Processo nº 127/2024
(Autos de recurso jurisdicional)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em 29.07.2024 proferiu este Tribunal de Última Instância o veredicto que se passa a transcrever:
“Relatório
Por expedientes (autónomos) no dia 16.05.2024 apresentados no Tribunal de Segunda Instância, pediram, A (甲) e B (乙), respectivamente, mãe e filha com os restantes elementos de identificação, a “suspensão de eficácia” de actos administrativos que identificaram nas suas petições que, após registadas e distribuídas, vieram a ser autuadas como “Autos de Suspensão de Eficácia” n°s 346/2024 e 347/2024, onde, por Acórdãos do mesmo Tribunal de Segunda Instância de 30.05.2024 se decidiu indeferir as aludidas pretensões; (cfr., fls. 262 a 265-v e 286 a 290 respectivamente que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Inconformadas com o decidido, as ditas requerentes recorreram para esta Instância, vindo os seus recursos a ser autuados como Autos de Recurso de Decisão Jurisdicional em Matéria Administrativa n°s 82/2024 e 83/2024, e, considerando-se que verificados estavam os pressupostos do art. 84° do C.P.A.C., por despacho de 11.07.2024, procedeu-se à sua “apensação”, (do assim decidido notificando-se todos os intervenientes processuais; cfr., fls. 304 e segs. dos presentes autos).
*
Observada que se nos apresenta estar a tramitação processual legalmente prevista com o douto Parecer do Ministério Público, (cfr., fls. 314 a 316), e, nada parecendo obstar, urge decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal de Segunda Instância foi considerada como relevante e provada seguinte a matéria de facto:
- em sede do Proc. n.° 346/2024, (referente à recorrente A, e nesta Instância registado como Proc. 82/2024):
“1. Em 4 de Março de 2009, à requerente A (甲) e sua filha B (乙) foi concedida autorização de residência com fundamento em reagrupamento familiar com o seu cônjuge C (丙).
2. A requerente foi condenada, no processo n.º CR4-22-0255-PCC, pela prática de um crime de falsificação de documento, por ter obtido a autorização de residência em Macau através de contracção de casamento fictício, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos. A respectiva sentença transitou em julgado em 6 de Julho de 2023.
3. Em 14 de Setembro de 2023, a requerente apresentou à entidade requerida um pedido no sentido de não ser revogada, por razões humanitárias, a autorização de residência que lhe fora concedida.
4. A requerente reside na [Endereço(1)] da Cidade de Zhuhai da Província de Guangdong (廣東省珠海市[地址(1)]).
5. Em 9 de Fevereiro de 2024, o Secretário para a Segurança de Macau declarou inválida a autorização de residência concedida à requerente”;
- em sede do Proc. n.° 347/2024, (referente à recorrente B, e nesta Instância registado como Proc. 83/2024):
“A requerente nasceu em 11 de Maio de 1989 em Xinhui da Província de Guangdong.
Em 4 de Março de 2009, a requerente foi a Macau com a sua mãe, A, para se reagrupar com o seu padrasto, C, e obteve a autorização de residência.
A mãe da requerente, A, foi condenada, no processo n.º CR4-22-0255-PCC, pela prática de crime de falsificação de documento, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos. A respectiva decisão transitou em julgado em 6 de Julho de 2023.
Em 14 de Setembro de 2023, a requerente apresentou um pedido à entidade requerida solicitando a não revogação, por razões humanitárias, da sua autorização de residência.
A requerente reside actualmente na [Endereço(2)] da Cidade de Zhongshan da Província de Guangdong (廣東省中山市[地址(2)]).
Em 9 de Fevereiro de 2024, a autorização de residência da requerente foi declarada inválida pela entidade requerida.
O marido e o filho da requerente vivem, trabalham e estudam actualmente em Macau”; (cfr., fls. 264 a 264-v e 286 a 286-v respectivamente).
Do direito
3. Como resulta do que se deixou relatado, trazem as já referidas A e B os presentes recursos que tem como objecto os Acórdãos pelo Tribunal de Segunda Instância proferidos nos Procs. n°s 346/2024 e 347/2024 onde se decidiu indeferir os pedidos de suspensão de eficácia que aí apresentaram.
E, antes de mais, uma nota se apresenta de fazer desde já.
Como – bem – se observou nos doutos Pareceres do Exmo. Magistrado do Ministério Público juntos aos autos aquando da sua pendência no Tribunal de Segunda Instância – com os n°s 346/2024 e 347/2024 – não obstante terem as então requerentes pedido a suspensão de eficácia de “várias decisões”, “os dados constantes destes autos e do P.A. demonstram, com clareza e toda a certeza, que o Exmo. Sr. Secretário para a Segurança decretou apenas um despacho na Proposta n.º200230/SRDARPA/2023P (doc. de fls.32 a 33 dos autos), cujo texto integral é de «Concordo, proceda-se conforme proposto»”; (cfr., fls. 246 a 248 e 270 a 272 respectivamente).
Certo sendo que foi tal entendimento integralmente acolhido pelo Tribunal de Segunda Instância nos seus Acórdãos objecto dos recursos a este Tribunal de Última Instância trazidos, e dúvidas também não havendo que sobre o assim considerado e decidido nada dizem as ora recorrentes, mostra-se de ter como (definitivamente) clarificado este aspecto, (sobre o “acto administrativo” cuja suspensão de eficácia pretendem as ora recorrentes); (valendo aqui a pena recordar o teor da aludida “informação” na qual foi o mesmo “despacho” exarado:
“ Governo da Região Administrativa Especial de Macau
CORPO DE POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
Parecer:
- Concordo com o parecer e a proposta do Chefe substituto do Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência;
- À consideração do Secretário para a Segurança.
Comandante do CPSP
Ass. vide o original
25.Jan.2024
1. Foi concedida pelo CPSP em 23 de Fevereiro de 2009 (sic.) a autorização de residência a A (que agora tem 64 anos), interessado, e sua filha B (que agora tem 34 anos), titulares do Salvo-Conduto de “Ida”, com fundamento em reagrupamento familiar com o cônjuge/padrasto C; elas são titulares do BIR permanente de Macau.
2. De acordo com a sentença n.º CR4-22-0255-PCC do TJB, o interessado contraiu casamento falso com C no Interior da China e, aproveitando a identidade de residente de Macau deste, obteve o registo e a certidão de casamento que não estavam conformes à realidade, por conseguinte, enganou as autoridades do Interior da China e de Macau com essa certidão e apresentou-lhes os pedidos de reagrupamento e de fixação de residência em Macau com fundamento em reagrupamento casal e relação entre o padrasto e a filha, a fim de obter para si e a sua filha os documentos legais necessários para residirem e permanecerem em Macau, a sua conduta prejudicou a fé pública deste tipo de documentos comprovativos, lesou os interesses da RAEM e do terceiro, no fim, conseguiu adquirir para A e B o direito à residência e o BIRM; em 16 de Junho de 2023, o TJB condenou o interessado A e C pela prática dum crime de falsificação de documentos respectivamente em pena de prisão de 2 anos e 3 meses, cuja execução ficou suspensa por 2 anos, a sentença foi transitada em julgado em 6 de Julho de 2023 (doc. 47-60).
3. A autorização de residência de A foi concedida com base na certidão de casamento, que não estava conforme à realidade, a conduta criminosa envolvida serviu de factor essencial para a concessão da autorização, o TJB também proferiu a sentença condenatória sobre a conduta criminosa, pelo que, o nosso Departamento instaurou o procedimento da audiência escrita nos termos da lei, pretendendo declarar nula a autorização de residência concedida ao interessado e sua filha, e enviou-lhes a notificação da audiência escrita.
4. Em 14 de Setembro e 18 de Setembro de 2023, o CPSP recebeu as alegações escritas e respectivos documentos entregues pelo advogado do interessado e sua filha, o teor centra-se no sentido de que elas vivem em Macau há muito tempo e esperam que possam manter a sua autorização de residência por motivo humanitário; o advogado também entregou os depoimentos escritos das testemunhas sobre a residência habitual e a situação familiar do interessado e sua filha em Macau.
5. Após analisados os documentos entregues na fase da audiência pelo interessado e sua filha, afigura-se insuficiente a fundamentação; além disso, ponderando que: 1. A relação matrimonial entre o interessado A e C foi o elemento principal considerado no acto administrativo de concessão da autorização de residência, ou seja, o pressuposto e requisito, foi impossível conceder a autorização se não houvesse essa relação; 2. A relação matrimonial entre A e C foi falsa, o acto administrativo de concessão da autorização de residência, em que se envolveu a conduta criminosa do interessado, padeceu do vício do erro; 3. A única razão pela qual B adquiriu a sua autorização de residência foi a relação matrimonial entre a mãe A e C, igualmente, o acto de concessão da autorização foi afectado pela referida conduta criminosa; pelo que, propõe-se declarar nula a autorização de residência do interessado A e sua filha B, ao abrigo do art.º 122.º n.º 2 alínea c) do CPA.
À consideração do Comandante.
17/Jan/2024
Chefe substituto do Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência
Ass. vide o original
D, subintendente
Despacho:
Concordo, proceda-se conforme proposto.
O Secretário para a Segurança
Ass. vide o original
Wong Sio Chak
09/02/2024
”; cfr., fls. 32 a 33 e 42-v a 43, respectivamente).
Aqui chegados, vejamos então se tem as recorrentes razão quanto à pretensão que apresentam.
Batem-se as mesmas recorrentes pela revogação dos Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância com os quais se decidiu indeferir os seus pedidos de suspensão de eficácia do acto administrativo que declarou nulas as suas autorizações de residência em Macau.
Como sabido é, o “acto administrativo” pode ser definido como “a conduta voluntária de um órgão da Administração no exercício de um poder público que para prossecução de interesses a seu cargo, pondo termo a um processo gracioso ou dando resolução final a uma petição, defina, com força obrigatória e coerciva, situações jurídicas num caso concreto”, (cfr., art. 110° do C.P.A.), e, como tal, (e nos termos do art. 117° do mesmo C.P.A.), “goza da presunção de legalidade, o que envolve a sua imediata obrigatoriedade e a executoriedade dos imperativos nele contidos”; (sobre o tema, cfr., v.g., M. Caetano in, “Manual de Direito Administrativo”, Vol. I, pág. 463 e segs.).
De facto, como regra geral, a interposição de recurso (contencioso) de um acto administrativo visando a declaração da sua invalidade não tem “efeito suspensivo”.
Tal ausência de efeito suspensivo – como afirma Santos Botelho, no seu “Contencioso Administrativo”, 3ª ed., pág. 446 – “prende-se e encontra a sua justificação na necessidade que, de uma maneira geral, a Administração tem de evitar que a celeridade que com carácter normal deve presidir à actividade administrativa venha a ser entravada por um uso formalista (e reprovável) das garantias contenciosas.
Todavia, impõe-se reconhecer que situações existem em que a imediata execução do acto pode produzir efeitos tais que se torne impossível, mais tarde, quando verificada a sua nulidade ou causa da sua anulação, faze-los desaparecer.
Precisamente para obviar tais situações, admitiu o legislador a possibilidade de o particular se socorrer do meio processual de “suspensão de eficácia do acto”, procurando obviar a que a administração execute o respectivo acto administrativo, desencadeando os seus efeitos jurídicos e materiais de modo a criar ao particular, situações tornadas “irremediáveis” ou “dificilmente reparáveis”.
O “pedido de suspensão de eficácia” apresenta-se assim como que ligado à necessidade de acautelar, ainda que provisoriamente, a integridade dos bens ou a situação jurídica litigiosa, garantindo, correspondentemente, a execução real e efectiva da decisão (e utilidade) do recurso.
Tem, assim, como meio processual acessório de natureza cautelar, o objectivo de evitar os inconvenientes do “periculum in mora” decorrentes do funcionamento do sistema judicial; (neste sentido, vd., Vieira de Andrade in, “A Justiça Administrativa”, 2ª ed. pág. 167 e F. do Amaral in, “Direito Administrativo”, Vol. IV, pág. 302).
É assim a “suspensão da eficácia de actos administrativos” – matéria regulada nos art°s 120 e segs. do C.P.A.C. – uma “providência cautelar” que visa impedir que, durante a pendência de um recurso contencioso (ou acção), ocorram prejuízos ou que a situação de facto se altere de modo a que a decisão que se vier a proferir, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela, tornando-se numa decisão (puramente) “platónica”.
Assim, sem mais demoras, importa apreciar se verificados estão os “requisitos” para a concessão da requerida “suspensão de eficácia” do acto administrativo atrás identificado.
Antes de mais, mostra-se de atentar que nos termos do art. 120° do C.P.A.C.:
“A eficácia de actos administrativos pode ser suspensa quando os actos:
a) Tenham conteúdo positivo;
b) Tendo conteúdo negativo, apresentem uma vertente positiva e a suspensão seja circunscrita a esta vertente”.
E, assim, só os actos positivos ou negativos com vertente positiva é que são passíveis de suspensão da sua eficácia; (cfr. art. 120° do C.P.A.C.).
É de considerar “acto negativo” o indeferimento de uma pretensão constitutiva, pois que o mesmo é “neutro” do ponto de vista dos seus efeitos, uma vez que tudo permanece na mesma, deixando intocada a esfera jurídica do interessado.
E como – bem – observa José Cândido de Pinho:
“«Acto administrativo de conteúdo positivo» é todo aquele que altera a ordem jurídica existente no momento em que é praticado. Introduz modificações na ordem jurídica e nas posições jurídicas substantivas dos interessados em relação ao que antes dele (acto objecto do pedido) acontecia. São exemplos disso, os actos de nomeação de um funcionário, os actos de demissão, ou os actos de autorização.
Portanto, e ao contrário do que sugere o adjectivo «positivos», para este efeito não se refere o legislador apenas aos actos favoráveis, àqueles que se reflectem positivamente na esfera de direitos e interesses dos interessados.
O vocábulo «positivos» tem aqui um sentido mais vasto, de modo a cobrir qualquer invasão daquela esfera, tanto favorável, como negativamente. Quer dizer, também os actos desfavoráveis ao requerente são considerados actos positivos na acepção que aqui está em causa, na medida em que alteram um “status” anterior. Portanto, desde que haja um corte total ou parcial com o passado, alterando-o, desde que o acto seja total ou parcialmente ablativo relativamente a uma situação anteriormente existente, desde que haja uma perda ou diminuição da posição jurídica substantiva do interessado requerente, estaremos também perante um acto positivo como condição de acesso ao uso do meio de suspensão de eficácia. Exemplo disso é o acto que determina a cassação de uma licença ou impõe a cessação de uma actividade”; (in “Notas e Comentários ao C.P.A.C.”, Vol. II, pág. 190 e segs.).
Nesta conformidade, atenta a “decisão em questão”, cremos pois que inegável se apresenta a sua vertente “positiva” (ou “efeito positivo”), já que dela decorre uma “alteração” da prévia situação jurídica das ora recorrentes, sendo assim o mesmo – e, por ora, em abstracto – passível de suspensão da sua eficácia.
Nos termos do art. 121° do C.P.A.C.:
“1. A suspensão de eficácia dos actos administrativos, que pode ser pedida por quem tenha legitimidade para deles interpor recurso contencioso, é concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos:
a) A execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso;
b) A suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto; e
c) Do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso.
2. Quando o acto tenha sido declarado nulo ou juridicamente inexistente, por sentença ou acórdão pendentes de recurso jurisdicional, a suspensão de eficácia depende apenas da verificação do requisito previsto na alínea a) do número anterior.
3. Não é exigível a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 para que seja concedida a suspensão de eficácia de acto com a natureza de sanção disciplinar.
4. Ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito previsto na alínea b) do n.º 1, a suspensão de eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente.
5. Verificados os requisitos previstos no n.º 1 ou na hipótese prevista no número anterior, a suspensão não é, contudo, concedida quando os contra-interessados façam prova de que dela lhes resulta prejuízo de mais difícil reparação do que o que resulta para o requerente da execução do acto”.
Atenta a redacção do preceito em causa, tem-se vindo a entender que os requisitos enumerados nas “alíneas a), b) e c)” são de verificação “cumulativa”; (cfr., v.g., entre outros, os Acs. deste T.U.I. de 16.05.2018, Procs. n°s 21/2018 e 38/2018, de 04.10.2019, Proc. n.° 90/2019, de 26.02.2020, Proc. n.° 136/2019, de 13.01.2021, Proc. n.° 212/2020, e as Decisões Sumárias de 26.04.2021, Proc. n.° 49/2021 de 19.04.2022, Proc. n.° 41/2022, de 07.06.2022, Proc. n.° 70/2022 e de 09.07.2024, Proc. n.° 74/2024/A).
No caso dos presentes autos, entendeu o Tribunal de Segunda Instância que verificados não estavam os necessários “previsíveis prejuízos de difícil reparação” para as ora recorrentes em resultado da (imediata) execução do “acto administrativo” em questão.
E, nesta conformidade – considerando não verificado o requisito (atrás) enunciado na al. a) do n.° 1 do art. 121° do C.P.A.C. – indeferiu os seus pedidos de suspensão de eficácia que deduziram.
Sem embargo do muito respeito devido, cremos que não se pode manter o assim decidido.
Vejamos.
Antes de mais, e sobre a matéria que agora nos ocupa, vale a pena recordar o seguinte excerto do comentário por Cândido de Pinho efectuado ao referido “pressuposto”:
“8 – (…)
Com o advérbio- previsivelmente, está o legislador a alertar que o interessado invoque e prove uma situação de facto de onde se extraia com muita probabilidade a ocorrência dos danos. Quer isto dizer, que o requisito em apreço não se basta com uma alegação vaga, superficial, mais ou menos conclusiva dos danos. Também não é suficiente invocar ou reproduzir as palavras da lei. É preciso expor e especificar muito bem a situação factual concreta, de modo a que fique bem claro que, sem a suspensão, a esfera jurídica do interessado ou dos que ele defende, ficará muito provavelmente lesada. É que, neste capítulo, a alínea demonstra perfeitamente que não estamos perante um quadro de presunção “iuris tantum” acerca da existência do prejuízo.
Depois, é preciso ainda que os efeitos danosos sejam de tal modo severos que se tomem de difícil reparação. É evidente que este é um conceito indeterminado. Mas até por assim ser, mais cuidado deve o requerente elaborar e expor um quadro fáctico bem fundamentado, capaz de convencer o tribunal de que o recurso contencioso bem sucedido seguido da execução do julgado dificilmente será apto a reparar os prejuízos sofridos, a ponto de repor integralmente a situação actual hipotética. Portanto, deverá ser neste requisito que o recorrente deve depositar a sua máxima atenção.
E claro que a prova aqui não tem que ser cabal, perfeita e exaustiva, como aquela que se faz geralmente numa acção; em vez disso, é perfunctória, característica e própria de uma providência cautelar, de processado urgente. Isso, contudo, não desobriga o interessado de narrar circunstanciadamente os factos, expor muito bem a sua situação jurídico/material pretérita e actual, bem como os danos advenientes e futuros que sejam causa do acto suspendendo. O referido conceito indeterminado deve ser, portanto, densificado o máximo que puder ser através de factos que sejam verosímeis e demonstráveis, sem prejuízo daqueles que, por muito evidentes, tenham a natureza de notórios (art. 250°, n°2 do CC e 434°, do CPC).
(…)
12 – Deve ter-se em conta que os danos a invocar e provar são os danos que devem resultar do acto através de um juízo assente na lógica e na consequência pura. Quer dizer, segundo um padrão objectivo, os prejuízos hão-de decorrer da execução do acto, de tal modo que é pressuposta a verificação de uma relação de causa-efeito entre o acto e a sua execução. Desta feita, entende-se que ficam fora da previsão da alínea os prejuízos hipotéticos, eventuais e conjecturais.
13 – E os danos morais serão de considerar na figura?
Qualquer decisão ablativa, qualquer acto decorrente de uma Administração dita “agressiva”, até mesmo qualquer indeferimento pode provocar aborrecimentos, dores de cabeça, arrelias, mal-estar; é natural, é próprio da reacção do ser humano perante uma adversidade. E pode ser ainda uma “perda de face”, uma indignidade perante a sociedade em geral ou perante um grupo (profissional, social, lúdico, desportivo, etc.) no qual o interessado se encontre incluído, uma humilhação, a vergonha profunda, um forte desgosto, etc.
Também não repugna admitir que a demolição da casa, que sempre serviu de moradia do requerente e da sua família mais próxima e directa e que, portanto, neles criou uma ligação afectiva, ou a separação de uma mãe do seu filho menor de terna idade, que dos seus cuidados e amparo precisa, haverá de gerar danos desse tipo.
Todavia, independentemente da verificação de danos morais, o que releva para a caracterização do requisito será intensidade deles. E isso, só casuisticamente pode ser analisado. Portanto, o que podemos dizer é que os danos morais não estão necessariamente afastados da previsão da norma em apreço; devemos, por outro lado, entender que só devem ser atendidos aqueles que, pela sua gravidade, intensidade e objectividade, mereçam a tutela do direito. Assim o proclama o art. 489° do Código Civil”; (in ob. cit., pág. 214 e segs., e, no mesmo sentido, V. Lima e A. Dantas in, “C.P.A.C. Anotado”, pág. 347 e segs., e, v.g., o Ac. deste T.U.I. de 13.01.2021, Proc. n.° 212/2020).
Na verdade, só existe “prejuízo de difícil reparação” quando a avaliação dos “danos” e a sua “reparação”, não sendo de todo em todo “impossíveis”, podem tornar-se “muito difíceis”, sendo de se considerar “prejuízo de difícil reparação” a privação de rendimentos geradora de uma “situação de carência quase absoluta” e de “impossibilidade de satisfação das necessidades básicas e elementares”, (ao requerente cabendo, como se referiu, o “ónus” de alegar e provar, com elementos objectivos e concretos, a verificação do “prejuízo de difícil reparação” causado pelo acto administrativo cuja suspensão de eficácia requer).
Sobre idêntica questão à que ora se aprecia, já se pronunciou também este Tribunal de Última Instância, considerando, nomeadamente, que:
“I – No procedimento cautelar de suspensão de eficácia de actos administrativos, para que a pretensão seja concedida, é necessário verificar-se o requisito do prejuízo de difícil reparação para o requerente, causado pela execução do acto, salvo no caso de acto com a natureza de sanção disciplinar.
II – Assim, desde que não se verifique tal requisito, está o tribunal dispensado de examinar a verificação dos outros requisitos.
III – Existe prejuízo de difícil reparação naquelas situações em que a avaliação dos danos e a sua reparação, não sendo de todo em todo impossíveis, podem tornar-se muito difíceis.
IV – Trata-se de prejuízo difícil reparação o consistente na privação de rendimentos geradora de uma situação de carência quase absoluta e de impossibilidade de satisfação das necessidades básicas e elementares”, (cfr., v.g., o Ac. de 25.04.2001, Proc. n° 6/2001, e, no mesmo sentido, os já citados Acs. de 16.05.2018, Proc. n.° 21/2018 e 38/2018, podendo-se também ver, os Acs. de 14.05.2010, Proc. n.° 15/2010, de 15.07.2015, Proc. n.° 28/2015, de 27.09.2018, Proc. n.° 69/2018, de 30.07.2019, Proc. n.° 71/2019, de 04.10.2019, Proc. n.° 90/2019, de 30.10.2019, Proc. n.° 99/2019, de 26.02.2020, Proc. n.° 136/2019 e de 13.01.2021, Proc. n.° 212/2020, assim como as Decisões Sumárias de 26.04.2021, Proc. n.° 49/2021 e de 19.04.2022, Proc. n.° 41/2022, e, J. Cândido de Pinho in, ob. cit., pág. 215 e segs., quanto aos critérios a utilizar para a densificação do conceito indeterminado “prejuízos de difícil reparação”).
In casu, e em face da “matéria de facto” que entendeu considerar “assente”, e como se referiu, decidiu o Tribunal de Segunda Instância que verificados não estavam os necessários “previsíveis prejuízos de difícil reparação” para as ora recorrentes.
Considerou-se, aliás, (ou melhor, de forma mais rigorosa), que as recorrentes não alegaram, de forma “concreta” e “objectiva”, em que consistiam tais “prejuízos”.
E, assim, perante tal “ausência de matéria”, outra solução não existia que não o decretado indeferimento dos seus pedidos.
Ora, como cremos que se deixou explicitado, óbvio é que é ao (próprio) requerente de um pedido de suspensão de eficácia – como os dos autos – que cabe o “ónus” de alegar e especificar – e provar – os “prejuízos irreparáveis” que considera vir a ter ou sofrer com a (imediata) execução do “acto administrativo objecto do seu pedido”, não bastando invocar – ainda que grandes – “inconvenientes”, “sofrimentos”, “perdas económico-financeiras”, sem concretizar, de forma clara, perceptível e visível, em que consistem, de forma a se poder aferir qual a sua “extensão”, “intensidade” e “potencialidade” de causar os aludidos prejuízos.
E, no caso dos autos, analisando tudo o que as ora recorrentes então alegaram nas suas respetivas “petições”, assim como os “documentos” que com as mesmas juntaram para sua explicitação (e prova), cremos que, (embora acertada), “curta” e “insuficiente” se nos apresenta a “factualidade” pelo Tribunal de Segunda Instância dada como “relevante” e “provada” sobre a sua “real situação”.
–– Vejamos, começando pela recorrente A.
Pois bem, para além do que em sede da atrás retratada factualidade provada se consignou como relevante e provada, da sua petição inicial e documentos apresentados, (cfr., fls. 3 e segs. do Processo no Tribunal de Segunda Instância registado com o n.° 346/2024), consta, e retira-se, nomeadamente, que a mesma alegou ser natural de Xinhui da Província de Guangdong, portadora de B.I.R.P.M. n.° XXXXXXX(X), ter 65 anos de idade, estando na idade de aposentação, que com a autorização da sua residência na R.A.E.M., onde fez formação profissional, trabalhou e efectuou descontos e contribuições para o Fundo de Segurança Social, cancelou a sua conta (original) no Interior da China, (onde actualmente reside), que precisa dos cuidados e apoio da sua filha, (ora também recorrente e igualmente residente no Interior da China), e que, com a execução do acto administrativo em questão perderá toda a assistência e subsídios que necessita e beneficia, especialmente, em resultado das contribuições que durante os anos que viveu e trabalhou em Macau efectuou, deixando, assim, de ter as “condições mínimas de vida”; (cfr., art°s 79° a 91°, 114° e 115° da aludida petição inicial).
Ora, admite-se, que se possa, eventualmente, considerar o alegado algo “vago”, até porque, e muito infelizmente, muito do que na referida petição inicial se alegou não tem (efectivamente) utilidade e relevância alguma, apenas podendo servir para dar a aparência de que encetado foi um “grande esforço argumentativo”…
Porém, e sendo os “documentos” pelas partes juntos com os seus articulados uma “forma” de expor, complementar e explicitar, (e provar) os factos aí alegados, importa, (especialmente), não perder de vista que, in casu, da sentença proferida no Proc. n.° CR4-22-0255-PCC, datada de 16.06.2023 – cuja cópia a recorrente juntou, (cfr., fls. 45 a 56), e se fez expressa referência na atrás aludida “factualidade provada” – consta como “matéria de facto dada como provada” pelo Colectivo do Tribunal Judicial de Base que a recorrente encontra-se “desempregada”, “recebendo (apenas) um subsídio do Fundo de Segurança Social de Macau de MOP$2.800,00 por mês”.
E, em face do que nestes termos se deixou exposto – e sabendo-se, igualmente, que o Governo da R.A.E.M. concede aos seus residentes com a referida idade outros subsídios e ajudas; (cfr., o Capítulo das “Prioridade da acção governativa para o ano de 2024”, no “Relatório das Linhas de Acção Governativa”, e as aí previstas “medidas em prol do bem estar da população”) – mostra-se-nos de considerar que, no que toca à ora recorrente, realmente “curta” é a factualidade pelo Tribunal de Segunda Instância tida como relevante e provada, sendo, desta forma, (manifestamente) “insuficiente” para uma decisão de direito que se deseja, (e quer), rigorosa e conscienciosa, e, naturalmente, assente em “situação fáctica” com adequada e a mais exacta correspondência possível com a realidade e verdade material.
–– Relativamente à recorrente B, a mesma se nos apresenta ser a situação.
Com efeito, resulta também da sua petição inicial e documentos pela mesma juntos, (cfr., fls. 3 e segs. do Proc. n.° 347/2024 do T.S.I.), que é natural de Xinhui da Província de Guangdong, portadora de B.I.R.P.M. n.° XXXXXXX(X), tem um filho menor, nascido em 16.03.2018, que vive com o pai, seu marido, em Macau, onde também estuda, e que embora ela viva no Interior da China, onde (igualmente) já não possui conta, estudou e trabalha na R.A.E.M. há vários anos, onde pagou e paga impostos e outras contribuições, e que a imediata execução do acto administrativo em questão implicará, necessariamente, a quebra e perda de um permanente e contínuo contacto com o seu filho menor que precisa da sua assistência, assim como a perda do emprego que tem e do respectivo vencimento mensal, e, assim, das suas “condições mínimas de vida”; (cfr., nomeadamente, os art°s 133° a 140°, 147° e 163° da dita petição inicial).
E, na sequência de tudo o que se deixou exposto, quid iuris?
Pois bem, antes de mais, mostra-se-nos adequado consignar que se nos afigura que, nos tempos que correm, ultrapassada se deve considerar uma concepção “tradicional” em matéria de sentido e alcance do conceito jurídico (e indeterminado) de “prejuízo absolutamente irreparável”, mais adequada sendo uma ponderação onde se dê relevância a critérios como o da “irreversibilidade” ou da “intolerabilidade”; (cfr., v.g., Vieira de Andrade in, “A justiça Administrativa”, pág. 168).
E, nesta conformidade, em nossa modesta opinião – sendo mesmo de aqui afirmar que o pelas recorrentes alegado nas suas petições iniciais não seja propriamente um “modelo” de exemplar e perfeito exercício de alegação de matéria de facto, (e, ainda que se possa considerar ser algo vago, e com deficiências – mostra-se-nos porém claro que existe efectivamente “matéria de facto” (relevante) por apurar, havendo, assim, em face da referida insuficiência, que se proceder a sua uma ampliação nos termos do art. 650° do C.P.C.M., aqui aplicável, impondo-se anular as decisões em causa para que, nada obstando, pela Instância recorrida a tal se proceda com nova decisão sobre o pelas ora recorrentes requerido; (sobre a matéria e questão da “ampliação da matéria de facto”, cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 19.12.2001, Proc. n.° 10/2001, de 18.01.2006, Proc. n.° 25/2005, de 06.03.2013, Proc. n.° 5/2013, de 18.06.2014, Proc. n.° 19/2014 e de 13.11.2019, Proc. n.° 106/2019).
Decisão
4. Face ao expendido, em conferência, acordam anular os Acórdãos recorridos para que pelo Tribunal de Segunda Instância se venha a proceder à referida “ampliação da matéria de facto” com nova decisão sobre o pedido das ora recorrentes.
Sem tributação.
Registe e notifique.
Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.S.I. com as baixas e averbamentos necessários.
(…)”; (cfr., fls. 320 a 333 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Na sequência do assim deliberado por este Tribunal de Última Instância, foram os autos devolvidos ao Tribunal de Segunda Instância que, em 12.09.2024, proferiu novo Acórdão com o qual, após na apreciação da matéria de facto alegada, voltou a indeferir a pretensão apresentada; (cfr., fls. 346 a 362-v).
*
Ainda inconformadas, trazem as requerentes – A (甲) e B (乙) – o presente recurso, pedindo a revogação do decidido no aludido Acórdão do Tribunal de Segunda Instância; (cfr., fls. 366 a 398 e 421 a 430).
*
Tendo-se presente as considerações tecidas na Resposta da entidade recorrida, (cfr., fls. 405 a 409), e no douto Parecer do Ministério Público, (cfr., fls. 435 a 436), urge decidir.
*
Nada obstando, a tanto se passa
Fundamentação
2. Como – cremos que – se deixou relatado, com a referida devolução dos presentes autos ao Tribunal de Segunda Instância pretendia-se o suprimento de uma por nós detectada “insuficiência da decisão da matéria de facto” do anterior Acórdão sobre a pretensão das requerentes, ora recorrentes.
Pronunciando-se sobre esta “insuficiência”, assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância, consignando-se no Acórdão ora recorrido o que segue:
“(…)
Primeiro, consideramos não provado o facto de que “a requerente A está actualmente desempregada, e recebe mensalmente MOP$2.800 a título das prestações da segurança social”.
Embora fosse provado na decisão proferida no Proc. n.º CR4-22-0255-PCC que “a 2.ª arguida (ou seja a requerente nos presentes autos A) alegou estar desempregada, recebe MOP$2.800 a título das prestações da segurança social, não tem encargo familiar, e tem como habilitações literárias o 5º ano do ensino primário”, importa ter presente que, nos termos do artigo 578.º do Código de Processo Civil, “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção” (sublinhado e negrito nossos).
O facto acima referido não é um facto que “integra os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal” ou que “respeita às formas do crime”, pelo que não é presumida a sua existência.
Por outro lado, apenas ficou provado na respectiva decisão que a requerente A “alegou estar desempregada”, mas não que estava “desempregada”. “Alegou estar desempregada” não passa de uma declaração unilateral da requerente, e não tem força probatória plena.
Não ignoramos que a requerente já tem 65 anos de idade, mas isso não significa que ela já se aposentou, pois que, conforme as regras da experiência comum, muitas pessoas com idade superior a 65 anos ainda trabalham, não se podendo reconhecer a aposentação apenas com base na idade de 65 anos.
Com base nisso, não se pode reconhecer que a requerente está desempregada ou já se encontra aposentada.
Quanto ao montante de MOP2.800 mensalmente recebido a título das prestações da segurança social, embora os residentes de Macau que tenham completado 65 anos de idade tenham acesso às prestações da segurança social conforme dispostos na Lei n.º 4/2010, tal acesso pressupõe a verificação das condições legais, por exemplo, a pensão para idosos é atribuída àqueles que tenham completado 65 anos de idade, tenham residência habitual em Macau há, pelo menos, 7 anos, e tenham efectuado, pelo menos, 60 contribuições mensais para o regime da segurança social, cujo montante também é calculado de acordo com fórmula legalmente prevista.
A requerente nunca alegou quantas contribuições é que tinha efectuado, pelo que não conseguimos saber se ela efectuou ou não, pelo menos, 60 contribuições mensais, e, se sim, qual o montante da pensão para idosos que pode receber.
O facto atrás mencionado é um facto pessoal da requerente, não é notório, e na falta da alegação e prova da parte, não pode ser oficiosamente reconhecido pelo tribunal.
Com base nisso, só podemos reconhecer que “a requerente A nasceu no dia 26 de Abril de 1959, agora tem completado 65 anos de idade, e pode receber, na qualidade de residente permanente de Macau, as prestações da segurança social nos termos legais”.
Quanto ao facto de que “só pode sobreviver em Macau”, salvo o devido respeito por opinião diversa, tal facto reveste-se de natureza conclusiva, mas não objectiva, pelo que não pode ser provado isoladamente, e precisa de ser suportado por outros factos objectivos.
A requerente A não alegou qualquer facto objectivo para suportar o aludido facto conclusivo, por exemplo, não tem poupanças ou outros rendimentos e patrimónios, e vive apenas das “prestações da segurança social”.
Não obstante o cancelamento do registo domiciliar no Interior da China, da requerente A, conforme as regras da experiência comum, pode ela recuperar o registo de residência quando regresse a viver no Interior da China, pelo que inexiste o facto de que “não pode trabalhar e viver no Interior da China por não ter lá registo domiciliar”.
No que diz respeito à requerente B, tal como atrás referido, não obstante o cancelamento do seu registo domiciliar no Interior da China, pode recuperar o registo de residência quando regresse a viver no Interior da China, pelo que inexiste o facto de que “não pode trabalhar e viver no Interior da China por não ter lá registo domiciliar”.
Por outro lado, foi também declarada a caducidade do bilhete de identidade do filho da requerente, pelo que não existe o facto de que ela necessita de permanecer em Macau para cuidar do filho, pelo contrário, pode sempre voltar a viver junto com o filho, o marido e a mãe no Interior da China. Por isso, também não se reconhece o facto de que “a execução do respectivo acto destruirá a sua família”.
A par disso, a requerente viveu originalmente no Interior da China, improcedendo assim a alegação de desadaptação à vida no Interior da China.
É inegável que, com a execução do respectivo acto administrativo, as duas requerentes perderão necessariamente o emprego em Macau, e em consequência, os rendimentos do trabalho e as regalias legalmente adquiríveis tal como residente permanente de Macau, mas isso não significa que as requerentes não podem encontrar novos empregos no Interior da China, e não têm outros rendimentos para sustentar a vida.
O mais importante é que, as requerentes nunca alegaram e provaram que os rendimentos do trabalho em Macau eram a única fonte de receita delas, não tendo outros patrimónios (por exemplo, imóveis) ou/e poupanças.
No que toca à violação dos seus direitos fundamentais (os direitos humanos, o direito ao livre desenvolvimento, a dignidade, entre outros), alegada pelas duas requerentes, salvo o devido respeito por opinião diversa, entendemos que tal alegação é vazia e oca, sem qualquer sustentação factual material, inútil se nos apresentando para o julgamento da causa.
De facto, como se referiu atrás, as duas requerentes não alegaram e provaram, de modo concreto, por que é que não podiam regressar a viver no Interior da China. Não terão direitos humanos, direito ao livre desenvolvimento e dignidade quando regressarem ao Interior da China?
Quanto aos danos alegadamente causados a E (cônjuge da requerente B) e F (filho da requerente B), consistentes em não poderem viver e desenvolver normalmente na Região Administrativa Especial de Macau, e não poder o filho continuar a estudar em Macau, esses danos, caso existam, constituem prejuízo para o cônjuge e o filho da requerente B, ou seja E e F, mas não para as duas requerentes. O prejuízo de difícil reparação, mencionado na al. a) do n.º 1 do artigo 121.º do CPAC, é prejuízo do próprio requerente, e não de terceiros (que não são requerentes).
O Tribunal de Última Instância tem a seguinte jurisprudência no Processo n.º 3/2018:
“…
Ora, tal como entende este Tribunal de Última Instância, o dano susceptível de quantificação pecuniária pode ser considerado de difícil reparação para o requerente, sendo de considerar ainda como tal os casos “em que a avaliação dos danos e a sua reparação, não sendo de todo em todo impossíveis, podiam tornar-se muito difíceis” bem como o prejuízo “consistente na privação de rendimentos geradora de uma situação de carência quase absoluta e de impossibilidade de satisfação das necessidades básicas e elementares”.
E “a dificuldade de reparação do prejuízo deve avaliar-se através de um juízo de prognose relativo a danos prováveis, tendo em conta o dever de reconstrução da situação (hipotética) pela autoridade administrativa na sequência (em execução) de uma eventual sentença de anulação.”
Por outro lado, as jurisprudências têm entendido que cabe ao requerente o ónus de alegar e provar os factos integradores do conceito de prejuízo de difícil reparação, fazendo-o por forma concreta e especificada, através do encadeamento lógico e verosímil de razões convincentes e objectivos, não bastando alegar a existência de prejuízos, não ficando tal ónus cumprido com a mera utilização de expressões vagas e genéricas irredutíveis a factos a apreciar objectivamente.
Afigura-se-nos que, no caso sub judice, não estão preenchidos todos os pressupostos processuais elencados no n.º 1 do art.º 121.º.
O acórdão ora recorrido considerou verificados os requisitos previstos nas al.s b) e c) do n.º 1 do art.º 121.º.
No presente recurso, discute-se apenas o preenchimento, ou não, do requisito indicado na al. a), que se refere ao prejuízo de difícil reparação, causado pela execução do acto administrativo.
Na tese da recorrente, a execução imediata do acto posto em causa, com a retirada imediata do seu Bilhete de Identidade de Residente Não Permanente de Macau e do Salvo-Conduto para Residentes de Hong Kong e Macau para Entrada e Saída do Continente, restringe gravemente os seus direitos fundamentais consagrados na Lei Básica da RAEM, designadamente a liberdade de entrar e sair de Macau e liberdade de escolha de profissão e de emprego (art.ºs 33.º e 35.º da Lei Básica), faz perder o emprego e de abrigo à recorrente e à sua família que é incapaz de suportar altas rendas de habitação verificadas no mercado privado em Macau e as despesas diárias, provoca a deterioração da doença física e da anormalidade mental dela e afecta ainda gravemente o estudo e o crescimento dos filhos menores, tendo concluído pela provocação dos prejuízos graves e de difícil reparação.
Desde logo, não se percebe a afirmação da recorrente quanto à impossibilidade de regressar ao posto de trabalho e à casa, que alegadamente torna muito difícil a sua situação económica, não podendo ela suportar as despesas diárias e altas rendas de habitação verificadas no mercado privado em Macau, uma vez que, como alega a própria recorrente, ela trabalha no Interior da China, e com a execução do acto administrativo, a autoridade competente irá adoptar a medida de reencaminhamento da recorrente para o Interior da China, onde ela vive. Daí que não se compreende qual razão que leva à perda de emprego nem a necessidade de suportar as rendas altas em Macau.
Admite-se que, com o cancelamento dos referidos documentos de identificação e de Salvo-Conduto, fica restringida, de certo modo, a liberdade de deslocação da recorrente tal como residente de Macau, o que não provoca, no entanto, necessariamente prejuízos de difícil reparação para a recorrente, que nem chegou a demonstrar quais são prejuízos concretos de que irá sofrer.
Em segundo lugar, no que concerne à deterioração da doença física e da anormalidade mental, limita-se a recorrente a alegá-la, sem que tenha apresentado alguma prova para demonstrar o facto.
Em terceiro lugar, quanto à situação dos filhos, alega a recorrente que eles não podem viver juntos com a mãe e têm que viver sozinhos na China, o que é perigoso e afecta gravemente a vida escolar dos filhos.
Também não se percebe tal alegação.
No seu requerimento inicial de suspensão da eficácia, alega a recorrente que ela vive em Gongbei, Zhuhai, conjuntamente com os dois filhos menores (art.º 22.º). Se a recorrente irá ser reencaminhada para o Interior da China, porquê e como é que os filhos têm de viver sozinhos na China? O reencaminhamento da recorrente não altera em nada a situação anterior de viver juntos com os filhos.
É de salientar que não se constata nos autos nem a própria recorrente invoca que foram também cancelados os bilhetes de identificação ou Salvo-Conduto dos filhos, pelo que não está em causa a sua vida escolar, podendo eles continuar a estudar em Macau.
Finalmente, e tal como afirma o Tribunal recorrido, a perda da qualidade da residente de Macau da recorrente não faz perder a qualidade do cidadão chinês. E é de crer que, com o cancelamento de autorização de residência em Macau e o reencaminhamento da recorrente para o Interior da China, ela poderá obter de novo os documentos necessários a emitir pelas autoridades competentes para poder continuar a viver e trabalhar na China.
Concluindo, entendemos que o recorrente não logrou provar que a execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para si ou para os interesses que ele defenda ou venha a defender no recurso, pelo que o pedido deve estar votado ao insucesso.
…”.
*
Há que deixar claro que no pedido de procedimento cautelar das requerentes não está verificado o requisito legal previsto pelo artigo 121.º, n.º 1, alínea a) do Código do Processo Administrativo Contencioso.
*
IV. Decisão
Nesta conformidade, decide-se que:
1. se integrem os seguintes factos:
– Cabe à requerente A, nascida em 26/04/1959, tendo completado 65 anos de idade e na qualidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, cobrar a segurança social nos termos legais.
– A execução do acto em questão privará ambas as requerentes, ou seja, A e B, dos seus trabalhos em Macau, bem como dos benefícios sociais que lhes pertencem enquanto residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau.
– O registo domiciliar no Interior da China de ambas as requerentes já foi cancelado.
2. se indefira o pedido de procedimento cautelar das requerentes.
(…)”; (cfr., fls. 360 a 362-v e 3 a 6 do Apenso).
Aqui chegados, que dizer?
Desde já, (e antes de mais), que se mantém – integralmente – tudo o que se fez constar no anterior aresto de 29.07.2024, (então proferido no âmbito dos Autos de Recurso neste Tribunal de Última Instância registado com o n.° 82/2024), o mesmo sucedendo com as considerações tecidas no Acórdão de 07.02.2018, Proc. n.° 3/2018, e que vem agora citado na decisão ora recorrida.
E, então, e da reflexão que nos foi possível efectuar sobre o consignado, decidido e agora alegado, eis o que se nos parece de dizer sobre o Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado.
Pois bem, como cremos ser sabido, (sendo pacificamente adquirido, e neste mesmo sentido tem decidido esta Instância), dúvidas não há que é ao requerente de um pedido de suspensão de eficácia que compete alegar, especificar, concretizar, e tornar credível, oferendo prova sobre a “matéria de facto” que entenda justificar a decisão de procedência da sua pretensão, de forma alguma se podendo considerar o mesmo desonerado de tal “ónus”, ou de se poder ter como bastante ou suficiente uma mera alegação “conclusiva”, com a utilização de expressões “vagas” e “abstractas” ou “genéricas”.
–– E, assim, ponderando no teor do Acórdão recorrido, mostra-se-nos de afirmar que nenhuma censura nos merece o que no aludido veredicto do Tribunal de Segunda Instância se considerou e decidiu relativamente à recorrente B, apresentando-se-nos de acolher e de aqui dar como integralmente reproduzido o que nesta sede se ponderou e consignou, nada mais se nos mostrando de acrescentar, pois que, independentemente do demais, importa atentar que a “matéria de facto” que quanto à mesma se apurou, para além de não padecer de vício algum, não se mostra bastante para, (com base nela), se dar por verificado um seu “prejuízo irreparável” para a possível procedência do “pedido de suspensão de eficácia” que deduziu.
Dest’arte, e nesta parte, improcede o presente recurso.
–– Porém, quanto à recorrente A, outra se nos parece que deva ser a solução.
Vejamos, (ainda que abreviadamente).
Aqui, cabe recordar que se está em sede de uma (mera) “providência cautelar”, (com uma natureza própria), e, como tal, perante um meio processual (algo) distinto de uma “acção” (propriamente dita), com a sua fase de articulados, saneamento e instrução antes de qualquer decisão de mérito.
Por sua vez, atenta a “natureza urgente” do presente meio processual, e da sua especial tramitação processual, nomeadamente, no que toca ao seu “regime de prova”, (em que apenas se admite a documental), importa não perder de vista que a decisão a proferir terá – necessariamente – de assentar e de se fundamentar num “juízo de apreciação indiciária” dos factos alegados e das provas apresentadas.
E, nesta conformidade, e sem prejuízo do muito respeito por outro melhor entendimento, cremos que na parte agora em questão foi o Tribunal de Segunda Instância pouco sensível a tal “especificidade”, tendo efectuado uma apreciação e ponderação em desencontro com a referida “natureza” e “especialidade”.
Com efeito, e desde já, no que respeita à consideração do Tribunal de Segunda Instância no sentido de que a ora recorrente apenas “alegou, ou declarou estar desempregada”, e que tal “declaração” não constitui um elemento probatório com o valor de “prova plena”, óbvio se nos apresenta que a (mera) “alegação (ou declaração) sobre um facto”, não corresponde, nem equivale, ao seu efectivo “reconhecimento” e à consequente “decisão de que o mesmo provado está”.
Porém, importa ter presente o “contexto” em que, in casu, é feita a referência a tal “declaração”, isto sem perder de vista que constitui esta uma (inadequada) “prática processual” – infelizmente – algo habitual, e que consiste em fazer constar, em sede da “decisão da matéria de facto provada”, não o que (concreta e efectivamente) se provou, mas, (v.g.), que o “arguido declarou que possuía como habilitações literárias…”, ou que “declarou que tinha como profissão…”, que “auferia…”, e que “tinha … a seu cargo…”.
Ora, em nossa opinião, e dado (muito especialmente) o seu contexto, (ou seja, a sua expressa referência em sede da “decisão da matéria de facto provada” do Acórdão proferido no Proc. n.° CR4-22-0255-PCC do Tribunal Judicial de Base, pouco razoável nos parece de considerar que se tenha querido decidir que – tão só se “provou” que – tal foi apenas o “teor da declaração” pelo arguido feita, e que, o então referido, (e como tal aí consignado), não corresponda a “realidades” tidas como “assentes” e “adquiridas” (para efeitos de posterior ponderação e de eventual decisão de direito); (aliás, a não ser assim, e com todo o respeito, não se vislumbra qualquer utilidade em tal “procedimento” e decisão, nem tão pouco nos parece que o mesmo faça sentido).
E, no caso em apreciação, cremos que foi – exactamente – o que sucedeu.
Com efeito, a referência como “facto provado” que a ora recorrente – declarou que – se encontrava “desempregada” e a “receber um subsídio mensal de MOP$2.800,00”, para além de expressamente incluída em sede da “decisão da matéria de facto (provada)” – até, na parte do que “mais se provou” (para além da acusação) – foi “matéria” igualmente ponderada (como matéria de facto adquirida) em sede da decisão sancionatória relativamente à (medida da) pena, (dando concretamente lugar à prolação de numa decisão que lhe foi mais favorável; cfr., pág. 21 e 22 do Acórdão do Proc. n.° CR4-22-0255-PCC, a fls. 210 e 210-v dos presentes autos).
E, nesta conformidade, (algo) excessiva se mostra ter sido a consideração pelo Tribunal de Segunda Instância tecida quanto ao “valor probatório (e extraprocessual)” do aludido elemento de prova, apresentando-se-nos assim, e antes, de considerar que, no caso, motivos não existem para, em sede dos presentes autos, se não ter como boa a ponderação no dito Proc. n.° CR4-22-0255-PCC, pelo Tribunal Judicial de Base efetuada quanto à “situação” da ora recorrente, não se podendo desta forma manter o que, neste ponto, se decidiu no Acórdão recorrido, sendo, em seu lugar, de considerar que assente se deve ter que a dita recorrente se encontra “desempregada”, “recebendo um subsídio mensal de MOP$2.800,00”.
Em face disto, e controvertido não estando que tem “65 anos de idade” – para além de se encontrar desempregada, recebendo um subsídio de MOP$2.800,00 – quid iuris?
Pois bem, como cremos ser natural (e bastante evidente), uma pessoa com 65 anos de idade não é necessária e automaticamente um “velho incapaz”, sem (qualquer) possibilidade (ou esperança) de trabalhar e ter uma profissão, (seja qual for), e, assim, de governar a sua (própria) vida…
Mal do “Ser Humano (comum mortal)” se assim fosse!
Aliás, basta olhar à nossa volta para se concluir que tal não corresponde a uma verdade, (muito menos apodíctica).
E, como tal, e ainda que se admita como defensável uma posição de alguma “desconsideração”, ou de não atribuição de (especial) relevo a tal “circunstância”, (uma vez mais), cremos que importa não perder de vista a “pretensão” apresentada, o seu “contexto”, e a natureza e o fim do “meio processual” em questão.
Na verdade, a dita “idade”, o “estado de desempregada”, e a “quantia de MOP$2.800,00 de subsídio mensal” que a recorrente recebe, eram, precisamente, os “factos” que para efeitos da almejada suspensão de eficácia do acto administrativo em questão a mesma invocava para justificar a sua (precária) “situação” em que (já) se encontrava, e que, na sua óptica, em caso de não procedência do seu pedido, iria certamente piorar, pois que (com a execução do dito acto), perderia o seu (único) sustento assegurado pelo referido subsídio, assim considerando-se em grave risco de sofrer um “prejuízo irreparável”.
E, em nossa modesta opinião, afigura-se-nos de ter como deveras razoável o assim considerado, e, nesta conformidade, de acolher a pretensão em questão.
De facto, importa ponderar e apreciar tais “circunstâncias” de forma “lógica”, “abrangente” e “integrada”, só assim se podendo compreender, globalmente, as “razões” da sua apresentação como fundamento do pedido de suspensão de eficácia deduzido.
E, nestes termos, (e saliente-se), encontrando-se a ora recorrente com 65 anos de idade, e desempregada, e se com a execução do acto administrativo suspendendo deixar de receber o subsídio mensal de MOP$2.800,00 com o qual se sustenta, mostra-se-nos pois que passará a ficar numa “situação” que, em conformidade com a “normalidade das coisas”, não deixa de integrar o requisito de “prejuízo irreparável” em questão.
Daí, considerando-se igualmente que a “situação” em questão não se apresenta como (potencialmente) causadora de uma “grave lesão para o interesse público”, o nosso entendimento no sentido de não ser de se manter o nesta parte deliberado no Acórdão recorrido, imperativa sendo a decisão que segue.
Decisão
3. Em face do que se deixou exposto, em conferência, acordam confirmar o Acórdão recorrido no que diz respeito à improcedência do pedido deduzido pela ora recorrente B, concedendo-se provimento ao recurso da recorrente A, e deferindo-se, consequentemente, o pedido de suspensão de eficácia que deduziu.
Pelo seu decaimento pagará a recorrente B a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 13 de Dezembro de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Song Man Lei
Choi Mou Pan
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Mai Man Ieng
Proc. 127/2024 Pág. 10
Proc. 127/2024 Pág. 11