Processo nº 5/2022
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲) e B (乙), propuseram, no Tribunal Judicial de Base, acção ordinária contra a “C”, (“丙”), pedindo a declaração de inexistência de direitos desta (R.) sobre o prédio denominado por “Lote R1”, sito na Taipa, n°s 87 e 95 da Rua Son Keng, devidamente identificado nos autos, requerendo, também, o chamamento para intervir como seus associados, D (丁), E (戊) e F (己), que, como os AA., são herdeiros de G (庚); (cfr., fls. 2 a 7 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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O processo seguiu os seus normais termos e, oportunamente, proferido despacho onde se admitiu a requerida “intervenção dos chamados”, (cfr., fls. 402 a 405), e elaborado que foi o “despacho- saneador”, (cfr., fls. 747 a 777), prosseguiram os autos para a audiência de discussão e julgamento.
A final, proferiu-se sentença absolvendo-se a R. do pedido pelos AA. – em associação com os aludidos intervenientes – deduzido; (cfr., fls. 1741 a 1760).
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Tempestivamente, do assim decidido recorreram os (1ª e 3°) intervenientes D e F, com este “recurso da sentença” do Tribunal Judicial de Base subindo um outro, “interlocutório”, por este último recorrente antes interposto; (cfr., fls. 979 e segs. e 1827 e segs.).
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Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 01.07.2021, (Proc. n.° 118/2021), julgou-se “extinto” o dito “recurso interlocutório”, negando-se provimento ao “recurso da sentença”; (cfr., fls. 2569 a 2621-v).
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Ainda inconformados, do aludido Acórdão do Tribunal de Segunda Instância trazem agora os referidos recorrentes os presentes recursos a este Tribunal de Última Instância; (cfr., fls. 2633 a 2670-v e 2676 a 2745).
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Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre apreciar e decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
2. Como resulta do que se deixou relatado, com o Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância proferido e ora recorrido deu-se solução a dois recursos: ao atrás aludido “recurso interlocutório”, assim como ao “recurso da sentença” do Tribunal Judicial de Base.
Tendo o aludido “recurso interlocutório” como objecto um despacho do Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base com o qual se havia ordenado uma “apresentação de documentos”, (cfr., fls. 945), e assim, havendo, (ainda que em abstracto), que se admitir – como alegado vem – que pode ter “influenciado” o que se decidiu em sede de “matéria de facto provada” na qual assenta a aludida sentença de absolvição da R., adequado se nos apresenta que lhe seja dada preferência.
2.1 Do pelo Tribunal de Segunda Instância decidido em sede do “recuso interlocutório”.
Analisados os autos, e da reflexão que nos foi possível efectuar, cremos que muito não se mostra necessário dizer para se demonstrar que o presente recurso não merece provimento.
De facto, (e como já se referiu), importa não olvidar (e ter presente) que em causa está uma “apresentação de documentos” pelo Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base ordenada, (a pedido da R.), que o destinatário do assim decidido foi, precisamente, a pessoa do ora recorrente, (F), e que – oportunamente, após recurso que de tal decisão interpôs, (cfr., fls. 953) – alegou “nunca os ter tido em seu poder”; (cfr., fls. 955).
Assim, (independentemente do demais), e considerando, (muito) especialmente, o que se deixou dito quanto ao facto de ser o ora recorrente quem (também) alegou não possuir os documentos cuja apresentação (lhe) foi ordenada, (que, desta forma, acabou por não vir a suceder), e que, (agora), vem (o recorrente) insistir na dita nulidade – (meramente) processual – do decidido, mostra-se – tão só – de dizer que não se vislumbra, (e como tal, não se lhe pode reconhecer), qualquer “interesse processual em agir” relativamente à “pretensão” apresentada com o seu recurso, à vista estando a sua solução.
Na verdade, (e como se viu), nem os documentos em questão foram apresentados, nem, tão pouco, de tal “falta” se retirou qualquer consequência ou efeito – seja ele a nível “processual” ou “material”, (ou “jurídico”) – e, nesta conformidade, se daquela “decisão” impugnada, a final, (efectivamente) nada resultou, (especialmente), de sentido desfavorável ao ora recorrente, não se divisa como é que do seu recurso possa o mesmo retirar utilidade alguma.
Não se nega que o Tribunal Judicial de Base chegou a consignar que “… as atitudes do A e F serão consideradas na apreciação global das provas produzidas …”.
Porém, o certo é que, de forma “objectiva”, e em “concreto”, (e, no plano que para aqui interessa, “processual” e “prático-jurídico”), de tal “conduta”, “nada” se retirou, totalmente adequada se nos apresentando assim a consideração no Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância tecida no sentido de que “(…) analisada toda a fundamentação da convicção, não se verifica que a conduta da não apresentação dos documentos foi ponderada efectivamente pelo Tribunal a quo na resposta de algum quesito da Base Instrutória.
Ou seja, não obstante o juiz a quo ter ordenado a apresentação dos documentos por parte do interveniente F e este nunca os apresentou, o certo é que a conduta da não apresentação de documentos nada influenciou, em concreto, na decisão da matéria de facto em desfavor do ora Recorrente”; (cfr., fls. 2601).
Dest’arte, (e esta sendo também a nossa opinião), mais não vale a pena consignar sobre a questão.
Continuemos.
2.2 Passemos, sem mais demoras, para o segmento do Acórdão recorrido que confirmou a sentença absolutória do Tribunal Judicial de Base.
Vejamos.
Dos factos
Para a aludida “decisão absolutória” ponderou o Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base na seguinte “matéria de facto”:
“- Os Autores, intervenientes não contestantes, e interveniente contestante, são, aqueles, filhos de G, falecido em 12 de Junho de 2004, e esta viúva, todos seus únicos herdeiros, tudo conforme doc. 1 junto com a p.i. cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea A) dos factos assentes)
- No inventário CV3-05-0056-CIV foi relacionado como bem integrante da herança de G sob a verba 49, o prédio de natureza urbana denominado por “Lote-R1”, sito na Taipa, na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo, nos n.ºs 87 e 95 da Rua Son Keng e n.ºs 80, 114 e 138 da Rua da Prosperidade, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º22456-I, com a área total de 9.294,20m2, inscrito na matriz predial sob o nº040796, cuja concessão por arrendamento de natureza provisória foi inscrita por apresentação n.º 5 de 10/01/94 em nome do inventariado G, sob o n.º2829 do Livro F13K, e adquirido em comum e sem determinação de parte o direito resultante da concessão por arrendamento em nome dos seus herdeiros por inscrição n.º102269 do Livro G, após apresentação n.º 109 de 02/02/2005, tudo conforme doc. 1 e 2 junto com a p.i. cujos teores aqui se reproduzem para os legais e devidos efeitos. (alínea B) dos factos assentes)
- No âmbito desse inventário, foi adjudicada aos ora AA. a referida verba, após licitação em sede de conferência de interessados, tudo conforme doc. 1 junto com a p.i. cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea C) dos factos assentes)
- Desde 2003, a H., sociedade com sede em Macau, na [Endereço(1)], registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis, sob o n.ºXXX(SO), tem recebido em nome da R. as rendas devidas pelo arrendamento do imóvel supra id.. (alínea D) dos factos assentes)
- Em dois contratos de arrendamento celebrados sobre o imóvel. – nos anos de 2003 e 2005, respectivamente, - figura como senhoria a Ré. (alínea E) dos factos assentes)
- G, em 18 de Novembro de 1988, solicitou junto da DSPECE, a concessão, por arrendamento e com dispensa de hasta pública, de um terreno que a Administração tivesse disponível na Ilha da Taipa, preferentemente na zona do Pac-On, com uma área de cerca de 20.000m2, destinado à edificação de uma fábrica de estacas de betão armado e outros materiais de construção civil. (alínea F) dos factos assentes)
- Por Despacho n.º 31/SATOP/89, publicado no suplemento ao Boletim Oficial n.º 52/89, de 26 de Dezembro, foi concedido, por arrendamento e com dispensa de hasta pública a G, um terreno com a área de 13.853m2, situado na zona de aterros do Pac-On, designado por lote «R», tudo conforme doc. 1 junto com a contestação cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea G) dos factos assentes)
- De tal Despacho n.º 31/SATOP/89 conta que o pedido então formulado pelo G era apresentado em nome de uma sociedade a constituir:
«3. Neste sentido, G, desta vez em nome de uma Sociedade a constituir, solicitou a concessão do referido lote com vista à edificação de três fábricas, tendo juntado para o efeito, o plano de aproveitamento, planto cadastral e o estudo prévio.
[…]
5. Em face dos pareceres favoráveis daqueles Serviços, a DSPECE fixou, em minuta de contrato, as condições a que deveria obedecer a concessão, as quais foram aceites pelo requerente, conforme termo de compromisso por ele firmado em 28/11/89, no qual declara aceitar os termos e condições da minuta a ele anexa e se compromete, ainda, a constituir, até à data da celebração da escritura do contrato de concessão, uma sociedade comercial, com sede em Macau e a fazer-se substituir no processo de concessão, pela Sociedade, a qual outorgará a respectiva escritura pública de concessão, na data e local para o efeito indicados.» (alínea H) dos factos assentes)
- A I é uma sociedade comercial registada na Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o n.º SOXXXX, com sede na [Endereço(2)], em Macau, sendo o seu capital social inicial distribuído do seguinte modo:
1) G, casado com D, no regime da comunhão geral de bens - $80.000,00;
2) F, solteiro, maior - $10.000,00; e
3) A, solteiro, maior - $10.000,00, todos residentes em Macau, na [Endereço(3)], tudo conforme doc. 4 junto com a contestação cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea I) dos factos assentes)
- O então sócio A (A1), ora também A., era gerente da I. (alínea J) dos factos assentes)
- A I foi a companhia que procedeu à construção, na qualidade de empreiteira, da fábrica da Betão implantada no terreno concessionado supra referido. (alínea K) dos factos assentes)
- G, em 05 de Julho de 1990, submeteu à então Direcção dos Serviços de Obras Públicas e Transportes (DSOPT) um projecto de arquitectura, com memória descritiva que dividia o lote «R» em dois: lote «R1» e lote «R2» referindo-se o projecto apenas ao aproveitamento do «R1» (fábrica de estacas de betão). (alínea L) dos factos assentes)
- Em 03 de Novembro de 1990, o referido G apresentou nova versão do projecto de arquitectura referente também e apenas ao lote «R1», que obteve parecer favorável em 11 de Março de 1991, com base no qual o Departamento de Solos da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOP) pediu os documentos necessários ao prosseguimento do processo. (alínea M) dos factos assentes)
- Em 27 de Novembro de 1990, o referido G apresentou um projecto de arquitectura referente ao lote «R2», com alterações ao que estava contratualmente previsto, segundo o qual o concessionário pretendia construir uma unidade de cinco pisos, para indústria não específica, em prejuízo das duas unidades fabris iniciais (luvas e filtros de cigarros). (alínea N) dos factos assentes)
- O início da obra de construção foi autorizado em 17 de Julho de 1991. (alínea O) dos factos assentes)
- Em 20 de Junho de 1992, foi requerida a vistoria. (alínea P) dos factos assentes)
- Por requerimento datado 23 de Junho de 1992, G formalizou o pedido de alteração do contrato, solicitando a prorrogação do prazo para aproveitamento do lote «R2». (alínea Q) dos factos assentes)
- Por Despacho n.º 61/SATOP/93, o Governo de Macau concedeu ao segundo outorgante (G), por arrendamento e com dispensa de hasta pública, um terreno não descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau, situado na Zona de Aterros do Pac-On, constituído pelos lotes «R1» e «R2», na Ilha da Taipa, com a área global de 13.853 (treze mil, oitocentos e cinquenta e três) metros quadrados, assinalado com as letras «B» e «A», na planta n.º 710/89, emitida em 24 de Abril de 1992, pela DSCC, que faz parte integrante do presente contrato, com as áreas de 9.294 (nove mil, duzentos e noventa e quatro) e 4.559 (quatro mil, quinhentos e cinquenta e nove) metros quadrados, tudo conforme doc. 5 junto com a contestação e cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea R) dos factos assentes)
- Em inícios de 1988 G foi incumbido de, na qualidade de consultor e mandatário, auxiliar na aquisição de um terreno para a construção de uma fábrica de betão e cimentos na Taipa, Macau. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- Em cumprimento do referido G solicitou junto da DSPECE, a concessão id. em F. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- Por reunião havida em 15 de Dezembro de 1989, os investidores J, K, G, L, M e N acordaram na constituição e na distribuição de capital de uma sociedade com vista à construção e exploração de uma fábrica de betão em Macau. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- …. e mandataram o referido G como consultor para tomar todos os actos conducentes à obtenção de um terreno para a construção da referida fábrica. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- Depois de realizadas várias negociações foi assinado o escrito de fls. 318 e ss. designado pelos signatários como joint venture agreement em 13 de Março de 1990, entre várias sociedades pelo qual acordaram em desenvolver um projecto comum de construir e explorar um fábrica de cimentos em Macau. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- Tiveram intervenção no escrito de fls. 318 e ss. designado pelos signatários como joint venture agreement as sociedades:
a) J, com sede em [Endereço(4)], Hong Kong, doravante designada abreviadamente por “J”;
b) K1, cuja firma veio a ser alterada para K, com sede em [Endereço(5)], doravante designada abreviadamente por “K;
c) I, com sede no [Endereço(2)], Macau (doravante designada abreviadamente por “I”);
d) O, com sede em [Endereço(6)], Hong Kong, doravante designada abreviadamente por “O”;
e) L, com sede em [Endereço(7)], Hong Kong (doravante designada abreviadamente por “L”). (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Além do mais as partes comprometeram-se no quadro do escrito de fls. 318 e ss. designado pelos signatários como joint venture agreement referido a:
a) Colaborar num projecto para a construção e exploração de uma fábrica de produção e venda betão pré-misturado, de estacas de betão de alta resistência (incluindo tubos metálicos preenchidos com betão) e tubos de betão em Macau;
b) Constituir uma sociedade de responsabilidade limitada em Macau, com o objectivo previsto no referido escrito de fls. 318 e ss. designado pelos signatários como joint venture agreement;
c) Investir M$1.000.000,00 no capital social da sociedade, cuja distribuição deveria corresponder às seguintes percentagens:
Sócios
n.º de Acções de valor unitário de $1
Percentagem
J
380.000
38%
K
270.000
27%
I
150.000
15%
O
100.000
10%
L
100.000
10%
d) Para além do capital social, a sociedade pretendia aumentar os fundos de investimento (no valor de HK$20.000.000,00) correspondente aos custos estimados de construção da fábrica e compra do respectivo terreno com empréstimos iniciais a realizar intervenientes após a assinatura do escrito de fls. 318 e ss. designado pelos signatários como joint venture agreement e cada um deles comprometeu-se a realizar um empréstimo para a sociedade em valor proporcional à sua percentagem no capital;
e) Os referidos empréstimos dos intervenientes no escrito de fls. 318 e ss. designado pelos signatários como joint venture agreement seriam remunerados decorrido o prazo de um ano a partir da data de realização dos referidos empréstimos e seria calculado de acordo com a taxa de depósitos então prevalecentes a 12 meses fixo aplicável pelo Hong Kong e Shanghai Banking Corporation e sem garantia. Os referidos empréstimos não seriam transmissíveis e deveriam ser total ou parcialmente reembolsados pela sociedade logo que possível sujeita a deliberação unânime da Administração e não seriam reembolsados pela sociedade em qualquer caso, o mais tardar até ao término de 7 anos a partir da data aposta no escrito de fls. 318 e ss. designado pelos signatários como joint venture agreement, a menos que houvesse uma deliberação unânime dos administradores da sociedade nesse sentido;
f) O conselho de administração da sociedade seria composto por não mais do que oito Administradores. A J teria o direito de nomear três administradores, um deles seria o presidente do conselho (P). A K teria direito a nomear dois administradores. O resto dos intervenientes teria direito a todo o tempo de nomear administrador. Qualquer administrador nomeado poderia, a qualquer momento, nomear qualquer pessoa como administrador suplente e poderia, a qualquer momento, revogar tal nomeação. O quorum do conselho de administração não poderia ser inferior a seis e um administrador nomeado pela J e K deveriam estar presentes para formar o quórum (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- Do número 14 do escrito de fls. 318 e ss. designado pelos signatários como joint venture agreement resulta que os respectivos intervenientes acordaram que o Sr. G actuaria como consultor responsável pela aquisição do terreno para a construção da fábrica. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
- … pela obtenção da aprovação por parte das de várias autoridades governamentais relacionadas com o registo e licenciamento da empresa, bem como a permissão de planeamento e diversos assuntos relacionados com a construção da fábrica. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- … e em contrapartida a sociedade pagaria os honorários de consultoria havidos por razoáveis, e que fossem considerados adequados por acordo dos respectivos intervenientes. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- O aludido G assinou o escrito de fls. 318 e ss. designado pelos signatários como joint venture agreement com o seu próprio punho. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- A tinha conhecimento específico das obrigações de G. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- O referido L., M. e N. foi concretizado pelo G no âmbito do previsto no escrito de fls. 318 e ss. designado pelos signatários como joint venture agreement. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- Em cumprimento do previsto no escrito de fls. 318 e ss. designado pelos signatários como joint venture agreement, em 11 de Maio de 1991, o P, J, Q em seu próprio nome e em nome de O, K, R em seu próprio nome e em nome de L, G, em seu próprio nome e em nome da I, constituíram a sociedade de Hong Kong and Macau Concrete Products Limited, em Inglês, C, em Português. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- …. tendo concordado em distribuir as participações da sociedade como se segue:
Shareholders
No. of Ordinary Shares of $1 each
Percentagem
P
1.000
0,10%
J
379.000
37,90%
Q
1.000
0,10%
O
99.000
9,90%
S
1.000
0,10%
K
269.000
26,90%
R
1.000
0,10%
L
99.000
9,90%
G
1.000
0,10%
I
149.000
14,90%
(resposta ao quesito 16º da base instrutória)
- G sempre assumiu perante todos os demais intervenientes e investidores que o referido terreno que lhe foi concessionado pertenceria à sociedade, ora Ré. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- Quando confrontado pelos demais sócios da sociedade Ré sobre a razão de o título (concessão) não ter sido passado para o nome da sociedade, na G afirmou que o contrato não poderia ser passado para o nome da sociedade. (resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- …porque se encontrava concedido a título pessoal. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)
- Na reunião do Conselho de Administração de 3 de Maio de 1993, G declarou que não prejudicaria a utilização da concessão por parte da sociedade R. até ao termo do prazo de concessão. (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
- Depois de obtidas as devidas concessões e autorizações a C, custeou os respectivos prémios rendas da concessão supra referida. (resposta ao quesito 22º da base instrutória)
- Foi a Ré quem construiu a referida fábrica e demais edificações existentes no terreno. (resposta ao quesito 23º da base instrutória)
- A Ré celebrou os contratos de arrendamento identificados nos doc.8 e 9 juntos com a contestação e cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (resposta ao quesito 24º da base instrutória)
- …. nunca tendo tido qualquer resistência ou oposição por parte do G. (resposta ao quesito 25º da base instrutória)
- A Ré pagou sempre os prémios de concessão. (resposta ao quesito 27º da base instrutória)
- … e pagou as respectivas rendas ao governo da RAEM, em cumprimento do contrato de concessão. (resposta ao quesito 28º da base instrutória)
- E desde 1991 foi a Ré quem sempre procedeu às obras de construção, de manutenção e reparação do imóvel e que se mostrassem necessárias. (resposta ao quesito 29º da base instrutória)
- … e quem, para além dos referidos atrás, celebrou contratos de arrendamento. (resposta ao quesito 30º da base instrutória)
- A Ré nunca pagou rendas a quem quer que fosse, nem ninguém as exigiu ou reclamou. (resposta ao quesito 31º da base instrutória)
- A construção e equipamento no terreno concessionado de toda a fábrica de betão existente no local e pela Ré custou-lhe, à altura de 1993, cerca de HKD$54.000.000,00. (resposta ao quesito 37º da base instrutória)
- À data da concessão definitiva, ou seja, em 1993, o valor do terreno não era inferior a MOP$8.105.780,00. (resposta ao quesito 38º da base instrutória)
- G foi vítima de sequestro. (resposta ao quesito 39º da base instrutória)”; (cfr., fls. 2593-v a 2599-v).
Do direito
Atenta a transcrita “matéria de facto” – cuja decisão que a deu como provada considerou não padecer de nenhum “vício” que a afectasse, e embora tenha “reparado”, (alterado), ligeiramente, a redacção das respostas aos quesitos 1° e 5°, (cfr., fls. 2615) – entendeu o Tribunal de Segunda Instância que inteiramente correcta estava a decisão do Tribunal Judicial de Base que, pronunciando-se sobre a “acção de simples apreciação negativa” proposta, e “pedido” com ela deduzido – no sentido de declarar a “inexistência de quaisquer direitos da R. relativamente à concessão por arrendamento do prédio” identificado nos autos – julgou aquela improcedente e deste absolveu a R..
Tendo o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância confirmado a decisão de absolvição pelo Tribunal Judicial de Base proferida, e voltando os ora recorrentes a imputar “nulidades” (várias) à decisão agora recorrida, impugnando, também, a apreciação pelo Tribunal de Segunda Instância feita ao recurso da “decisão da matéria de facto”, assacando ainda “erros na aplicação do direito”, vejamos que solução adoptar.
Antes de mais, vale a pena aqui caracterizar a “acção de simples apreciação negativa” proposta no Tribunal Judicial de Base e que deu origem à presente lide recursória.
Pois bem, como “garantia de acesso aos Tribunais” consagra o art. 1°, n.° 2 do C.P.C.M. que:
“A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção”.
Porém, nem todas as situações (de carência jurídica, ou de facto) importam a necessidade de idêntica “acção” ou “providência judiciária”.
Daí é que – referindo-se às “acções” – classificando-as consoante o seu “fim” e sob a epígrafe “Espécies de acções”, preceitua o art. 11° do aludido C.P.C.M. que:
“1. As acções são declarativas ou executivas.
2. As acções declarativas podem ser:
a) De simples apreciação, quando se destinam a obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto;
b) De condenação, quando visam exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito;
c) Constitutivas, quando têm por fim obter a directa constituição, modificação ou extinção de uma situação jurídica.
3. As acções executivas são aquelas em que o autor requer as providências adequadas à reparação efectiva do direito violado”.
Perante estas duas categorias de “acções”, (cfr., n.° 1), considera V. Lima que “O processo declarativo é um "judicium", um juízo: uma sequência de operações de conhecimento destinadas à resolução de um problema.
A composição do litígio faz-se mediante uma declaração do Tribunal que faz caso julgado e se torna obrigatória.
Nas acções executivas visa-se logo a realização do direito, por meio do pagamento coercivo, de entrega de coisa ou pela prestação de um facto”; (in “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., pág. 43).
E, atentas as três subcategorias de acções declarativas, (cfr., art. 11°, n.° 2, al. a, b e c), cumpre, agora, para o caso dos autos, notar que o que justifica uma “acção de simples apreciação”, (ou de declaração) – e que se pode configurar como “positiva” ou “negativa” – é, (genericamente), a necessidade de reagir contra uma situação de “incerteza” acerca da existência, ou inexistência, de um direito, ou de um facto.
Voltando-se aqui a citar o referido autor, considera o mesmo que:
“É o caso de, para tutela do seu direito, o interessado carecer apenas de o tornar insusceptível de discussão, sem necessidade da sua realização imediata contra o obrigado.
Na acção negatória de servidão, que é de simples apreciação negativa, o direito do titular pode não estar a ser violado, mas pode estar a ser posto em dúvida, prejudicando a negociabilidade do prédio, designadamente, quanto ao preço.
Estas ações destinam-se a fazer cessar uma situação de incerteza, de dúvida. Como se diz no n.° 1 do artigo 73.°, nas acções de simples apreciação há interesse processual quando o autor pretenda reagir contra uma situação de incerteza objectiva e grave.
No campo do ónus da prova a qualificação da acção como de apreciação negativa tem relevância, já que nestas acções compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, ao contrário da regra geral segundo a qual àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (artigos 336.°, n.° 1 e 335.°, n.° 1 do CC)”; (in ob. cit., pág. 44).
Na “acção de apreciação negativa”, pretende-se que o Tribunal aprecie essa situação de “incerteza jurídica”, e que, proferindo uma decisão, ponha termo a tal insegurança, (que, alegadamente, prejudica o seu autor, ainda que esse prejuízo se possa não configurar como material ou económico), declarando a “inexistência de um direito, ou de um facto”, sendo que o que lhe subjaz é, como se viu, uma atitude de arrogância extra-judicial por parte do réu (relativamente à titularidade do direito ou à existência do facto).
Enquanto que nos outros tipos de acção, a alegação e prova dos factos constitutivos do direito que se pretende fazer valer em juízo, competem aquele que os invoca, ou seja, ao autor, nas acções de simples apreciação negativa não cabe ao autor alegar e provar – pela negativa – que o direito ou facto não existe, competindo, antes, ao réu que vinha arrogando extra-judicialmente a existência desse direito ou facto, alegar e provar pela, positiva, tal existência, (o que sucede, dado que, reconhecidamente, é muito difícil provar pela negativa a inexistência de um direito ou de um facto), dando-se assim uma “inversão do ónus da prova” – esta inversão do ónus da prova, nas acções em causa, não se mostrava aceite antes do C.C. de 1966; cfr., v.g., Alberto dos Reis in, “C.P.C. Anotado”, Vol. III, pág. 288; M. Andrade in, “Noções”, Vol. I, pág. 192) – autores havendo que entendem que na petição inicial, basta a alegação, e depois a prova, da “arrogância extrajudicial do réu relativamente à existência do direito ou do facto”, de tal modo que se este não lograr esta prova, a acção se deverá ter como procedente; (cfr., v.g., Castro Mendes in, “Direito Processual Civil”, 1980, pág. 282; Anselmo de Castro in, “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. I, 1981, pág. 123; Montalvão Machado e Paulo Pimenta in, “O Novo Processo Civil”, 8ª ed., pág. 39, considerando, outros autores, v.g., Teixeira de Sousa in, “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, 1995, pág. 260 e Remédio Marques in, “A acção Declarativa à Luz do Código Revisto”, 2ª ed., pág. 120 e 121, que ao autor cabe nestas acções a prova do facto impeditivo, modificativo ou extintivo da situação jurídica, na medida em que nelas vigora, como nas restantes acções, o ónus da alegação da causa de pedir).
Na opinião de J. Lebre de Freitas, a acção declarativa de simples apreciação negativa “É uma acção de utilização rara, cuja admissibilidade geral foi durante muito tempo discutida, que reveste manifesta utilidade em certos casos em que se pretende obter o reconhecimento dum direito, mas que tem dado lugar a dificuldades em outros casos em que a sua utilidade é menos nítida”; (in “Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais”, 2ª ed., pág. 24).
Desenvolvendo esse ponto, diz também Castro Mendes que:
“(…) a acção de simples apreciação negativa levanta dificuldades.
Em doutrina, podemos ver esta acção:
- Como uma acção normal, com objecto determinado (inexistência de certo facto ou de certa relação) e causa de pedir, ou seja (cfr. arts. 193.º e 498.º, n.º 4) fundamento possível, igualmente determinado, da relação ou facto negado pelo autor, fundamento esse cuja inexistência ou ineficácia o autor alega e deve provar.
Exemplo: Declare o tribunal que eu, autor não devo x porque certo contrato é nulo por simulação, como provarei.
- Como uma acção peculiar, em que o autor se pode limitar a negar certa relação (possivelmente até determinada em abstracto: nada devo ao réu), não invocando qualquer fundamento – antes empurrando para o réu o ónus de precisar o que impugna nessa negação e o seu fundamento, e prová-lo (“o autor deve-me y, que eu lhe emprestei, como o provarei”).
O Prof. ANSELMO DE CASTRO, já antes do actual Código Civil, parecia inclinar-se para esta segunda construção, dado que praticamente dispensava, nestas acções, a alegação pelo autor duma causa de pedir. Mas nada na lei exceptuava a acção de simples apreciação negativa do regime geral das acções: necessidade de individualização precisa do objecto e causa de pedir, ónus da prova pelo autor.
O art. 343.º, n.º 1, do Código Civil, veio alterar este panorama; e foi acompanhado, no Código de Processo Civil, de disposições especiais para a acção de simples apreciação negativa, arts. 486.º, n.º 4, 502.º, n.º 2, e 504.º.
Diz o art. 343.º, n.º 1, do Código Civil:
“Nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga”.
Esta solução é própria da construção da acção de simples apreciação negativa; mas só se impõe quando o réu previamente se arrogue injustificadamente certo direito, ou seja, o afirma extrajudicialmente em detrimento do autor.
Assim, se certa pessoa andar a afirmar: “Não pago, o contrato é nulo”; “A é meu devedor”; “sou filho de B”, a lei dá assim ao autor a possibilidade de propor uma acção em que constrange essa pessoa a definir, e “in judicio”, a sua posição: eu afirmo genericamente que o contrato não é nulo – venha concretizar por que o julga nulo, e prová-lo; eu afirmo genericamente que nada devo – venha concretizar por que se julga credor, etc… É uma acção do tipo a que os antigos chamavam “provocatio ad agendum” (ou acção de jactância ou de provocação); coloca outra pessoa (mas “sibi imputet”, pela sua “arrogância”) em situação semelhante à do autor, com o ónus e risco de fundamentar o seu direito e prová-lo.
Fora destes casos, se o autor em juízo vem dizer, por exemplo: declare o tribunal que nada devo ao réu, formula uma petição inepta, art. 193.º. Pode é dizer: celebrei contrato com o réu pelo qual aparentemente devo x, mas este contrato foi simulado – declarem que nada devo. Interpretando o art. 343.º, n.º 1, do Código Civil, parece-nos neste caso caber o ónus da prova ao autor”; (in “Direito Processual Civil”, Vol. I, Revisto e Actualizado, pág. 238 a 241).
Daí é que Anselmo de Castro considerava que “A causa de pedir é, portanto, a inexistência do direito”, razão que leva Castro Mendes a concluir “Confunde-se, portanto, com o pedido”, (in “Lições de Processo Civil”, Vol. I, pág. 376, apud João de Castro Mendes in, “Direito Processual Civil”, Vol. I, Revisto e Actualizado, pág. 239, nota 248), notando, igualmente, J. Lebre de Freitas que “o autor há-de indicar os factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer ou negar, ou integrantes do facto cuja existência ou inexistência afirma, os quais constituem a causa de pedir (art. 498-4), que corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido, embora, pela natureza das coisas, essa indicação não tenha, nas acções de simples apreciação negativa da existência dum direito, o mesmo rigor que naquelas em que o autor afirma a existência dum seu direito”, observando, também, que “Cabe ao réu, nestas acções, a prova dos factos constitutivos do seu direito (art. 343-1 CC), bem como a sua alegação (art. 502-2), pelo que, sem prejuízo da dedução, sempre possível, de reconvenção (mediante a formulação do pedido de condenação do autor ou até de pedido de natureza constitutiva), a acção de simples apreciação se mantém, até à contestação, aberta a todos os eventuais factos constitutivos do direito do réu. Assim, ao autor mais não é exigível, ao propor a acção, do que a alegação dos factos, do seu conhecimento, que o réu afirma como constitutivos do seu direito ou, no limite, do que a individualização do direito que o réu se arroga sem dizer o porquê. (…)”; (in “A Acção Declarativa Comum à Luz do Código Revisto”, 2000, pág. 37, nota 15).
Por sua vez, e em sentido contrário, sustenta Miguel Teixeira de Sousa que “Nessa acção, como em qualquer outra, incumbe ao Autor provar os factos invocados como causa de pedir (que, no caso concreto, é constituída pelos factos impeditivos ou extintivos do direito alegado pelo réu ou pelos factos pelos quais o autor retira a inexistência daquele direito); se não conseguir realizar essa prova, a acção é julgada improcedente, ou seja, o tribunal não declara inexistente o direito alegado pelo réu. Mas o réu também pode obter nessa mesma acção, a declaração da existência do direito que se arroga: nessa hipótese, tem de formular o correspondente pedido de apreciação (positiva) desse direito e alegar e provar os respectivos factos constitutivos (art 343º/1 CC). (…) Deve atentar-se que a improcedência do pedido do autor, não implica o reconhecimento de que o direito invocado pelo A (e agora negado) pertence ao réu (…) O réu de uma acção de apreciação - pode assumir uma de duas condutas: ou limitar-se a impugnar os factos alegados pelo autor, caso em que a improcedência da acção apenas define que o autor não provou a inexistência desse direito; ou cumular com essa impugnação, a alegação dos factos constitutivos do direito que se arroga, hipótese em que o tribunal, se considera procedente esta sua alegação, o julga como titular desse direito”; (in “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, 1995, pág. 260).
A este respeito refere também Remédio Marques que: “Assim se o réu quiser afirmar a existência da situação jurídica (que o autor pretende ver negada) e não somente a falta de prova da inexistência dessa situação) deve formular um pedido reconvencional (art 274º/1 CPC): se esse pedido reconvencional for julgado procedente, tendo o réu logrado provar o facto constitutivo da situação jurídica alegada na reconvenção (…) a acção de simples apreciação é julgada improcedente, mas fica estabelecida a existência da situação negada pelo autor, achando-se este impossibilitado de propor uma nova acção com fundamento em outro facto impeditivo, modificativo ou extintivo. Se pelo contrário o autor não conseguir provar o facto impeditivo, modificativo ou extintivo que alega como causa de pedir (…) e o réu também não conseguir provar o facto constitutivo da situação por ele alardeada (…) a acção de simples apreciação negativa deve ser julgada improcedente, à luz do critério previsto no art 516º CPC (…): neste caso o autor não fica impedido de demandar novamente o réu com fundamento em outro facto impeditivo, modificativo ou extintivo da situação negada”, acrescentado mais adiante: “A improcedência destas acções só faz caso julgado material, tornando imodificável o decidido, se e quando o réu deduzir reconvenção e nela pedir que se reconheça a existência (e a validade e eficácia) da situação jurídica que o autor pretende ver negada através da decisão judicial”; (in ob. cit., pág. 120 e 121).
E, numa posição – digamos que – mais mitigada, considera ainda António Abrantes Geraldes que a acção de simples apreciação negativa “é constituída pela alegação da inexistência do direito ou do facto concreto e ainda pelos factos indiciadores do estado de incerteza ou de insegurança que justificam a demanda judicial. (…)
Impõe-se, pois, que o pedido de declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto decorra da sequência da alegação de uma determinada situação de conflitualidade entre ambos os sujeitos ou da alegação de um estado de incerteza objectivamente determinado passível de comprometer o valor ou a negociabilidade da relação jurídica.
Em qualquer das situações não pode colocar-se o tribunal perante um factualismo tão vago ou impreciso que torne impossível proferir uma sentença capaz de definir, em termos claros e com a necessária segurança, qual a realidade que foi objecto de apreciação”; (in “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. I, 2ª ed., pág. 204).
Em nosso (modesto) entendimento, a razão parece estar com a doutrina maioritária, nomeadamente, nos termos em que é considerado por João de Castro Mendes e adoptada por J. Lebre de Freitas, isto é: se estivermos propriamente perante uma “acção de jactância ou provocação”, o A. pode limitar-se a alegar sucintamente o direito que o R. se arroga e defender a sua inexistência sem explicitar o porquê, pois que de acordo com o art. 336°, n.° 1 do C.C.M., ao R. “compete fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”; (sobre a matéria, e em nossa opinião, em sentido convergente, cfr., v.g., a título de referência, os Acs. do S.T.J. de Portugal de 30.01.2003, Proc. n.° 02B3949 e de 19.12.2018, Proc. n.° 742/16).
Assim, também no que toca à decisão proferida nas acções de simples apreciação negativa se apresenta de se reconhecer, acompanhando Manuel de Andrade, que “a improcedência destas acções faz caso julgado (material) no sentido da existência do direito que o Autor pretendia negar; esta solução, que reputámos correcta ainda quando a improcedência da acção não equivalia à prova da existência do direito, não pode suscitar agora qualquer dúvida, pois que a improcedência resulta da prova do direito”; (in “Noções Elementares de Processo Civil”, Reimpressão, pág. 205, nota 1).
Feito este excurso pela figura da “acção de simples apreciação negativa”, avancemos então no exame das “questões” pelos ora recorrentes colocadas.
Pois bem, em sede das ditas “nulidades”, alega a interveniente ora recorrente, D, que com a acção proposta, os AA. pediram – como atrás já se referiu – que ficasse “definitivamente assente a inexistência de quaisquer direitos da Ré relativos à concessão por arrendamento do prédio de natureza urbana denominado por "Lote R1"”; (cfr., pedido a) do p.i., a fls. 6).
Contudo, e em sua opinião, as Instâncias acabaram por decidir pela sua improcedência por via da existência de um “direito de crédito” conforme invocado pela R. na sua contestação e cujo reconhecimento pediu em sede do pedido reconvencional, (que não foi admitido em sede do despacho-saneador; cfr., fls. 748 a 752).
Alega, ainda, que o Tribunal de Segunda Instância procurou resolver esta evidente e insanável “nulidade” da sentença do Tribunal Judicial de Base com base no argumento da “titularidade formal” de G, (de quem os AA. e intervenientes são herdeiros), em contraposição à “titularidade material”, efectuando, assim, uma “alteração da causa de pedir”, e cometendo uma nulidade adicional, de “excesso de pronúncia”, ao considerar que a improcedência da acção de simples apreciação negativa decorre do facto de G ter a titularidade formal do terreno concedido, e a R. a titularidade material do mesmo, o que consubstanciaria uma cisão de um direito que não resulta dos fundamentos da decisão do Tribunal Judicial de Base.
Entende, assim, (a recorrente D), que o Acórdão recorrido é nulo por “contradição entre os fundamentos e a decisão”, por “excesso de pronúncia” e por “omissão de pronúncia”.
Raciocínio (essencialmente) idêntico vem igualmente formulado pelo recorrente F, considerando que as Instâncias decidiram que a R. tinha um direito de crédito em relação aos direitos resultantes da concessão por arrendamento sobre o terreno, quando o que efectivamente estava em causa era uma “acção de simples apreciação” quanto à inexistência de “direitos reais”.
Pois bem, este Tribunal de Última Instância já teve oportunidade de considerar que:
“A oposição entre os fundamentos e a decisão deve ser aferida em termos de examinar a correspondência entre o raciocínio da fundamentação e a conclusão.
É uma contradição real em que “a construção da sentença é viciada, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.
"(…) quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja juridicamente correcta, a nulidade verifica-se"”; (cfr., v.g., o Ac. de 11.05.2005, Proc. n.° 15/2004 e o de 02.03.2022, Proc. n.° 94/2018).
No que toca à nulidade por “excesso de pronúncia”, esta ocorre quando o Tribunal conhece de “questões”, (ou, causas de pedir), que não sendo de conhecimento oficioso, são (antes) da exclusiva disponibilidade das partes que as não invocaram; (cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 18.03.2020, Proc. n.° 129/2019, de 18/11/2020, Proc. n.° 123/2020, de 11.11.2020, Proc. n.° 166/2020, de 27.10.2021, Proc. n.° 119/2021 e de 08.09.2023, Proc. n.° 57/2023).
Por sua vez, considera a doutrina que a sentença padece do vício de “omissão de pronúncia” quando “(…) a sentença não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer, por força do artº 660º, nº 2 [em Macau, o art. 563°, n.° 2 do C.P.C.M.]”; (cfr., v.g., Antunes Varela in, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 690).
E por questões entendem-se “(…) todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes”; (cfr., v.g., A. Varela in, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, Ano 122, pág. 112).
Contudo, cumpre notar que “A obrigatoriedade de o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não significa que o juiz tenha, necessariamente, de apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para fundamentarem a resolução de uma questão”; (cfr., v.g., Viriato de Lima in, ob. cit., pág. 536).
É também esse o entendimento do Tribunal de Última Instância que: “só a omissão de pronúncia sobre questões, e não sobre os fundamentos, considerações ou razões deduzidas pelas partes, que o juiz tem a obrigação de conhecer determina a nulidade da sentença”; (cfr., v.g., entre muitos, os Acs. deste T.U.I. de 04.11.2022, Proc. n.° 79/2022, de 09.11.2022, Proc. n.° 98/2022, de 30.06.2023, Proc. n.° 138/2020, de 14.07.2023, Proc. n.° 137/2020, de 17.04.2024, Proc. n.° 28/2023, de 08.05.2024, Proc. n.° 12/2024-I e de 29.07.2024, Proc. n.° 17/2021).
Porém, e ainda que os recorrentes suscitem as atrás referidas “nulidades” como “questões” que, “ab initio”, imputam ao Acórdão recorrido, e assim, (segundo cremos), com prioridade relativamente às que colocam à apreciação e decisão que o Tribunal de Segunda Instância efectuou e proferiu quanto aos seus “recursos da decisão da matéria de facto do Tribunal Judicial de Base”, cremos que (sem esforço) se mostra de reconhecer que por esta última se deve iniciar a apreciação dos presentes recursos, pois que para além de se dever ter como adequado que o Tribunal não está vinculado à “ordem” em que as “questões” lhe vem colocadas, e em face até do que atrás se deixou exposto a título de “particularidades” da acção em causa nestes autos, apresenta-se-nos (simplesmente) da própria lógica das coisas, pois que de olvidar não é que sem uma correcta – e definitiva – “decisão da matéria de facto”, (totalmente) inviável é uma boa “decisão de direito”…
Nesta conformidade, vejamos, (adequado se mostrando de transcrever os “segmentos decisórios” recorridos e agora em questão).
Pronunciando-se sobre o recurso da interveniente D sobre a “decisão da matéria de facto” do Tribunal Judicial de Base assim considerou o Tribunal de Segunda Instância:
“2.3 Da impugnação da decisão da matéria de facto:
Vem a Recorrente impugnar a decisão da matéria de facto quanto aos quesitos 1º, 3º, 4º e 5º, 6º a 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º a 20º, 22º a 25º, 27º a 31º da Base Instrutória, a saber:
1º.
Em inícios de 1988 G foi incumbido de, na qualidade de consultor e mandatário, auxiliar na aquisição de um terreno para a construção de uma fábrica de betão e cimentos na Taipa, Macau?
3º.
Em cumprimento do referido G solicitou junto da DSPECE, a concessão id. em F?
4º
Por reunião havida em 15 de Dezembro de 1989, os investidores J, K, G, L, M e N acordaram na constituição e na distribuição de capital de uma sociedade com vista à construção e exploração de uma fábrica de betão em Macau?
5º
…. e mandataram o referido G como consultor para tomar todos os actos conducentes à obtenção de um terreno para a construção da referida fábrica?
6º
Depois de realizadas várias negociações foi assinado o escrito de fls. 318 e ss designado pelos signatários como join venture agremente em 13 de Março de 1990, entre várias sociedades pelo qual acordaram em desenvolver um projecto comum de construir e explorar um fábrica de cimentos em Macau?
7º
Tiveram intervenção no escrito de fls. 318 e ss designado pelos signatários como join venture agremente as sociedades;
1) J, com sede em [Endereço(4)], Hong Kong, doravante designada abreviadamente por “J”;
2) K1, cuja firma veio a ser alterada para K, com sede em [Endereço(5)], doravante designada abreviadamente por “K;
3) I, com sede no [Endereço(2)], Macau (doravante designada abreviadamente por “I”);
4) O com sede em [Endereço(6)], Hong Kong, doravante designada abreviadamente por “O”;
5) L, com sede em [Endereço(7)], Hong Kong (doravante designada abreviadaemente por “L”).
8º
Além do mais as partes comprometeram-se no quadro do escrito de fls. 318 e ss designado pelos signatários como join venture agremente referido a:
a) Colaborar num projecto para a construção e exploração de uma fábrica de produção e venda betão pré-misturado, de estacas de betão de alta resistência (incluindo tubos metálicos preenchidos com betão) e tubos de betão em Macau:
b) Constituir uma sociedade de responsabilidade limitada em Macau, com o objecto previsto no referido escrito de fls. 318 e ss designado pelos signatários como join venture agremente.
c) Investir M$1.000.000,00 no capital social da sociedade, cuja distribuição deveria corresponder às seguintes percentagens:
Sócios
n.º de Acções de valor unitário de $1
Percentagem
J
380.000
38%
K
270.000
27%
I
150.000
15%
O
100.000
10%
L
100.000
10%
d) Para além do capital inicial, a sociedade pretendia aumentar os fundos de investimento (no valor de HK$20.000.000,00) correspondendo aos custos estimados de construção da fábrica e compra do respectivo terreno com empréstimos iniciais a realizar intervenientes após a assinatura do escrito de fls. 318 e ss designado pelos signatários como join venture agremente e cada um deles comprometeu-se a realizar um empréstimo para a sociedade em valor proporcional à sua percentagem no capital.
e) Os referidos empréstimos dos intervenientes no escrito de fls. 318 e ss designado pelos signatários como join venture agremente seriam remunerados decorrido o prazo de um ano a partir da data de realização dos referidos empréstimos e seria calculado de acordo com a taxa de depósitos então prevalecentes a 12 meses fixo aplicável pelo Hong Kong e Shanghai Banking Corportion e sem garantia. Os referidos empréstimos não seriam transmissíveis e deveriam ser total ou parcialmente reembolsados pela sociedade joint-venture logo que possível sujeita a deliberação unânime de Administração e não seriam reembolsados pela sociedade joint-venture em qualquer caso, o mais tardar até o término de 7 anos a partir da data aposta no escrito de fls. 318 e ss designado pelos signatários como join venture agremente, a menos que houvesse uma deliberação unânime dos administradores da sociedade nesse sentido.
f) O conselho de administração da sociedade joint-venture seria composto por não mais do que oito Administradores. A J teria o direito de nomear três administradores, um deles seria o presidente do conselho (P). A K teria direito a nomear dois administradores. O resto dos intervenientes teria direito a todo o tempo de nomear um administrador. Qualquer administrador nomeado poderia, a qualquer momento, nomear qualquer pessoa como administrador suplente e poderia, a qualquer momento, revogar tal nomeação. O quorum do conselho de administração não poderia ser inferior a seis e um administrador nomeado pela J e K deveriam estar presentes para formar o quórum?
9º.
Da cláusula 14 do escrito de fls. 318 e ss designado pelos signatários como join venture agremente resulta que os respectivos contratantes acordaram que o Sr. G actuaria como consultor responsável pela aquisição do terreno para a construção da fábrica?
10º.
… pela obtenção da aprovação por parte das de várias autoridades governamentais relacionadas com o registo e licenciamento da empresa, bem como a permissão de planeamento e diversos assuntos relacionados com a construção da fábrica?
11º.
… e em contrapartida a sociedade pagaria os honorários de consultoria havidos por razoáveis, e que fossem considerados adequados por acordo dos respectivos intervenientes?
12º.
O aludido G assinou o escrito de fls. 318 e ss designado pelos signatários como join venture agremente com o seu próprio punho?
13º.
A tinha conhecimento específico das obrigações de G?
14º.
O referido L., M. e N foi concretizado pelo G no âmbito do previsto no escrito de fls. 318 e ss designado pelos signatários como join venture agremente?
15º.
Em cumprimento do previsto no escrito de fls. 318 e ss designado pelos signatários como join venture agremente, em 11 de Maio de 1991, o P, J, Q em seu próprio nome e em nome de O, K, R em seu próprio nome e em nome de L, G, em seu próprio nome e em nome da I, constituíram a sociedade de Hong Kong And Macau Concrete Products Limited, em Inglês, C, em Português?
16º.
…. tendo concordado em distribuir as participações da sociedade como se segue:
Shareholders
No. of Ordinary Shares of $1 each
Percentagem
P
1000
0.10%
J
379,000
37.90%
Q
1000
0.10%
O
99000
9.90%
S
1000
0.10%
K
269000
26.90%
R
1000
0.10%
L
99000
9.90%
G
1000
0.10%
I
149000
14.90%
?
17º.
G sempre assumiu perante todos os demais intervenientes e investidores que o referido terreno que lhe foi concessionado pertenceria à sociedade, ora Ré?
18º.
Quando confrontado pelos demais sócios da sociedade Ré sobre a razão de o título (concessão) não ter sido passado para o nome da sociedade, na G afirmou que o contrato não poderia ser passado para o nome da sociedade?
19º.
…porque se encontrava concedido a título pessoal?
20º.
Na reunião do Conselho de Administração de 3 de Maio de 1993, G declarou que não prejudicaria a utilização da concessão por parte da sociedade R. até ao termo do prazo de concessão?
22º.
Depois de obtidas as devidas concessões e autorizações a C, custeou os respectivos prémios rendas da concessão supra referida?
23º.
Foi a Ré quem construiu a referida fábrica e demais edificações existentes no terreno?
24º.
A Ré celebrou os contratos de arrendamento identificados nos doc.8 e 9 juntos coma contestação e cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos?
25º.
…. nunca tendo tido qualquer resistência ou oposição por parte do G?
27.
A R. pagou sempre os prémios de concessão?
28.
… e pagou as respectivas rendas ao governo da RAEM, em cumprimento do contrato de concessão?
29.
E desde 1991 foi a Ré quem sempre procedeu às obras de construção, de manutenção e reparação do imóvel e que se mostrassem necessárias?
30.
… e quem, para além dos referidos atrás, celebrou contratos de arrendamento?
31.
A Ré nunca pagou rendas a quem quer que fosse, nem ninguém as exigiu ou reclamou?
Para a ora Recorrente, os quesitos 1º, 3º, 4º, 5º, 6º a 12º, 13º a 20º, 22º a 25º, 27º a 31º deveriam ser todos considerados “não provados”, com fundamento na violação da regras legais da força probatória das provas, no erro na apreciação das provas e na insuficiência da prova.
Quid iuris?
Como é sabido, segundo o princípio da livre apreciação das provas previsto nº 1 do artigo 558.º do CPC, “O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
A justificar tal princípio e aquilo que permite a existência do mesmo, temos que o Tribunal a quo beneficia não só do seu prudente juízo e experiência, como da mais-valia de um contacto directo com a prova, nomeadamente, a prova testemunhal, o qual se traduz no princípio da imediação e da oralidade.
Sobre o princípio da imediação ensina o Ilustre Professor Anselmo de Castro (in Direito Processual Civil, I, 175), que “é consequencial dos princípios da verdade material e da livre apreciação da prova, na medida em que uma e outra necessariamente requerem a imediação, ou seja, o contacto directo do tribunal com os intervenientes no processo, a fim de assegurar ao julgador de modo mais perfeito o juízo sobre a veracidade ou falsidade de uma alegação”.
Já Eurico Lopes Cardoso escreve que “os depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar. A mímica e todo o aspecto exterior do depoente influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe.” (in BMJ n.º 80, a fls. 220 e 221)
Por sua vez Alberto dos Reis dizia, que “Prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador seguindo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei. Daí até à afirmação de que o juiz pode decidir como lhe apetecer, passando arbitrariamente por cima das provas produzidas, vai uma distância infinita. (...) A interpretação correcta do texto é, portanto, esta: para resolver a questão posta em cada questão, para proferir decisão sobre cada facto, o tribunal aprecia livremente as provas produzidas, forma sua convicção como resultado de tal apreciação e exprime-a na resposta. Em face deste entendimento, é evidente que, se nenhuma prova se produziu sobre determinado facto, cumpre ao tribunal responder que não está provado, pouco importando que esse facto seja essencial para a procedência da acção” (in Código de Processo Civil anotado, Coimbra Editora IV, pago 570-571.)
A jurisprudência local tem entendido que “(...) nem mesmo as amarras processuais concernentes à prova são constritoras de um campo de acção que é característico de todo o acto de julgar o comportamento alheio: a livre convicção. A convicção do julgador é o farol de uma luz que vem de dentro, do íntimo do homem que aprecia as acções e omissões do outro. Nesse sentido, princípios como os da imediação, da aquisição processual (artº 436º do CPC), do ónus da prova (artº 335º do CC), da dúvida sobre a realidade de um facto (artº 437º do CPC), da plenitude da assistência dos juízes (artº 557º do CPC), da livre apreciação das provas (artº 558º do CPC), conferem lógica e legitimação à convicção. Isto é, se a prova só é "livre" até certo ponto, a partir do momento em que o julgador respeita esse espaço de liberdade sem ultrapassar os limites processuais imanentes, a sindicância ao seu trabalho no tocante à matéria de facto só nos casos restritos no âmbito do artºs. 599º e 629º do CPC pode ser levada a cabo. Só assim se compreende a tarefa do julgador, que, se não pode soltar os demónios da prova livre na acepção estudada, também não pode hipotecar o santuário da sua consciência perante os dados que desfilam à sua frente. Trata-se de fazer um tratamento de dados segundo a sua experiência, o seu sentido de justiça, a sua sensatez, a sua ideia de lógica, etc. É por isso que dois cidadãos que vestem a beca, necessariamente diferentes no seu percurso de vida, perante o mesmo quadro de facto, podem alcançar diferentes convicções acerca do modo como se passaram as coisas. Não há muito afazer quanto a isso.” (Ac. do TSI, de 20/09/2012, Proc. nº 551/2012).
Pois, “A livre convicção do julgador da 1ª instância é soberana e só em caso de erro, que facilmente seja detectável, pode o tribunal do recurso censurar o modo como a apreciação dos factos foi feita. Quando a primeira instância forma a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir nela, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova.
A decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629º do CPC e o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.” (Ac. do TSI, de 17/01/2018, Proc. nº 60/2018”.
Ao nível do direito comparado, o STJ de Portugal sustenta que “A reapreciação da matéria de facto por parte desta Relação tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação” (Ac. do STJ, de 21/01/2003, in www.dgsi.pt).
Com efeito, “não se trata de um segundo julgamento até porque as circunstâncias não são as mesmas, nas respectivas instâncias, não bastando que não se concorde com a decisão dada, antes se exige da parte que pretende usar desta faculdade a demonstração da existência de erro na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos.(...).” (Ac. do RL de 10/08/2009, in www.dgsi.pt.).
Ou seja,
Uma coisa é não agradar o resultado da avaliação que se faz da prova, e outra bem diferente é se detectarem no processo de formação da convicção erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório.
O Tribunal a quo justificou a sua convicção nos seguintes termos:
“...
A convicção do Tribunal baseou-se no depoimento prestado pelo Autor, apreciado na sua globalidade e não se limite à parte confessória, o depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, nos documentos de fls. 8 a 211, 306 a 349, 362 a 373, 488 a 641, 645 a 709, 873 a 936, 1073 a 1275, 1405 a 1429, 1453 a 1635 e 1642 a 1643 dos autos, cujo teor se dá reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permite formar uma síntese quanto à veracidade dos apontados factos.
Na apreciação das provas produzidas, a testemunha T deu conta de que é responsável pelo recebimento das rendas do terreno em causa em favor da Ré, não sabendo nada sobre os factos de concessão de terreno e da relação entre a Ré e H, enquanto a testemunha T, o conhecimento sobre os factos da concessão do terreno é indirecto, apenas ouvir dizer do G. Em comparação, os documentos assumem um papel ponderado na formação da convicção do Tribunal.
Sobre as provas documentais, consignam-se os seguintes:
Tinham sido impugnados pelo Autor os documentos nº6 a 9 juntos com a contestação, por serem meras fotocópias sem atestadas por notário. A falta desse requisito só tem a consequência de não ter a força como pública-forma, nos termos do nº4 do artº381º, nada impede o Tribunal apreciar os mesmos documentos sob a livre apreciação.
A interveniente D impugnou o conteúdo do documento de fls. 340 por não ter sido assinado pelo seu autor. Esse documento, por falta da assinatura, não poderá valer nos termos do nº2 do artº370º do C.C.. No entanto, o mesmo constitui meio de prova a ser apreciado livremente pelo Tribunal.
A questão de inversão de ónus de prova invocada pela Ré, no requerimento de meio de provas, (cfr. fls 816), a Ré requereu ao Autor A, na pessoa do administrador da I, para apresentar todos os documentos relativos à actividade empresarial da Ré, tendo este apresentado os documentos de fls. 872 a 936, alegando que outros documentos estão na posse do outro interveniente F. Notificado este para apresentar os documentos, declarando este que o arquivo da Sociedade I ter sido perdido num incêndio ocorrido em 2000 e que quem era responsável pelos assuntos da empresa era o seu pai G e após o seu falecimento, o U. Insurgiu a Ré que essa conduta do F deverá ter como consequência a inversão do ónus de prova, por requerimento de fls. 968. Os A e F eram e são gerentes da I enquanto o falecido G era o seu gerente-geral. Portanto, após a morte do G, o Autor e o interveniente F são os únicos que administram a Sociedade I, devendo ter conhecimento se a I tem ou não os documentos solicitados pela Ré. Conforme o que foi relevado, eles não negaram que os documentos da Ré estavam na posse da I, o Autor A conseguiu apresentar alguns dos papéis relativos à contabilidade da Ré. Quanto à falta de apresentação dos documentos pelo F, de facto, não foi apresentada prova de que houve incêndio na sede da I em 2000, não há elementos para avaliar se se corresponde à verdade a alegada perda do arquivo dos documentos em causa, mesmo que fosse verdade, os documentos após o ano 2000 também não foram apresentados pelo F. No entanto, os A e F foram solicitados para a apresentação dos documentos na qualidade de administrador de I, portanto, mesmo que considerasse a não apresentação dos documentos injustificada, sendo a I terceira em relação às partes, a ele não deverá ser aplicável o disposto do nº2º do artº442º do C.P.C.. Ademais o F interveio nos autos, com o Autor, B, E e D, em regime de litisconsórcios necessários, não achamos que a conduta de um deles poderá levar a consequência grave de inversão de ónus de prova em desfavor de todos outros. Contudo, as atitudes do A e F serão consideradas pelo Tribunal na apreciação global das provas produzidas.
Assim, perante a não negação de a I ter os documentos da Ré e a falta de apresentação dos mesmos pelos outros litisconsortes, torna-se, objectivamente, impossível para a Ré a exibição dos originais dos documentos para averiguar a sua exactidão, questão que foi arguida pela outra interveniente E quanto aos documentos de fls. 1360 a 1371. As cópias apresentadas pela Ré são as únicas disponíveis e existentes sobre a matéria em discussão. Tomando em conta essas circunstâncias específicas, o Tribunal apreciará essas provas sobre a livre convicção.
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Em particular, relativamente aos factos se o G actuou, quanto à concessão de terreno, por conta e em benefício da Ré ou por conta própria, a convicção resulta da análise dos documentos juntos aos autos, conjugado ainda com as declarações prestadas pelo A. De acordo com o despacho nº܄31/SATOP/89, o requerimento da concessão de terreno destinado à edificação duma fábrica de estacas de betão armado e outros materiais de construção civil foi formulado pelo G, em 3 de Novembro de 1988, em nome duma sociedade a constituir. Ou seja, logo no início do requerimento, o G actuou em representação duma sociedade. Através do despacho publicado em 20 de Dezembro de 1989, foi deferida a concessão do terreno de Pac On Lote “R” para a construção de três fábricas, até esse momento, a intenção de obter a concessão do terreno em representação duma sociedade mantém-se inalterado, tal como se consta expressamente no teor do despacho. Por razões desconhecidas, o tereno de Lote “R” foi, a final, concedido a G, a título individual. O documento de fls. 314 e 315 certifica a acta duma reunião dos sócios realizada em 15 de Dezembro de 1989 com vista à constituição duma sociedade em que faziam parte o G e outros sócios principais da Ré, nele consta:1) a deliberação da constituição duma sociedade destinada à exploração duma fábrica de betão preparado, estacas de cimento e tubos de cimento; 2) que tinha sido formulado o pedido de concessão de terreno para a construção da fábrica: 3) a que incumbe ao G para proceder as formalidades (ponto V). Da conjugação do teor dessa acta e do processamento do requerimento da concessão do terreno, depara-se que, antes da publicação do referido despacho, foi encetado contacto entre o então Governo de Macau e o G quanto à concessão do terreno, sabendo ele, de antemão, o deferimento da concessão do terreno, pois a ele foi informado os termos e condições concretas da concessão, daí que permite deduzir que a reunião de 15/12/1989 foi realizada na sequência de ter tomado conhecimento do deferimento da concessão do terreno com o fim de estabelecer uma sociedade para ser titular do contrato de concessão. Nestes termos, podemos considerar-se como provados os factos dos quesitos 1º, 3º a 5º, no entanto, não se deu por provado o facto do quesito 2º, por não haver provas quaisquer sobre as circunstâncias concretas é que levaram o G formulou o requerimento de concessão de terreno em 1988.
Quanto aos factos relativos ao “joint venture agreement” assinado por cinco sociedades J, K1, I, O e L em 13 de Março de 1990 e ao respectivo conteúdo, nomeadamente, as participações sociais de cada sócio, a finalidade do joint venture, a composição do conselho administrativo, e a convicção do Tribunal resulta-se dos documentos juntos aos autos de fls. 318 a 328 e 341 a 347. Em particular, se esse acordo tem conexão com o acordo de 1989, os dois acordos reportam-se, mais ou menos, ao mesmo objecto- a constituição duma sociedade com o capital inicial de HK$20.000.000,00 para explorar uma fábrica de betão em Macau no terreno e que incumbiu ao G a obter a sua concessão junto das autoridades de Macau. Do conteúdo do acordo de 1989 se vê que esse acordo é muito simples, sem especificação dos direitos e obrigações de cada participante nem como funciona a administração social. O acordo de 1990 foi subscrito apenas por cincos representantes das cinca empresas, alguns com denominações pouco diferentes das constantes do acordo de 1989, mas os subscritores foram quase iguais aos do acordo de 1989, excepto o representante de J, a única empresa que não subscreveu no acordo de 1990 é a M, no entanto, a percentagem da sua participação social foi dividida e distribuída para a J e K. Da comparação dos dois acordos, podemos retirar que o escrito de 1989 é um acordo primordial- seis pessoas individuais reuniram com vista à formar uma empresa para a exploração duma fábrica de betão, através da sociedade detidas por eles, só através do escrito de 1990 é que os contraentes concretizam, com pormenor, o acordo de cooperação. É irrelevante a ligeira diferença das denominações sociais das empresas, pois o que relevam é que quem subscreveram os dois acordos são mesmos ou representam as mesmas pessoas e interesses, pelo que, entendemos que o acordo de 1990 foi subscrito na sequência do escrito de 1989. Assim, deram-se por provados os factos dos quesitos 6º a 12º.
No que respeitante aos factos de a Ré ser constituída na sequência do acordo de 13/03/1990. A empresa mencionada em “joint venture agreement” tem a denominação Macau Concrete Produtcts Ltd”, o que apenas se diverge da denominação social da Ré com a pequena diferença de aditamento da expressão “Hong Kong”, que em inglês se titula por “Hong Kong and Macau Concrete Products Limited”. Conforme o contrato de constituição da sociedade da Ré de fls. 55 a 63, as acções desta são distribuídas de seguinte forma: P- 0.1%, J-37.9%, Q-0.1%, O-26.9%, S-0.1%, K-9.9%, R-0.1%, L-9.9%, G-0.1%, I-14.9%. As cinco accionistas principais da Ré correspondem exactamente às cinco participantes mencionadas no acordo de “joint venture”, com igual percentagem nas participações sociais. O que permite concluir que a constituição da Ré é a concretização do acordado no “joint-venture agreement” de 1990. Assim, deram-se por provados os factos dos quesitos 15º e 16º.
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Em especial, no que tocante aos factos se o G requereu a concessão do terreno de Pac On- Lote R por conta e em benefício da Ré, segundo os dois acordos assinados pelo G em 1989 e 1990, ele era incumbido para diligenciar junto das autoridades de Macau para a obtenção do terreno com vista a concretizar o plano de construção da fábrica de betão. O terreno do lote Ré foi requerido por ele justamente com a finalidade de edificação de uma fábrica de estacas de betão armado. O G apresentou junto das autoridades competentes o projecto da fábrica de betão da Ré (Lote-R1) em Outubro de 1990 (fls. 1515 a 1520). Existe uma coincidência temporal entre os acordos outorgados pelo G e as diligências efectuadas por ele para obter a concessão do terreno.
Segundo os balancetes da Ré relativo aos anos 1999 e de 2000, apresentados pelo próprio Autor (fls. 883 a 936), o valor do terreno foi tido como património da Ré no valor de 11.710.696,67. Na declaração apresentada pela Ré (fls. 1405 s 1415), assinada, pelo menos, pelo G, para efeito de declaração do imposto de rendimentos complementares relativo ao ano 1993, o prémio de concessão de terreno e as rendas de concessões de terreno, assim como do prédio nele construído e dos respectivos equipamentos adquiridos para a fábrica de betão foram integrados no activo imobiliário da Ré. Segundo essa declaração, o prémio e as rendas do terreno foram suportados pela Ré e faziam parte do património deste. Em correspondência, não havia nenhum item sobre as despesas do arrendamento do terreno para a fábrica de betão. Por ser documento apresentado pelo Autor e documento declarado e subscrito pelo G em nome da Ré para efeitos fiscais, não há razão para desconfiar na veracidade dos dados nele registados, por um lado. Por outro lado, segundo o uso e hábito comercial, se o terreno pertencesse, realmente, ao G e o prémio e as rendas da concessão do terreno fosse suportados por ele, não iria colocar o valor do terreno como activo da Ré e de acordo com a regra da experiência comum, não parece provável que um indivíduo mediano deixar uma sociedade que se dedica à actividade comercial a usar gratuitamente o terreno que adquiriu com o fundo avultado, ainda por acima ser comerciante. Esses documentos apontam que o G não considerou o terreno como património próprio, mas património da Ré e que as custas despendidas para obtenção da concessão do terreno foram suportados também por esta.
Conclusão essa é esforçada com o teor dos dois tabelas constantes de fls. 1362 e 1365, onde se constata um pedido enviado em nome de G à H para o reembolso ou o pagamento de algumas despesas relativos ao terreno, adiantadas pela Sociedade I ou G, nomeadamente as rendas do terreno relativo aos anos 2002, 2003 e 2004 e contribuições prediais relativo aos anos 2003 e 2004.
E o documento de fls. 340, titulado por “interoffice memo” da Ré, enviado pelo Autor às accionistas da Ré em 18/05/1993, constatando o sumário do que foi discutido numa reunião social realizada em 3/05/1993, em que a então accionista V reiterou, na reunião, sobre a titularidade do terreno, tenho obtido a resposta afirmativa do G de que o terreno pertencia à Ré, havendo, no entanto, impedimento legal para a transferência da titularidade do seu nome para a sociedade.
Foram juntos aos autos pela Ré os contratos de arrendamento que tem por objecto terreno do Lote R1, respeitante ao período de 2003 e 2004 (fls. 210 e 211) e os recibos das rendas passadas pelas H em representação da Ré no período entre 2003 e 2013, que ascende a valor total de MOP$4.912.000,00. Segundo o depoimento da testemunha da T, essa foi renda de locação da fábrica de betão e não do terreno. Mas, de acordo com os dois contratos juntos aos autos, um deles foi outorgado pelo interveniente F em nome da Ré, consta essencialmente que “o objecto do arrendamento é o terreno situado com o nº87 a 95 na Rua Pak On, com menção específica da finalidade do terreno é para a fábrica dos produtos de betão e de tubo de cimento, não podendo ser da finalidade outra ou comercial, sem qualquer menção da locação da fábrica da betão”. A clareza da letra do contrato não permite ter a interpretação restritiva referida por testemunha de que o contrato tem por objecto somente locação da fábrica. Assim, entendemos provado que foi arrendado é o terreno e não apenas a fábrica e as quantias recebidas pela H em representação da Ré são rendas do terreno e não da fábrica de betão.
É inexplicável a conduta da interveniente D e dos compartes que suportou, por si próprio, toda a renda e contribuições prediais devidas ao terreno, no valor total de MOP$1.692.772,00, deixando, ao longo do tempo, a H /Ré arrendou o terreno sem que exigisse à H o reembolso da proporção das rendas cabida à I, Autor e Interveniente F, no montante total de MOP$1.719.900,00.
Foram juntos pela Interveniente D a escritura pública de facilidades bancárias e hipoteca celebrado pelo G e a interveniente com o Banco da China outorgados em 12 de Agosto de 1997 e os documentos comprovativos de pagamento de amortizações mensais (fls. 492 a 498 e 541 a 641), esses documentos, por si, só comprovam a concessão das facilidades bancárias pelo banco ao G, não comprovam essas facilidades bancárias foram efectivamente utilizadas para a aquisição do terreno, nomeadamente o pagamento do prémio e das rendas. Acresce que, à data da concessão das facilidades bancárias, os prémios fixados nos três despachos já tinham sido liquidados, visto que o último prémio fixado no despacho nº143/SATOP/96 já foi liquidado em 21 de Novembro de 1996, nove meses anteriores à data da concessão (cfr. fls. 1616).
Considerando todas essas provas acima referidas e analisadas, convencemos que o terreno mencionado quer no acordo de 1989 quer no acordo de 1990 é justamente o mesmo terreno adquirido pelo G através da concessão por arrendamento, que o G adquiriu-o no interesse e por conta duma sociedade que passa a ser a Ré e não no interesse e por conta próprio, e que as custas para a concessão do terreno foram suportadas pela Ré. Nestes termos, deram-se por provados os factos dos quesitos 14º, 17º a 20º, 22º a 25º, 27º a 31º.
Conforme os iludidos balancetes e declaração de imposto complementar de rendimentos, foram registados, na altura, o valor do prédio construído no terreno assim como os equipamentos adquiridos para o funcionamento da fábrica de betão, tendo esses sido considerados como património da Ré, o que entendemos ser suficiente para comprovar as custas prováveis da construção e de equipamentos para a fábrica de betão, assim, deu-se por provado o facto do quesito 37º nos termos respondidos.
Como entendemos que foi o G quem se tratou dos assuntos do terreno por conta da Ré e a I tinha na sua posse os documentos, sendo o A, desde o início, vogal do conselho fiscal da Ré, passando a ser accionista da Ré, acompanhado do seu pai e da I, e consta do documento de fls. 340 (memorando da Ré), que esse documento foi dirigida às restantes accionistas em nome do Autor, acreditamos que este tinha intervindo nas reuniões dos sócios da Ré ou pelo menos, tomado conhecimento do seu conteúdo, atento o conteúdo do referido documento, convencemos que o Autor tinha conhecimento das obrigações do seu pai. Assim, deu-se provado o facto do quesito 13º.
De acordo com os despachos nº31/ATOP/89 e nº61/SATOP/93, o prémio para a concessão de terreno já ascende a MOP$8.946.862,00, e segundo o documento de fls. 1576 (certidão dos dados matriciais relativo ao ano 2005), o valor matricial do terreno, na altura, foi fixado em MOP$8.105.780,00, o que permite concluir que à data de 1993, o valor do terreno não poder ser inferior a este último. Assim, deu-se por provada a resposta dada ao quesito 38º.
Resulta do depoimento da testemunha T, deu-se por provada a resposta dada ao quesito 39º e não se deu por provada o facto do quesito 40º.
Apenas os documentos de fls. 1361 s 1362 não são suficientes para provar que todos os custos inerentes ao terreno foram pagos ao G, assim, não se deu por provado o facto do quesito 26º.
Os factos constantes dos quesitos 21º, 32º a 36º e 41º não são considerados como provados por não ter produzido provas relevantes para comprovar a veracidade dessa matéria.
....”.
Vamos agora analisar se assiste razão à ora Recorrente.
Começamos pelos factos provados relativos ao G ter requerido a concessão do terreno como agente de outrem.
Não temos dúvidas de que segundo o Despacho 61/SATOP/93, o terreno em causa foi concedido em nome individual do G.
Portanto, no plano formal, o G é titular dos direitos resultantes da concessão do terreno.
Mas isto não quer dizer que o mesmo é necessariamente também titular dos mesmos direitos no plano substancial, pois ele pode ter agido como um mero agente de outrém.
A apreciação da prova deve ser feita na sua globalidade e não isoladamente.
É de realçar que o despacho 61/SATOP/93 consiste na revisão do contrato da concessão do terreno feita através do despacho 31/SATOP/89, a requerimento do G datado de 23/06/1992.
Portanto, não é uma nova concessão, mas sim uma revisão da concessão anterior.
A primeira concessão foi requerida pelo G a favor duma sociedade a constituir e concedida pelo Despacho 31/SATOP/89.
No âmbito desta concessão, o G:
- Em 05 de Julho de 1990, submeteu à então Direcção dos Serviços de Obras Públicas e Transportes (DSOPT) um projecto de arquitectura, com memória descritiva que dividia o lote «R» em dois: lote «R1» e lote «R2» referindo-se o projecto apenas ao aproveitamento do «R1» (fábrica de estacas de betão). (alínea L) dos factos assentes)
- Em 03 de Novembro de 1990, apresentou nova versão do projecto de arquitectura referente também e apenas ao lote «R1», que obteve parecer favorável em 11 de Março de 1991, com base no qual o Departamento de Solos da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOP) pediu os documentos necessários ao prosseguimento do processo. (alínea M) dos factos assentes)
- Em 27 de Novembro de 1990, apresentou um projecto de arquitectura referente ao lote «R2», com alterações ao que estava contratualmente previsto, segundo o qual o concessionário pretendia construir uma unidade de cinco pisos, para indústria não específica, em prejuízo das duas unidades fabris iniciais (luvas e filtros de cigarros). (alínea N) dos factos assentes)
- Por requerimento datado 23 de Junho de 1992, formalizou o pedido de alteração do contrato, solicitando a prorrogação do prazo para aproveitamento do lote «R2». (alínea Q dos factos assente)
Notamos que o G no requerimento da alteração do contrato da concessão inicial, datado de 23/06/1992, ao solicitar a prorrogação do prazo para aproveitamento do lote «R2», requereu ao mesmo tempo que a concessão fosse feita a favor dele próprio, prescindindo da possibilidade prevista no nº 5 do Despacho nº 31/SATOP/89, ou seja, da sociedade comercial (documento de fls. 1642 e 1643v, ponto nº 5 do requerimento).
E este requerimento foi deferido pela Administração, e, em consequência, o G ficou figurado como concessionário no Despacho nº 61/SATOP/93, pelo qual se procedeu à revisão do contrato da concessão do terreno.
Num primeiro momento, aparenta que o G com o requerimento datado de 23/06/1992, queria gozar os direitos inerentes da concessão por ele próprio individualmente, pois declarou expressamente que “…significa mais uma demonstração de que pretende o uso próprio, para que até prescinde da possibilidade prevista no nº 5 do Despacho nº 31/SATOP/89, ou seja, da sociedade comercial” (documento de fls. 1642 e 1643V, ponto nº 5 do requerimento).
No entanto, a sua conduta posterior não corresponde à sua declaração feita no requerimento acima referido, pois quem está efectivamente a usar e fruir os direitos inerentes à concessão do terreno é a Ré, e não o G.
O G tinha perfeito conhecimento da situação e nunca fez qualquer oposição.
Bem pelo contrário, reconhecia e garantia o uso e fruição por parte da Ré sobre o terreno concedido sem qualquer contrapartida.
Era accionista e administrador da Ré (fls. 48 dos autos). Nessa qualidade, assinou a declaração do imposto de rendimentos complementares da Ré relativo ao ano de 1993 apresentada às Finanças, na qual se encontra registado, no ACTIVO IMOBILIZADO, o prémio pago à concessão do terreno no valor $11.328.050,00 (fls. 1407 dos autos).
Mais ainda, os documentos de fls. 1362 e 1365 evidenciam que o mesmo pediu à H para o reembolso ou o pagamento das rendas resultantes da concessão do terreno por arrendamento.
Pergunta-se então, se o G considerar a si próprio como verdadeiro titular do terreno concedido, por que razão pediu outrem a pagar as rendas resultantes da concessão do terreno? Porque do documento assinado por ele dirigido às Finanças consta que a Ré pagou o prémio da concessão?
Porque deixou a Ré a usar e fruir o terreno sem qualquer contrapartida ao longo de vários anos?
Além disso, o documento de fls. 314, titulado como “Acta da 1ª Assembleia Social” (第一次股東會議紀要), e assinado pelos todos participantes, demonstra inequivocamente que:
- ocorreu-se uma reunião em 15/12/1989, na qual participou o G;
- deliberou-se constituir uma sociedade que tem por objecto principal a produção de betão e cimentos;
- o G detém uma participação social de 15% na sociedade acima referida;
- Já foi requerido junto da Administração (Serviços de Obras Públicas) um terreno de finalidade industrial na zona de Pac On para a construção da fábrica, encarregando o Sr. G para tratar o assunto.
Segundo os elementos existentes nos autos, até à data da reunião supra referida, o G não requereu, para além do terreno referido nos autos, a concessão de um outro terreno para a mesma finalidade na zona de Pac On.
Por fim, o filho do G de nome F ou F, interveniente da parte activa da presente acção, na qualidade de representante da Ré, assinou, em 15/03/2003, um acordo nos termos do qual a parte A (a Ré) concede à parte B (um outra sociedade que também dedica à produção de betão) o gozo do terreno com os nºs 87 a 95 da Rua Pak On (terreno situado no lote “R1”), mediante o pagamento mensal da renda no valor de HK$40.000,00, por um período de 2 anos.
Não ignoramos que o documento autêntico tem força probatória plena (cfr. artº 365º, nº 1 do C.C.) e é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares (cfr. artº 388º, nº 1 do C.C.).
No entanto, não se pode esquecer que a força probatória plena dos documentos autênticos diz respeito apenas a factos praticados pela autoridade, oficial público ou notário respectivo, assim como a factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora. Os juízos pessoais do documento só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador (cfr. artº 365º, nº 1 do C.C.).
No caso em apreço, não se põe em causa que a concessão do terreno foi feita em nome individual do G.
A questão coloca-se em saber se o mesmo, não obstante ter requerido a concessão em nome individual, agiu em nome e no interesse de outrem. Esta matéria fáctica não está abrangida na força probatória plena dos documentos autênticos, por estar fora das percepções da entidade documentadora
Tendo em conta a prova produzida nos autos, especialmente os documentos juntos, temos a mesma convicção do Tribunal a quo, no sentido de que o G agiu em nome e no interesse de outrem no requerimento da concessão do terreno em referência.
Em relação aos demais factos provados e impugnados, após a análise de todos os elementos probatórios existentes nos autos, bem como a fundamentação da formação da convicção, não se detecta algum erro manifesto de julgamento, nem violação de regras e/ou princípios de direito probatório por parte do Tribunal a quo.
Face ao expendido, é de negar provimento o recurso nesta parte.
Não obstante o recurso ser julgado improvido nesta parte, verificamos que as respostas dadas aos quesito 1º e 5º são inapropriadas, por conterem questão jurídica (o G agiu em que qualidade na concessão do terreno constitui uma questão jurídica que deve ser apreciada em sede da aplicação de direito), o que urge a reparação das mesmas na forma seguinte:
Quesito 1º: “Em inícios de 1988 G foi incumbido de auxiliar e diligenciar no sentido de obter a concessão de um terreno para a construção de uma fábrica de betão e cimentos na Taipa, Macau.”
Quesito 5º: “... e incumbiram o referido G para tratar todos os actos conducentes à obtenção de um terreno para a construção da referida fábrica.”
(…)”; (cfr., fls. 2602-v a 2615).
Por sua vez, quanto ao recurso do recorrente F entendeu o Tribunal de Segunda Instância o que segue:
“O Recorrente F vem impugnar a decisão da matéria de facto em relação aos quesitos 1º, 13º, 22º a 25º, 27º, 28º e 31º da Base Instrutória.
No seu entender, todos os quesitos supra referidos deveriam ser considerados como não provados.
O que foi dito no recurso final da D respeitante à a impugnação da decisão da matéria de facto respeitante aos mesmo quesitos também vale para aqui, pelo que, em nome da economia processual, remetemos para os fundamentos supra referidos para negar provimento ao recurso nesta parte.”; (cfr., fls. 2621).
Quid iuris?
Pois bem, relativamente ao “segmento decisório” agora em questão, (e que se deixou transcrito), considera a ora recorrente D que o Tribunal de Segunda Instância errou ao julgar improcedente a impugnação da matéria de facto nos termos em que o fez, imputando desde logo uma “nulidade por omissão de pronúncia”, dado que “não se procedeu a uma análise crítica da prova gravada por aquela indicada”, (conforme é exigido pelo art. 562°, n.° 3 do C.P.C.M., ex vi art. 631°, n.° 2, do mesmo Código), considerando ainda que a lei também não admite que o Tribunal de Segunda Instância efectue uma “fundamentação por simples remissão” para o acórdão do Tribunal Judicial de Base para daí concluir que concorda com o raciocínio explanado naquele aresto.
No mesmo sentido se pronuncia o recorrente F, considerando que tendo impugnado a resposta aos quesitos 1°, 13°, 22° a 25°, 27° e 28° e 31°, não poderia o Tribunal de Segunda Instância ter efectuado uma “fundamentação por remissão” sob pena de violação dos art°s 631.º, n.° 2, e 562°, n.° 3 do C.P.C.M..
Dest’arte, segundo os ora recorrentes, e na parte agora em questão, o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância padece de nulidade por “omissão de pronúncia” nos termos do art. 571°, n.° 1, alínea d), do C.P.C.M., por violação do art. 562°, n.° 3 do mesmo Código.
Ora, tem-se conhecimento, e compreende-se, que a “questão” que nestes termos é trazida à apreciação desta Instância tem merecido soluções várias, dependendo do entendimento que se venha a assumir relativamente ao (âmbito do) “poder/dever do Tribunal de Segunda Instância em sede de recurso da decisão sobre a matéria de facto”.
Tratando do tema, teve já este Tribunal de Última Instância oportunidade de ponderar (nomeadamente) que: “a permissão (geral e legal) da “remissão”, não pode significar o total e indiscriminado afastamento do “dever de fundamentar”, (de forma clara e explícita os motivos de uma decisão judicial, havendo que se expor, ainda que de forma sucinta, o “processo racional” utilizado para se chegar à decisão).
Não se nega que no dito art. 631°, n.° 5 se prescreve que: “Quando o Tribunal de Segunda Instância confirmar inteiramente e sem voto de vencido o julgado em primeira instância, quer quanto à decisão, quer quanto aos respectivos fundamentos, pode o acórdão limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos invocados na decisão impugnada”.
Contudo, o assim preceituado não deve ser entendido como uma (“cláusula” aberta de) “permissão” para a toda (e qualquer) decisão por “remissão”, desde que decidida por “unanimidade”, (sem voto de vencido), pois que o transcrito preceito legal tem de ser, (como nos parece evidente), adequadamente conjugado com o estatuído no n.° 6 do mesmo comando, onde se prescreve que: “Quando a decisão de facto não tenha sido impugnada nem haja lugar a qualquer alteração da matéria de facto, o acórdão limita-se a remeter para os termos da decisão da primeira instância proferida sobre aquela matéria”.
(…)”; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. de 23.07.2021, Proc. n.° 61/2021).
E, precisamente sobre o atrás referido “poder/dever do Tribunal de Segunda Instância”, tivemos também oportunidade de consignar o que segue:
“Como sabido é, sob a epígrafe “Poderes de cognição” estatui o art. 39° da Lei n.° 9/1999, (“Lei de Bases da Organização Judiciária”), que:
“Excepto disposição em contrário das leis de processo, o Tribunal de Segunda Instância, quando julgue em recurso, conhece de matéria de facto e de direito”.
Aliás, doutra forma, nenhum sentido fazia o estatuído nos art°s 599° e 629° do C.P.C.M..
Porém, visto estando que tem o Tribunal de Segunda Instância o referido “poder de cognição”, importa definir – com o rigor e clareza possível – qual a concreta e justa “medida para o seu exercício”.
Ora, (adiantando-se desde já que atenta a natureza da referida “questão”, esta não se apresenta isenta de polémica), útil se mostra de ponderar no debate na doutrina e jurisprudência comparada existente sobre a questão.
Pois bem, apresentando-se-nos (especialmente) valiosas e meritórias as considerações que António Abrantes Geraldes teceu sobre o tema – tendo por referência o Código Português na versão resultante da reforma de 1995/96 – plenamente justificada se nos afigura de sobre as mesmas reflectir, destacando-se a seguinte passagem:
“(…)
Foi, pois, no campo da oralidade pura e, complementarmente, no reforço dos poderes da Relação que o legislador interveio em 1995 com o objectivo de permitir uma efectiva sindicância do julgamento da matéria de facto, assegurando o reclamado segundo grau de jurisdição.
Para o efeito foram recusadas soluções maximalistas no sentido da realização de novo julgamento na segunda instância ou da reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos. Ao invés, a competência da Relação é residual, circunscrevendo-se os seus poderes à reapreciação de concretos meios probatórios relativamente a determinados pontos de facto impugnados, sendo recusada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto.
Continua, porém, o legislador a omitir directrizes mais específicas quanto aos objectivos da impugnação da decisão da matéria de facto e quanto às regras que devem ser observadas pela Relação na apreciação das impugnações, designadamente quando fundadas em prova gravada.
Efectivamente, decorrida mais de uma década sobre a aprovação do novo regime de impugnação da decisão da matéria de facto, para além de se desconhecerem com rigor os resultados que foram alcançados, ainda não foi assumido claramente se a impugnação da decisão da matéria de facto deve ser reservada para a correcção de manifestos erros de apreciação da prova cometidos pelo tribunal de 1.ª instância ou se, ao invés, a Relação que não intermediou a produção da prova oralmente produzida e que não pôde percepcionar todos os aspectos relevantes para a formação da convicção deve, ainda assim, proceder a uma reapreciação autónoma dos meios de prova, corrigindo o erro decisório e reflectindo em nova decisão o resultado da sua convicção, nos termos do art. 655.º. (…)”.
Com efeito, reconhecendo a existência de “limitações” na reapreciação da prova por parte do Tribunal de recurso, (nomeadamente no que à “prova testemunhal” gravada diz respeito), este autor acaba por ser bastante crítico de uma – chamamos – “leitura restritiva” (ou “minimalista”) dos poderes do Tribunal de Recurso em sede de alteração da matéria de facto.
Considera, pois, que:
“A partir de 1995, para além de se assegurar a possibilidade de gravação dos depoimentos com vista à sua futura utilização, atribuiu-se à Relação o poder de proceder à sua reapreciação e conjugação com outros meios de prova. (…)
Conforme o expressámos noutro local, a gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (vídeo) não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Além disso, sem embargo da possibilidade de a Relação proceder à renovação dos meios de prova, nos termos do n.º 3, a mera audição dos registos gravados impede o confronto dos depoentes com pedidos de esclarecimento sobre determinadas afirmações que seriam proporcionados por uma efectiva mediação. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da primeira instância. Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores. (…)
De facto, o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1.ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam com razoável segurança credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização do processo decisório aquando da motivação da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou verbalizar mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos.
Porém, estas circunstâncias e as correspondentes dificuldades não legitimam que se faça tábua rasa das modificações operadas, seguindo um caminho em que, através de juízos meramente abstractos, se esvazie por completo o regime que, depois de sucessivas reivindicações, o legislador acabou por instituir, tendo em vista alcançar uma efectiva reapreciação da decisão da matéria de facto.
Por certo que as circunstâncias anteriormente apontadas e outras que poderiam ser enunciadas terão de ser ponderadas na ocasião em que a Relação proceda à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações na decisão da matéria de facto quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados. Todavia, a constatação das diferentes circunstâncias em que actua um e outro dos tribunais não autoriza que, com base em puras justificações lógico-formais, que não tenham subjacentes sequer a audição dos depoimentos ou uma efectiva e séria reapreciação e valoração dos depoimentos e demais meios de prova, se recuse pura e simplesmente a modificação da decisão.
Acontece que foi precisamente esta uma das correntes jurisprudenciais que surgiu nas Relações, onde em diversos arestos se assumiu sempre que a posição do julgador se centralize nos elementos que se prendem directamente com a imediação da prova testemunhal o tribunal de recurso não tem possibilidade de sindicar tal convicção, excepto se a mesma se mostrar contrária às regras de experiência, da lógica ou dos conhecimentos científicos. Assevera-se ainda, dentro da mesma linha, que na reapreciação das provas em 2.ª instância não se procura uma convicção diferente da formulada em 1.ª instância, nos termos do art. 655.º, mas tão só verificar se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos.
Trata-se de uma tese restritiva relativamente aos poderes conferidos ao tribunal de 2.ª instância que teima em manter-se em alguns acórdãos, apesar da doutrina que em sentido oposto vem sendo assumida pelo STJ, e que não corresponde aos desígnios do legislador.
(…) Na execução desta tarefa de modo algum a Relação pode ser dispensada da reapreciação efectiva dos meios de prova invocados pelo recorrente e pelo recorrido, com o pretexto formal da inexistência das mesmas condições que estiveram presentes na 1.ª instância, sob pena de não se dar seguimento aos objectivos projectados pelo legislador que, ciente da diversidade de circunstâncias, ainda assim admitiu a modificação da decisão da matéria de facto pela Relação. (…)
Assim, desde que não existam motivos para rejeitar o recurso de impugnação oda decisão da matéria de facto, nos termos do art. 685.º-B, a solução que correctamente dá sequência aos objectivos projectados pelo legislador no que concerne ao duplo grau de jurisdição, quando se tenha verificado o registo de meios de prova oralmente produzidos, determina o seguinte:
(…) e) Consequentemente não temos como verdadeira a asserção de que a modificação na decisão da matéria de facto apenas deva operar em casos de erros manifestos de reapreciação. Ao invés, sem embargo dos naturais condicionalismos que rodeiam a tarefa de reapreciação de meios de prova oralmente produzidos, desde que a Relação acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados deve reflectir em nova decisão esse resultado”; (in “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 3ª ed., 2010, pág. 309 a 323).
E, se bem ajuizamos, no mesmo sentido, pode-se também atentar na igualmente muito meritória reflexão que Fernando Amâncio Ferreira faz sobre a mesma matéria, sustentando, (nomeadamente), que:
“(…)
Num quadro destes, à Relação deparam-se os mesmos elementos de prova com que se confrontou a 1.ª instância; daí, poder julgar a questão de facto com a mesma liberdade com que aquela o fez e, se entender que ela errou, quando procedeu à valoração dos meios probatórios, deve alterar a decisão de facto proferida.
Verificando-se a segunda situação, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, levando em conta as alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados (art. 712.º, n.º 2). Tal como na situação anterior, e por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1.ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu. Também aqui a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a da 1.ª instância. (…)”; (in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9ª ed., pág. 226 e 227).
Na jurisprudência comparada, (e tanto quanto nos foi possível apurar), afigura-se-nos que, num momento inicial, verificou-se alguma divergência, com o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, defendendo, em certas situações, uma “posição minimalista”, e noutras, pugnando por uma “maior amplitude” dos poderes de reapreciação da matéria de facto por parte das Relações, apresentando-se-nos de concluir que, (posteriormente, e, recentemente, de forma cada vez mais firme), esta última posição terá acabado por prevalecer, passando a ser a “tese predominante”; (cfr., v.g., os Acs. de 19.10.2004, Proc. n.° 2637/04, in C.J.S.T.J., n.° 179, Ano XII, Tomo III, 2004, pág. 72 a 74; de 14.03.2006, Proc. n.° 49/06, in C.J.S.T.J., n.° 189, Ano XIV, Tomo I, 2006, pág. 130 a 131; de 20.09.2007, Proc. n.° 2411/07, in C.J.S.T.J., n.° 203, Ano XV, Tomo III, 2007, pág. 58 a 60; e de 24.09.2013, Proc. n.° 1965/04, Cadernos de Direito Privado, n.° 44, pág. 29 a 33, com muito interessante anotação de M. Teixeira de Sousa a fls. 33 a 36).
Ora, da reflexão que sobre o tema nos foi possível efectuar, temos como acertado este entendimento.
Com efeito, e com o devido respeito por opinião em sentido diverso, somos de opinião que o Tribunal de Segunda Instância não deve limitar-se a verificar se algum erro – “manifesto” – no procedimento probatório inquina a convicção do Juiz da 1ª Instância, devendo, antes, analisar e reflectir sobre (todo) o “processo” que levou àquela “convicção” que vem impugnada, e, em face do que alegado vem, formar uma “nova convicção” sobre as provas produzidas na 1ª Instância.
Isto é, em vez de se limitar a controlar (tão só) a “legalidade” (formal) da produção da prova realizada na Instância a quo – ou seja, se a decisão foi proferida com a invocação do “princípio da livre apreciação da prova”, (abstractamente) violadas não estando qualquer regra sobre a prova tarifada ou legal – deve ponderar e (acabar por) formar uma “convicção própria”, (sua), fruto de uma efectiva análise do mérito da apreciação efectuada e cujo “controlo” lhe é pedido.
Na verdade, a chamada “2ª Instância em matéria de facto”, para ser efectiva, implica – ou melhor, impõe – uma (também efectiva) “reapreciação das provas”, assente numa “(re)análise crítica” da prova em que se fundamenta a decisão (ou a parte da decisão) de facto impugnada assim como da “prova” pelo recorrente indicada para a contrariar ou alterar, com a formação de uma “convicção (nova e) própria”, não bastando pois uma mera apreciação (abstracta) do julgamento efectuado.
Poder-se-á dizer que com o que se deixou considerado se estará a pugnar ou sugerir por um “2° – ou novo – julgamento” da matéria de facto pelo Tribunal de recurso.
Compreende-se – e respeita-se – este ponto de vista.
Porém, a “reapreciação da prova” e a “nova – ou própria – convicção” em 2ª Instância não constitui, nem significa, um “2° julgamento”.
Para já, tem tão só como “objecto” a “matéria de facto impugnada”, e ainda que, por hipótese, seja “toda” a decisão da matéria de facto, a (re)ponderação também tem como ponto de partida os “concretos meios probatórios” indicados pelo recorrente.
A não se entender assim, e como atrás se disse, facilmente se faz da “previsão legal” em questão mera “letra morta”, bastando para o efeito avançar-se com considerações abstractas e genéricas, sem qualquer densidade, individualidade, ou concreta referência ao caso em questão, comprometendo-se a verdade (e a justiça) material com um (mero) duplo grau de jurisdição em matéria de facto (meramente) formal, o que, com todo o respeito por diversa opinião, não se mostra de ter como adequado.
(…)”; (cfr., v.g., os Acs. de 19.10.2022, Proc. n.° 189/2020 e de 25.04.2024, Proc. n.° 68/2023).
Aqui chegados, ponderando a “decisão recorrida” – na parte – agora em questão, e em face do que se deixou exposto quanto ao “poder/dever do Tribunal de Segunda Instância em sede de recurso da decisão sobre a matéria de facto”, eis o que se nos afigura de decidir.
Antes de mais, cabe dizer que não é, (no mínimo), rigoroso, afirmar que o Tribunal de Segunda Instância se limitou a uma “fundamentação por remissão” para o Acórdão do Tribunal Judicial de Base.
Com efeito, ao longo de toda a sua fundamentação, bastante completa (e clara) está a indicação dos “elementos probatórios” assim como a análise efectuada que permitiram considerar correctas as respostas dadas aos quesitos 1°, 3°, 4° e 5°, 6° a 17°, 22°, 24°, 25°, 27° e 28° da base instrutória, (isto sem prejuízo da “alteração efectuada à redacção das respostas aos quesitos 1° e 5°” e que atrás já se deixou referência).
Porém, e ainda que tal entendimento se nos mostre como o adequado para a fundamentação da manutenção da resposta aos quesitos acima identificados, o mesmo, (infelizmente), não sucede relativamente à sua totalidade, até porque o próprio Tribunal de Segunda Instância afirma no Acórdão agora recorrido que “Em relação aos demais factos provados e impugnados, após a análise de todos os elementos probatórios existentes nos autos, bem como a fundamentação da formação da convicção, não se detecta algum erro manifesto de julgamento, nem violação de regras e/ou princípios de direito probatório por parte do Tribunal a quo”, (cfr., fls. 2614-v a 2615), impondo-se, assim, considerar que, nesta parte, padece o Acórdão recorrido de “omissão de pronúncia” relativamente à impugnação pelos recorrentes efectuada às “respostas que recaíram sobre os quesitos 18°, 19°, 20°, 23°, 29°, 30° e 31°”, pois que, (como se viu), não resulta da fundamentação e exame das provas levado a cabo pelo Tribunal de Segunda Instância quais os “elementos probatórios” que foram relevantes para a formação da sua convicção e decisão.
Dest’arte, e certo sendo que com a solução a que atrás se chegou imperativo é considerar-se que prejudicada fica a apreciação de qualquer outra questão, resta pois decidir pela parcial procedência do presente recurso, devendo os autos voltar ao Tribunal de Segunda Instância para se suprir o apontado vício, proferindo-se nova decisão em conformidade.
Decisão
3. Em face de tudo o que se deixou exposto, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao presente recurso, devolvendo-se os autos ao Tribunal de Segunda Instância para os exactos termos consignados.
Custas pelos recorrentes e recorrida na devida proporção, com taxa de justiça que se fixa em 10 UCs e 8 UCs respectivamente.
Registe e notifique.
Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.S.I. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 03 de Outubro de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Song Man Lei
Choi Mou Pan
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