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Processo nº 115/2020 Data: 08.06.2022
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : “Acção para efectivação de responsabilidade civil extracontratual”; (art. 116° e 117° do C.P.A.C.).
Responsabilidade extracontratual da Administração, (R.A.E.M.); (Decreto-Lei n.° 28/91/M).
Pressupostos legais.
Absolvição do pedido.
Saneador-sentença.



SUMÁRIO

1. A “responsabilidade extracontratual administrativa” consiste num “conjunto de circunstâncias” das quais emerge, para a Administração Pública e para os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, a “obrigação de indemnizar” prejuízos causados a outrem no exercício da actividade administrativa.

2. Se da análise de tudo o que pelos Autores foi alegado se concluir – claramente – que a(s) “causa(s) de pedir” invocada(s) não justifica(m) a pretensão deduzida por manifesta falta de verificação dos seus necessários pressupostos legais para qualquer tipo de “responsabilidade extracontratual da R.A.E.M.”, (seja por actos ou factos “ilícitos” ou “lícitos”), censura não merece uma decisão da sua “absolvição do(s) pedido(s)” em sede de “saneador-sentença”.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 115/2020
(Autos de recurso jurisdicional)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲) e B (乙), com os restantes sinais dos autos, propuseram no Tribunal Administrativo de Macau “Acção para a Efectivação de Responsabilidade Civil Extracontratual” contra a REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU, (R.A.E.M.), deduzindo pedido de condenação da Ré no pagamento a seu favor de MOP$31.775.629,00 e juros à taxa legal; (cfr., fls. 2 a 26 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, decidiu o Mmo Juiz do Tribunal Administrativo absolver a Ré do pedido; (cfr., fls. 1036 a 1043).

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Em sede do recurso que do assim decidido interpuseram os referidos AA., proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 26.03.2020, (Proc. n.° 1143/2019), negando provimento ao recurso; (cfr., fls. 1102 a 1113).

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Novamente inconformados, trazem agora o presente recurso para este Tribunal de Última Instância.

Na sua motivação de recurso produzem as seguintes conclusões:

“1) O presente recurso vem interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância da RAEM, que negou provimento ao recurso e confirmou a Sentença recorrida, que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré RAEM, ora Recorrida, do pedido.
2) O douto Acórdão recorrido merece reparo relativamente à decisão sobre a nulidade do saneador-sentença, por falta de especificação dos factos provados e respectiva fundamentação, e, ainda, por ter considerado - mesmo sem ter havido julgamento e sem que quaisquer factos relevantes tivessem sido provados - que inexistia responsabilidade da RAEM pelos prejuízos decorrentes do incumprimento dos contratos-promessa celebrados entre os Recorrentes e a concessionária Z1.
3) No caso dos presentes Autos, a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo é absolutamente omissa quanto aos factos que o Tribunal dá como provados, porquanto, ao invés de julgar as questões que lhe foram concretamente submetidas, o Tribunal Administrativo limitou-se a proferir um entendimento genérico sobre uma situação aparentemente abstracta.
4) Os Recorrentes identificaram, na sua petição inicial duas causas de pedir distintas: (1) A responsabilidade por culpa dos Serviços Administrativos da RAEM e; (2) A responsabilidade civil extracontratual da RAEM por facto lícito. Apesar disso, na sentença, o Tribunal Administrativo pronunciou-se e fundamentou o seu entendimento, apenas, quanto à primeira causa de pedir.
5) No que diz respeito à segunda causa de pedir, o Tribunal Administrativo limitou-se, de forma conclusiva, a referir o seguinte: "O mesmo sucede em relação à responsabilidade por facto lícito. Com a presença da relação de crédito de que os Autores são titulares, consideramos que está naturalmente quebrado o nexo de causalidade entre a alegada actuação e os danos alegadamente sofridos" - cfr. Sentença proferida nos autos.
6) Perante a falta de fundamentação da Sentença, o douto Acórdão recorrido limita-se a considerar que "não se verifica a alegada falta de fundamentação da decisão quanto à segunda causa de pedir, a saber, a responsabilidade por acto lícito, considerando que o Tribunal recorrido adoptou a mesma fundamentação da decisão em relação à primeira causa de pedir."
7) Ora, o Acórdão recorrido não só não criticou a Sentença como repetiu o mesmo erro de confirmar uma decisão sem esta estar sustentada na fundamentação de facto, o que se traduz numa limitação do direito de recurso e, em consequência, em denegação de justiça.
8) Para além dos requisitos da sentença previstos no artigo 562.º do CPC, o despacho saneador-sentença só deverá ser proferido se "o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do pedido" - nos termos do disposto no artigo 429.º, n.º 1, alínea b), do CPC - pelo que, é manifesto que tem de haver prova dos factos relevantes para possibilitar a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
9) No caso em apreço não se tratava de decidir uma mera questão de direito porquanto estamos perante causas de pedir complexas, nomeadamente a que assenta na responsabilidade extracontratual da RAEM, e que deveriam importar a análise dos actos praticados pela Ré que poderiam ser susceptíveis de fundar a responsabilidade pelos danos sofridos pelos Autores, ora Recorrentes.
10) Os factos que poderiam ser relevantes para a decisão da causa terão sido considerados na Sentença e no douto Acórdão recorrido, sem que os Autores, ora Recorrentes, pudessem, sequer, perceber se foram ou não provados, de que prova resultaram e impugnar a fundamentação de facto das decisões proferidas.
11) A fundamentação de facto não é dispensada em sede de saneador-sentença. Na verdade, na prolação de saneador-sentença nunca poderia haver corresponder a uma redução ou eliminação do dever de fundamentação da decisão de facto e de direito que resulta do disposto no artigo 562.°, n.° 2, do CPC, sob pena de tal resultar numa limitação da matéria sindicável, em sede de recurso, pelas instâncias superiores, e numa limitação ao direito de recurso dos Recorrentes e o seu direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 36º da Lei Básica da RAEM.
12) Por todo o exposto, só se pode concluir pela nulidade da Sentença e do Acórdão recorrido, por violação do disposto no artigo 429.º, n.º 1, al. b), 562º, nºs 2 e 3, bem como do artigo 571º, nº 1, al. b), todos do CPC.
13) O Acórdão recorrido deveria ter declarado nula a sentença recorrida e ordenado que os autos baixassem ao Tribunal Administrativo para fixar os factos considerados provados com interesse para a resolução das questões submetidas a julgamento, conforme a posição vertida na declaração de voto vencido do Meritíssimo Juiz-Adjunto Dr. Fong Man Chong e já acolhida nos Acórdãos proferidos pelo Tribunal de Segunda Instância nos processos n.ºs 1144, 1152, 1155, 1176 e 1199, todos de 27/02/2019.
14) Havendo várias soluções plausíveis de direito e factos controvertidos, a conjugação entre o artigo 429.º, n.º 1, alínea b), e o artigo 430.º, n.º 1, do CPC vincula o julgador a abrir a fase de instrução.
15) Ao decidir manter a Sentença do Tribunal Administrativo, considerando inútil especificar factos provados ou abrir a instrução do processo, o Tribunal de Segunda Instância incorreu em erro de julgamento, com violação dos artigos 87.º, 429.º, n.º 1, alínea b), e 430.º, n.º 1, do CPC e dos cânones de interpretação positivados no artigo 8.º do Código Civil.
16) A decisão proferida pelo Tribunal a quo no douto Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 562º, nºs 2 e 3, 571º, n.º, alíneas e b) e d), 429º, n.º 1, alínea b), todos do CPC, ex vi do artigo 99º, n.º 1 do CPAC, bem como o artigo 36.º da Lei Básica da RAEM, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que ordene que os autos baixem ao Tribunal Administrativo para fixar os factos considerados provados com interesse para a resolução das questões submetidas a julgamento.
Sem conceder, acresce que,
17) Ao considerar a RAEM como se de um privado se tratasse, para efeitos de negar qualquer relação entre esta e os promitentes compradores, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nesse artigo 4.º do CPA.
18) Ao considerar a RAEM como um terceiro relativamente aos Recorrentes e aos contratos-promessa celebrados, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do artigo 5.º do Código de Registo Predial.
19) Ao considerar que a RAEM se limitou a actuar dentro dos limites conferidos pelo seu estatuto de concedente ou dos poderes autoritários inerentes ao procedimento administrativo, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nos artigos 2.º, 4.º e 167.º, alínea a), do CPA e 220.º da Lei de Terras.
20) Ao considerar que a actuação da RAEM é insusceptível, por natureza, de lesar os promitentes compradores por com eles não se ter relacionado directamente, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nos artigos 3.º, 4.º, 7.º e 8.º do CPA e dos artigos 2.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril.
21) Ao considerar que a culpa do serviço não opera perante actuações especialmente chocantes da Administração, fundadas no abuso de direito de terceiro, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.
22) Ao considerar inexistir nexo de causalidade entre o acto que declarou a caducidade da concessão e os prejuízos sofridos pelos Recorrentes, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto no artigo 557.º do Código Civil.
23) O Acórdão ora recorrido deveria ter declarado nula a sentença recorrida e ordenado que os autos baixassem ao Tribunal Administrativo para fixar os factos considerados provados, no mesmo sentido, veja-se a posição vertida na declaração devoto vencido do Meritíssimo Juiz Relator Dr. José Cândido de Pinho vertida no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, proferido no processo n.° 1151/2019 de 16 de Abril de 2020”; (cfr., fls. 1121 a 1182).

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Em representação da R., respondeu o Ministério Público batendo-se pela confirmação do decidido; (cfr., fls. 1187 a 1192).

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Nada parecendo obstar, cumpre apreciar.

Fundamentação

2. Pelos AA., ora recorrentes, vem interposto o presente recurso do Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado que, como se deixou referido, confirmou a decisão de absolvição da R., ora recorrida, do pedido.

Tendo presente o teor das alegações e conclusões do dito recurso – que identificam e delimitam o thema decidendum – constata-se que vem, essencialmente, colocadas duas “questões”, imputando os recorrentes ao decidido o vício de “nulidade por falta de fundamentação” e “erro de julgamento”, valendo a pena atentar desde já no que se consignou no aludido Acórdão recorrido.

Pois bem, o veredicto em questão começou por transcrever a decisão do Mmo Juiz do Tribunal Administrativo, mostrando-se de aqui reproduzir o seguinte excerto da sua fundamentação:

“(…)
Pedem os Autores que sejam ressarcidos dos prejuízos resultantes da impossibilidade do cumprimento dos contratos-promessa para a aquisição das fracções autónomas do edifício denominado “[Edifício]” em construção, alegadamente imputável à actuação da Ré através dos seus serviços e no decurso da execução do contrato de concessão por arrendamento, com fundamentos na sua responsabilidade por acto ilícito pela culpa do serviço e na responsabilidade por facto lícito.
Pese embora ser a relação jurídica material configurada pelos Autores com sua ênfase na actuação ilícita, culposa e lesiva da Ré, considero importante antes saber melhor que tipo do direito subjectivo que se considerou lesado, e determinar depois, se a sua violação, ainda que fosse inteiramente comprovada, é ou não susceptível de provocar os efeitos indemnizatórios naquele alcance almejado, no sentido de fazer responsabilizar a Ré pelas lesões provocadas.
1. Logo à partida, os Autores alegam ser promitentes-compradores nos contratos-promessa celebrados com a Z (doravante designada por “Z1”), em que aqueles declararam prometer adquirir as fracções autónomas do edifício em construção, situado no terreno de que esta era concessionária e que foram procedidos aos registos da inscrição da aquisição na Conservatória do Registo Predial.
Mais alegam que foram pagos os valores a título de sinal à promitente-vendedora pela celebração dos referidos contratos-promessa.
Além do mais, anos depois da celebração dos contratos-promessa, a supra-referida concessão do terreno veio a ser declarada caduca pelo despacho de Chefe do Executivo da RAEM de 26 de Janeiro de 2016 e que a construção projectada nunca chegou a ser executada.
Face a esse enquadramento fáctico suposto, parece-nos ser patente que os Autores nunca adquiriram o direito de propriedade das ditas fracções autónomas em construção, por consequência, não se podem arrogar titularidade de qualquer tipo de direito real em relação às mesmas fracções, uma vez que os referidos contratos-promessa carecem da eficácia real que as partes poderiam atribuir mediante declaração expressa e inscrição no registo, de acordo com o preceituado no art.º 407.º do CCM.
Não sendo com eficácia real, revestem-se os contratos em causa de uma natureza meramente obrigacional, que apenas confiram aos seus outorgantes o direito de crédito ou obrigacional.
Nesta conformidade, a despeito da configuração pelos Autores da relação jurídica material assente na responsabilidade extracontratual da Ré, afigura-se-nos ser inverosímil discutir as questões de indemnização à margem dos referidos contratos-promessa já celebrados, uma vez que os danos alegadamente sofridos pelos Autores têm como fonte directa os contratos.
2. A questão a seguir passa por saber se, não obstante a existência de um contrato-promessa, o terceiro alheio poderá ou não ser atingido pela eficácia do contrato, podendo este ser ou não titular da obrigação de indemnizações por lesões do seu direito de crédito, com uma outra fonte autónoma na responsabilidade extracontratual.
Ou melhor dizendo, a questão consiste em saber se a eficácia do contrato se restringe às partes do contrato ou deve antes se estender para além do círculo interno das partes, aos terceiros estranhos ao contrato, que não contrataram nem sucederam na posição de qualquer das partes.
2.1 Para os defensores da tese tradicional da relatividade do direito de crédito, não seria de reconhecer ao crédito um efeito externo que permitisse a sua protecção em relação a terceiros e a responsabilização destes pela lesão do crédito.
Pois, do que se trata é do direito de crédito ou obrigacional que vale apenas inter partes e que só pode ser ofendido pelo devedor, o qual se contrapõe ao direito absoluto de propriedade, ou erga omnes, que é susceptível de lesão por qualquer pessoa.
Nesta linha de consideração, a aceitação dos efeitos externos da obrigação estaria a atribuir um carácter absoluto à relação creditícia, transformando as obrigações em direitos absolutos equiparáveis aos direitos reais, contrariando o disposto do art.º 1230.º do CCM, que considera ter natureza obrigacional e não real todas as restrições ao direito de propriedade.
O mesmo se deve concluir perante o disposto do art.º 400.º, n.º 2 do CCM, “em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos especialmente previstos na lei”.
Em consonância com o disposto da supradita norma, os efeitos externos do crédito apenas surgem indirecta e excepcionalmente, por exemplo, quando se atribui a eficácia real ao contrato-promessa e ao pacto de preferência (art.º s 407.º e 415.º do CCM) e quando se prevê que se converta a obrigação natural de alimentos do lesado, ex lege, em obrigação civil de alimentos do lesante em favor do alimentado pelo lesado que deixa de os poder prestar, nos termos do art.º 488.º, n.º 3 do CCM, ou ainda mais, nos casos da verificação de commodum representationis nos termos do art.º 783.º do CCM.
Resumindo, a responsabilização de terceiro por lesão do crédito não é regra, mas sim excepção quando a lei especialmente o prevê.
2.2 Por outro lado, os efeitos externos da obrigação defender-se-iam apenas ao nível de jure constituendo, segundo a qual se deveria admitir que os direitos de crédito deveriam ser respeitados por terceiros sob pena de responsabilidade, desde que estejamos perante uma situação em que o terceiro conhece a relação especial entre o credor e o devedor e se trate de actuação especialmente censurável, e em particular que esse efeito de responsabilização devem ser assegurados em caso de ataque directo ao crédito e em caso de ataque a um elemento do substrato do crédito, e que se deveria aceitar sempre que se estivesse perante situações de abuso de direito.
Mesmo para os mais influentes oponentes à tese clássica da relatividade do direito de crédito, como por exemplo, o Professor PESSOA JORGE, que entende que “nada impede que a prestação, como um bem a que o credor tem direito, se torne impossível por acto de terceiro, que, dessa forma, lesa um direito subjective alheio, o direito de crédito”, diz no entanto que “É necessário, no entanto, que a sua actuação seja dolosa, ou o terceiro saiba que a obrigação existe e que vai causar um prejuízo ao credor, por impedir que o devedor cumpra, não parecendo, contudo, suficiente uma actuação meramente negligente”.
E por sua vez, no entendimento do Professor MENEZES CORDEIRO, a responsabilidade de terceiro por lesão do crédito, colocar-se-ia em sede do que chama de oponibilidade média. Nesta se colocariam os casos de acção de terceiro que provocasse a morte do devedor, que se traduzisse na destruição de documentos ou de outros elementos instrumentais destinados a atestar ou garantir os créditos e o problema conhecido como o da responsabilidade do terceiro-cúmplice (no incumprimento).
Como é fácil de ver, mesmo para as posições mais radicais, a tese dos efeitos externos da obrigação não se admitiria sem reserva, ou seja, não é qualquer actuação do terceiro releva para a sua responsabilização perante o credor lesado – é sempre necessário que a sua actuação seja especialmente censurável e idónea a trazer uma consequência chocante e insuportável pela exigência de boa-fé e de bom costume, como sucede nos casos de abuso de direito, ou do terceiro-cúmplice no incumprimento.
2.3 Mais ainda, consideramos necessário ter em conta que no elenco das jurisprudências conhecidas, é sempre escassa aquela que aceitou sem reserva a tese da eficácia externa das obrigações.
Assim como na RAEM, a posição que tem sido seguida é a de eficácia relativa da obrigação mitigada com o reconhecimento limitado da sua eficácia externa no caso de abuso de direito pelo terceiro, pela jurisprudência do TUI, no acórdão n.º 2/2002, proferido em 19 de Julho de 2002, onde tratava precisamente a questão da responsabilidade do terceiro pelo incumprimento do promitente-vendedor:
“…Torna-se necessário apurar se o terceiro que contribuiu para frustrar a satisfação do direito do credor, neste caso, o promitente-comprador, deve ser responsabilizado civilmente pelo incumprimento do promitente vendedor, a título de cumplicidade com este. Tem sido discutido o problema da responsabilidade do terceiro na doutrina e há fundamentalmente duas correntes.
Tradicionalmente, entende-se que não admite, em princípio, o efeito externo das obrigações. No caso de incumprimento das obrigações, mesmo com a concorrência de culpa por parte do terceiro, só o devedor incorre em responsabilidade para com o credor. Mas se a conduta do terceiro se mostra particularmente chocante e censurável, este pode responder perante o credor por ter agido com abuso do direito. Portanto, a responsabilidade do terceiro só pode ser constituída com base no abuso do direito, quando se verificarem os respectivos pressupostos.
Diversamente, há autores que defendem a doutrina do efeito externo dos direitos de crédito, considerando que estes também produzem efeitos erga omnes em determinada medida e o regime do desrespeito do direito de crédito por terceiros reconduz-se ao art.º 483.º do CC de 1966 que dispõe sobre a responsabilidade extracontratual. Entende-se que esta norma deve ser aplicável a todos os direitos subjectivos, como o são os direitos de crédito…”
E além do mais:
“…Para Ferrer Correia, sem excluir a relevância de eficácia externa dos direitos de crédito, admite-se o abuso do direito sempre que o terceiro tivesse conhecimento da existência da obrigação.
Não reconhecendo efeito externo da obrigação, Antunes Varela entende que só através doutros institutos, como o abuso do direito, será possível reagir contra a conduta reprovável do terceiro. Então, para que haja abuso do direito por parte do terceiro que viola o direito do credor, “não basta que ele tenha conhecimento desse direito, é preciso que, ao exercer a sua liberdade de contratar, ele exceda manifestamente, por força do disposto no art.º 334.º, os limites impostos pela boa fé.”
Mais razoável será a posição ecléctica sustentada por Vaz Serra. Segundo este autor, para responsabilizar o terceiro por abuso do direito, não basta a cooperação consciente na violação do contrato. Até pode não haver abuso se o terceiro, movido com interesse próprio, tenha apenas a consciência da existência da obrigação e de causar prejuízo a outra parte. “É perfeitamente admissível que esse terceiro tenha um interesse legítimo em comprar, talvez mais legítimo até que o do promitente-comprador.”
Considera que, para haver abuso do direito, não se afigura bastar, porém, que o terceiro conheça, ao contratar, a existência do direito do credor, sendo preciso que tenha agido manifestamente contra a boa fé ou os bons costumes, isto é, que o seu procedimento seja acompanhado de circunstâncias especiais que manifestamente ofendam a consciência social, que denunciem a sua particular censurabilidade, como se o terceiro compra só para prejudicar o credor, e não porque a coisa lhe convém, ou quando o terceiro sabe que o outro contraente não indemnizará o credor lesado com o contrato.
Com esta posição, por um lado, atende-se aos fins visados pelo instituto, de ultrapassagem dos tradicionais quadros e molduras formalistas do conceitualismo, impregnando a Ordem Jurídica dos valores jurídicos de carácter social. Mas por outro, reconhece-se que a abertura demasiada do instituto, tal como o reconhecimento ilimitado da eficácia externa das obrigações, é susceptível de entravar significativamente o tráfico e a segurança jurídicos.” (sublinhado nosso).
2.4 Mutatis mutantis, julgamos que ao caso vertente deve ser esta a posição que merece nossa adesão, repugnando por um lado a aceitação geral e incondicional da tese da eficácia externa do direito de crédito pelo seu radicalismo, em virtude dos argumentos conhecidos a favor da teoria clássica da relatividade dos direitos de crédito, como inoponibilidade do mesmo a terceiros pela falta de publicidade da constituição do direito, impossibilidade lógico-conceitual da violação do crédito por terceiros, risco de grave enfraquecimento do comércio jurídico no caso de aceitar a responsabilização do terceiro por lesão do crédito.
Por outro lado, reconhecemos limitadamente a responsabilização dos terceiros que não se tenham interferido na relação jurídica creditícia, somente nas circunstâncias especialmente censuráveis, quando demonstrada a existência comprovada do abuso de direito por parte dos terceiros ou verificado o terceiro-cúmplice que com a sua actuação dolosa venha a frustrar o direito dos credores.
2.5 Voltemos ao nosso caso concreto.
Com base nas alegações dos Autores, parece-nos seguro afirmar que a Ré ocupa a posição jurídica de terceiro alheio em face do direito de crédito alegadamente lesado, uma vez que a Ré nunca interveio nos contratos-promessa de compra e venda outorgados entre os Autores e a Z1 e que a Ré é apenas a parte do contrato da concessão de terreno celebrado com a Z1, interagindo com esta no âmbito das respectivas relações recíprocas.
Em conformidade com a tese clássica da relatividade de crédito, não estando o caso abrangido por nenhuma excepção legal, bastaria o aludido para afastar a responsabilidade da Ré pelos danos reclamados. Não obstante, veremos se se verifica uma situação de abuso de direito ou uma actuação intencional e lesiva da Ré que poderia ainda justificar a sua responsabilização nos termos limitados.
Das alegações dos Autores resulta que se integram nas causas de pedir da presente acção os factos reportados a uma séria de condutas dos serviços da Ré, alegadamente ilícitas e impeditivas da conclusão do aproveitamento do respectivo terreno por parte da Z1, resumidamente, a colocação sucessiva de um conjunto de novas exigências legalmente não previstas para o estudo de impacto ambiental, e a demora injustificada na pronúncia e na comunicação à Z1 do resultado dos respectivos estudos.
E segundo o que se alega, trata-se de condutas que conduziram à declaração de caducidade da concessão por não aproveitamento e que inviabilizaram por conseguinte o cumprimento dos contratos-promessa por parte da Z1 face aos promitentes-compradores.
Porém, salvo a melhor opinião em contrário, afigura-se-me ser legítimo afirmar que as imputadas condutas, mesmo que fossem verdadeiras, não seriam aptas a indiciar a existência de uma actuação culposa da Ré para com os Autores, porque nunca aquela se intrometeu directamente na esfera jurídica destes.
Pois, uma coisa é saber se a Ré tinha culpa no decurso da execução do contrato de concessão para com a Z1, coisa diversa é se a mesma agia culposamente perante os promitentes-compradores, com que não se deve confundir.
Muito menos qualquer situação de abuso de direito que daí se poderia vislumbrar.
Como é estabelecido na norma do art.º 326.º do CCM: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” (sublinhado nosso).
Reiterando a jurisprudência que já citámos assente na posição ecléctica quanto ao instituto de abuso de direito, a censurabilidade do abuso de direito de terceiro depende do seu conhecimento da existência do direito do credor, e o mais importante, da sua actuação que vai manifestamente para além dos limites suportáveis da boa-fé ou dos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Isto quer dizer que o conhecimento pelo terceiro da existência do direito do credor por si só é insuficiente para sustentar a responsabilização do terceiro.
No caso vertente, foi alegado o conhecimento da Ré da existência dos contratos-promessa já celebrados pelos Autores e a sua consciência da provável lesão do crédito destes pela respectiva actuação. Mas o que é muito diferente de a Ré ter actuado manifestamente contra a regra de boa-fé, com intenção de os prejudicar.
Parece-nos ser evidente que não bastariam para este efeito as imputações vagas, de que “A RAEM bem sabia, ou não podia razoavelmente ignorar, que, ao actuar desse modo (ao impedir a Z1 de concluir o aproveitamento contratualmente previsto e ao praticar subsequentemente o acto de declaração de caducidade de concessão), estava a prejudicar os promitentes-compradores de fracções incluídas na projectada construção objecto do aproveitamento em causa” (conforme se alega no art.º 103.º da p.i.).
Na nossa óptica, não pode a Ré ter violado qualquer dever de boa-fé para com os promitentes-compradores, mesmo entendendo que aquela aquando da imposição das sucessivas exigências à Z1 tivesse alguns comportamentos faltosos, esta falta terá apenas consequência directa na sua relação com a Z1, mas sem a repercussão para fora.
Porque a boa-fé só se aplica no âmbito limitado às situações de relacionamento específico entre os sujeitos. Não se pode exigir a um terceiro para as pessoas com quem não mantém qualquer relação, condutas positivas segundo os ditames da boa-fé, o que é diferente da exigência do dever de respeitar o direito alheio não fundado numa relação obrigacional.
Também não existe a violação de bons costumes por parte da Ré.
A actuação alegadamente ilícita da Ré era simplesmente limitada ao exercício dos direitos conferidos pelo seu estatuto de concedente no âmbito do contrato de concessão, ou dos poderes autoritários inerentes ao respectivo procedimento administrativo na sua relação com a mesma concessionária.
Por outras palavras, dos factos alegados não se conheceria outra intenção da Ré para além daquela que tem sempre acompanhado e dominado a sua actuação administrativa, no exercício das suas funções legalmente atribuídas.
Além disso, convém não esquecer que o acto da declaração da caducidade da concessão de terreno em causa, pelo qual se tornaram efectivas as lesões alegadas pelos Autores, e que estes parecem não querer criticar expressamente, é legalmente vinculado, cuja legalidade já não se discutiria, como foi decidido pelo Acórdão do TUI processo n.º 7/2018, proferido em 23 de Maio de 2018, “Decorrido o prazo de 25 anos da concessão provisória (se outro prazo não estiver fixado no contrato) o Chefe do Executivo deve declarar a caducidade do contrato se considerar que, no mencionado prazo, não foram cumpridas as cláusulas de aproveitamento previamente estabelecidas”.
Como é natural, se a Ré se limitava a dar cumprimento a um comando imposto pela lei vigente na declaração da caducidade da concessão dos terrenos referidos, dificilmente se poderia concluir que exista o direito para ser abusado, ou que exista qualquer intenção por parte dela de prejudicar os interesses dos promitentes-compradores, contrária à exigência das regras de bom costume ou de ordem moral.
Por último, também não parece que a conduta alegada da Ré exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico do direito. Como acima referido, daí, não se conhece nenhum desvio da funcionalidade no exercício dos direitos por parte da Ré, quer como concedente do terreno em causa, quer como autoridade administrativa.
Assim sendo, no quadro legal acima analisado, não se deve concluir que a Ré seja responsabilizada no âmbito de abuso de direito, enquanto que as outras teses elegidas pelos Autores naturalmente não nos convencem, pelas razões que se passa a expor:
Quanto à culpa de serviço ou à responsabilidade pelo funcionamento anormal do serviço, trata-se de uma nova modalidade de responsabilidade de importação jurisprudencial, assente na responsabilização da Administração enquanto tal, pela sua própria conduta lesiva, sem necessidade da demonstração de que um determinado agente actuou com culpa, mas apenas de que o serviço no seu conjunto funcionou de modo anormal.
Contudo parece-nos ser uma tese que vai longe demais para chamar a Ré à responsabilização. Como se sabe, a aplicação deste regime só terá lugar em relação aos danos que devam ser atribuídos ao funcionamento do serviço público e servirá para caracterizar a falta anónima ou colectiva ocorrida na actuação administrativa. Mas como acima referido, pela existência da relação creditícia emergente dos contratos-promessa no caso concreto, a actuação da Ré enquanto terceiro, seja faltosa ou não, não é susceptível de lesar, em abstracto, os direitos dos Autores.
Aliás, sempre se diga que a culpa funcional se reporta às situações em que o facto ilícito “não se revela susceptível de ser apontado como emergente da conduta ético-juridicamente censurável de um agente determinado, mas resulta de um deficiente funcionamento dos serviços – caso em que se imputa subjectivamente o facto danoso não ao agente ou funcionário, mas tão-só à pessoa colectiva pública responsável pelo funcionamento” (cfr. Acórdão do TUI no processo n.º 23/2005, proferido em 18 de Janeiro de 2006).
Daí que as situações típicas da culpa funcional mesmo demonstradas, naturalmente, não se compatibilizam com a exigência de uma actuação especialmente censurável e chocante da Ré fundada no abuso de direito de terceiro como pressuposto da sua responsabilização pelas lesões do direito de crédito.
Portanto, é evidente que a referida tese não sustenta o respectivo pedido indemnizatório.
A mesma sucede em relação à responsabilidade por facto lícito. Com a presença da relação de crédito de que os Autores são titulares, consideramos que está naturalmente quebrado o nexo de causalidade entre a alegada actuação e os danos alegadamente sofridos.
Concluindo, inexiste nenhum título idóneo para fazer responsabilizar a Ré no caso concreto, é manifesto que os pedidos dos Autores devem ser julgados improcedentes.
IV. Decisão:
(…)”.

Seguidamente, consignou o Tribunal de Segunda Instância o que segue:

“Analisada a douta sentença de primeira instância que antecede, louvamos a acertada decisão com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução ao caso, pelo que, considerando a fundamentação de direito aí exposta, cuja explanação sufragamos inteiramente, remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC, aplicável subsidiariamente.
Apenas mais umas achegas.
É verdade que a lei manda prosseguir os autos se a acção tiver sido contestada, e proceder-se à selecção da matéria de facto relevante segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, conforme previsto no n.º 1 do artigo 430.º do CPC.
Mas não podemos deixar de ter em consideração o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 429.º do mesmo Código, em que prevê a possibilidade de o juiz conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial do pedido ou dos pedidos deduzidos pelo autor.
Ora bem, salvo o devido respeito por opinião contrária, se no momento em que deve ser proferido o despacho saneador, já há condições para conhecer do mérito da causa, nomeadamente se chegar à conclusão de que, face à matéria alegada pelo autor, a acção terá mesmo que improceder, por que motivo terá que ordenar o prosseguimento dos autos e a consequente selecção da matéria de facto se, ao fim e ao cabo, vai dar o mesmo resultado, isto é, a improcedência da acção? Em nossa opinião, trata-se de um acto inútil.
Ademais, se da decisão de improcedência for interposto recurso e se o tribunal ad quem também vem entender que, atenta a matéria alegada pelo autor, a acção não deixará de improceder, não vejamos razão para não confirmar a decisão recorrida.
A nosso modesto ver, entendemos que só terá necessidade de mandar prosseguir os autos e proceder-se à selecção da matéria de facto relevante para decisão da causa se o tribunal entender que a acção intentada pelo autor é realmente viável. Neste caso haverá necessidade de produzir a prova uma vez que ainda não reúnem condições para apreciar o pedido do autor.
No fundo, o que está em causa é evitar a prática de actos inúteis, em prol do princípio da economia processual previsto no artigo 87.º do CPC.
Efectivamente, se a lei permite que a petição deva ser indeferida liminarmente com fundamento na manifesta improcedência da acção com respeito pelo princípio da economia processual, por maioria de razão, não vemos obstáculo à apreciação do pedido no saneador, se entender que a pretensão do autor não vai proceder.
No mesmo sentido, defende Paulo Ramos de Faria1 que “O juiz pode indeferir in limine a petição inicial quando for manifesta a inviabilidade da pretensão do autor(…), [pelo que] não se compreendia que lhe fosse vedado conhecer desse mesmo aspecto numa fase mais adiantada do processo, no despacho saneador, quando já dispunha de maiores e melhores elementos de informação.(…) A desnecessidade de mais provas para o imediato conhecimento do pedido não equivale a ausência de controvérsia sobre a questão de facto apresentada pelo autor. Pode esta subsistir e, não obstante, ser possível o conhecimento do mérito da causa. Assim ocorrerá, desde logo, nos casos em que deve ser formulado um juízo de manifesta inviabilidade da acção. Este juízo pode evoluir e reforçar-se entre a apreciação liminar e a fase do saneamento processual, levando à decisão de improcedência nesta ocasião. (…) Reunidos os pressupostos da sua admissibilidade, a realização do julgamento imediato da causa não é apenas um poder do tribunal de primeira instância. É um dever tributário do princípio da economia processual.”
Ora bem, no caso em apreço, não se verifica a alegada falta de fundamentação da decisão quanto à segunda causa de pedir, a saber, a responsabilidade por acto lícito, considerando que o Tribunal recorrido adoptou a mesma fundamentação da decisão em relação à primeira causa de pedir.
De resto, entre a ré e a Z foi celebrado um contrato de concessão de terreno, daí que, se existir alguma responsabilidade por danos decorrente de actos praticados pela ré durante a execução do contrato de concessão, cabe à própria concessionária, e não a uma pessoa terceira, accionar junto da entidade concedente.
Conforme se decidiu na sentença recorrida, atentos os factos alegados pelos autores ora recorrentes, não se verifica que a ré, enquanto terceiro na relação estabelecida entre os promitentes-compradores e a promitente-vendedora nos contratos-promessa de compra e venda de fracção autónoma, tenha actuado culposamente e com intenção de prejudicar os recorrentes, nem que tenha agido com violação do dever de boa fé para com os mesmos, e muito menos actuado com abuso de direito, pelo que andou bem a sentença recorrida, devendo negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
(…)”; (cfr., fls. 1104 a 1112-v).

Aqui chegados, vejamos.

Analisados os autos, atento o decidido e as conclusões pelos recorrentes apresentadas, verifica-se que as “questões” trazidas à nossa apreciação são (absolutamente) idênticas às que nos foram igualmente colocadas em sede dos Autos de Recurso Jurisdicional neste Tribunal de Última Instância registados com os n°s 101/2020 e 116/2020, e que foram objecto de decisão por Acórdão de 04.05.2022 e 13.05.2022, respectivamente, (notando-se, que, sobre as mesmas foram também proferidos os Acs. de 27.05.2022, Procs. n°s 97/2020, 117/2020 e 186/2020).

Assim, apresentando-se-nos que se mantém válido e adequado o que nos ditos veredictos se consignou, e atento o “princípio da economia processual”, adequado se nos apresenta de aqui acompanhar, de perto, a fundamentação por nós aí exposta.

Vejamos.

Entendem os ora recorrentes que o dito Acórdão do Tribunal de Segunda Instância é:
- nulo por falta de especificação dos factos provados, e respectiva fundamentação, (cfr., concl. 1 a 16);
- imputando, ainda, à dita decisão recorrida, “erros de aplicação do direito e de julgamento vários”; (cfr., concl. 17 a 23).

Sem prejuízo do muito respeito por opinião em sentido diverso, não se pode reconhecer razão aos ora recorrentes.

–– Quanto à nulidade por “falta de especificação dos factos provados, e respectiva fundamentação”.

Nos termos do invocado art. 571°, n.° 1, al. b) do C.P.C.M.:

“1. É nula a sentença:
(…)
b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
(…)”.

Ora, a “ratio” deste imperativo legal, que concede tão grande importância à motivação da “decisão”, tomando-a nula se esta for omitida, é fácil de descortinar.

Com efeito, as partes devem ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão, (sobretudo, a parte vencida, que tem o direito de saber por que razão a decisão proferida lhe foi desfavorável).

Porém, só a falta “absoluta” de motivação gera “nulidade”, não se podendo considerar nula a sentença que se caracteriza por uma motivação “insuficiente”, “deficiente”, “medíocre” ou “errada”; (cfr., v.g., o Ac. de 29.09.2021, Proc. n.° 183/2020, e mais recentemente, de 16.03.2022, Proc. n.° 3/2020, de 04.05.2022, Proc. n.° 101/2020, de 13.05.2022, Proc. n.° 116/2020 e de 27.05.2022, Procs. n°s 97/2020, 117/2020 e 186/2020).

Nesta conformidade, e em face do que atrás se deixou consignado, tendo o Acórdão recorrido feito “sua” a fundamentação da decisão do Tribunal Administrativo, e, (para além de a ter adoptado como sua), explicitado – e aditado – argumentos para justificar a sua decisão no sentido de negar provimento ao recurso, não vislumbramos como considerar que se incorreu em “omissão de pronúncia” do que quer que seja, até mesmo porque, (como se deixou referido, e mais adiante se verá também), o Tribunal Administrativo deixou (claramente) explicitado que a “matéria de facto” imputada à R.A.E.M. a título de “causa”, (ou “fonte”), da pelos recorrentes reclamada indemnização – e independentemente de serem factos “lícitos” ou “ilícitos” – nunca poderia(m) fundamentar qualquer pretensão neste sentido, pois que alegado não tinha sido qualquer “facto” (ou acto) pela mesma praticado que tivesse interferido, intencional e abusivamente, no âmbito da “relação contratual” dos AA., ora recorrentes, e entre estes mantida com a concessionária (e promitente-vendedora “Z1”).

–– Assim, e sem mais demoras, avancemos para a (verdadeira) “questão” que os presentes autos suscitam, e que, em bom rigor, está em saber se a “pretensão” dos AA., ora recorrentes, (em serem indemnizados), merecia (uma) outra solução, (que não a da sua improcedência), e se incorreu o Tribunal recorrido em “erro de aplicação de direito e de julgamento”.

Tendo presente o sentido das decisões proferidas pelas Instâncias recorridas e o pelos ora recorrentes alegado, cabe dizer que, em nossa modesta opinião, a verdadeira “questão” da presente lide recursória consiste (e resume-se) em saber se existe, (ou não), “inconcludência jurídica” na acção que propuseram no Tribunal Administrativo.

Isto é, importa apreciar (e decidir) se a(s) “causa(s) de pedir” por estes alegada(s) e articulada(s) permitem alcançar o “efeito jurídico” pretendido através do preenchimento da previsão normativa e regime jurídico relevante, e que, no caso, consiste, exactamente, nos respectivos “pedidos” de condenação da R.A.E.M. no pagamento de indemnizações em montante pelos ditos recorrentes alegado como o “prejuízo” sofrido em virtude da conduta pela R. desenvolvida e que culminou com a “declaração de caducidade da concessão do terreno” à “Z1”, com quem aqueles celebraram “contratos-promessa de compra e venda” de fracções autónomas a construir no terreno em questão, e que, em virtude da resultante “impossibilidade objectiva” na celebração dos contratos definitivos, afirmam ter de suportar.

Com efeito, e como cremos ser pacífico, se o conjunto dos factos pelos recorrentes alegados enquanto “factos constitutivos do seu (reclamado) direito” não preencher – de modo algum – as “condições de procedência da acção”, absolutamente indiferente é então a sua “prova”, sendo, obviamente, (e totalmente), inútil, toda a tarefa de “selecção da matéria de facto”, “instrução” e posterior “audiência de discussão e julgamento” da mesma; (cfr., v.g., José Lebre de Freitas in, “C.P.C. Anotado”, Vol. 1, pág. 344, e Vol. 2, pág. 373, e in “A Acção Declarativa Comum, À luz do Código Revisto”, 2000, pág. 159, e Abrantes Geraldes in, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. II, pág. 135 a 137).

Ora, constatando-se que os AA., ora recorrentes, invocam a “responsabilidade extracontratual” da R.A.E.M. nos termos do Decreto-Lei n.° 28/91/M de 22.04 – e certo sendo que nos termos do art. 97° do C.P.A.C., “As acções têm por objecto, designadamente, o julgamento de questões sobre: e) Responsabilidade da Administração ou dos titulares dos seus órgãos, (…) por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, (…)”, meio processual este que é de “plena jurisdição”, estando especialmente regulado nos art°s 116° e 117° do mesmo código; (sobre o tema podendo-se ver V. Lima e A. Dantas in, “C.P.A.C. Anotado”, pág. 296 e segs.) – afigura-se-nos, assim, essencial, passar-se a ponderar sobre os (necessários) “requisitos legais” para essa reclamada responsabilização e indemnização.

Apresenta-se-nos porém útil uma nota prévia.

É a seguinte.

Antes de mais, (cabe observar), não se pode perder de vista que em causa está uma questão de “responsabilidade civil”, que – apenas – tem lugar “quando uma pessoa deve reparar um dano sofrido por outra”; (cfr., v.g., Mário Júlio de Almeida Costa in, “Direito das Obrigações”, 12ª ed., pág. 517 e 518, podendo-se também sobre o tema, ver, v.g., R. Alarcão in, “Direito das Obrigações”, pág. 205 e segs., A. Varela in, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 518 e segs., M. Cordeiro in, “Tratado de Direito Civil Português II, Direito das Obrigações”, Tomo III, pág. 285 e segs., e, Manuel Trigo in, “Lições de Direito das Obrigações”, F.D.U.M., pág. 237 e segs.).

Com efeito, nos termos do art. 477° do C.C.M.:

“1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”.

Por sua vez, adequado se nos mostra de atentar que preceitua também o art. 480° do mesmo código que:

“1. É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
2. A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”.

Ora, atento o assim preceituado é opinião – no mínimo – dominante (na doutrina e jurisprudência) que a “responsabilidade civil”, de acordo com a “natureza do dever jurídico violado” se pode distinguir em “contratual” e “extracontratual”, (delitual ou aquiliana), certo sendo ainda que “em função da culpa” pode também ser classificada como responsabilidade “objectiva” e “subjectiva”, consoante a vítima necessite ou não de provar a culpa do agente.

Em relação à matéria da “responsabilidade (civil) administrativa”, (e em abreviada síntese), habitual é dividir-se a evolução do seu regime em 3 períodos (essenciais): o da “irresponsabilidade”, o “civilístico” (ou misto), e o “publicista”.

O primeiro, constituindo característica dos estados absolutistas, assentava, (essencialmente), na (famosa) premissa “the King can do no wrong”, (ou seja, “o rei não erra”), pois que se considerava que sendo o Estado expressão da Lei e do Direito, não havia como considerá-lo violador da norma jurídica.

Em decorrência da evolução das relações Estado-Sociedade, surge, após a Revolução Francesa, (Séc-XVIII), a “teoria da culpa civilística”, que aplicava à responsabilidade do Estado as mesmas regras do direito privado, isto é, era necessária a culpa do agente estatal para que se configurasse a responsabilização do ente público.

Revelando-se, igualmente, insuficiente, surgiram, posteriormente, as “teorias publicistas”, onde a responsabilidade estatal passa a ser examinada sob o prisma dos princípios (próprios) do Direito Administrativo.

Nesta conformidade, reconhecendo-se que em sociedade, é inevitável a ocorrência de danos para as pessoas e o seu património, pois que, a crescente complexidade da vida, em grande parte motivada pela evolução tecnológica, multiplicou, exponencialmente, tal probabilidade, (de tal modo que, como bem identificou Ulrich Beck in, “Risk Society: Towards a New Modernity”, vivemos na actualidade numa “sociedade de risco” «Risikogesellschaft»; cfr., Guimarães Osório in, “A Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração por Violação do Direito da União Europeia”, pág. 12, F.D.U.P.), e para se colmatar uma lacuna até então existente no sentido de se “definir o tipo de responsabilidade por actos ilícitos no domínio da gestão pública, de molde a proteger os legítimos interesses e direitos dos particulares e clarificar o âmbito do dever de indemnizar por parte dos sujeitos lesantes”, tutelando-se, também, “direitos ou interesses que eventualmente venham a ser lesados por factos casuais e actos administrativos legais ou materialmente lícitos”, aprovou-se, em Macau, o referido Decreto-Lei n.° 28/91/M de 22.04; (in B.O. n.° 16/199).

De facto, ao desempenhar as suas funções, a Administração deve fazê-lo de acordo e no estrito cumprimento da “legalidade”, da “realização do interesse público”, no respeito da “igualdade” e “proporcionalidade”, da “justiça”, “imparcialidade” e da “boa fé”; (cfr., art°s 3 e segs. do C.P.A.).

Quando tal actuação provocar “dano”, deverá então ser responsabilizada reflectindo tal possibilidade uma das exigências do (próprio) “Estado Social de Direito”.

A “responsabilidade – civil – administrativa”, consiste, assim, num “conjunto de circunstâncias” das quais emerge, para a Administração Pública e para os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, a “obrigação de indemnizar” pelos prejuízos causados a outrem no exercício da actividade administrativa; (cfr., v.g., Marcelo Rebelo de Sousa in, “Responsabilidade Civil Administrativa – Direito Administrativo Geral”, Tomo III, Publicações Dom Quixote, pág. 11, podendo-se também ver, v.g., M. J. Rangel de Mesquita in, “Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública”).

Desta forma, a “responsabilidade civil pública” será uma obrigação que incide sobre uma pessoa colectiva pública de indemnizar os danos que tiver provocados a um particular no exercício da sua actividade.

Porém, ao se falar em “responsabilidade civil administrativa”, importa ter em conta que o uso do termo “civil” não significa que estamos em sede de “Direito Civil”.

Esta designação indica apenas que a responsabilidade em causa não é “política”, “criminal” ou “contra-ordenacional”, pretendendo-se tão só a prevenção, ou punição, de condutas que se mostrem “antijurídicas”, ou seja, que a Administração repare os danos que possa ter causado na esfera jurídica de um particular.

Como no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência deste Tribunal de Última Instância de 18.01.2006, (Proc. n.° 23/2005), se teve oportunidade de considerar, em teoria, é fácil distinguir a responsabilidade civil “contratual” da “extracontratual”.

Esta última – a extracontratual – assenta na violação de deveres gerais de abstenção, correspondentes aos direitos absolutos, (como, v.g., o direito à vida ou o direito à integridade física).

Por sua vez, a responsabilidade “contratual” resulta do não cumprimento dos deveres próprios das obrigações, (sendo também sabido que, por vezes, o mesmo acto pode originar simultaneamente responsabilidade “contratual” e responsabilidade “extracontratual”: é o caso do médico privado que, em intervenção cirúrgica, culposamente, provoca a morte do paciente. Incorre em responsabilidade contratual por violação da obrigação, do direito de crédito. Incorre em responsabilidade extracontratual por violação do direito absoluto à vida).

Como nota Mário Júlio de Almeida Costa:

“A responsabilidade contratual resulta da violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico. Verificamos, portanto, que o qualificativo corrente não se mostra rigoroso, dado que, além dos contratos, existem outras fontes de tais vínculos, cujo incumprimento ocasiona essa espécie de responsabilidade civil. Podem eles, do mesmo modo, surgir de negócios jurídicos unilaterais e, inclusive, directamente da lei. Mercê da razão exposta, alguns autores preferem chamar-lhe responsabilidade negocial ou responsabilidade obrigacional.
Contraposta à categoria mencionada, surge, em termos residuais, a da responsabilidade extracontratual, onde se abrangem os restantes casos de ilícito civil. Deriva, «maxime», da violação de deveres ou vínculos jurídicos gerais, isto é, de deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos, ou até da prática de certos actos que, embora lícitos, produzem dano a outrem. (…)”; (in ob. cit., pág. 539 e 540).

E como se sabe, embora predomine a “responsabilidade subjectiva”, baseada na “culpa”, sancionam-se também situações excepcionais de “responsabilidade objectiva ou pelo risco”, isto é, situações independentes de qualquer dolo ou culpa da pessoa obrigada à reparação.

Pois bem, da (mera) leitura e comparação das suas respectivas normas legais, pode-se concluir que o atrás referido Decreto-Lei n.° 28/91/M – que, mantendo-se em vigor na R.A.E.M., define o “regime da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, dos seus titulares, e agentes por actos de gestão pública”, (cfr., o seu art. 1°) – tem a sua origem no então vigente Decreto-Lei de Portugal n.° 48 051 de 21.11.67, (entretanto revogado pela Lei n.° 67/2007 de 31.12 que, por sua vez, foi também alterada pela Lei n.° 31/2008 de 17.07).

Cabendo salientar que tal Decreto-Lei n.° 28/91/M colmatou uma lacuna no direito positivo que ocorreu com a publicação do então vigente Código Civil de 1966, o qual, tão só regulou a matéria da responsabilidade civil extracontratual da Administração e demais pessoas colectivas públicas por actos ilícitos praticados no exercício de actividade de “gestão privada”, (cfr., art. 494° do C.C.M.), apresenta-se de ter desde já como unânime que são pressupostos da responsabilidade civil, a “ilicitude”, a “culpa”, o “dano” e o “nexo de causalidade entre o dano e o facto ilícito (e culposo)”, sendo a verificação destes pressupostos “cumulativa”, (ou seja, bastando que um deles se não verifique, para que não exista responsabilidade); (cfr., v.g., e entre outros, F. Pessoa Jorge in, “Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil”, Antunes Varela in, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 532 e segs., e M. Trigo in, “Lições de Direito das Obrigações”, pág. 249 e segs.).

Pronunciando-se sobre o aludido diploma português já teve o S.T.A. (de Portugal) oportunidade de considerar que:

“O legislador faz depender a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, da verificação dos seguintes pressupostos:
a) o facto voluntário, que se traduz numa acção ou omissão da Administração praticada no exercício das funções que lhe foram cometidas pelo legislador e por causa delas;
b) a ilicitude, traduzida na violação por esse facto, do bloco de legalidade;
c) a culpa, como nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto à vontade do agente, a título de dolo ou negligência;
d) o dano, lesão ou prejuízo de valor patrimonial, produzido na esfera de terceiros;
e) e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, a apurar segundo a teoria da causalidade adequada, consagrado no artigo 563.º do CC”; (cfr., Ac. de 27.11.2014, Proc. n.° 1506/13, aqui citado a título de “jurisprudência comparada”).

Na verdade, e como se mostra bastante evidente, longe de verdade não estaremos se tivermos como adequado que no domínio da “responsabilidade civil extracontratual”, a formação da obrigação de indemnizar pressupõe, em princípio, a existência de um facto voluntário ilícito – isto é, controlável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal, um direito ou interesse de outrem legalmente protegido – censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico – ou seja, que lhe seja imputável a título de dolo ou culpa – de um dano ou prejuízo reparável, e, ainda, de um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto, (cfr., art°s 477°, n.° 1, 480°, n° 2, 556°, 557° e 558°, n.° 1, do C.C.M.), o que, em face do estatuído no art. 2° do referido Decreto-Lei n.° 28/91/M, se apresenta também adequado para o caso da “Responsabilidade da Administração e demais pessoas colectiva públicas”.

E, então, voltando à situação dos presentes autos, importa sublinhar que relativamente ao aludido requisito da “ilicitude”, a mesma não se basta com a verificação de uma qualquer “ilegalidade”, necessário sendo que a mesma constitua ou assente numa violação de uma norma jurídica que tutele (expressa e directamente) uma posição jurídica subjectiva, (cuja lesão se pretende ver reparada).

Assim, adequado se mostra pois de considerar que um acto só será gerador de responsabilidade se as normas ou princípios violados (ou incumpridos) revelarem uma “intenção normativa de protecção de posições jurídicas substantivas dos particulares”, ou, melhor, tão só e apenas, quando se verifique uma “ilegalidade qualificada” é que a mesma determina o surgimento de um “acto gerador de responsabilidade”.

Em suma – e este nos parece constituir o entendimento dominante, (pelo menos, na altura do Decreto-Lei n.° 48 051 Português) – a violação de meros preceitos jurídicos não era, por si só, fundamento bastante para responsabilizar civilmente a Administração, exigindo-se a “ofensa de direitos subjectivos” ou de disposições legais destinadas a proteger os “interesses materiais do lesado”; (orientação que se veio a apelidar de “teoria das normas de protecção”, realçando-se a “dimensão subjectiva do pressuposto da ilicitude”, e exigindo-se, noutra formulação, a necessidade da “ilicitude do resultado”, por mera contraposição à “ilicitude da conduta”; cfr., v.g., Gomes Canotilho in, “O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos”, Coimbra, 1974, pág. 75, nota 17, e Comentário ao Ac. do S.T.A. de 12.12.1989, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 125°, n.° 3816, pág. 83 e 84; Rui Medeiros in, “Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos”, Coimbra, 1992, pág. 168 a 170; Margarida Cortez in, “Responsabilidade civil da Administração por actos administrativos ilegais e concurso de omissão culposa do lesado”, Stvdia Ivridica, 52, 2000, pág. 70 a 72; Ivo Miguel Barroso in, “Ilegalidade e ilicitude no âmbito da responsabilidade civil extracontratual da Administração”, Novas e Velhas Andanças do Contencioso Administrativo – Estudos sobre a Reforma do Processo Administrativo, Lisboa, 2005, pág. 213; Vieira de Andrade in, “A Responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função administrativa na nova lei sobre responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 137°, n.° 3951, 2008, pág. 365; Carlos Alberto Cadilha in, “Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas – Anotado”, Coimbra, 2008, pág. 152 a 154; Luís Cabral de Moncada in, “Responsabilidade civil extra-contratual do Estado – a Lei n.° 67/2007, de 31 de Dezembro”, Lisboa, 2008, pág. 67; Marcelo Rebelo De Sousa e André Salgado De Matos in, “Direito Administrativo Geral – Actividade Administrativa”, 2ª ed., Lisboa, 2010, pág. 499; Paulo Otero in, “Causas de exclusão da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública por facto ilícito”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Vol. II, Coimbra, 2010, pág. 978 e 981; Alexandra Leitão in, “Duas questões a propósito da responsabilidade extracontratual por (f)actos ilícitos e culposos praticados no exercício da função administrativa: da responsabilidade civil à responsabilidade pública. Ilicitude e presunção de culpa”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Vol. IV, Coimbra, 2012, pág. 53 e 54; e Mário Aroso de Almeida in, “Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas”, Lisboa, 2013, pág. 254; podendo-se, também, a título de jurisprudência comparada, e entre outros, ver os Acs. do S.T.A. de Portugal de 12.12.1989, Proc. n.° 24814A, de 08.11.1994, Proc. n.° 31900, de 16.02.1995, Proc. n.° 36023, de 01.07.1997, Proc. n.° 41588, de 04.11.1998, Proc. n.° 40165, de 20.12.2000, Proc. n.° 44649, de 13.02.2001, Proc. n.° 44445, de 25.02.2003, Proc. n.° 1992/02, de 24.03.2004, Proc. n.° 1690/02, de 18.11.2004, Proc. n.° 728/04, de 27.01.2010, Proc. n.° 513/09, e de 23.02.2012, Proc. n.° 1107/11).

Nesta conformidade, visto cremos estar que necessário se torna então averiguar, atenta a situação do caso concreto, a “relação” (concretamente) existente entre as normas e princípios violados e a esfera jurídica substantiva do particular, no caso, dos recorrentes, de forma a determinar se aqueles comandos jurídicos tinham (também) por fim a protecção dos seus “direitos subjectivos” e/ou “interesses legalmente protegidos”.

Ora, in casu, (e em abreviada síntese que se nos mostra acertada), os AA., ora recorrentes, assentaram o seu pedido indemnizatório (em “causa de pedir composta”), alegando, (resumidamente), que sem qualquer previsão legal expressa que o permitisse, a R.A.E.M. deu (subitamente) lugar a um conjunto sucessivo de novas “exigências”, (não obstante a aprovação do projecto de arquitectura da atrás referida “Z1”, no caso, a concessionária do terreno onde seria construído o projecto imobiliário “[Edifício]” e onde os ditos recorrentes prometeram comprar àquela fracções autónomas desse projecto imobiliário), sujeitando, designadamente, a aprovação do projecto originariamente apresentado pela dita “Z1” à obtenção de parecer prévio favorável da D.S.P.A. relativamente a um estudo ou relatório de impacto ambiental a apresentar, alegando, também, que a D.S.P.A. foi colocando novas e renovadas exigências quanto aos elementos a apresentar em sede de estudo de impacto ambiental, impedindo, assim, a referida “Z1” de iniciar e concluir a construção que projectara com o aproveitamento do terreno concedido dentro do seu prazo de concessão, sendo, desta forma, de se considerar que o dito não aproveitamento do terreno por parte da “Z1” – e a consequente caducidade da concessão – teve lugar por “factos imputáveis à R.A.E.M.”, (seus órgãos e funcionários), e daí se concluindo que foi a R.A.E.M. (e os seus serviços) que deram causa à impossibilidade dos recorrentes de adquirirem as fracções autónomas prometidas comprar, devendo aquela responder civilmente pelos danos que sofreram, pois que bem sabia da existência dos contratos-promessa celebrados com a “Z1”, e, não obstante, levou a cabo diversas condutas que culminaram na “impossibilidade objectiva” desta (“Z1”) em (acabar de) construir o que havia projectado no prazo da concessão.

No fundo, (e em apertada síntese), alegam que se os serviços da R.A.E.M. não tivessem colocado novas exigências – e não tivessem demorado tanto tempo para emitir as suas pronúncias, v.g., sobre todos e cada um dos elementos do estudo de impacto ambiental que foram sendo apresentados – a “Z1” teria executado a construção projectada dentro do prazo de aproveitamento previsto no contrato de concessão, pelo que não ficaria impossibilitada de cumprir com os contratos-promessa celebrados (nomeadamente) com os recorrentes; (sucintamente, estes os “elementos” que, em nossa opinião, configuram a “causa de pedir” dos recorrentes, e que, no seu entender, são válidos e bastantes para evidenciar a imputada existência da prática de facto(s) ilícito(s) culposo(s) pela R.A.E.M. e que a responsabilizam extracontratualmente perante os recorrentes).

Dest’arte, e se bem ajuizamos – sendo que na opinião dos ora recorrentes, os actos “voluntários da Administração” prendem-se com as “sucessivas exigências” formuladas pela Administração à Concessionária, o que aliado também à “excessiva morosidade” no funcionamento da Administração, teriam estado na base da caducidade da concessão por falta de aproveitamento pela concessionária, tornando consequentemente impossível o cumprimento por parte desta dos contratos-promessa celebrados com os recorrentes – apresenta-se-nos lógico que a questão que de imediato se coloca é pois a de saber quais os “direitos subjectivos” ou “interesses legalmente protegidos” dos recorrentes que foram pela R.A.E.M. violados.

Ora, considerando-se que defendem os recorrentes que a “celebração dos contratos prometidos” constituía um seu “interesse legalmente protegido”, e sendo, também, um interesse legalmente protegido a “confiança” que depositaram na aprovação do projecto de arquitectura e o conhecimento dos serviços da R.A.E.M. de que tinham sido celebrados contratos-promessa de compra e venda, parece-nos, salvo melhor opinião, manifesto o desacerto do seu entendimento explanado nas suas alegações, pois que não alegam, (nem invocam), concretamente, qualquer “norma de protecção” do seu dito interesse na celebração dos contratos prometidos.

Em primeiro lugar, (e antes de mais, em face de alguma confusão conceptual em que incorrem os recorrentes), mostra-se adequado esclarecer desde já que (segundo aquilo que temos como adequado):

“(…) tanto na figura do direito subjectivo como na do interesse legítimo existe um interesse privado reconhecido e protegido pela lei. Porém, no direito subjectivo essa protecção é imediata e plena, de tal modo que o particular tem a faculdade de exigir à Administração um ou mais comportamentos que satisfaçam integralmente o seu interesse privado e, bem assim, o poder de obter a sua completa realização em juízo em caso de violação ou não cumprimento. No interesse legítimo, ao invés, porque a protecção legal é mediata, ou de segunda linha – pois o interesse protegido directamente é um interesse público –, e não é plena, mas mitigada, o particular não pode exigir à Administração que satisfaça integralmente o seu interesse privado, mas apenas que não o prejudique ilegalmente; em caso de ilegalidade, o particular não poderá realizar plenamente o seu interesse em tribunal, mas, tão-somente, eliminar os actos ou comportamentos ilegais que o tenham prejudicado. (…)
Exemplo de um direito subjectivo: se a lei disser que ao fim de cinco anos de serviço o funcionário tem direito a uma diuturnidade, isso significa que o funcionário pode legalmente exigir a concretização dessa diuturnidade, e que o Estado tem a obrigação jurídica de fazer o respectivo pagamento ao funcionário. (…)
Exemplo de um interesse legítimo: a lei estabelece que para preencher um lugar de professor catedrático tem de se realizar um concurso público, ao qual podem concorrer todos aqueles que reúnam determinadas condições legais; suponhamos que concorrem três pessoas, mas que uma delas não se encontra nas condições legais exigíveis para concorrer, e que o júri a escolhe precisamente a ela para o provimento do cargo. Qualquer dos outros dois candidatos ficou prejudicado ilegalmente, porque a decisão que nomeou um candidato que não preenchia as condições legais foi ilegal. Esses dois candidatos podem impugnar a decisão, e têm direito a obter a sua anulação pelos tribunais. Isto significa que qualquer deles tem direito ao cargo? Claro que não. Significa apenas que eles podem remover um obstáculo ilegal à satisfação do seu interesse e significa, em segundo lugar, que terão uma nova oportunidade para tentar conseguir realizar esse interesse. (…)”; (cfr.,
v.g., Diogo Freitas do Amaral com a colaboração de Pedro Machete e Lino Torgal in, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. II, 3ª ed., pág. 59 e 60).

Adequado – e lícito – parece de assim concluir e considerar também que os “direitos subjectivos” e “interesses legalmente protegidos” em causa, são aqueles que, por força de lei, operam em face da Administração, não se confundindo, por isso, com um (mero) “direito subjectivo” qualquer, nomeada e especialmente resultante de uma relação creditícia (de natureza meramente “obrigacional”) a que a Administração é totalmente alheia, até mesmo porque, como é óbvio, um direito de crédito resultante de um mero contrato-promessa com terceiro, (como é o caso dos autos), não é certamente um “direito” cuja satisfação possa ser exigido à Administração, (e, muito menos, por esta concretizado).

Com efeito, não se pode olvidar também, sendo aliás de se ter pois bem presente que a “ilegalidade” alegadamente cometida deve (necessariamente) envolver a (expressa e directa) violação de uma norma que “tutele a posição jurídica subjectiva cuja lesão se pretende ver reparada”, (cfr., v.g., o Ac. do S.T.A. de 31.05.2005, Proc. n.° 127/03, também citado no atrás referido Ac. de 27.11.2014, Proc. n.° 1506/13), sendo de se realçar que com tal se pretende dizer que “um acto só será gerador de responsabilidade se as normas ou princípios incumpridos revelarem uma intenção normativa de protecção de posições jurídicas substantivas dos particulares”, ou seja, (como atrás se referiu), “só uma ilegalidade qualificada é que determina o surgimento de um acto gerador de responsabilidade”.

Como (citando Gomes Canotilho) nota igualmente José Cândido de Pinho:

“a acção para a efectivação de responsabilidade civil extracontratual pode ser fundada em actos ilícitos (art. 2.°, 3.°, 4.° e 7.°, do DL n.° 28/91/M), e que, «… não é qualquer ilegalidade que determina o surgimento de um acto ilícito gerador de responsabilidade civil. Para haver ilicitude responsabilizante, é necessário que a Administração tenha lesado direitos e interesses legalmente protegidos do particular, fora dos limites do ordenamento jurídico, ou seja, é necessário que a norma violada revele a intenção normativa de protecção do interesse material do particular, não bastando uma protecção meramente reflexa ou ocasional».
Ou seja, a “ilicitude” não se reconduz, sem mais, ao conceito de “ilegalidade”, antes pressupõe a violação de uma posição jurídica substantiva (direito subjectivo ou interesse legalmente protegido) do particular, pois nem todas as normas têm por finalidade a protecção de direitos e interesses individuais dos particulares, sendo que é necessário, para que a ilegalidade gere ilicitude, que a norma violada revele uma intenção normativa de protecção do interesse cuja lesão o particular invoca, ou, como refere Gomes Canotilho, é necessário existir uma «conexão de ilicitude entre a norma e princípio violado e a posição juridicamente protegida do particular»”; (in “Notas e Comentários ao C.P.A.C.”, Vol. II, C.F.J.J., 2018, pág. 146 e 147).

E, assim, na situação sub judice, parece-nos manifesto que a “exigência” da Administração de apresentação por parte (tão só) da “concessionária”, (e não aos recorrentes), de determinados estudos de impacto ambiental que teriam de ser por aquela aprovados – e ainda que fosse de admitir, como afirmam os recorrentes, que há falta de regulamentação legal quanto aos requisitos do estudo de impacto ambiental ou que a sujeição a aprovação prévia desse estudo funcionou “ilegalmente” como “condição resolutiva” da aprovação do projecto de arquitectura, bem como a (eventual) “morosidade” da sua actuação no exame desses estudos – não implica a violação de quaisquer normas ou princípios que tutelavam qualquer “posição jurídica subjectiva dos recorrentes”.

Com efeito, (independentemente do demais), apresenta-se-nos claro que esse “modo de actuar” da Administração não representa qualquer infracção de normas jurídicas que estabeleciam qualquer “interesse legalmente” protegido dos recorrentes à “celebração do contrato prometido”, muito menos, se devendo, (ou podendo), confundir o conceito de “interesse legalmente protegido” com a figura da “protecção da confiança” que, aqui, inexiste totalmente pela simples razão que a Administração nunca entrou, a este respeito, em qualquer “relação” (ou “contacto”) com os recorrentes, (cfr., art°s 8° e 9°, n.° 2 do C.P.A.), pelo que também não se mostra existir qualquer “confiança juridicamente tutelada” dos recorrentes decorrente da aprovação do projecto de arquitectura da concessionária ou da comunicação da celebração de contratos-promessa e do pagamento do respectivo imposto do selo legalmente devido.

De facto, prescreve o art. 8° do C.P.A. que:

“1. No exercício da actividade administrativa, e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fé.
2. No cumprimento do disposto no número anterior, devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas e, em especial:
a) Da confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa;
b) Do objectivo a alcançar com a actuação empreendida”.

E, por sua vez, nos termos do seu art. 9°:

“1. Os órgãos da Administração Pública e os particulares devem actuar em estreita cooperação recíproca, devendo designadamente:
a) Prestar as informações e os esclarecimentos solicitados, desde que não tenham carácter confidencial ou de reserva pessoal;
b) Apoiar e estimular todas as iniciativas socialmente úteis.
2. A Administração Pública é responsável pelas informações prestadas por escrito aos particulares, ainda que não obrigatórias”.

Ora, como nota Jesus González Pérez, (in “Comentarios a la ley de procedimiento administrativo”, pág. 982 a 983):

“a aplicação do princípio da confiança está dependente de vários pressupostos, desde logo, o que se prende com a necessidade de se estar em face de uma confiança “legítima”, o que passa, em especial, pela sua adequação ao Direito, não podendo invocar-se a violação do princípio da confiança quando este radique num acto anterior claramente ilegal, sendo tal ilegalidade perceptível por aquele que pretenda invocar em seu favor o referido princípio.
Por outro lado, para que se possa, válida e relevantemente, invocar tal princípio é necessário ainda que o interessado em causa não o pretenda alicerçar apenas na sua mera convicção psicológica, antes se impondo a enunciação de sinais externos produzidos pela Administração, suficientemente concludentes para um destinatário normal e onde se possa razoavelmente ancorar a invocada confiança”.

Por outro lado, importa ter presente que um outro “pressuposto” relaciona-se precisamente com a necessidade de o particular ter “razões sérias” para acreditar na validade dos actos ou condutas anteriores da Administração, aos quais tenha ajustado a sua actuação, (cfr. v.g., Ramón Parada in, “Derecho Administrativo, I, Parte General”, 2ª ed., pág. 341 a 342), sendo lógico assim considerar que não existe “violação do princípio da boa fé” se aos recorrentes, e como foi o que efectivamente sucedeu, não foram pela Administração criadas quaisquer “expectativas (minimamente) sólidas” relativamente à concretização dos aludidos contratos-promessa, com a “outorga das respectivas escrituras de compra e venda”.

Aliás, não se pode também perder de vista que “(…) um dos elementos que informa o conteúdo da noção de boa-fé consiste, precisamente, na necessidade de se estar perante uma conduta contraditória, que não fosse razoável intuir de um determinando comportamento anterior, destarte não existindo a invocada violação de dever jurídico-funcional de um comportamento consequente. (…)”; (cfr., sobre este ponto, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 125, pág. 85).

E, in casu, apresenta-se-nos, no mínimo, caricato, considerar que ao exigir da concessionária a apresentação de estudos de impacto ambiental, e, por ter declarado a caducidade da concessão após expirado o seu prazo, tenha a R.A.E.M. actuado de forma “contraditória” em relação aos contratos-promessa apenas e tão só entre a dita concessionária e os ora recorrentes celebrados.

Com efeito, (e em suma), ainda que demonstrado estivesse que existiram (efectivamente) “demoras procedimentais”, (cfr., art. 12° do C.P.A.), ou que foram formuladas exigências à margem da lei, tal não implicaria a violação de qualquer “norma de protecção” que (expressa e directamente) tivesse como objectivo acautelar os “interesses legalmente protegidos” dos recorrentes à celebração dos referidos contratos prometidos.

Dest’arte, (como se crê que se deixou explicitado), impõe-se constatar que são juridicamente inexistentes os supostos “interesses legalmente protegidos” pelos recorrentes invocados, sendo antes de se referir que se limitam a uma sua inadequada definição, com recurso, e a partir, do “direito civil”, através da afirmação de que têm um “direito subjectivo em relação ao devedor”, para daí retirar um “interesse” legalmente protegido em face da Administração.

Pelo exposto, impõe-se concluir que os “actos” da Administração supostamente “ilegais” pelos recorrentes invocados não violam nenhuma “disposição legal destinada a proteger os seus interesses”, (cfr., art. 7°, n.° 1, in fine, do Decreto-Lei n.º 28/91/M), cabendo também aqui notar que o próprio recurso contencioso pela “Z1” interposto do acto administrativo que declarou a “caducidade da concessão” foi julgado improcedente por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 19.10.2017, Proc. n.° 179/2016, o qual foi também posteriormente confirmado pelo Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 23.05.2018, Proc. n.° 7/2018.

Por sua vez, forçoso é igualmente concluir que da matéria factual articulada e que configura a “causa de pedir” não se pode extrair, (por total falta de preenchimento da previsão normativa), o “efeito jurídico” pelos mesmos pretendido, ou seja, a “responsabilização extracontratual” da Administração com a sua condenação no pagamento das reclamadas indemnizações, sendo, aliás, de notar que os recorrentes nem sequer tem qualquer “legitimidade” para impugnar “contenciosamente” os actos por eles considerados ilegais, precisamente porque em relação aos mesmos são “terceiros alheios”, impondo-se, também desta forma consignar que não se vislumbra como possam ter sido afectados os seus direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos.

Assim, sem direito subjectivo ou interesse legalmente protegido afectado pelos “actos” da Administração, afastada está – claramente – qualquer pretensão no sentido da “responsabilização civil extracontratual” da Administração, (pelo que, falecendo este requisito essencial, desnecessário se torna apreciar os demais requisitos, como a “culpa”, cuja falta foi o fundamento da decisão tomada pelo Tribunal Administrativo).

Resultando desta forma evidente a atrás referida “inconcludência jurídica”, e podendo assim em despacho saneador conhecer-se do mérito do pedido, vista está a falta de razão dos recorrentes na parte em questão.

Na verdade, e como nota José Lebre de Freitas:

“(…) Em tal situação, é inútil produzir prova sobre os factos alegados, visto que eles nunca serão suficientes para a procedência do pedido. O réu é absolvido do pedido”; (in ob. cit., pág. 159).

–– Cumprindo agora emitir pronúncia sobre a “causa de pedir subsidiária”, ou seja, quanto à “responsabilidade por factos lícitos”, vejamos.

De acordo com o disposto no art. 10° do Decreto-Lei n.° 28/91/M:

“1. A Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais.
2. Quando a Administração do Território ou as demais pessoas colectivas públicas tenham, em estado de necessidade e por motivo de imperioso interesse público, de sacrificar especialmente, no todo ou em parte, coisa ou direito de terceiro, deverão indemnizá-lo”.

E, ressalvado o devido respeito, também aqui, a causa de pedir tal como pelos recorrentes vem articulada não constitui fundamento bastante e adequado do “pedido” em relação ao qual pretendem obter provimento.

Com efeito, útil é aqui ponderar o que Vieira de Andrade considerou a propósito de norma de idêntico teor contida no Decreto-Lei n.° 48 051, (art. 9°):

“(…)
A doutrina e a jurisprudência viram (…) a consagração da responsabilidade por acto lícito, como figura geral da responsabilidade administrativa, que incluía a obrigação de indemnização, quer pela imposição de encargos ou causação de prejuízos especiais e anormais no interesse geral, por actos administrativos legais ou actos materiais lícitos (n.º 1), quer pelo sacrifício especial, no todo ou em parte, de direitos ou de coisas, em estado de necessidade, por motivo de imperioso interesse público (n.º 2) – apesar da subdivisão do preceito, não seria possível encontrar nela um critério que fundasse uma diferença categorial entre a lesão ou ablação de direitos ou de coisas e a imposição de encargos ou prejuízos, até porque a referência ao sacrifício se fazia a propósito da lesão de direitos. (…)
Julgamos, porém, ser importante salientar que, ainda que estejam contidas no mesmo preceito legal, e ainda que ambas se distingam, pelas mesmas razões, da responsabilidade civil em sentido estrito, responsabilidade por acto lícito e indemnização pela sacrifício são, em rigor, institutos distintos, aos quais devem corresponder diferenças práticas de regime jurídico.
Com efeito, a indemnização pelo sacrifício resulta da circunstância de um acto do poder público, de carácter geral, ocasionar, indirectamente, prejuízos especiais e anormais, que devem ser compensados para garantir a reposição da igualdade dos particulares na contribuição para os encargos públicos. Trata-se de um instituto especialmente vocacionado para a compensação de prejuízos decorrentes de medidas de cunho normativo – “regulating” na terminologia anglo-saxónica –, medidas que visam um fim público de interesse geral, mas das quais resultem situações concretas que, de forma indirecta, envolvem, para determinadas pessoas ou grupos, prejuízos colaterais, patrimoniais ou pessoais, juridicamente relevantes.
Já a responsabilidade por acto lícito resulta da adopção de uma medida administrativa lícita (acto ou norma imediatamente operativa), mas que acarreta directamente e intencionalmente a lesão ou a ablação – “taking”, na terminologia anglo-saxónica –, de posições jurídicas subjectivas, lesão justificada, que tem de ser reparada pela comunidade através da indemnização dos danos patrimoniais ou pessoais provocados pela medida.
Assim, nesta perspectiva, a indemnização pelo sacrifício não tem uma função reparadora de danos, mas, sim, uma função compensadora de prejuízos e mede-se em função da intensidade do sacrifício ou prejuízo, tendo em conta a sua especialidade – apenas é operativa quando seja possível identificar, no conjunto de situações e pessoas abrangidas pela medida, um indivíduo ou grupo que irá sofrer os seus efeitos de forma desigual –, e a sua anormalidade – apenas é operativa quando aquele grupo diferenciado de destinatários sofra um prejuízo expressivo e desproporcionado, que ultrapasse os custos próprios da vida em sociedade e seja quantificável segundo o valor económico do direito ou interesse sacrificado e a intensidade do respectivo sacrifício. (…)
Por sua vez, a responsabilidade por acto lícito resulta da adopção de uma medida fundada no poder público, que é lícita ou justificada pelo princípio da proporcionalidade, mas que visa, ou da qual resulta, directamente, a lesão de posições jurídicas-substantivas – por exemplo, a eliminação de produtos alimentares ou abate de animais para proteger a saúde pública, a revogação de um acto administrativo válido constitutivo de direitos, quando admissível, ou as medidas adoptadas em estado de necessidade.
Nestes casos, existe uma posição jurídica subjectiva do particular que é lesada por incidência directa do acto do poder público e que pode justificar a reparação na medida da reconstituição dos danos, incluindo o dano da confiança.
No entanto, o alcance do mecanismo ressarcitório é, em princípio, limitado – diferentemente do que acontece na responsabilidade civil (por facto ilícito ou pelo risco), porque aqui se trata de uma actuação legítima no interesse geral –, operando apenas quando a medida origine um prejuízo especial e anormal, em nome do princípio da igualdade perante os encargos públicos, que tem aqui uma outra função: opera como elemento travão da socialização dos prejuízos ocasionados pelas medidas, ou “duplo travão”, pois que, para além de evitar a sobrecarga do tesouro público (na linguagem actualizada, dos contribuintes), assegura que apenas são indemnizados os danos verdadeiramente graves que incidem desigualmente sobre os cidadãos.
A responsabilidade por acto lícito resulta da circunstância de a actividade administrativa poder ter de lesar direitos dos particulares para realização de interesses públicos superiores, e de nem todos os danos assim causados se reconduzirem ao risco próprio da vida em sociedade que todos e cada um têm de assumir. Deste modo, embora a actividade desenvolvida pela entidade pública seja lícita e as medidas lesivas se encontrem fundamentadas no direito, pode existir um direito à reparação dos danos como consequência natural da necessidade de socializar os encargos resultantes dessa actividade, mas só daqueles danos que redundem numa violação especial e anormal de direitos subjectivos. (…)”; (in “A
responsabilidade indemnizatória dos poderes públicos em 3D: Estado de direito, Estado fiscal, Estado social”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 140°, n.° 3969, pág. 353 a 356).

Pronunciando-se sobre a mesma matéria considerou também Marcello Caetano que:

“A outra modalidade da responsabilidade administrativa sem culpa é a originada por factos lícitos que vão sacrificar certos e determinados interesses legítimos em benefício da colectividade inteira. A Administração exerce então um direito que sacrifica outros direitos: dá-se uma colisão de direitos. (…)
Se um direito tem de ser sacrificado ao interesse público, torna-se necessário que esse sacrifício não fique iniquamente suportado por uma pessoa só, mas que seja repartido pela colectividade. Como se faz tal repartição? Convertendo o direito sacrificado no seu equivalente pecuniário (justa indemnização) pago pelo erário público para o qual contribui a generalidade dos cidadãos mediante a satisfação dos impostos.
Assim, a responsabilidade pelos prejuízos causados na esfera jurídica dos particulares em consequência do sacrifício especial de direitos determinado por factos lícitos da Administração pública funda-se no princípio da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos. (…)
Tem de haver um sacrifício especial e anormal, isto é, um sacrifício que não seja imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em razão de uma posição só dela, e que não possa considerar-se um risco normalmente suportado por todos em virtude da vida em colectividade. Subentende-se que o sacrifício há-de ser certo, actual (não eventual) e duradouro.
Tal sacrifício deve resultar de um acto administrativo legal ou de uma operação material lícita.
O sacrifício pode consistir na imposição de um encargo – o que abrange a hipótese da imposição de um dever de prestar ou de fazer algo – ou na produção de um prejuízo.
O objecto do sacrifício tem de ser um direito subjectivo, pessoal ou real, ou uma coisa, mas em qualquer caso deve ser susceptível de avaliação pecuniária. (…)
No nosso Direito encontram-se casos de sacrifício total e de sacrifício parcial dos direitos, condicionados a indemnização.
É total o sacrifício quando a Administração se apropria de bens dos particulares autoritariamente (expropriação por utilidade pública, requisição…) ou impõe a destruição deles (demolições, arranques de plantas ou árvores, abate de animais doentes…).
O sacrifício será parcial quando é limitado na sua duração (ocupações temporárias) ou na sua extensão (servidões administrativas)”; (in “Manual de Direito Administrativo”, Vol. II, 10a ed., pág. 1238 a 1241).

Igualmente, o S.T.A. de Portugal, (como aliás se pode ver da jurisprudência indicada no acórdão), tem entendido que:

“Este «dever de indemnizar», por parte, concretamente, do Estado Português, prescinde dos requisitos da «ilicitude e da culpa» na actuação do lesante, mas, exige, como elemento «travão», que os prejuízos causados sejam «especiais e anormais» para poderem e deverem ser ressarcidos.
É um dever que nasce, assim, à margem de qualquer ilicitude e censura jurídica dirigida ao lesante Estado Português, entrosando-se, antes, na circunstância de ter sido imposto por ele ao administrado um «sacrifício», em nome do interesse público, gerador de danos especiais e anormais.
Assim, na própria lógica deste instituto da responsabilidade extracontratual por acto lícito dos entes públicos, está a ideia de «sacrifício» imposto ao lesado, em benefício do interesse público, ideia que se compatibiliza, perfeitamente, com a de lesão provocada por actuação lícita da iniciativa unilateral da Administração, (…)
É a sua transcendência perante os encargos correntes, impostos a todos os que vivem em sociedade, que qualifica os «prejuízos indemnizáveis» causados por acto lícito das pessoas colectivas públicas.
No fundo, entende-se que os entes públicos, seja o Estado ou não, não podem exigir de alguém, em nome do interesse público, um sacrifício superior e mais intenso do que o normalmente imposto aos outros membros da colectividade. A indemnização, nestes casos, visará repor essa «igualdade entre os membros da comunidade», de modo a evitar desequilíbrios gravosos na contribuição de cada um para o funcionamento dos serviços públicos, equiparando a contribuição de todos os cidadãos.
É, pois, a ideia da necessária igualdade de todos face aos encargos públicos que justifica o dever, público, de compensar os prejuízos especiais e anormais a que alude o art. 9º do DL nº48.051, de 21.11.67. Em bom rigor, pois, esse dever público resulta da vinculação da administração ao princípio da igualdade previsto no art. 13º, nº1, da CRP. (…)”; (cfr., v.g., o Ac. de 01.06.2017, Proc. n.° 01274/16).

Ora, parece-nos evidente que os (alegados) actos da Administração a exigir da concessionária “Z1” a obtenção de um parecer prévio favorável quanto a um estudo de impacto ambiental relativo ao projecto imobiliário a ser desenvolvido por aquela – e o tempo (eventualmente) decorrido na apreciação dos estudos apresentados pela concessionária – não correspondem a “actos” que acarretam, directa e intencionalmente, a lesão ou a ablação de posições jurídicas subjectivas dos recorrentes, (até porque, os próprios não deixam de reconhecer que não têm qualquer “direito subjectivo” à celebração dos contratos prometidos perante a Administração Pública, não havendo tão pouco qualquer “interesse legalmente protegido”).

Como sobre este ponto também considera Cândido de Pinho:

“Tanto na hipótese de a acção ser fundada no risco, como no de ser fundada em actos legais ou materiais lícitos, os prejuízos devem ser especiais e anormais, como se disse.
Mas, para serem considerados no âmbito desta responsabilidade por actos lícitos, não podem ser aqueles que a generalidade das pessoas sofreria em igualdade de circunstâncias. Por prejuízo especial entende-se aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma específica posição relativa; e por prejuízo anormal é tomado aquele que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração”; (in ob. cit., pág. 147 e 148).

E, assim, muito menos haverá qualquer “direito a uma indemnização” pelo alegado “sacrifício”, porque não está, desde logo, em causa um acto de “carácter geral”, (nem de cunho normativo), que cause, indirectamente, prejuízos “especiais” e “anormais”, que devem ser compensados para garantir a reposição da igualdade dos particulares na contribuição para os encargos públicos, sendo antes actos – unicamente – praticados no âmbito de uma “relação jurídico-administrativa de concessão”, entre a entidade administrativa concedente, e a concessionária, e tão só a estas dizendo respeito.

Nesta conformidade, aqui chegados, e concluindo-se que os recorrentes não tem qualquer posição juridicamente protegida junto da Administração, impõe-se concluir que inaplicável é o regime previsto no referido Decreto-Lei n.° 28/91/M.

Com efeito, e como se nos apresenta claro, a conduta da Administração que culminou com o acto do Chefe do Executivo que declarou a caducidade da concessão do terreno não impõe, de forma alguma, e muito menos, directa e intencionalmente, qualquer encargo ou sacrifício aos recorrentes, (que, como se referiu, não são seus os destinatários, sendo antes “completamente alheios”), apresentando-se, assim, por demais evidente que em causa não está nenhuma (ainda que aparente) “colisão de direitos”, não podendo, por isso, constituir “fundamento” de qualquer pretensão indemnizatória nos termos do dito Decreto-Lei n.° 28/91/M.

Dest’arte, e tudo visto, cabe pois também aqui repetir o que atrás se referiu no sentido de que vista está a falta de razão dos ora recorrentes também na parte em questão, havendo que se decidir como segue.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos que se deixaram expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes, com a taxa de justiça de 15 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 08 de Junho de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 Juiz de Direito, “Relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito”, in Julgar Online, http://julgar.pt/relevancia-das-outras-solucoes-plausiveis-da-questao-de-direito
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