peremptória, que não seja o caso julgado(1), conhecem do mérito da causa”.
Posteriormente, numa alteração legislativa do dito Código, (efectuada pelo Decreto-Lei n.° 329/A-95, que não vigorou na R.A.E.M., mas que teve em vista clarificar o regime anterior em face de uma determinada orientação jurisprudencial), passou a determinar-se no n.° 2 daquele atrás transcrito art. 691° que: “A sentença ou o despacho saneador que julgam da procedência ou improcedência de alguma excepção peremptória decidem do mérito da causa”.
Assim, e como nota António Abrantes Geraldes, mostra-se de concluir que conhecem do mérito da causa “os acórdãos em que a Relação se tenha envolvido efectivamente na resolução material do litígio, no todo ou em parte, maxime nos casos em que julga procedente ou improcedente o pedido ou algum dos pedidos ou aprecia a procedência ou improcedência de alguma excepção peremptória (v.g. prescrição, caducidade, nulidade, anulabilidade, compensação, etc.).
Já não se integram nesse segmento normativo os acórdãos em que a Relação aprecie simplesmente alguma excepção dilatória ou qualquer outro aspecto de natureza puramente formal ou adjectiva, a não ser que, na sequência do que for decidido sobre tais aspectos, haja motivos para prosseguir com a apreciação do mérito, prevalecendo, a final, este resultado”; (in “Recursos no Novo C.P.C.”, 5ª ed., pág. 351).
Deste modo, apresenta-se-nos de considerar que o facto de uma “questão” ter sido inicialmente apreciada em sede do despacho-saneador não constitui “motivo (legal)” suficiente para afastar a admissibilidade de recurso em 2° grau para o Tribunal de Última Instância, pois que é ainda necessário apurar se tal decisão diz ou não respeito ao “mérito da causa”.
Ora, e como nos parece evidente, a “inviabilidade da acção” e a “legitimidade (substantiva)” não são “excepções dilatórias”, bastando para tanto atentar no disposto nas várias alíneas do art. 413° do C.P.C.M., (sendo de salientar que a “ilegitimidade” a que se refere a “alínea e)” diz apenas respeito ao seu aspecto “processual”).
É certo que se admitem – e se respeitam – reservas quanto à sua qualificação como “excepções peremptórias”, pois que em causa não está nem o exercício de um “direito potestativo”, nem o exercício de um “contra-direito, ou simples poder, que pressupõe a existência dum direito da parte contrária, que visa eliminar ou paralisar, tornando-o praticamente ineficaz (Castro Mendes, idem, II, p. 566): o contra-direito é ainda um direito potestativo, quando o seu exercício tem como efeito a eliminação – ou preclusão – do direito a que se opõe (…), não sendo assim inconciliáveis as figuras da excepção de direito material e do direito potestativo (…)”, e que, como se mostra adquirido, implica a menção de “factos impeditivos, modificativos ou extintivos do efeito jurídico dos factos constitutivos da acção”; (cfr., v.g., José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto in, “C.P.C. Anotado”, Vol. II, 2ª ed., pág. 333, 334, 342 e 343).
Só que se nos apresenta igualmente inegável que constituem “questões” que dizem respeito ao “mérito da causa”, ao “fundamento de defesa de toda a acção”; (nesse sentido, cfr., v.g., José Alberto dos Reis in, “C.P.C. Anotado”, Vol. V, Reimpressão, pág. 392, onde citando uma anotação constante da Revista dos Tribunais de um Ac. do S.T.J. de Portugal considera que: “«(…) Declarar a acção inviável não será conhecer do mérito da causa? Nós entendemos que sim (pág. 200); e desse parecer é também o Supremo, pois acertadamente diz que o juiz, desde que julgou a acção inviável, devia ter absolvido o réu do pedido». (Ano 67.º, pág. 332).
É claro que o juiz de 1.ª Instância proferiu decisão que brigava com o fundamento; absolveu o réu da instância, quando devia absolvê-lo do pedido. Se a acção era inviável, como entendeu, impunha-se a sua improcedência e consequentemente a absolvição do réu do pedido.
Outra anomalia se cometeu. Classificou-se a inviabilidade da acção como excepção peremptória. Deste erro participaram todos: 1.ª instância, Relação, Supremo. A inviabilidade da acção não é uma excepção; é matéria de defesa directa. Quando o réu alega que a acção é inviável, a alegação equivale a isto: a pretensão do autor não pode ser atendida, não tem fundamento legal. Impugna, portanto, directamente o pedido formulado pelo autor. Era o que sucedia no caso sub judice. O autor pedia ao réu indemnização pelos prejuízos emergentes do embargo de obra nova; o réu opunha: não sou obrigado a indemnizar, porque não fui condenado como litigante de má fé. Alegava, pois, que não devia indemnização, que não pesava sobre ele a obrigação exigida pelo autor. Defesa directa ou por impugnação”).
Dest’arte, afigura-se que as aludidas “questões”, por se reportarem ao “mérito da causa”, não se incluem no âmbito de aplicação do atrás transcrito art. 638°, n.° 2 do C.P.C.M., nada obstando assim ao conhecimento desta parte do recurso da R..
–– Continuemos, passando-se então à apreciação do “recurso” (propriamente dito).
Para a R., ora recorrente, é a presente acção inviável dado que o A. se socorreu do art. 1300° do C.C.M. para reivindicar um imóvel como se fosse comproprietário do mesmo, quando apenas teria o direito à meação no acervo de bens comuns ainda não partilhado, não podendo por isso reivindicar qualquer quota parte de algum bem que fizesse parte desse acervo como se dele já fosse titular.
Considera pois que, não obstante o facto de tal questão se poder considerar ultrapassada em face da posterior venda do imóvel a um terceiro, continua tal circunstância a ser relevante em sede de “ilegitimidade (substantiva) do A.” para pedir uma indemnização “conexa e directamente resultante” da não devolução atempada de um imóvel que isoladamente aquele A. não poderia reivindicar, já que não era titular de qualquer “direito de propriedade” sobre o mesmo imóvel.
Assim, ao desconsiderar este aspecto, o Acórdão recorrido violou as regras legais quanto ao regime de comunhão de bens e ao modo de partilha dos bens do casal definido no art. 1556°, n.° 1, alínea b) do C.C.M., não respeitando a unidade do sistema jurídico.
Continuando também a discutir “questões” relacionadas com o pedido de reivindicação do bem – questão que já está ultrapassada com a “alteração do pedido”, como, aliás, a própria R., não deixa de reconhecer – acaba ainda por concluir que qualquer “direito à herança”, (i.e., ao património comum do casal), só pode ser reivindicado em nome da herança ao abrigo do art. 1916° do C.C.M., e nunca por qualquer um dos herdeiros individualmente considerado.
E, partindo desse entendimento, afirma igualmente que não tem o A. “legitimidade” para chamar a si qualquer direito de crédito relativo a qualquer bem determinado que fizesse parte do acervo de bens comuns do casal, pois que a regra é a de os direitos de crédito serem cobrados por quem exerce o cabecelato, posição na qual não foi o A. investido.
Daí, ser de opinião que se deveria revogar a decisão proferida em sede do seu recurso “interlocutório”, e substituí-la por outra que julgue procedente a excepção de “ilegitimidade (substantiva) do A.” para formular o pedido de indemnização, com a sua consequente absolvição (do pedido).
Que dizer?
Pois bem, desde logo, cabe dizer que se reconhece que o “problema” nos termos em que vem colocado e debatido nos presentes autos, tem gerado alguma “confusão”, (para a qual, infelizmente, têm as partes também contribuído).
Porém, vejamos.
Comecemos por atentar no que foi decidido pelo Tribunal Judicial de Base, (e que foi seguido pelo Tribunal de Segunda Instância):
“Sintetizando o objecto da acção composto pelo pedido e pela causa de pedir que lhe serve de fundamento, temos que, após o seu divórcio e antes da partilha dos bens comuns do casal, o autor pretende o reconhecimento do direito de propriedade do casal sobre um imóvel comum e pretende indemnização por danos decorrentes da privação das faculdades de uso e fruição do referido imóvel desde que cessou o contrato de arrendamento, privação que ocorreu, quer na vigência do casamento do autor, quer após o divórcio. (…)
A primeira questão colocada pela ré já foi solucionada no despacho saneador. Já ali se disse que “o A. tem direito de pedir indemnização pela ocupação indevida da Ré”. A ré havia afirmado na contestação que era inviável o pedido do autor de reconhecimento da propriedade e de reivindicação do imóvel e que isso impossibilitava o tribunal de conhecer do pedido de indemnização por privação do uso de tal imóvel. (…)
Mesmo resolvida a questão no despacho saneador sempre se dirá que seria ainda possível uma análise diferente do pedido de indemnização formulado pelo autor, como respeitando a danos alegadamente sofridos pelo próprio autor e não pelo casal titular do direito de propriedade alegadamente estorvado pela ré. O autor alega a ocupação da ré sem autorização do próprio autor e impedindo o autor de fruir o imóvel ocupado. Ora, se a reivindicação de um bem comum por um só dos consortes pode levantar objecções, a “reivindicação” de reparação de um dano próprio de um dos consortes pelo próprio consorte lesado já não merecerá as mesmas objecções. Poder-se-á contraditar dizendo que o lesado é o casal e não o consorte e que o pedido deve improceder por inexistência de dano do requerente, mas não se afigura acertado dizer que o consorte que se afirma lesado não podia solicitar a reparação do seu alegado dano porque este está conexo com um bem comum do casal. Basta um exemplo: um terceiro impede a um dos cônjuges o acesso à residência comum do casal e o impedido tem de pernoitar no exterior. (…)
Quanto ao facto de o autor não ser cabeça-de-casal.
Mesmo estando ultrapassada a questão da legitimidade pela decisão proferida no despacho saneador, sempre se dirá que o autor não vem pedir indemnização para o casal, rectius, para o ex-casal. Pediu em nome próprio. Para si próprio. Só se viesse exercer um direito patrimonial comum se poderia colocar a questão da sua legitimidade por não ser cabeça-de-casal, pois estaria a exercer um direito de crédito de terceiro (a comunhão conjugal). (…)
O Autor qualificou a factualidade que alegou na petição inicial e a que ficou provada após julgamento como integrando uma situação de responsabilidade civil por acto ilícito, também designada de aquiliana.
A qualificação jurídica que as partes fazem dos factos a que cabe aplicar o Direito não vincula o tribunal (art. 567.º do CPC).
A responsabilidade civil é a fonte da obrigação de indemnizar ou obrigação de reparar um dano tornando aquele que o sofreu indemne ou sem dano. A responsabilidade com base na culpa tem por pressuposto a violação de um dever. No caso dos autos está em causa o dever de restituir aos proprietários um imóvel ocupado pela ré. A responsabilidade aquiliana parte da violação de um dever imposto pela lei. (…) Mas se alguém ocupa um imóvel por prévio acordo com o dono e depois de findo o acordo não o devolve já viola um dever de origem contratual, pois que acordou que o ocuparia apenas na vigência do acordo e que o restituiria depois.
Do que ficou dito, não pode o tribunal concordar com a tese do autor que qualifica os factos provados no âmbito da responsabilidade aquiliana. De facto, o que ocorre é que a ré não restituiu o imóvel depois de findo o contrato que lhe permitia ocupá-lo. Estamos, pois, em sede de responsabilidade contratual, pois que a obrigação de indemnizar tem origem na violação de um dever contratual e é a diferença genética da obrigação de indemnizar que distingue a responsabilidade contratual da extracontratual. (…)
Aqui chegados, já se conclui que o que está em causa é a mora na obrigação de restituição do locado depois de findo o contrato de locação. Com efeito, dispõe o art. 983.º, alínea j), do CC que é obrigação do locatário restituir a coisa locada findo o contrato. (…)”; (cfr., fls. 542-v a 548).
Por sua vez, (e do mesmo modo), é dito no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que:
“A nosso ver, entendemos que independentemente da questão de saber se a situação dos direitos comuns do casal se aplicaria ao regime da compropriedade, ao regime da comunhão hereditária ou ao regime das sociedades dissolvidas mas ainda não liquidadas, a questão só teria relevância se o autor viesse exercer um direito do casal, o que não era o caso.
Ou seja, no caso vertente, o autor está a exercer um direito próprio seu, daí que tem legitimidade substancial para o efeito.
Por uma razão de economia e celeridade, transcrevemos aqui parte da sentença, com a qual concordamos e que damos por reproduzida para todos os efeitos legais: (…)”; (cfr., fls. 786-v e 787).
E, nestes termos, em face do que se deixou exposto, é caso para se dizer que a solução pelas Instâncias dada, apesar de nos parecer adequada em termos práticos, à primeira vista, pode dar lugar a algumas dúvidas que de seguida passamos a expor.
Pois bem, é certo que na sua petição inicial, procurou o A. fazer valer um “direito (de uso próprio) sobre o imóvel”, fundamentando os seus “pedidos” – próprios de uma “acção de reivindicação” – numa “responsabilidade extracontratual”, (a que corresponderia, se bem entendemos, a um “direito próprio”).
Note-se, aliás, que o Tribunal Judicial de Base consignou também que:
“A primeira questão colocada pela ré já foi solucionada no despacho saneador. Já ali se disse que “o A. tem direito de pedir indemnização pela ocupação indevida da R.”. (…)
Mesmo resolvida a questão no despacho saneador sempre se dirá que seria ainda possível uma análise diferente do pedido de indemnização formulado pelo autor, como respeitando a danos alegadamente sofridos pelo próprio autor e não pelo casal titular do direito de propriedade alegadamente estorvado pela ré. O autor alega a ocupação da ré sem autorização do próprio autor e impedindo o próprio autor de fruir o imóvel ocupado. Ora, se a reivindicação de um bem comum por um só dos consortes pode levantar objecções, a “reivindicação” de reparação de um dano próprio de um dos consortes pelo próprio consorte lesado já não merecerá as mesmas objecções. (…) Basta um exemplo: um terceiro impede a um dos cônjuges o acesso à residência comum do casal e o impedido tem de pernoitar no exterior. Só será viável o pedido de indemnização se formulado por ambos os cônjuges?
A questão já foi resolvida no despacho saneador, como se referiu, mas só tem relevância se o autor vier a exercer um direito do casal, ou do ex-casal e não se o autor vier exercer um direito próprio seu. (…)
Ora, se essa questão tinha de ser defrontada para saber se o autor poderia obter a restituição do imóvel comum, não tem de ser defrontada para saber se o autor pode obter a reparação de um dano próprio seu decorrente da privação do direito que lhe assiste individualmente de “governar” ou “participar na governação” de bens comuns do casal. Repare-se que o autor reclama indemnização em consequência da ocupação da ré que teve lugar desde Julho de 2010, portanto durante a vigência do casamento e após a extinção deste por divórcio em Novembro de 2011. (…)
Quanto ao facto de o autor não ser cabeça-de-casal.
Mesmo estando ultrapassada a questão da legitimidade pela decisão proferida no despacho saneador, sempre se dirá que o autor não vem pedir indemnização para o casal, rectius, para o ex-casal. Pediu em nome próprio. Para si próprio. Só se viesse exercer um direito patrimonial comum se poderia colocar a questão da sua legitimidade por não ser cabeça-de-casal, pois estaria a exercer um direito de crédito de terceiro (a comunhão conjugal). (…)”; (cfr., fls. 543 a 544-v).
E, a ser assim, dúvidas não há quanto à questão da “legitimidade (substantiva)” nos termos em que esta foi (inicialmente) configurada.
Contudo, a solução jurídica que veio, a final, a ser dada pelas Instâncias, implica (necessariamente) que esteja em causa um “incumprimento pela R. de uma obrigação resultante de um contrato de arrendamento”, pois que, em bom rigor, o que A. acaba por invocar é um “direito” que resulta antes de um contrato no qual é contitular da posição de senhorio, não sendo, directamente, um “direito sobre o imóvel”.
Recorde-se aliás que no art. 9° da sua petição inicial afirmava o A. que: “Em data que não consegue precisar, o Autor e C, na qualidade de senhorios, e a Ré, na qualidade de arrendatária, celebraram um contrato de arrendamento da fracção em discussão nos presentes autos”, (adiantando ainda que tal contrato foi revogado por C, cfr., art. 12° do mesmo articulado, a fls. 4), vindo o Tribunal de Judicial de Base a considerar que: “Do que ficou dito, não pode o tribunal concordar com a tese do autor que qualifica os factos provados no âmbito da responsabilidade aquiliana. De facto, o que ocorre é que a ré não restituiu o imóvel depois de findo o contrato que permitia ocupá-lo. Estamos, pois, em sede de responsabilidade contratual, pois que a obrigação de indemnizar tem origem na violação de um dever contratual e é a diferença genética da obrigação de indemnizar que distingue a responsabilidade contratual da extracontratual, (…)”, acabando por concluir que, assim, “Aqui chegados, já se conclui que o que está em causa é a mora na obrigação de restituição do locado depois de findo o contrato de locação. Com efeito, dispõe o art. 983.º, al. j), do CC que é obrigação do locatário restituir a coisa locada findo o contrato”; (cfr., fls. 547-v e 548).
Por outras palavras, e apesar de no início da sua fundamentação, partir o Tribunal Judicial de Base de um exemplo (ou situação) de “responsabilidade aquiliana”, (no qual uma parte faz valer um direito próprio – “propriedade”, ainda que em comunhão – para apoiar a legitimidade do A.), a verdade é que, mais adiante, concluiu estar-se perante um “incumprimento de uma obrigação decorrente de um contrato de arrendamento”, razão pela qual foi dada uma solução com base na “responsabilidade contratual”.
Assim, e partindo da configuração pelo A. dada à acção, considerou que aquele tinha “legitimidade (substantiva)”, para formular o pedido de indemnização, vindo, posteriormente, a defender que a configuração dada, (de “responsabilidade extracontratual”), estava errada, e que, no fundo, o que estava em causa era uma indemnização devida por “incumprimento contratual”.
Pois bem, se bem entendemos, só as partes de um contrato têm legitimidade substantiva para discutir questões relativas ao seu cumprimento.
In casu, o “conflito” que os presentes autos nos dão conta, surge porque havia uma “situação de pluralidade subjectiva de senhorios”, sendo que estava em causa um imóvel que era um “bem comum do casal” no momento em que foi dado em arrendamento; (cfr., art. 1548°, n.° 1 do C.C.M.).
No fundo, (em nossa opinião, e como efectivamente nos parece), em bom rigor, o (verdadeiro) problema consiste em saber se poderá um “contitular da posição de senhorio”, exigir, por si só, o pagamento de uma indemnização pelo incumprimento de uma obrigação contratual; (cfr., art. 983°, alínea j) do C.C.M.).
Ora, como se sabe, “Os direitos subjectivos podem ter um titular individual, seja ele uma pessoa singular ou uma pessoa colectiva, mas podem também estar na titularidade de mais do que uma pessoa. Nestes casos, há contitularidade do direito subjectivo.
O artigo 1404.º do Código Civil considera as regras da compropriedade aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos. A compropriedade foi, assim, escolhida como o paradigma, o tipo padrão, da contitularidade de quaisquer direitos.
A sua aplicação deve ser feita com as necessárias adaptações, como o próprio artigo diz, isto é, analogicamente, considerando semelhanças e diferenças, aferindo da relevância das diferenças e adaptando em conformidade o regime a aplicar”; (cfr., v.g., Pedro Pais de Vasconcelos in, “Teoria Geral do Direito Civil”, 2005, 3ª ed., pág. 676 e 677).
E, como igualmente nota o mesmo autor, sucede que “O artigo 1404.º, ao determinar a aplicação do regime jurídico da compropriedade à comunhão de quaisquer outros direitos subjectivos, veio trazer à compropriedade, embora por analogia e com adaptações, uma generalidade que ultrapassa os quadros da disciplina dos Direitos Reais.
(…) Em nossa opinião, a discussão doutrinária sobre a natureza jurídica da compropriedade não deve ser transposta para o domínio da contitularidade. Tal constituiria uma inversão metodológica. Há regimes jurídicos muito variados em diversas situações de contitularidade. Há casos em que a contitularidade é muito tensa, em que duas ou mais pessoas são titulares dum único direito indivisível, de tal modo que só em conjunto o podem exercer, como sucede na contitularidade de quotas e acções. Noutros casos, como na solidariedade activa, um dos titulares pode exigir a totalidade da prestação, embora tenha depois de entregar aos demais aquilo que lhes cabe. Já na conjunção de créditos, cada um dos concredores pode apenas exigir a sua parte do crédito. A remissão dos casos atípicos para as regras da compropriedade, no artigo 1407.º do Código Civil, dá a este regime uma qualidade paradigmática, mas não afasta os demais”, considerando, ainda, a propósito da “contitularidade de direitos de crédito” que: “No seio dessa regulamentação, surgem porém com interesse para o tema da contitularidade de direitos, o regime da conjunção, da solidariedade e de mão comum activas.
No regime da conjunção activa, que constitui a regra, cada um dos credores pode exercer, em separado, o seu crédito, mas apenas na parte que lhe cabe.
Na solidariedade activa, qualquer dos concredores pode exercer a totalidade do direito de crédito, sem que o devedor lhe possa opor que não é o único credor. Ao cumprir perante um apenas dos credores, o devedor fica exonerado (artigo 532.º). O credor que recebe a totalidade da prestação, ou parte dela superior à sua, tem de satisfazer os outros credores nas partes respectivas (artigo 533.º). Só há solidariedade quando assim resulte da lei ou de estipulação das partes (artigo 513.º).
No regime de mão comum, o direito tem de ser exercido em conjunto por todos os credores”, e que “Apesar de paradigmático, a compropriedade não é o único modelo regulativo da contitularidade. Outros há e muito importantes, que não poderão ser aqui analisados. (…)
Nestes tipos de contitularidade encontram-se, nuns mais e noutros menos, aspectos de mão comum. Assim sucede na comunhão conjugal, no fundo comum das associações sem personalidade jurídica, nos fundos de investimento e nos baldios, e de algum modo no regime das partes comuns da compropriedade.
Há casos em que a lei ou o negócio regulam o regime da contitularidade especialmente; nos casos em que o não faça, é o regime da compropriedade, por remissão do artigo 1407.º, que fornece a base regulativa, com as necessárias adaptações. É importante não perder de vista que a aplicação do regime da compropriedade é analógica, o que supõe uma necessária adaptação ao caso concreto”; (in ob. cit., pág. 677 a 680).
E, então, como decidir?
Pois bem, como se deixou sumariado no Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 11.07.2018, (Proc. n.° 12/2018): “Por força do art.º 1300.º do Código Civil, a disposição no n.º 1 do art.º 1308.º aplica-se à comunhão de quaisquer outros direitos, incluindo o património comum do ex-casal”.
E, nestes termos – por força da “comunhão conjugal não partilhada”, ou por força do próprio “contrato de arrendamento” do qual resulta uma contitularidade da posição de senhorio – parece-nos que sempre estaria em causa a aplicação das “regras da compropriedade” previstas nos art°s 1300° e segs. do C.C.M..
Isto visto, continuemos.
De acordo com o art. 1301° do aludido C.C.M.:
“1. Os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas e nos termos dos artigos seguintes.
2. Cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro”.
A propósito de norma equivalente, consideram Pires de Lima e Antunes Varela que:
“Afirmando que o consorte ou comproprietário exerce, conjuntamente com os outros consortes, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular (embora em proporção da parte que tenha na propriedade comum), o artigo 2176.º do Código Civil de 1867 podia criar no espírito do intérprete a falsa ideia da necessidade do consentimento de todos os contitulares do direito para o exercício das múltiplas faculdades em que este se desdobra.
Outro é, manifestamente, o sentido da proposição introdutória do n.º 1 do artigo 1405.º, quando se afirma que «os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que que pertencem ao proprietário singular». Com efeito, desde que actuem todos ao mesmo tempo, fica plenamente preenchida a titularidade do direito de propriedade, e nenhuma razão subsiste, por conseguinte, para recusar ao conjunto dos intervenientes no acto os poderes próprios do proprietário singular.
Isto não significa, porém, que seja a intervenção conjunta dos vários contitulares o único processo legal de prevenir ou sanar conflitos entre os interesses divergentes dos comproprietários.
Há casos em que a colisão de interesses não é possível ou não tem relevância jurídica, nenhum inconveniente havendo em facultar a actuação autónoma de cada contitular (cfr. arts. 1405.º, 2; 1406.º; 1408.º, 1; 1409.º, 1). Outras vezes o exercício do direito está sujeito à deliberação da maioria (art. 1407.º, 1, conjugado com os n.ºs 2 e 3 do art. 985.º). Noutras, torna-se mesmo indispensável a intervenção colectiva de todos os contitulares do direito (arts. 1408.º, 1, in fine; 1024.º, 2).
Quando, porém, seja ou não necessária a participação conjunta, todos eles intervenham na realização do acto, será lícita a esse conjunto a prática de qualquer dos actos que a lei atribui ao proprietário singular. Esse é o sentido da primeira proposição do n.º 1 do artigo 1405.º”; (in “C.C. Anotado”, Vol. III, 1972, pág. 319, podendo-se ainda sobre a matéria ver o Ac. da Rel. de Coimbra de 30.03.2004, Proc. n.° 325/04 e o da Rel. de Lisboa de 10.11.2016, Proc. n.° 3022/15, com relevantes referências da doutrina e jurisprudência sobre a questão).
Dest’arte, seja como for, (e em todo o caso), inegável se apresenta que há quem na doutrina considere que “a jurisprudência portuguesa tem vindo a admitir o exercício singular por um contitular sempre que tal não acarrete um prejuízo para os demais contitulares ou sempre que dos actos em apreço resulte um benefício para todos”; (cfr., v.g., Elsa Vaz Sequeira in, “Da distinção entre contitularidade de direitos e concorrência de direitos”, texto publicado em “Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier”, Universidade Católica, 2015, pág. 39 a 70), situação que parece enquadrar o caso dos autos.
Note-se, ainda, que nos termos do art. 1304° do C.C.M.:
“1. Na falta de regras especiais constantes do regulamento sobre administração da compropriedade, esta cabe a todos os comproprietários, os quais têm poderes para praticarem individualmente os actos necessários à conservação da coisa e conjuntamente os demais actos de administração.
2. Contudo, qualquer dos consortes tem o direito de se opor ao acto de conservação que outro consorte pretenda realizar, salvo os indicados na alínea b) do artigo seguinte que se não compadeçam com a delonga, cabendo à maioria referida na alínea a) do número seguinte decidir sobre o mérito da oposição.
3. Salvo quando o regulamento preceitue de modo distinto, os actos que devam ser praticados conjuntamente estão dependentes do acordo dos consortes que representem:
a) Tratando-se de actos de administração ordinária, mais de metade do valor total da coisa;
b) Tratando-se de actos de administração extraordinária, mais de dois terços do mesmo valor.
4. Sempre que não seja possível formar a maioria legal exigida, a qualquer dos comproprietários é lícito recorrer ao tribunal, que decidirá segundo juízos de equidade”.
Ora, e como sobre precisamente esta mesma “matéria” notam Pires de Lima e Antunes Varela: “Tem-se perguntado entre os autores se qualquer dos comproprietários pode, isoladamente, proceder à recolha dos frutos da coisa.
O problema, entre nós, tem de resolver-se à face do preceituado no artigo 985.º, aplicável por força do disposto no artigo 1407.º, n.º 1.
Na falta de convenção em contrário, todos os consortes têm igual poder para administrar (art. 985.º, 1) e, portanto, qualquer deles pode proceder à colheita dos frutos, que é um puro acto de administração. (…)
Esta afirmação só vale, porém, quanto aos frutos naturais. Relativamente aos frutos civis, por isso que derivam de relações de natureza creditória e se trata, em regra, de prestações divisíveis, nada impede que, na sequência da regra da proporcionalidade fixada pelo artigo 1405.º e em conformidade com o disposto no artigo 534.º, qualquer dos consortes possa reclamar do terceiro devedor a quota parte que lhe compete, ou apropriar-se dela quando receba a prestação integral”, (in ob. cit., págs. 321 e 322), “situação” esta em que se integraria a “indemnização” aqui peticionada atento o disposto no art. 204°, n.° 2 do C.C.M., (onde se preceitua que: “Os frutos são naturais ou civis; dizem-se naturais os que provêm directamente da coisa, e civis as rendas ou interesses que a coisa produz em consequência de uma relação jurídica”).
Nesta conformidade, adequado parece retirar-se que se pode admitir a “legitimidade (substantiva)” de um contitular que pretende reclamar o pagamento de “frutos civis” na sua “quota parte”, até porque esse exercício singular não acarreta qualquer “prejuízo” para os demais contitulares.
Nestes termos, afigura-se-nos pois que o recurso da R. é improcedente quanto a este fundamento.
Avancemos.
–– Na opinião da R., ora recorrente, a decisão ínsita no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância não tem qualquer apoio doutrinal ou jurisprudencial, assentando numa errónea interpretação do instituto da “compensatio lucri cum damno”, princípio este não expressamente consagrado, mas que de forma pacífica e firme se tem acolhido como válido, e, segundo o qual, para efeitos de cálculo do montante indemnizatório, ao dano sofrido pelo lesado deve ser abatido o valor de uma vantagem que lhe tenha eventualmente advindo do próprio facto danoso; (cfr., v.g., sobre o mesmo instituto, o Ac. do S.T.J. de 25.10.2005, Proc. n.° 05A3054, de 22.11.2012, Proc. n.° 110/2000, e, mais recentemente, e com mais desenvolvimentos, em especial, relativamente ao seu “alcance” e “pressupostos”, Margarida Figueiredo da Silva in, “Compensatio lucri cum damno: Uma apreciação da Jurisprudência Portuguesa”, U.C.P., 2019).
E, nessa ordem de ideias, considera que seria irrelevante o apuramento de outras “vantagens concretas” (ou “valores exactos”) de que o A. teria beneficiado, já que se a R. tivesse pago o valor das rendas, esse montante não ficaria nos “cofres” da sociedade R., e seria imputado nas despesas da sociedade, reduzindo, por essa via, o património societário com reflexos no valor da quota do A..
Defende, ainda, a mesma recorrente, que o processo continha todas as condições para efectuar o cálculo exacto das contas, tal como foi feito pelo Tribunal Judicial de Base, e que o Acórdão recorrido seria até “nulo” por aí não se apresentar justificação bastante quanto aos fundamentos de direito que suportam a decisão de revogação da decisão tomada em 1ª Instância, verificando-se, assim, uma “nulidade” nos termos do art. 571°, n.° 1, alínea b), ex vi art. 633°, n.° 1, ambos do C.P.C.M., violando, também, a decisão recorrida, os art°s 54°, 55°, 56°, 198°, n.° 2, e 197°, n.° 1, todos do C. Comercial.
Ora, (e ressalvando sempre o devido respeito por outra opinião), afigura-se-nos que à R., ora recorrente, não assiste razão, (sendo antes a sua posição que não encontra qualquer apoio doutrinário ou jurisprudencial).
Desde logo, apresenta-se-nos de aqui realçar que a R. não terá compreendido, correctamente, o alcance do pelo Tribunal de Segunda Instância considerado quando no seu Acórdão notou que: “não se deve misturar a personalidade jurídica de uma sociedade (ré) e a do seu sócio (autor), e não obstante que o autor detém 40% do capital social da ré, a matéria de facto provada nos autos apenas permite o cálculo aproximado das contas, não havendo possibilidade de apurar as vantagens concretas ou valores exactos que o autor teria beneficiado, para efeito de aplicação do instituto da compensatio lucri cum damno e a consequente redução do valor da indemnização devida pela ré e peticionado pelo autor”; (cfr., fls. 774 e 774-v).
Com efeito – e como expressamente salienta João de Matos Antunes Varela in, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10ª ed., pág. 937 – é preciso ter em conta que só pode haver “compensatio lucri cum damno”, quando “o facto determinante da responsabilidade, ao mesmo tempo que causa um dano, proporciona ao lesado a aquisição de uma vantagem”, razão pela qual “haverá que abater, em princípio, o valor desta ao montante do prejuízo, para se determinar o valor exacto da indemnização”, assim se atendendo ao disposto no art. 560°, n.° 5 do C.C.M..
E, atenta a “matéria de facto dada como provada”, evidente se nos apresenta que da mesma não resulta que teve o A. qualquer “vantagem” pela não restituição da coisa locada após o fim do contrato, (cfr., art. 1027° do C.C.M.).
Por outras palavras, a referida “circunstância” pela R. alegada, por si só, não proporcionou, (de forma concreta e efectiva), qualquer “vantagem” ao A., pelo que, logo por aqui, vista está a solução.
Porém, diz também a R. que o facto de o A. ser também seu sócio, (com uma quota representativa de 40% do capital social), implica que o seu – da R. – “benefício” (imediato) pela falta de pagamento da indemnização devida pela não restituição atempada da coisa locada após o fim do contrato se “reflicta” na esfera jurídica do A..
Só que, aí, e se bem ajuizamos, estamos tão só perante uma (mera) situação (puramente) “hipotética”, sem qualquer “base factual” que a suporte.
Com efeito, os (parcos) elementos de facto dados como provados não permitem concluir que a vantagem da R., “se tornou”, igualmente, uma “vantagem do A.”, visto que, como – bem – se apontou no Acórdão recorrido, “não se deve misturar a personalidade jurídica de uma sociedade (ré) e a do seu sócio (autor), (…)”; (cfr., fls. 774-v).
De resto, nunca poderia aceitar-se tal construção, pois a mesma afronta os próprios “pressupostos” em que assenta a aludida “compensatio lucri cum damno”.
Na verdade, para se proceder a uma “compensatio lucri cum damno” exige-se que o “lucro” e o “dano” tenham o “mesmo título jurídico”; (cfr., v.g., Margarida Lima Rego in, “Compensatio Lucri cum Damno in Portugal”, e Paulo Mota Pinto in, “Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo”, Vol. I, pág. 777 e 778).
Assim, não há, (nem pode haver), “compensatio lucri cum damno”, quando o lucro “tenha a sua fonte, a sua “razão jurídica” num título, numa causa jurídica diferente daquela que causou o prejuízo.
Ilustremos um exemplo para facilitar a compreensão: no caso de morte de um parente não podemos dizer que haverá lugar a compensatio quanto à herança que os familiares receberão em virtude da morte do seu familiar, pois neste caso a conduta lesiva e o consequente evento morte não são a razão jurídica para a aquisição da herança, mas tão só a lei sucessória”; (cfr., v.g., Margarida Figueiredo da Silva in, ob. cit., pág. 19, podendo-se ainda, neste exacto sentido, ver Maria Nazareth Lobato in, “A compensação de lucros com danos («Compensatio lucri cum damno»)”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano II, 1946-1947, pág. 97 a 99, que, exemplificando, considera que: “Se da criação de um determinado estado lesivo resulta a obrigação, legal ou convencional, de prestação de alimentos, poderá esta ser considerada como vantagem? Poderá a dívida de alimentos ser reduzida por compensação com lucros concomitantes ao dano que provocou o seu aparecimento?
Analisemos a primeira hipótese. A pensão de alimentos posta por lei ou contrato a cargo de terceiro, a obrigação de alimentos que impende sobre um terceiro como consequência do estado de facto criado pelo dano para o sujeito da acção de indemnização, não prejudica esta, pois funciona como res inter alios acta; a causa de pedir dessa pensão é inteiramente diversa da causa de pedir na acção indemnizatória. São diversos os sujeitos passivos, também.
A pretensão de alimentos contra terceiros não é lucro proveniente do dano, pois se analisa na resultante, exclusivamente, da necessidade do alimentando. (…)
Concluindo: a pretensão alimentar do lesado com relação a terceiros não pode ser invocada pelo lesante por estar fora do âmbito da reparação.
Mas quando a prestação seja devida pelo próprio lesante, deverá ver-se nela uma forma de reparação, de sorte que algum lucro concomitante venha a reduzi-la? Ou será antes uma vantagem surgida para o lesado com a conduta que obriga a reparar?
Em princípio, e salva mais profunda análise, a obrigação alimentar, mesmo quando prestada pelo autor da lesão, não se confunde com a obrigação reparatória. O seu fundamento: estado de necessidade do alimentando, a sua completa dependência desse estado e consequente variabilidade; a relação em que é posta com os meios de fortuna de quem a preste; todas as suas demais condições – o facto, mesmo, de ter um ritual forense próprio – tudo sublinha a sua independência. Substitui, quando pedido único, a dívida indemnizatória apenas no sentido de que, corrigindo o estado de facto existente, faz desaparecer o dano, e com ele a base para a acção de reparação.
Assim, os problemas propostos não têm base”).
No fundo, e como também já notava o Prof. Vaz Serra: “a conexão adequada não parece ser bastante, devendo excluir-se a compensação se a boa fé a contrariar; (…)
Tem sido objecto de discussão o saber se há compensação de vantagens quando o prejudicado tenha, em consequência do facto danoso, uma pretensão de seguro. Por exemplo, A é vítima de ofensa corporal e pode, por ter um contrato de seguro, exigir do segurador o capital do seguro. Poderá então o responsável pela ofensa reclamar que da indemnização se deduza o quantitativo do seguro?
A solução deve ser negativa, pois as pretensões do seguro «foram adquiridas a título oneroso em virtude de uma contraprestação (prémio, quota) e representam, por conseguinte, em primeiro lugar, a consequência do contrato do seguro e do pagamento dos prémios». Com efeito, «concedendo ao prejudicado o direito de agir integralmente contra o autor do dano e contra o instituto segurador, não se corre o risco de lhe conferir um enriquecimento injusto, visto que pagou ao segurador prémios regulares como correspectivo da quantia segura. Dando-se, pelo contrário, lugar à compensatio, ele, substancialmente, não obteria a contraprestação devida, e encontrar-se-ia em condição pior em relação àquele que não efectuou o acto de previdência do seguro: pior em proporção dos prémios pagos. Beneficiado seria o autor do dano, em contraste absoluto com o fim natural do seguro»”; (in “Obrigação de Indemnização (Colocação. Fontes. Conceito e Espécies de Dano. Nexo Causal. Extensão do Dever de Indemnizar. Espécies de Indemnização). Direito de Abstenção e de Remoção”, B.M.J., 84°-191).
E, assim, em face do que se deixou exposto, parece evidente que o “reflexo” do dano enquanto benefício nas contas da R. não é um “benefício” (ou vantagem) do A., (sob pena de desconsideração da personalidade colectiva), sendo de notar ainda que, eventuais “distribuições de dividendos pelos sócios da R.”, (matéria que não está sequer “provada”, porque nunca antes tinha sido alegada), não têm origem em “facto danoso”, mas antes, noutros factos de natureza societária, como v.g., sucede com a aprovação de contas anuais, (distribuições de lucros), tendo, assim, por base, um “título jurídico” totalmente distinto.
Dest’arte – atento ainda o sumariado no atrás citado Acórdão do S.T.J. de 22.11.2012, Proc. n.° 110/2000, onde se consignou que: “Na actividade de alegação e prova dos factos relevantes para se aferir, já não da existência jurídica do direito de indemnização , mas do objecto , conteúdo e montante concreto da obrigação de indemnizar -nomeadamente para aplicação dos cálculos informadores da teoria da diferença contida no art. 566º, nº2, do CC - recai sobre o lesante o ónus de alegar e provar os factos, favoráveis à oposição ou contestação que deduziu, que são determinantes de uma redução do valor normal da indemnização pretendida pelo lesado – nomeadamente, os que estão subjacentes ao instituto da compensatio lucri cum damno, provando quais as concretas vantagens que o lesado teria auferido em consequência do facto danoso, determinantes de uma redução do valor indemnizatório peticionado”, (podendo-se, também ver o Ac. de 10.09.2020, Proc. n.° 1872/18) – necessária é a decisão que segue.
Decisão
4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 15 UCs.
Registe e notifique.
Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 03 de Outubro de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Song Man Lei
Choi Mou Pan
(1) À época, o caso julgado era considerado uma excepção peremptória, vindo posteriormente, como se sabe, a ser deslocado para o âmbito das excepções dilatórias.
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Proc. 133/2022 Pág. 18
Proc. 133/2022 Pág. 19