Processo nº 64/2024
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. No âmbito dos presentes autos de acção declarativa sob a forma de processo ordinário que correu termos no Tribunal Judicial de Base – com o n.° FM1-22-0036-CAO – proferiu-se a seguinte sentença (que se passa a transcrever):
“I – RELATÓRIO
O autor A (甲), menor, nascido em 31/01/2014, em Macau, aqui representado pelo Ministério Público, veio instaurar a presente acção declarativa sob a forma ordinária de processo comum contra
1º Réu – B (乙), do sexo masculino, titular do BIRM nº XXXXXXX(X), e;
2ª Ré – C (丙), do sexo feminino, portadora do salvo-conduto da RPC para deslocações a HK e Macau n.º CXXXXXXXX,
todos com outros elementos de identificação nos autos.
Alegou o autor que nasceu em 31 de Janeiro de 2014 que foi registado como sendo filho da 2ª ré e, por presunção de paternidade, como sendo também filho de B, primeiro réu e marido daquela sua mãe. Mais alegou que não é filho biológico de B e que ambos os réus se recusam a fazer exames de DNA.
Concluindo pede que se declare que não é filho biológico do primeiro réu e que, em consequência, se ordene o cancelamento da respectiva menção de paternidade no seu assento de nascimento.
Os réus foram citados para contestar e contestaram dizendo que o menor era filho biológico do 1º réu, impugnando os factos alegados na petição inicial e concluindo pela improcedência da acção.
Foi proferido despacho saneador a fls. 81 a 82v, onde se seleccionou a matéria de facto relevante para a decisão.
Procedeu-se a julgamento, tendo a matéria de facto controvertida sido decidida sem reclamação e não foram apresentadas alegações de Direito.
II – SANEAMENTO
A instância mantém-se válida e regular como decidido no despacho saneador.
III – FUNDAMENTAÇÃO
A - De Facto
Estão assentes os seguintes factos:
1. A, menor, do sexo masculino, nascido em Macau no dia 31 de Janeiro de 2014, com registo de nascimento n.º XXX/2014/RC na Conservatória do Registo Civil, sendo titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º XXXXXXX(X).
2. No assento de nascimento, o menor foi registado como filho do 1º réu e da 2ª ré.
3. O 1º réu e a 2ª ré registaram o casamento em 19 de Abril de 2011 no Interior da China.
4. O 1º réu e a 2ª ré registaram o divórcio em 25 de Junho de 2018.
5. De acordo com as informações fornecidas pela Direcção dos Serviços de Identificação, o documento de identificação do menor A e a certidão narrativa do seu registo de nascimento mostram que o menor adoptou o apelido da mãe. (Q. 1.º)
6. A 2ª ré referiu à Diretoria de Segurança Pública da Província de Guangdong que “não tinha a certeza se o pai biológico de A era B e confessou ter relacionamento extraconjugal. (Q. 2.º)
7. De acordo com as declarações prestadas pelo 1º e 2ª réus, respectivamente, na Direcção dos Serviços de Identificação, havia várias contradições e discrepâncias entre eles no que se refere à situação individual, preferências, ambiente doméstico, situação familiar, pormenores das vidas e até assuntos comuns entre eles. (Q. 3.º)
8. Fase a estas informações, o Ministério Público solicitou ao menor e aos 1º e 2ª réus que comparecessem na Polícia Judiciária para a realização de testes laboratoriais de paternidade. No entanto, todos eles se recusaram a fazer o teste A.D.N. (Q. 4.º)
9. Ao mesmo tempo, o 1º réu não apresentou qualquer prova que sustentasse a sua posição, com excepção da sua declaração de ser o pai biológico do menor, nem sequer tinha uma fotografia de família. (Q. 5.º)
10. Segundo a informação fornecida pelo Departamento de Controlo Fronteiriço da PSP sobre os movimentos fronteiriços dos 1º e 2ª réus, existem apenas 16 registos comuns entre 2010 e Setembro de 2022, isto é, desde que o casamento foi contraído até à presente data. (Q. 6.º)
11. Ao mesmo tempo, comparados os registos de movimento fronteiriços do 1º réu e os do menor desde o seu nascimento até à presente data, existem apenas 6 registo comuns entre os dois e apenas 8 registos com utilização de canais adjacentes, pelo contrário, em relação aos registo de movimentos fronteiriços do menor e da 2ª ré, existem 932 registos comuns e 1722 registos com utilização de canais adjacentes. (Q. 7.º)
B - De Direito
Atento o pedido formulado pelo autor, esta acção parece destinar-se a impugnar a paternidade do autor como se essa paternidade tivesse sido estabelecida por perfilhação. Com efeito, pede-se que seja declarado que o autor não é filho biológico do primeiro réu e alega-se que não nasceu em consequência de relações sexuais havidas entre a sua mãe, a segunda ré, e o primeiro réu.
Mas a paternidade do autor não foi estabelecida por perfilhação. Foi estabelecida por presunção de paternidade em relação ao marido da mãe, o primeiro réu. Também isso é afirmado no art. 4º da petição inicial.
Pois bem, dos factos assentes não resulta provado que o autor não nasceu de relações sexuais havidas entre os réus, pelo que não pode declarar-se que o autor não é filho biológico do réu, como o autor pede.
Porém, por razões de ordem lógico-jurídica, o pedido do autor engloba também a pretensão de impugnação da presunção legal da sua relação de paternidade relativamente ao marido da mãe, o primeiro réu. Na verdade, quem pretende o mais também pretende o menos e quem pede para ser declarado que não é filho biológico também pretende ser declarado que não é legalmente presumido como filho biológico.
Assim, mesmo não podendo proceder a pretensão do autor de ver declarado que não é filho biológico do primeiro réu, sempre poderá proceder a pretensão de ver declarada afastada a presunção legal de ser filho do marido da sua mãe ao tempo do seu nascimento, o mesmo 1º Réu. A apreciação desta pretensão de impugnação da presunção não viola o princípio do pedido, pois não configura apreciação de objecto diverso do pedido, expressão do art. 564º, nº 1 do CPC, pois que o que está em causa é ainda o estabelecimento da paternidade, embora por presunção legal. Além disso, se bem se interpretar a petição inicial, há-de concluir-se que o que o autor efectivamente pretende é afastar tal presunção recorrendo a factos que em seu entender a tornam improvável, como o facto de o menor não ter adoptado o apelido do 1ª réu e o facto de a mãe do autor ter dito que tivera relação extraconjugal no período legal da concepção do autor.
A paternidade estabelece-se no plano jurídico por três formas: através da presunção em relação ao marido da mãe (“pater is est quod nuptiae demonstrat”), pela perfilhação ou pelo reconhecimento judicial (cfr. Arts. 1685º, nº 1 e 1701º do Código Civil). A primeira forma destina-se aos casos de filhos de mãe casada e as segunda e terceira aos casos de filiação fora do casamento.
No caso em apreço está em causa, nos termos que ficaram ditos, a presunção relativa ao marido da mãe. Efectivamente, a paternidade do primeiro réu em relação ao autor estabeleceu-se por presunção.
Se a paternidade presumida não for verdadeira pode ser impugnada em juízo devendo o autor provar que, de acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável (art. 1697º do CC).
O juízo de manifesta improbabilidade é um juízo diferente de ilidir a presunção legal, pois este reclama a prova do contrário (art. 343º, nº 2 do CC) e aquele reclama apenas a dúvida fundada. A presunção é a ilação de um facto a partir de outro. Um facto conhecido aponta para a verificação de um desconhecido, indicia-o. Se uma mulher casada dá à luz, a normalidade da vida indicia que o pai seja o marido. Mas circunstâncias há que podem tornar este indício manifestamente improvável.
As circunstâncias que estão em causa nos presentes autos para aferir se é manifestamente improvável que o pai do autor seja o marido da sua mãe na data do seu nascimento são quatro: a adopção do apelido da mãe por parte do menor, a recusa dos réus a fazer exames de DNA, as declarações contraditórias destes e o reduzido convívio do primeiro réu com o autor.
Provou-se que o menor tem o apelida da mãe e não o do pai; que a ré declarou às autoridades policiais da China continental que “não tinha a certeza se o pai biológico de A era B” e disse que tinha um relacionamento extraconjugal; que os réus prestaram declarações discrepantes sobre a vida conjugal e familiar e recusaram submeter-se a exames de DNA. E provou-se ainda que o réu não tinha qualquer elemento que demonstrasse a sua ligação ao menor.
A recusa a submissão a exames de DNA sem apresentação de qualquer justificação é uma circunstância que indicia claramente a improbabilidade da presunção de paternidade e torna aquela improbabilidade manifesta, por indiciar que querem proteger a presunção e que querem esconder um facto contrário a ela. As declarações contraditórias e dubitativas perante a autoridade pública indiciam o mesmo. O facto de o menor não ter o apelido do marido da sua mãe aponta também contra a referida presunção.
Conclui-se, pois, que de acordo com as circunstâncias referidas a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável.
Deve, pois, ser julgada procedente a impugnação da presunção de paternidade relativamente ao primeiro réu.
Quanto ao cancelamento da menção de paternidade constante do registo.
Nos termos do artigo 70º, nº 1, al. a), do Código do Registo Civil, “O registo deve ser cancelado … quando o próprio facto registado for juridicamente declarado inexistente…”.
A paternidade presumida do primeiro réu relativamente ao autor menor foi agora declarada como não tendo ocorrido, por não se ocorrer neste caso a respectiva presunção de paternidade, razão por que a sua menção no registo deve ser cancelada. É certo que existiu presunção de paternidade, mas cessou.
IV – DECISÃO.
Pelo exposto, julgo a acção procedente e, em consequência, decido:
- Declarar que o autor A (甲) não beneficia de presunção de paternidade em relação ao 1º. Réu, B (乙);
- Ordenar o cancelamento da menção de paternidade de B (乙) no Assento de Nascimento nº XXX/2014/RC da Conservatória do Registo Civil.
(…)”; (cfr., fls. 126 a 129 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Do assim decidido, os RR., B (乙) e C (丙), recorreram para o Tribunal de Segunda Instância; (cfr., fls. 136 a 142-v).
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Oportunamente, por Acórdão de 29.02.2024, (Proc. n.° 38/2024), negou-se provimento ao aludido recurso; (cfr., fls. 158 a 165-v).
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Ainda inconformados, trazem os mesmos RR. o presente recurso, alegando para, a final, afirmar que se incorreu em “violação do princípio do pedido” e em “erro na decisão da matéria de facto” por “falta de prova (em contrário)”; (cfr., fls. 174 a 187).
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Respondendo, e em representação do A. A (甲), pugna o Ministério Público pela total improcedência do recurso; (cfr., fls. 192 a 198-v).
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Nada parecendo obstar, e colhidos os vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos (em conformidade com o estatuído no art. 52°, n.° 2 e 3 da Lei n.° 9/1999), cumpre decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
2. Como resulta do que se deixou relatado, vêm os RR. recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a sentença do Tribunal Judicial de Base – atrás transcrita – que declarou que o A. A, “não beneficia de presunção de paternidade em relação ao 1° R., B, ordenando o cancelamento da respectiva menção de paternidade do A. no Assento de Nascimento n.° XXX/2014/RC da Conservatória do Registo Civil”.
Ponderando no pelo Tribunal de Segunda Instância deliberado no Acórdão agora recorrido, e no que pelos RR., ora recorrentes, vem alegado, cremos que não se lhes pode reconhecer razão, (necessário não sendo uma extensa fundamentação para o demonstrar).
Vejamos.
Para melhor se compreender as “razões” que levaram à prolação do Acórdão agora recorrido, (e que, como se referiu, se nos mostra de confirmar), vale desde já a pena atentar no seu teor.
Pois bem, in casu, apreciando o anterior recurso dos ora RR., assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:
“(…)
Tribunal recorrido não respeitou o pedido formulado? Ou seja, há excesso de pronúncia?
Ora, salvo o merecido respeito, não entendemos que os Recorrentes têm razão neste aspecto, já que:
1) – O pedido constante da PI foi no sentido de declara que o menor em causa não é filho biológico do 1º Réu! Esse pedido tem a sua lógica, visto que a paternidade foi estabelecida na base na presunção prevista no artigo 1685º do CCM, e não em qualquer prova de DNA!
2) – Quando o Tribunal veio a declarar “que o autor A (甲) não beneficia de presunção de paternidade em relação ao 1º. Réu, B (乙), é uma decisão que ainda cabe no âmbito do pedido inicialmente formulado pelo MP nos termos citados, visto que, mesmo que não beneficie tal presunção, e se se fosse feito o exame de DNA e se este viesse a provar que existisse relação sanguínea, a paternidade poderia ser estabelecida com base nesta prova! Assim, não há excesso de pronúncia, nem desrespeito pelo pedido formulado. O que permite mais, permite menos!
3) – Umas achegas sobre o pedido em matéria de processo cível, ele corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da acção interposta, traduzindo-se na providência que o autor solicita ao Tribunal. No dizer de Teixeira de Sousa, o pedido consiste na forma de tutela jurisidicional que é requerida para determinada situação subjectiva (cfr. Introdução ao Processo Civil, pág. 23). Por isso, não se deve cingir às letras pelas quais que se formulam as pretensões dirigidas ao tribunal, mas sim os efeitos jurídicos pretendidos pelas partes.
4) – Mais, as partes estão cientes de que quais são as matérias que estão a ser discutidas nos autos, nesta óptica, o objectivo final é sempre o mesmo: existe probabilidade de que o menor é filho biológico do 1º Réu?
5) – Por outro lado, segundo o que está previsto no artigo 563º/2 e 3 do CPC, o Tribunal deve procurar resolver todas as questões que lhe sejam apresentada num mesmo processo, foi o que o Tribunal recorrido fez e correctamente.
Pelo expendido, é de julgar improcedente esta parte de fundamentos do recurso, não merecendo censura a decisão do Tribunal recorrido.
*
Relativamente à decisão do mérito, é da nossa conclusão que o Tribunal a quo fez uma análise ponderada dos factos e uma aplicação correcta das normas jurídicas aplicáveis, tendo proferido uma decisão conscienciosa e legalmente fundamentada, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto no artigo 631º/5 do CPC, é de manter a decisão recorrida.
*
Síntese conclusiva:
Em matéria de processo cível, o pedido corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da acção interposta, traduzindo-se na providência que o autor solicita ao Tribunal. Quando o MP em representação do menor pediu que fosse declarado que o menor em causa não era filho biológico do 1º Réu e o Tribunal veio a declarar que “o autor não beneficia de presunção de paternidade em relação ao 1º. Réu”, não há desrespeito pelo pedido formulado, nem excesso de pronúncia, visto que os efeitos jurídicos pedidos são os mesmos.
(…)”; (cfr., fls. 164-v a 165-v).
Aqui chegados, vejamos.
–– Pois bem, quanto à assacada violação do “princípio do pedido”, evidente se nos apresenta que não se pode reconhecer razão aos RR., ora recorrentes.
Com efeito, não se ignora o estatuído no art. 3°, n.° 1 do C.P.C.M., nos termos do qual, (e sob a epígrafe “Princípios da iniciativa das partes e do contraditório”), se preceitua que “O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e à outra seja facultada a oportunidade de deduzir oposição”, e que constitui “causa de nulidade da sentença” a condenação “em quantidade superior ou objecto diverso do pedido”; (cfr., art. 571°, n.° 1, al. d) do dito Código, podendo-se, sobre o “princípio” em questão, cfr., v.g., V. Lima in, “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., C.F.J.J., 2018, pág. 7 e segs.).
Porém, e como in casu bem concluíram as Instâncias recorridas, assim não sucedeu.
Na verdade, (e como em ambas as decisões do Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância se considerou), o pedido inicial deduzido (na petição inicial) de “impugnação da paternidade”, engloba, como correctamente se referiu, “por razões de ordem lógico-jurídica”, o pedido de “impugnação da presunção legal de paternidade” – do art. 1685°, n.° 1 do C.C.M. – que acabou por ser objecto de pronúncia na sentença do Tribunal Judicial de Base, não havendo, assim, qualquer “excesso de pronúncia”, ou decisão «ultra petitum», pois que, como igualmente de forma expressiva se consignou no Acórdão agora recorrido, a decisão sobre a dita presunção de paternidade “ainda cabe no âmbito do pedido inicialmente formulado”.
Com efeito, atenta a “matéria” (em litígio) e a concreta “questão” efectivamente suscitada na aludida petição inicial quanto à – verdadeira – “paternidade” (biológica) do A., sem esforço se mostra de concluir que com a decisão proferida – quanto à sua “presunção de paternidade” – não se “extravasou o pedido deduzido”.
Nesta conformidade, vista está a solução para esta questão.
–– Avancemos então para o conhecimento da segunda questão, pelos ora recorrentes identificada como constituindo um de “erro na decisão da matéria de facto”.
Vejamos.
Nos termos do (citado) art. 1685°, n.° 1 do C.C.M.: “Presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio tem como pai o marido da mãe”.
No caso, como se viu, a “paternidade” do A., menor, nos presentes autos representado pelo Ministério Público, foi estabelecida com base na transcrita “presunção legal”; (sobre o tema, cfr., v.g., os interessantes e completos trabalhos de João de Castro Mendes in, “Do Conceito de Prova em Processo Civil”, 1961; Adriano P. S. Vaz Serra in, “Provas: Direito Probatório Material”, 1962; José Carlos Barbosa Moreira in, “As presunções e a prova”, 1977; C. A. Dabus Maluf in, “As Presunções na Teoria da Prova”, Revista da F.D.U.S.P., 1984; Rui M. F. Rangel in “O Ónus da Prova no Processo Civil”, 2006; e Ana M. Faria de Andrade in, “A prova por presunção no Direito Civil e Processual Civil”, U.A.L., 2016).
Essa presunção legal decorre, (como a generalidade das presunções legais), de uma “regra de normalidade” ou de “experiência comum”, que não é alheia, no caso, à forma como o próprio sistema normativo regula a “relação pessoal entre os cônjuges”, sujeitando-os, reciprocamente, (e entre outros), aos deveres de “coabitação” e “fidelidade”; (cfr., art. 1533° do C.C.M.).
Partindo do princípio da observância desses “deveres jurídicos”, enuncia o legislador a regra que a experiência revela e comprova, de que: “os filhos nascidos ou concebidos na constância do matrimónio da mãe são fruto das relações sexuais desta com o seu cônjuge”.
As “presunções legais” – como a “presunção de paternidade” que agora nos ocupa – são, como sabido é, “ilações” que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido; (cfr., art. 342° do C.C.M.).
No caso da “presunção de paternidade”, a lei extrai do facto do nascimento ou conceção do filho na constância do matrimónio da mãe, que é um dado de facto seguro e objetivo, a ilação, (demonstração), de que o filho tem como pai (biológico) o marido da mãe.
Fá-lo por razões que (essencialmente) se prendem com a constatação de que é o que sucede na “generalidade, ou normalidade, das situações”, assumindo a lei como princípio de prova com relevância extrajudicial o que materialmente corresponde a um “juízo de probabilidade ou normalidade das coisas”; (como sucede no caso do art. 1184°, n.° 2 do C.C.M., onde se prescreve que “A posse titulada presume-se de boa fé, e a não titulada, de má fé”).
Porém, a lei também reconhece que o facto (presumido, no caso), da “paternidade do marido da mãe”, pode não ter correspondência com a “realidade biológica”.
Por isso, admite a sua “impugnação” mediante a prova de que a paternidade do marido da mãe é, de acordo com as circunstâncias, “manifestamente improvável”; (cfr., art. 1697°, n.° 2 do C.C.M.).
In casu, (e em bom rigor), aqui reside o inconformismo dos RR., ora recorrentes, pois que, (no fundo), são de opinião que se devia manter a (validade da) dita “presunção de paternidade” relativamente ao menor, pois que consideram que a decisão final proferida assenta em “matéria de facto mal julgada”.
Pois bem, nos termos do art. 649° do C.P.C.M.:
“1. Aos factos materiais que o tribunal recorrido considerou provados, o Tribunal de Última Instância aplica definitivamente o regime que julgue adequado em face do direito vigente.
2. A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.
Em causa apresentando-se-nos estar assim a “situação” a que se refere a “excepção” prevista no n.° 2 transcrito comando legal, passa-se a expor o nosso ponto de vista sobre a “questão” pelos RR. trazida a esta Instância; (sobre idêntica questão e matéria, cfr., v.g., o recente Ac. deste T.U.I. de 08.02.2024, Proc. n.° 120/2022).
Ora, nos termos do art. 343° do C.C.M.:
“1. Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz.
2. As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir”.
E, tal como não deixou o Tribunal Judicial de Base de explicitar, (e que foi, por sua vez, confirmado pelo Tribunal de Segunda Instância, valendo a pena agora recordar):
“(…)
As circunstâncias que estão em causa nos presentes autos para aferir se é manifestamente improvável que o pai do autor seja o marido da sua mãe na data do seu nascimento são quatro: a adopção do apelido da mãe por parte do menor, a recusa dos réus a fazer exames de DNA, as declarações contraditórias destes e o reduzido convívio do primeiro réu com o autor.
Provou-se que o menor tem o apelido da mãe e não o do pai; que a ré declarou às autoridades policiais da China continental que “não tinha a certeza se o pai biológico de A era B” e disse que tinha um relacionamento extraconjugal; que os réus prestaram declarações discrepantes sobre a vida conjugal e familiar e recusaram submeter-se a exames de DNA. E provou-se ainda que o réu não tinha qualquer elemento que demonstrasse a sua ligação ao menor.
A recusa a submissão a exames de DNA sem apresentação de qualquer justificação é uma circunstância que indicia claramente a improbabilidade da presunção de paternidade e torna aquela improbabilidade manifesta, por indiciar que querem proteger a presunção e que querem esconder um facto contrário a ela. As declarações contraditórias e dubitativas perante a autoridade pública indiciam o mesmo. O facto de o menor não ter o apelido do marido da sua mãe aponta também contra a referida presunção.
Conclui-se, pois, que de acordo com as circunstâncias referidas a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável”; (cfr., fls. 128 a 128-v e 163 a 163-v).
Porém, não obstante o assim – claramente – exposto, insistem os RR., ora recorrentes, que era ao A., recorrido, que cabia o “ónus da prova” de que “o 1° R. não tinha a qualidade de seu pai (biológico)”.
Contudo, laboram em manifesto equívoco, até mesmo porque, antes de mais, tal não é o que resulta do expressamente preceituado no art. 1697° do C.C.M., que regulando a matéria, sobre a mesma prescreve apenas que: “Na acção o autor deve provar que, de acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável”, (cfr., n.° 2, com sub. nosso, sendo pois de salientar assim que necessária não é a prova “incontestável” de que o “presumido pai”, afinal, “não o é”, bastando, a prova de que é “manifestamente improvável” que o seja).
Pois bem, consabidamente, o nosso direito probatório material orienta-se pela chamada “doutrina da construção da proposição jurídica” ou “teoria das normas”, (de harmonia com a qual a repartição desse ónus decorre das relações das normas entre si), e que, numa formulação simplificada, pode enunciar-se deste modo: cada parte está onerada com a prova dos factos subsumíveis à regra jurídica que lhe atribuiu um efeito favorável, daí, prescrever o art. 335°, n.° 1 do C.C.M. que: “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”; (estatuindo, também o seu n.° 2, que, “A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”).
Todavia, e sem perder de vista o estatuído em matéria de “presunções” no atrás transcrito art. 343° do mesmo C.C.M., vale a pena recordar que as “presunções” legais podem ser “inilidíveis”, («jure et de jure»), ou – como é a regra – “ilidíveis”, (“juris tantum”).
Nas primeiras, as “inilidíveis”, (ou “absolutas”), a inferência legal terá de ser necessariamente extraída, não restando ao Juiz possibilidade alguma de não a atender, ou seja, o “facto presumido” terá de ser aceite e reputado verdadeiro, não se admitindo prova em contrário.
Por sua vez, nas “ilidíveis”, (ou “relativas”), admite-se a “prova do contrário” do facto presumido, permitindo-se assim que a parte para o qual o facto presumido é desfavorável prove que esse facto não é verdadeiro; (como sucede na “presunção de culpa” do devedor em caso de incumprimento da obrigação, relativamente à qual pode o mesmo provar que apesar de ter incumprido, não agiu com culpa).
Neste sentido, as “presunções legais de paternidade”, como meramente “relativas” ou “ilidíveis”, são consideradas “presunções fracas”, visto que se consideram ilididas quando existam “dúvidas sérias” sobre a presumida paternidade, (o que as aproxima das presunções “naturais” ou “judiciais”; sobre a questão, cfr., v.g., J. P. Remédio Marques in, “A Investigação de paternidade – Concubinato duradouro e aplicação no tempo da Lei n.° 21/98, de 12.05. (A nova presunção de paternidade da alínea e) do n.° 1 do art. 1871° do C.C.)”, B.F.D.U.C., Vol. 78, 2002, pág. 533 a 594, e Carlos Lopes do Rego in, “O ónus da prova nas acções de investigação da paternidade”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra, 2004, pág. 781 a 790).
Isto dito e visto, e em face das “razões” pelas Instâncias invocadas (e atrás retratadas) para considerar que, no caso dos autos, se devia concluir “que de acordo com as circunstâncias referidas a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável”, pouco mais se mostra de acrescentar, visto estando pois que acertadamente se considerou ilidida a “presunção de paternidade” aqui em causa, censura não merecendo o decidido.
Todavia, adequado se nos mostra ainda uma derradeira nota.
É que não obstante o art. 335°, n.° 1 do C.C.M. prescrever que “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, e de estatuir também o art. 343°, n.° 1 do mesmo Código que “Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz”, importa não olvidar que sob a epígrafe “Inversão do ónus da prova”, preceitua o n.° 2 do art. 337° do mesmo diploma legal que: “Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações”.
Com efeito, nos termos do art. 8° do C.P.C.M.:
“1. Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as partes cooperar entre si, contribuindo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
2. O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando conhecimento à outra parte dos resultados da diligência.
3. As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 442.º
4. Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo”.
Por sua vez, prescreve, também, o seguinte art. 9° que:
“1. As partes devem agir de acordo com os ditames da boa fé.
2. As partes não devem, designadamente, formular pedidos ilegais, articular factos contrários à verdade, requerer diligências meramente dilatórias e omitir a cooperação preceituada no artigo anterior”.
E, nesta conformidade, atento ao assim preceituado, (em termos de “dever de cooperação” e de “boa fé” das partes em litígio), tem-se como adequado entender que ocorre “frustração da prova” quando, em violação do referido “dever de cooperação intersubjectiva”, a prova não é produzida por falta de colaboração das partes, por exemplo, através da obstrução à constituição de meios de prova, como decerto sucede, no caso de a parte se “recusar injustificadamente a se submeter a uma perícia” destinada a esclarecer um “facto relevante” para apreciação do objecto da causa; (cfr., v.g., Teixeira de Sousa in, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, 1997, pág. 322; Rodrigues Bastos in, “Notas ao C.P.C.”, Vol. III, 3ª ed., 2001, pág. 81; Guilherme de Oliveira in, “A lei e o laboratório”, Temas do Direito da Família, 2ª ed., Coimbra, 2001, pág. 94; Paula Costa e Silva in, “A realização coerciva de testes de ADN em acções de estabelecimento da filiação”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, Vol. II, Coimbra, 2002; Carlos Lopes do Rego in, “Comentários ao C.P.C.”, Vol. I, 2ª ed., 2005, pág. 454; e Lebre de Freitas in, “C.P.C. Anotado”, Vol. II, 2ª ed., 2019, pág. 440).
Realmente, e como se viu, as partes estão vinculadas a um (especial) “dever de cooperação para a justa composição do litígio”, dever de cooperação este que é independente da “distribuição do ónus da prova”, pelo que uma parte até pode ser chamada a colaborar na obtenção de provas relativas a factos que não tenha o ónus de provar, podendo mesmo implicar que a parte constitua, ela mesma, um meio de prova, (tanto em sentido “material”, através v.g., de depoimento prestado sobre os factos, como em sentido “formal”, na medida em que o seu corpo, um seu estado corporal ou qualquer elemento dele integrante, podem ser objecto de exames).
Ora, em face da no caso dos autos dada como provada “injustificada recusa” dos RR. em se submeterem ao “exame de D.N.A.” (para se apurar e certificar da impugnada paternidade), mostra-se-nos que verificada está, (precisamente), a situação do n.° 2 do transcrito art. 337°, e como tal, (e, também, por aí), que (igualmente) nenhuma censura merece o que se decidiu quanto à “presunção de paternidade” do menor, A., pelo Ministério Público representado, nenhuma razão se podendo reconhecer aos RR., ora recorrentes, (quanto ao que alegam constituir um “erro na decisão da matéria de facto” por falta de “contra-prova”).
Aliás, mal se compreende o seu inconformismo em relação ao que pelas Instâncias recorridas decidido foi, quando sabido é que, com o dito “exame”, (que até nem precisa de ser “invasivo”, como sucede com a mera colheita de uma amostra de saliva), podiam – tranquilamente – “assegurar” a “pretensão” pela qual se batem e que nos presentes autos tentam fazer valer, sem (qualquer outro tipo de) incómodos ou inconveniências processuais.
Dest’arte, necessária é a decisão que segue.
Decisão
3. Em face de tudo o que se deixou exposto, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância.
Custas pelos recorrentes com taxa de justiça de 15 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 30 de Outubro de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Song Man Lei
Choi Mou Pan
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