Processo nº 17/2021
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. “A”, (“甲”), com sede em Macau na [Endereço(1)], registada na Conservatória dos Registos Comerciais e de Bens Móveis sob o n.° XXXXX, propôs, no Tribunal Judicial de Base, acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra a REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU, (R.A.E.M.), e o (então) “INSTITUTO PARA OS ASSUNTOS CÍVICOS E MUNICIPAIS”, (I.A.C.M.), agora, “INSTITUTO PARA OS ASSUNTOS MUNICIPAIS”, (I.A.M.).
Alegou, em síntese, que:
- em 16.09.2005, comprou à “B”, o prédio rústico a que se reportam os autos, sito na Taipa, descrito na C.R.P. sob o n.° XXXX, a fls. 105, do livro BXX, omisso na matriz e com a área de 24.482m2, (e que esta última havia adquirido por escritura de 04.08.1997), pelo preço de HKD$175.000.000,00, valor que foi parcialmente suportado por crédito bancário contraído com o “[Banco(1)]” mediante hipoteca do terreno em causa;
- sem que para o efeito possuísse título bastante, a R.A.E.M., ora 1ª R., por volta do ano de 1994, ocupou parte do terreno em causa com a construção de estradas de acesso à “Ponte da Amizade”;
- em meados de 1999, o referido I.A.C.M., ora I.A.M., 2° R., ocupou também parte do terreno, nele colocando um depósito de pneus, ocupando, posteriormente, em 2008, outra parte do mesmo terreno, ali iniciando a construção de um edifício e construindo uma caixa de electricidade, barracas e alpendres, estando o terreno murado e vedado, mantendo-se o mesmo 2° R. na posse das chaves das fechaduras que ali instalou, impedindo a A. de lhe ter acesso;
- tendo a A. instado o 2° R. a desocupar e devolver o terreno, este não o fez;
- os RR. actuam de “má fé”, uma vez que sabem não ter qualquer título que os habilite a ocupar o terreno em causa;
- a actuação dos RR. tem impedido a A. de usar, fruir e dispor do terreno; e, alegando ainda que,
- a A. deixou igualmente de poder vender o terreno por força da ocupação das RR., pede o seu valor locativo mensal e juros que a aplicação do valor resultante da venda renderia, pedindo, também, quanto às partes do terreno ocupadas pela 1ª R. com a construção de estradas, (e uma vez que as mesmas passaram a integrar o domínio público, não sendo possível a sua reivindicação), uma indemnização correspondente ao seu valor de mercado acrescido dos seus respectivos juros legais.
Concluindo, pede o reconhecimento da A. como titular do direito de propriedade sobre o terreno, e, em consequência, a condenação da 1ª R. e 2° R. a restituir à A. as partes do terreno pelos mesmos ocupadas totalmente livre de pessoas e bens, condenando-se ainda os RR. no pagamento solidário de uma indemnização relativa ao período desde a data da aquisição do terreno pela A. até à presente data, (15.07.2009), no valor de MOP$28.143.720,00.
Subsidiariamente, caso se entenda que a responsabilidade dos RR. não é solidária, pede que se condene os RR. no pagamento da dita indemnização de MOP$28.143.720,00, conjuntamente, na seguinte proporção:
- a 1ª R. no pagamento à A. de 17,3% da referida indemnização, equivalente a MOP$4.868.864,00; e,
- o 2º R. no pagamento à A. de 82,7% da referida indemnização, equivalente a MOP$23.274.856,00.
Pede, ainda, que sejam os RR. condenados, solidariamente, no pagamento à A. de uma indemnização, a título de compensação do dano da privação do gozo do terreno, no montante de MOP$1.388.784,00 por mês, desde a presente data e até à restituição do terreno à A., totalmente livre de pessoas e bens; (e, subsidiariamente, se se entender que da aplicação da taxa de juro de depósito bancário sobre o preço de mercado do terreno resulta um valor inferior ao valor locativo do Terreno, que sejam os RR. condenados a pagar à A., solidariamente, até à efectiva e integral restituição do terreno, uma indemnização tendo por base o valor locativo de mercado do terreno, a liquidar em execução de sentença, calculada à razão de MOP$611.820,00 por mês).
Subsidiariamente, e caso se entenda que a responsabilidade dos RR. não é solidária, que sejam os mesmos condenados no pagamento de uma indemnização à razão de MOP$611.820,00 por mês, conjuntamente, na seguinte proporção:
- a 1ª R. no pagamento à A. de 17,3% da referida indemnização; e,
- o 2° R. no pagamento à A. de 82,7% da referida indemnização.
Subsidiariamente, e para o caso de se entender que as partes do Terreno ocupadas pela 1ª R. passaram a integrar o “domínio público”, e se considerar que não se possa proceder à alteração deste estatuto que seja 1ª R. condenada no pagamento à A. de uma indemnização no valor de MOP$288.311.420,00 a título de danos emergentes e no pagamento da quantia de MOP$240.260,00 por mês a título de lucros cessantes, desde a data da citação até à data da condenação no pagamento da referida indemnização; (cfr., fls. 2 a 36 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Contestando, veio a 1ª R., (R.A.E.M.), invocar – em síntese – que o terreno em causa foi adquirido em 25.10.1913 por H, aquisição essa que foi registada, vindo a integrar o “domínio público” da então Província de Macau, (hoje R.A.E.M.), por expropriação ocorrida em 1918, estando, desde então, fora do comércio, pelo que, nulos são todos os negócios jurídicos referentes ao mesmo nos termos do art. 273° C.C.M., invocando, também, em “reconvenção”, a nulidade da sucessão dos herdeiros habilitados a uma alegada herança da qual faria parte o dito terreno.
A final, deduziu pedido no sentido de ser a acção julgada totalmente improcedente, por não provada, com a sua absolvição do pedido, devendo ainda ser julgado provado e procedente o pedido reconvencional, e, em consequência, declarado:
a) que o dito prédio rústico em questão – sito na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número XXXX, a fls. 105, do liv. BXX, com a área de 24.482 m2, foi afecto ao “domínio público da R.A.E.M.”, por força da expropriação operada pela Portaria n.° 195, publicado no Boletim Oficial de Macau n.° 38, de 21.09.1918;
b) que a habilitação dos herdeiros de H, titulada pela escritura de habilitação outorgada em 22.01.1997, a fls. 77 do liv. XXXX, no 4° Cartório Notarial de Lisboa, é um acto nulo por violação das regras estabelecidas no art. 1971° e segs. do C.C.M.;
c) que essa escritura é título ineficaz e insusceptível de produzir quaisquer efeitos jurídicos, nomeadamente, de transmissão de propriedade;
d) que os registos efectuados em 1997 são nulos, e, por esse facto, igualmente nulos todos os que posteriormente foram feitos, devendo, em consequência, ser ordenado o cancelamento dos seguintes registos prediais de transmissão:
(i) Inscrição n.° XXXXX (L XXXX, cfr., fls. 227), a favor de C (ou C1), viúva;
(ii) Inscrição n.° XXXXX (L XXXX, cfr., fls. 228), a favor de D, casado com E (ou E1, ou E2) e de F, casado com G;
(iii) Inscrição n.° XXXXX (L XXXX, cfr., cfr., fls. 199), a favor da “B”;
(iv) Inscrição n.° XXXXXX, a favor da ora A., “A”; e
(v) Inscrição n.° XXXXXX a favor do “[Banco(1)]”; (cfr., fls. 219 a 222).
*
Por sua vez, e na sua contestação igualmente com pedido reconvencional, veio o 2° R., (I.A.M.), invocar – essencialmente – que tem vindo a ocupar o terreno porque para tal foi autorizado pela 1ª R., (R.A.E.M.), que o terreno em causa foi adquirido por H em 1913 a quem veio a ser expropriado em 1918, vindo posteriormente a integrar a zona militar da carreira de tiro da Ilha da Taipa, pelo que, desde 1918 o terreno em causa integra o domínio público do então Território de Macau, actualmente R.A.E.M., que em 1997 foi inscrita a aquisição do terreno a favor de C ou C1, viúva de H, e, acto contínuo, a favor de D e F por terem sido habilitados como herdeiros daquela, e alegando serem falsas as declarações com base nas quais foi lavrada a referida habilitação de herdeiros, e, assim, nula a respectiva escritura, invoca a ineficácia de todos os posteriores registos efectuados.
Afirmando, ainda, que o I.A.M., como antes acontecera com a Câmara das Ilhas, ocupa o terreno de forma legal, na convicção de que ele é público, de forma pacífica, de boa-fé e à vista de toda a gente, impugna os valores pedidos a título de indemnização.
E, concluindo, pede que a acção seja julgada totalmente improcedente, por não provada, com a sua absolvição do pedido, devendo, por sua vez, ser julgado provado e procedente o pedido reconvencional que deduziu, e, em consequência,
a) ser declarado que a prédio rústico sito na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número XXXX, a fls. 105, do liv. BXX, com a área de 24.482 m2, foi afecto ao domínio público da R.A.E.M., por força da expropriação operada pela Portaria n.° 195, publicada no Boletim Oficial de Macau n.° 38, de 21.09.1918;
b) ser declarado que a habilitação dos herdeiros de H, titulada pela escritura de habilitação outorgada em 22.01.1997, a fls. 77 do liv. XXXX, no 4° Cartório Notarial de Lisboa, é um acto nulo por violação das regras estabelecidas nos art°s 1971° e segs. do C.C.M.;
c) ser declarado que essa escritura é título ineficaz e insusceptível de produzir quaisquer efeitos jurídicos, nomeadamente os de titular os registos de transmissão de propriedade efectuados em 1997;
d) ser declarado que os registos efectuados em 1997 são nulos e, por esse facto, igualmente nulos todos os que posteriormente foram feitos; e, em consequência, ser ordenado o cancelamento dos seguintes registos prediais de transmissão:
(i) Inscrição n.° XXXXX (L XXXX, cfr., fls. 227), a favor de C (ou C1), viúva;
(ii) Inscrição n.° XXXXX (L XXXX, cfr., fls. 228), a favor de D, casado com E (ou E1, ou E2) e de F, casado com G;
(iii) Inscrição n.° XXXXX (L XXXX, cfr., fls. 199), a favor da “B”;
(iv) Inscrição n.° XXXXXX, a favor da ora A., “A”; e,
(v) Inscrição n.° XXXXXX a favor do “[Banco(1)]”; (cfr., fls. 142 a 167).
*
Prosseguiram os autos os seus termos com “réplica” da A. e requerimento de “intervenção principal” provocada do “[Banco(1)]”, e, a final, proferiu o Tribunal Judicial de Base sentença com o seguinte dispositivo:
“1. Quanto aos pedidos da Autora:
Julga-se a acção parcialmente procedente e em consequência:
1.1. Condena-se o 2º Réu a reconhecer a Autora como titular do direito de propriedade do prédio rústico constituído por Terreno, sito na Taipa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXX, a fls. 105, do livro BXX, omisso na matriz, com a área de 20,263 m2 e a entregá-lo à Autora livre e devoluto de pessoas e bens;
1.2. Condena-se o 2º Réu a pagar à Autora a indemnização de MOP$45.064.560,00 e ainda no montante de MOP$702.460,00 por cada mês ou fracção que se mantenha naquele prédio a contar de 10.11.2014 inclusive, tudo acrescido dos juros de mora à taxa legal a contar da presente data até efectivo e integral pagamento.
1.3. Absolve-se a 1ª Ré de todos os pedidos formulados pela Autora contra si;
2. Quanto aos pedidos reconvencionais:
2.1. Reconhece-se como pertencendo ao domínio público da RAEM a parcela ocupada com estradas com a área de 4,235 m2 do prédio rústico constituído por Terreno, sito na Taipa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXX, a fls. 105, do livro BXX, omisso na matriz;
2.2. Ordena-se que se proceda à correcção do cadastro no que concerne à localização, área e confrontações do prédio em causa de acordo com o decidido na alínea anterior e sua harmonização com o registo predial;
2.3. Mais se absolvem os Réus dos demais pedidos formulados pela Autora.
(…)”; (cfr., fls. 1973 a 2000).
*
Em sede dos recursos que na referida acção foram interpostos para o Tribunal de Segunda Instância veio-se a proferir o Acórdão de 10.09.2020, (Proc. n.° 532/2015), onde – no que agora interessa – se decidiu:
“- Negar provimento aos recursos interpostos pela 1ª Ré e pelo 2º Réu.
- Não tomar conhecimento dos recursos interpostos pela Interveniente principal ([BANCO(2)]) (quer no que toca à legitimidade de impugnação da escritura de habilitação notarial, quer no que se refere ao pedido de ampliação da matéria do recurso) nos termos do disposto nos artigos 590º e 628º do CPC.
- Julgar procedente o recurso interposto pela Autora, condenando a 1ª Ré a pagar 1ª Autora uma indemnização na quantia de HKD$30,275,000.00, equivalente a MOP$31,183,250.00, acrescida de juros, calculados à taxa legal (9,75%, nos termos da Ordem Executiva n.º 29/2006, em vigor desde 11/07/2006), desde a data da citação até efectivo e integral pagamento”, mantendo-se no demais “o já decidido na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância”; (cfr., fls. 2869 a 2975-v).
*
Do assim decidido, trazem agora a 1ª e o 2° RR. os presentes recursos.
Em representação da 1ª R., (R.A.E.M.), produz o Ministério Público as seguintes conclusões:
“A. A Recorrente alegou como causa de pedir do seu pedido reconvencional que a pessoa colectiva pública que a antecedeu, a Província de Macau, adquiriu originariamente o direito de propriedade do prédio rústico aqui em causa em virtude da respectiva expropriação por utilidade pública.
B. Com fundamento nessa causa de pedir constituída pela aquisição originária do direito real de propriedade sobre o dito prédio rústico, a Recorrente, em reconvenção, pediu (implicitamente) que o Tribunal declarasse que o mesmo lhe pertence e (explicitamente) que o mesmo está afecto ao domínio público.
C. No pedido reconvencional que a Recorrente formulou, de reconhecimento da afectação do prédio rústico aqui em causa ao domínio público da RAEM, está ínsito o pedido de reconhecimento do seu direito real de propriedade adquirido originariamente sobre o dito prédio.
D. O douto Tribunal recorrido incorreu, pois, em erro de julgamento quanto ao significado e alcance do pedido reconvencional deduzido pela Recorrente.
E. A douta decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao decidir que a Recorrente não é titular do direito de propriedade sobre a totalidade do prédio rústico aqui em causa.
F. Decorre inequivocamente da matéria de facto dada como provada que a antecessora da Recorrente, a então Província de Macau, expropriou por utilidade pública o prédio rústico aqui em discussão.
G. A expropriação é um modo de aquisição originária do direito de propriedade sobre as coisas expropriadas.
H. Em resultado da respectiva expropriação por utilidade pública, é inequívoco que se extinguiu o direito de propriedade do H sobre o prédio rústico e que a então Província de Macau e hoje RAEM, adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio rústico aqui em causa.
I. Nas situações de aquisição originária de direitos reais sobre bens imóveis, como a resultante da expropriação por utilidade pública, o registo tem um efeito meramente enunciativo, o que significa que, mesmo que o facto aquisitivo não seja registado, nem assim deixará de ser oponível erga omnes.
J. A falta do registo da expropriação, na perspectiva da eficácia erga omnes ou da oponibilidade do direito de propriedade adquirido originariamente pelo expropriante, deve considerar-se juridicamente irrelevante.
L. Só relativamente aos chamados terceiros para efeitos de registo predial, é que o facto constitutivo, modificativo ou extintivo de direitos reais sobre imóveis é inoponível se e enquanto não for efectuado o respectivo registo.
M. Na determinação do que sejam terceiros para efeitos de registo é sempre um conflito entre duas aquisições derivadas do mesmo autor ou causante.
N. Quando uma das aquisições conflituantes é uma aquisição originária estará afastada a aplicação do n.º 1 do artigo 5.º do CRP.
O. No caso em apreciação nos presentes autos, é manifesto, pelo que vimos de dizer, que a situação não se enquadra na previsão do n.º 1 do artigo 5.º do CRP, justamente porque a antecessora da Recorrente não adquiriu o seu direito de propriedade derivadamente, mas originariamente.
P. A Recorrente e a Autora, a sua transmitente e os transmitentes desta não são, entre si, terceiros para efeitos de registo, pelo que a aquisição originária do direito de propriedade sobre o prédio rústico por parte daquela é oponível a estas, independentemente do registo do facto aquisitivo (expropriação por utilidade pública).
Q. No caso, não estão reunidos os pressupostos legais de que depende a aplicação do regime de protecção de terceiros de boa fé consagrado naquele artigo 284.º do Código Civil.
R. A protecção do terceiro consagrada na referida norma legal opera apenas quando o verdadeiro titular do direito dá origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa inválida por parte de um terceiro adquirente de boa fé.
S. Na cadeia de transmissões pressuposta pela hipótese da norma do artigo 284.º do Código Civil o primeiro alienante tem de ser o verdadeiro proprietário da coisa.
T. A aquisição a non domino que resulta da aplicação do regime do artigo 284.º, n.º 1 do Código Civil não abrange as situações em que alguém obtém um registo falso ou baseado em títulos falsos ou insuficientes e dá origem a uma cadeia transmissiva.
U. No início da cadeia de transmissões não esteve a Recorrente nem a sua antecessora e, portanto, em relação a si é manifesto, como já vimos, que a Autora não é um terceiro protegido pela norma do artigo 284.º do Código Civil.
V. O prédio rústico, mercê da extinção do direito de propriedade sobre o mesmo operada pela expropriação por utilidade pública, jamais integrou o acervo hereditário do dito H.
X. Não integrando o prédio rústico aqui em discussão a herança do H, nem a viúva deste nem os chamados «herdeiros» desta ingressaram, por via sucessória, na posição jurídica de proprietários do mesmo.
Z. A questão não é de invalidade da sucessão mortis causa relativamente ao prédio rústico, mas de verdadeira inexistência desta.
AA. O artigo 284.º do Código Civil apenas protege contra a nulidade ou anulabilidade, não contra a inexistência e é de inexistência que aqui se trata, justamente a inexistência da aquisição do direito de propriedade sobre o prédio rústico por sucessão legal mortis causa por parte dos iniciadores daquela cadeia de transmissões.
BB. Da escritura de habilitação de herdeiros com base na qual foi efectuada a dita inscrição registral não resulta que o D e o F fossem herdeiros da C, ao contrário do que, erradamente, decidiu o Tribunal a quo.
CC. A escritura de habilitação de herdeiros não foi instruída com as necessárias certidões do registo civil que provem que os ditos D e F são sobrinhos da viúva do H porque dos documentos juntos aos autos resulta não existir a indispensável coincidência entre os pais da C e os avós do D e do F.
DD. Deste modo, a escritura pública de habilitação de herdeiros não constitui título bastante para demonstrar a qualidade de herdeiros dos titulares inscritos D e F, razão pela qual tal escritura também não constituía título bastante para o registo predial da aquisição por sucessão mortis causa, justamente porque não preenche os requisitos que a permitem qualificar como habilitação notarial de herdeiros.
EE. O Tribunal recorrido por força de uma aplicação equivocada da norma do artigo 284.º, n.º 1 do Código Civil, expropriou ilegitimamente a Recorrente do seu direito de propriedade sobre o prédio rústico aqui em causa.
FF. Na economia da norma do artigo 284.º do Código Civil, a boa fé constitui um pressuposto de verificação indispensável à tutela da posição do terceiro adquirente que ali se pretendeu consagrar.
GG. Era a Autora quem, no caso, estava onerada com a prova positiva da boa fé e a verdade é que ela não fez essa prova.
HH. Errou, por isso, o Tribunal recorrido quando, na douta decisão considerou suficiente a prova negativa, ou seja, que se não tivesse provado que os adquirentes não estivessem de boa fé.
II. Da matéria de facto provada não se extrai um único facto que permita concluir que a Autora, quando celebrou a escritura de compra e venda tendo por objecto o prédio rústico aqui em causa, desconhecia, sem culpa, que o prédio não pertencia à vendedora porque esta, por sua vez, o comprara a quem não era proprietário do mesmo.
JJ. Resulta abundantemente da matéria de facto provada que, em data anterior a 16 de Setembro de 2005 (data da celebração da escritura pública de compra e venda do prédio rústico aqui em causa em que a Autora interveio como compradora) a Recorrente e o Instituto dos Assuntos Municipais (IAM) vinham utilizando o dito prédio rústico, fazendo-o à vista de toda a gente e de forma pacífica.
LL. Era de exigir à Autora, para se poder afirmar a sua boa fé justificativa da tutela ao abrigo do artigo 284.º do Código Civil, que a mesma não se limitasse à análise do registo predial e indagasse qual o fundamento jurídico dessa posse pública e pacífica que vinha sendo exercida pela Recorrente e pelo IAM, o que a Autora manifestamente não fez.
MM. Não o tendo feito, não pode a Autora vir agora dizer que desconhecia, sem culpa, que o terreno não pertencia aos anteriores «transmitentes» e que se encontrava de boa fé quando celebrou a compra e venda.
NN. Faltando a prova da boa fé da Autora cai a possibilidade da respectiva aquisição da propriedade do prédio rústico aqui em causa por força do mecanismo da tutela de terceiros resultante da norma do artigo 284.º do Código Civil.
OO. Não sendo a Autora terceira de boa fé para efeitos do artigo 284.º do Código Civil, não existia qualquer fundamento legal para o Tribunal recorrido reconhecer que a aquela adquiriu o direito de propriedade sobre parte daquele prédio e, do mesmo passo, recusar declarar judicialmente que o mesmo pertence, na íntegra, à Recorrente.
PP. Nos termos do disposto na alínea b) do artigo 17.º do CRP, são nulos, porque efectuados com base em títulos insuficientes, os seguintes registos: Inscrição n.º XXXXX (L XXXX, fls. 227), a favor de C ou C1; inscrição n.º XXXXX (L XXXX, fls. 228), a favor de D, casado com E ou E1 ou E2 e de F, casado com G; inscrição n.º XXXX (L XXXX, fls. 199) a favor de B; inscrição n.º XXXXXX a favor da Autora e inscrição n.º XXXXXX a favor do [Banco(1)].
QQ. Autora, à data da chamada «expropriação de facto» não era titular de qualquer direito de propriedade sobre o prédio e, portanto, não pode ter sido expropriada.
RR. Com a condenação da Recorrente a pagar a dita indemnização o que sucedeu foi que o Tribunal, sem que se vislumbre qualquer fundamento legal para isso, colocou a cargo daquela o encargo decorrente da redução do preço em resultado da limitação do objecto da compra e venda.
SS. A Autora viu descontado o preço na proporção da redução do objecto da compra e venda, não à custa da Vendedora (que manteve na sua esfera jurídica o preço correspondente aos 24.482 m2) mas à custa de um terceiro, no caso a Recorrente o que não pode ser.
TT. A decisão recorrida assenta no pressuposto, que é correcto, de que a antecessora da Recorrente procedeu em 21 de Setembro de 1918, à expropriação por utilidade pública do prédio rústico aqui em causa e de que, por isso, era a proprietária desse prédio.
UU. No ano 1994, aquele em que as estradas foram construídas no terreno, este era, inequivocamente, propriedade do antecessor da Recorrente, o então Território de Macau, como a própria decisão recorrida, implicitamente, embora, não deixa de reconhecer.
VV. Não vislumbra qualquer lesão de um direito absoluto da Autora, que na verdade inexiste, que possa justificar a responsabilização da Recorrente e a respectiva condenação no pagamento de uma qualquer indemnização.
Nestes termos, e nos demais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente:
(i) ser revogado o douto acórdão recorrido na parte em que condenou a Recorrente no pagamento de uma indemnização de HKD$30,275,000.00, equivalente a MOP$31,183,250.00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se a Recorrente desse pedido;
(ii) ser revogado o douto acórdão recorrido na parte em que não julgou integralmente procedente o pedido reconvencional deduzido pela Recorrente;
(iii) ser declarado que o prédio rústico sito na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX, a fls. 105, do livro BXX, com a área de 24.482 m2 pertence à Recorrente e ser a Autora condenada a reconhecê-lo;
(iv) ser declarada a nulidade e ordenado o cancelamento dos seguintes registos:
a) Inscrição n.º XXXXX (L XXXX, fls. 227), a favor de C ou C1;
b) Inscrição n.º XXXXX (L XXXX, fls. 228), a favor de D, casado com E ou E1 ou E2 e de F, casado com G;
c) Inscrição n.º XXXX (L XXXX, fls. 199) a favor de B;
d) Inscrição n.º XXXXXX a favor da Autora;
f) Inscrição n.º XXXXXX a favor do Interveniente principal”; (cfr., fls. 2994 a 3033-v).
O 2° R., (I.A.C.M. agora I.A.M.), apresentou, por sua vez, as seguintes conclusões:
“ACERCA DO IMPEDIMENTO DO SR. JUIZ TONG HIO FONG:
a) O Acórdão de que se recorre foi decidido por unanimidade pelos Exm° Srs. Juízes Fong Man Chong (Juiz Relator), Tong Hio Fong (Juiz Adjunto) e Ho Wai Neng (Juiz Adjunto).
b) Nos termos do art. 311° do CPC, "o juiz está impedido de exercer as suas funções quando (…) se trate de recurso interposto em processo no qual tenha tido intervenção como juiz, quer proferindo a decisão recorrida quer tomando de outro modo posição sobre questões suscitadas no recurso". (n° 1, al. e)).
c) O Sr. Juiz Adjunto Tong Hio Fong estava objectivamente impedido, na Segunda Instância, de participar no julgamento deste processo, impedimento que não suscitou quando o processo foi distribuído, devendo tê-lo feito.
d) O Sr. Juiz TONG HIO FONG foi o juiz que presidiu ao início do julgamento no Tribunal Judicial de Base, em 25 de Setembro de 2015, como se verifica pela Acta de Audiência de Julgamento que consta de fls. 1232 dos autos.
e) Nessa sua qualidade, o Sr. Juiz TONG HIO FONG, ouviu depoimento de parte, peritos, admitiu diversos e relevantes documentos (que teve de apreciar) e proferiu o relevante Despacho de fls. 1300 a 1301, tomando posição sobre o pedido de ampliação da Base Instrutória apresentado pelo IAM, e tecendo fundamentadas e inequívocas opiniões relativamente à matéria dos Quesitos 1° a 4ª (um dos centros de gravidade deste processo e deste recurso), bem como sobre a Planta Cadastral junto pela Autora (a outra questão crítica), expressando opiniões sobre a substância e sobre a configuração jurídica dessas matérias, nomeadamente sobre a força probatória da referida planta cadastral, tendo proferindo ainda o novo importante despacho de fls.1403 a 1404 sobre a mesma matéria.
f) O Sr. Juiz TONG HIO FONG "teve intervenção como juiz" no Tribunal Judicial de Base, no processo que deu origem ao presente recurso, "tomando de outro modo posição sobre questões suscitadas no recurso". (Vd. Art. 311°, n° 1, aI. e)), sendo depois, um dos juízes que, na Segunda Instância discutiu e votou favoravelmente o acórdão proferido, em sede recurso.
g) A intervenção Sr. Juiz TONG HIO FONG no primeiro e no segundo momento versou sobre as mesmas questões, o que permite razoavelmente fazer crer que a sua segunda intervenção está inquinada por um pré-juízo formado pela intervenção processual que teve na primeira.
h) Nos impedimentos o que está em causa é a violação do princípio da imparcialidade do tribunal e do princípio da tutela jurisdicional efetiva por via do recurso, é a violação das garantias de imparcialidade e objetividade que devem pautar a atuação judicial, e não qualquer comportamento pessoal de um juiz.
i) O que releva para efeitos de se considerar o impedimento de um juiz que julga é que o faça com imparcialidade e que o seu julgamento, ou o julgamento para que contribui, surja aos olhos da sociedade como um julgamento objectivo e imparcial. sendo certo que a intervenção decisória sucessiva do mesmo juiz integra o universo das hipóteses abstratamente suscetíveis de lesar esse princípio e, por isso, de configurar um impedimento objetivo, que geneticamente amputa o direito do Sr. Juiz TONG HIO FONG a julgar este processo.
j) "A intervenção processual do juiz impedido consubstancia nulidade processual porque, na circunstância, o juiz não podia intervir, pelo que pratica actos que a lei não admite (art. 147°, n° 1). Por outro lado, a falta de declaração de impedimento constitui uma omissão de um acto que a lei prescreve (mesma norma).
ACERCA DA EXPROPRIAÇÃO DO TERRENO DESCRITO SOB O N° XXXX:
k) O terreno da descrição XXXX nunca deixou de pertencer ao domínio do Estado, nos termos da Lei de Terras em vigor em 1913.
l) Como estabelecia o artigo 1° da Carta de Lei de 9 de Maio de 1901, que regulava a concessão de terrenos nas províncias ultramarinas, "São do domínio do Estado, no ultramar, todos os terrenos que, à data da publicação desta lei, não constituam propriedade particular, adquirida nos termos da legislação portugueza".
m) Nos termos do artigo 2° daquela Carta de Lei "É reconhecido aos indígenas o direito de propriedade dos terrenos por eles habitualmente cultivados que sejam compreendidos na espera das concessões (…)."
n) Segundo o artigo 3° da mesma lei, "É garantida a sucessão legitimária, segundo os usos e costumes locais; mas a transmissão por testamento, ou por qualquer outra forma, de indígenas para não indígenas, fica dependente de prévia autorização ou de confirmação de autoridade administrativa".
o) Segundo o disposto no Art. 4° "São nullos todos os actos e contratos dos chefes e outros indígenas celebrados contra as disposições d'esta lei".
p) Resulta da certidão da escritura de compra e venda do terreno da descrição XXXX (fls. 773/775v), que o terreno foi comprado por H aos chinas I e J e resulta do teor daquela escritura que os indígenas. declararam que "tiram e demitem de si todo o domínio, direito, acção e posse que até hoje tem tido no terreno vendido e tudo cedem e transferem ao comprador, a quem ficam pertencendo os rendimentos do mesmo terreno".
q) Assim como resulta do teor da mencionada escritura que o Notário não faz menção a qualquer título de propriedade exibido pelos chinas nem a qualquer autorização para a transmissão do terreno a um não indígena conforme impunha a lei.
r) Quer isto significar que o terreno da descrição XXXX sempre pertenceu ao domínio do Estado, pois à data da publicação da Carta de Lei de 1901 o terreno em causa não tinha transitado legalmente para o domínio da propriedade particular.
s) E, quer ainda significar que a aquisição ab initio do terreno da descrição XXXX, em 1913, é uma aquisição nula por ter sido transmitida por um indígena para um não indígena sem qualquer autorização ou confirmação que, a existir, teria de ser declarada e arquivada no acto da escritura.
t) Assim, o facto levado a registo em 1913, com base naquela escritura é também, ele próprio, nulo, o qual pode ser invocado e declarado a todo o tempo, e que gera a nulidade de todas as inscrições subsequentes.
ACERCA DA LINHA SUCESSÓRIA DO H E DA PRESUNÇÃO DO ART. 284° DO CÓDIGO CIVIL:
u) Por via dos factos provados h) a n), o TJB considerou que o terreno descrito sob o n° XXXX foi expropriado em 1918 para a construção da Carreira de Tiro mas que, apesar disso, a expropriação nunca foi levada a registo.
v) O Tribunal concluiu que o terreno a que se refere a descrição XXXX "constitui património privado/particular do Estado, estando assim no comércio jurídico como resulta do já citado art° 370° do Código Civil de 1867."
w) Cabe perguntar: se o terreno expropriado deixou de integrar o património do H e foi afecto ao domínio da RAEM (resposta ao quesito 18°), como é que ele continuou a integrar a massa da herança do H e foi "herdado", nos termos expostos pela Autora, como consta da matéria dada como provada em E)?
x) Ora, estando provado que o terreno foi expropriado, tem de se entender que esse terreno passou para o domínio do Estado que adquiriu o terreno por via originária, e não derivada.
y) Isto porque a expropriação é um facto extintivo do direito de propriedade: e se este é extinto, claro está que não poderá ser transmitido.
z) Na verdade, no âmbito do processo judicial n° 114/1919, a fls. 744, o Ministério Público requereu a entrega do terreno expropriado por "haver necessidade de começar desde já a construção da carreira de tiro".
aa) O Meritíssimo Juiz, por Despacho de fls. 745, de 24 de Março de 1919, considerou que estando fixada a indemnização e esta depositada, deferiu a requerida entrega do terreno e mandou que se desse posse do dito terreno à expropriante, à qual fica adjudicado.
bb) o Ministério Público, em representação da Expropriante Fazenda Nacional, tomou posse do terreno, conforme consta do Auto de Posse a fls. 747-748.
cc) Após o Acórdão da Relação de Goa ter confirmado o valor da indemnização estabelecida na sentença de fls. 801-803, o Tribunal mandou publicar os éditos de fls. 171 e 172 a fim de chamar quaisquer interessados, e que, findo o prazo, o terreno seria adjudicado livre e desembaraçado à expropriante e a respectiva indemnização paga ao expropriado.
dd) A antecessora da RAEM tomou posse do terreno em Abril de 1919, e desde então é possuidora do dito terreno, em termos de direito de propriedade, de forma ininterrupta, pública e pacífica, como resulta dos factos provados.
ee) O prédio descrito sob o n.° XXXX integrou o domínio público militar em 1919 e, depois, em 1976, passou a integrar o domínio privado do Território de Macau, em virtude de, nesse ano, a Carreira de Tiro, juntamente com o quartel, morro e paióis da Ilha da Taipa, terem formado um novo prédio que integrou o domínio privado do Território de Macau.
ff) O novo prédio do domínio privado do Território de Macau, em 1978, e, portanto, antes da aquisição e inscrição registai a favor da antecessora da Autora, foi descrito no registo sob o n.° XXXXX, constando como seu titular o Território de Macau.
gg) Existe uma duplicação no registo. Devendo, consequentemente, nos termos dos artigos 77.° e 78.°. do Código do Registo Predial de Macau, ser inutilizada a descrição n.° XXXX.
hh) Tendo o prédio descrito sob o n.° XXXX na conservatória do registo predial sido integrado no terreno correspondente à descrição XXXXX, legalmente, nada justifica a actualização do cadastro relativamente à localização, área e confrontações daquele prédio (descrito sob o n.° XXXX), nem a posterior harmonização da sua descrição no registo predial com o cadastro.
ii) Ainda assim, no entender do Tribunal esse terreno não integrou o domínio público, permanecendo no património privado / particular do Estado, e continuou a estar no comércio jurídico, podendo ser adquirido por quem se habilitou à sucessão, uma vez que a expropriação não foi levada ao registo e o direito de propriedade do terreno da descrição XXXX continuou inscrito em nome do expropriado.
jj) Porém, a parcela de 20,263 m2 do terreno expropriado da descrição XXXX, é insusceptível de aquisição por quem se habilitou à sucessão, pois a expropriação não tinha de ser levada a registo e o registo não dá direitos.
kk) A aquisição para o domínio privado do Estado, decorrente de uma expropriação, não é um facto jurídico sujeito a registo sob pena de inoponibilidade a terceiros para efeitos do art. 5.° do Código do Registo Predial de Macau.
Mais concretamente:
ll) É verdade que o efeito típico do registo em Macau é, desde o Código de Seabra, o denominado efeito declarativo ou consolidativo, uma vez que o registo é, em regra, condição de oponibilidade de um facto jurídico produtor de efeitos reais perante terceiros, nem por isso se pode afirmar que tal regra seja absoluta ou que não conheça excepções.
mm) Mas o efeito declarativo ou consolidativo não é sempre reconhecido ao registo, pois existem actos e factos reais que mesmo não acedendo ao Registo, ainda assim, mantêm a sua oponibilidade.
nn) Ou seja, actos e factos não negociais com eficácia real em relação aos quais o assento registai apenas produz um efeito enunciativo.
oo) Nestes casos, o assento registai limita-se a dar notícia, a dar conhecimento, mas sem que a sua falta tenha repercussão sobre a eficácia do facto registável.
pp) Por isso, a não realização do registo não impede, nem retira ou condiciona, os efeitos do acto ou do facto registável, sendo indiferente que tal registo seja ou não efectuado, para que o direito seja oponível a terceiros ou erga omnes. E, portanto, a validade e a eficácia dos direitos não são afectadas pela existência ou inexistência do registo.
qq) Em todos os ordenamentos jurídicos que reconhecem ao registo, em regra um efeito declarativo ou consolidativo, desde há muito que a doutrina e a jurisprudência consideram que a aquisição por expropriação é uma forma de aquisição originária cujo registo tem um efeito de mera publicidade notícia ou efeito enunciativo, tal como o registo de qualquer aquisição originária.
rr) A aquisição para o domínio privado do Estado, decorrente de uma expropriação, não é um facto jurídico sujeito a registo sob pena de inoponibilidade a terceiros para efeitos do art. 5.° do Código do Registo Predial de Macau.
ss) O adquirente em virtude da expropriação, em Macau, nunca teve, nem tem, o ónus de registar.
tt) O registo da aquisição por expropriação, tal como o registo da aquisição por usucapião ou acessão, apenas produz um efeito enunciativo, nunca um efeito declarativo ou consolidativo. Ou, por outra via, o registo de uma aquisição originária, desenvolvendo uma função atípica, limita-se a dar notícia dos factos publicados que sempre seriam oponíveis a terceiros, ou que não seriam desprovidos da sua eficácia, mesmo que não acedessem ao registo.
uu) Por isso, a não realização do registo não impede, nem retira ou condiciona, os efeitos do acto ou do facto registável, sendo indiferente que tal registo seja ou não efectuado, para que o direito seja oponível a terceiros ou erga omnes. E, portanto, a validade e a eficácia dos direitos não são afectadas pela existência ou inexistência do registo.
Por outro lado:
vv) O Acórdão recorrido aceita a tese do TJB de que a C herdou o terreno, o que "legitimaria" a sucessão dos seus "herdeiros", conclusão que não tem apoio na lei, nomeadamente nas disposições aplicáveis do Código de Seabra.
ww) Sendo o regime de bens o da comunhão geral, à hora da morte de H, a sua mulher C1 ficou com a meação dos bens comuns e, portanto, teria ficado com ½ do prédio, caso este não tivesse sido expropriado.
xx) Mas a viúva C1 não era havida como herdeira, uma vez que o H tinha deixado, vivos, filhos legítimos, nos termos do previsto nos art. 1985° e 1989° do Código de Seabra.
yy) O prédio, a não ter sido expropriado, só teria cabido por inteiro a C se esta tivesse acordado com os herdeiros de H a aquisição, por alguma via, da outra metade, e tal facto não foi alegado e, consequentemente, não foi provado.
zz) E sem reunir em si a totalidade do direito de propriedade (mas só a sua meação por via da comunhão de bens do casamento) a C nunca poderia transmitir a ninguém a totalidade do direito de propriedade sobre o terreno descrito sob o n° XXXX.
aaa) Essa linha de raciocínio permite afirmar que que a Autora e, consequentemente o Interveniente Principal como credor hipotecário da Autora, não sendo tutelados pelo art. 284.° do Código Civil de Macau, devem, efectivamente, ver declarados nulos os negócios em que intervieram e cancelados os respectivos registos, não obstante terem, até agora, beneficiado das presunções decorrentes do Registo.
bbb) Isto porque, as presunções decorrentes do registo, de que o direito existe e pertence ao titular registai (cfr. art. 7.° do Cód.Reg.Pred.), não asseguram ao titular registal a efectiva titularidade do direito publicitado.
ccc) São "meras" presunções ilidíveis (cfr. n. 2.° do art. 343.° do Código Civil e art. 14.° do Cód.Reg.Pred.); no caso concreto, foram, sem margem para dúvidas, exaustivamente elididas.
Mas deverá chegar-se a mesma conclusão por outra via:
ddd) É inequívoco, por um lado, que C não foi herdeira legítima nem legitimária de H (nos termos do previsto nos art. 1985° e 1989° do Código de Seabra) e, por outro, que o prédio descrito sob o n.° XXXX sempre foi do Território de Macau ou foi por este adquirido originariamente em data muitíssimo anterior à da morte de H, pelo que se torna inegável que à hora da morte de H inexistiu sucessão legal hereditária a favor de C e que à hora da morte desta no seu acervo hereditário não existia o direito de propriedade sobre o referido prédio e que, portanto, os seus herdeiros nunca poderiam subingressar na posição de titulares do direito de propriedade sobre ele.
eee) O art. 284.° apenas visa "proteger as pessoas que, por força da invalidade, vêem o seu direito em risco porque o seu causante ou autor, em virtude dela, carecia de legitimidade para o transmitir ou constituir (ilegitimidade do tradens)".
fff) Se a aquisição do terceiro, além desta invalidade, padecer de uma invalidade própria ou directa, não consequencial, o terceiro já não merece tutela.
ggg) Por isso, é habitual definir-se terceiros para efeitos do art. 284.° do Código Civil como aqueles que, integrando-se numa e mesma cadeia de transmissões, veriam a sua posição afectada por uma ou várias causas de invalidade (nulidade ou anulabilidade) anteriores ao acto em que foram intervenientes.
hhh) O terceiro apenas é protegido, perante a eficácia retroactiva da nulidade ou da anulabilidade de um negócio anterior àquele em que interveio (já não, por exemplo, perante a inexistência), se tiver adquirido um bem imóvel ou um móvel sujeito a registo, de boa fé (em sentido ético), a título oneroso e se houver obtido o registo (definitivo e "válido") da sua aquisição em data anterior à da inscrição da acção de nulidade ou de anulação ou do registo do acordo das partes acerca dessa invalidade.
iii) A Autora e o interveniente principal, apesar de terem obtido o respectivo registo e serem terceiros perante as sucessões inexistentes e também perante a 1.ª compra e venda nula, pois não celebraram o negócio com os pseudo herdeiros de C, não beneficiam da tutela do art. 284.° do Código Civil, isto porque o negócio em que intervieram é nulo em virtude da inexistência ôntica da sucessão legal lia favor" de C e da inexistência ôntica da sucessão legal lia favor" de D e F e não em virtude de um negócio anterior nulo ou anulável.
jjj) De facto, foi em virtude das sucessões legais mortis causa inexistentes que a compra e venda celebrada entre D e F como vendedores e a B, como compradora, consubstanciou uma venda de bem alheio e, por tal, padeceu de nulidade. E depois, a compra e venda celebrada entre a B, e a Autora, também foi uma venda a non domino e a constituição da hipoteca a favor de [Banco(2)] consubstanciou um negócio de oneração de coisa alheia e por isso também foi nulo.
kkk) Acresce que, a Autora e o Interveniente Principal nunca poderiam beneficiar da tutela do art. 284.° do Código Civil, mesmo que em causa não estivessem sucessões legais inexistentes, porque não fizeram a prova, que lhes competia, de haverem celebrado os negócios de boa fé em sentido ético.
lll) Na verdade, quer a Autora, quer o Interveniente Principal limitaram-se a afirmar que estavam de boa fé, pois haviam celebrado os respectivos negócios com o titular registai e, depois, obtido o respectivo registo.
mmm) Ocorre que, como resulta de forma clara do preceito legal em análise, o facto de se "adquirir" o direito do titular registai e de também se obter o respectivo registo não é sinónimo de uma aquisição de boa fé.
nnn) O facto de se "adquirir" o direito do titular registai inscrito conduz apenas à redução do prazo - de três anos para um ano - durante o qual o adquirente de boa fé, a título oneroso e que haja obtido o registo a seu favor com prioridade, pode ainda ver decair o seu direito se for intentada a acção de invalidade.
ooo) E, o facto de o potencial terceiro ter obtido o registo a seu favor é apenas um dos requisitos para que possa vir a ser considerado terceiro e, por isso, venha a beneficiar da tuteia concedida pelo art. 284.° do Código Civil.
ppp) Como estatui o n.° 4 do art. 284.°, o adquirente só está de boa fé se desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.
qqq) Não compete aos Réus fazerem prova da má fé do terceiro adquirente, porque a regra em matéria de nulidade e de anulabilidade é a da eficácia retroactiva real (dr. art. 282.° do Código Civil).
rrr) O artigo 284.°, verificados todos os requisitos constitui uma excepção a essa regra e, portanto, ao princípio nemo plus iuris ad alium transfere potes quam ipse habet.
sss) Consequentemente, de acordo com os preceitos legais sobre a distribuição do ónus da prova, é evidente que não compete ao proprietário provar que o "terceiro adquirente" "adquiriu" de má fé.
ttt) Ao invés, é "o adquirente" que pretende beneficiar da tuteia do art. 284.° que está onerado com a prova de que a sua "aquisição" ocorreu de boa fé. Tal como é ele que tem de provar que adquiriu a título oneroso e obteve o registo com prioridade.
Diga-se ainda, neste ponto:
uuu) Mesmo que se considere - sem conceder - que o terreno tinha sido adquirido validamente pelo H a expropriação e o facto de o terreno ter sido afecto ao domínio da antecessora da RAEM por força do processo expropriativo (Factos Assentes H) a M) e Quesito 18°), retirou o imóvel da esfera jurídica do H, criando-se um novo direito de propriedade sobre o imóvel pertencente ao então Território de Macau.
vvv) Daqui resulta, linearmente, que quaisquer que sejam os herdeiros do H, nenhum deles poderia suceder na propriedade do prédio descrito sob o n° XXXX porque o prédio não fazia parte da massa da herança.
www) Em bom rigor, não se poderá dizer que o direito de propriedade do H sob terreno descrito sob o n° XXXX tenha sido transmitido para o Território de Macau porque, a expropriação teve como resultado a aquisição originária pelo Território de Macau do direito sobre o terreno descrito sob o n° XXXX.
xxx) Dizendo de outro modo, quando os supostos sucessores de H iniciaram a cadeia de transmissão negociai através da compra e venda do terreno descrito sob o n° XXXX, esse direito de propriedade, também pelas razões agora expostas, não existia na ordem jurídica, nem na sua titularidade, o que impede que as duas sociedades adquirentes possam beneficiar da protecção do art. 284° do Cód. Civil.
Finalmente,
yyy) Com a entrada em vigor da Lei Básica em 20.12.1999, o terreno da descrição XXXX passou a ser do Estado e insusceptível de ser transacionado como propriedade privada, por via do seu art. 7°, que estabelece que "os solos e os recursos naturais da RAEM são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da RAEM…".
zzz) Como a Autora "adquiriu" o terreno em 2005 não pode beneficiar da protecção do art. 284° do CC, o qual cede perante o disposto no Art. 7° da Lei Básica.
ACERCA DA CLASSIFICAÇÃO PELO TRIBUNAL A QUO DAS PLANTAS COMO DEFINITIVAS:
aaaa) O Tribunal a quo considerou as plantas cadastrais juntas pela Autora a fls. 309 e 1442 (e também, por uma vez, a planta a fls. 61), como sendo plantas definitivas e, por isso, gozando da força probatória que resulta do art. 14° o DL 3/94/M, de 17 de Janeiro.
bbbb) Ao fazê-lo, nesses termos, o Tribunal a quo, na linha do que fizera o TJB, desconsiderou por completo toda a restante prova levada aos autos pelo ora Recorrente, bem como pela 1ª Ré RAEM, sem sequer reflectir e analisar criticamente a restante e vasta prova documental existente nos autos.
cccc) Num parêntesis diga-se que a planta cadastral de fls. 309 (a mais recente) já não tinha qualquer validade jurídica à data de propositura da acção, uma vez que foi emitida em 05/08/2008 e a acção foi intentada em 14/12/2009, ou seja mais de um ano após a emissão da planta; e muito menos tinha qualquer validade jurídica a planta de fls. 1442, que tinha sido emitida em 2005; e a planta de fls. 61 era, obviamente, uma planta emitida para fins judiciais sem qualquer valor jurídico.
dddd) Aliás, sendo esta planta de fls. 61 a última a ser emitida, em Fevereiro de 2009, é muito relevante evidenciar que a DSCC, a mesma entidade emissora da planta de fls. 309 (em Agosto de 2008) e de fls. 1442 (em Dezembro de 2005), tenha então declarado expressamente que não é responsável pelos limites do terreno representado e que aquela planta não constitui qualquer presunção quanto à titularidade do terreno.!
eeee) Porém, além do que se acaba de se referir, o TJB e o Tribunal a quo ignoraram a sequência cronológica e datas das referidas três plantas, e o facto de todas elas terem elementos diferentes entre si. Ou seja: entre as três há sempre algo diferente, o que é muito estranho e inexplicável para uma planta definitiva, e que se diz ser "definitiva" desde 2005!
ffff) Segundo as normas do direito cadastral, as plantas de fls. 309 e 1442 não são legal nem formalmente plantas definitivas, entre outras razões porque essas plantas não têm a "data de emissão, como provisória ou definitiva", como impõe a al. f) do n° 4.
gggg) E as plantas juntas pela Autora a fls. 309 e 1442 não têm essa menção pela óbvia razão de terem sido requeridas nos termos do n° 2, do art. 32° do DL 79/85/M (ou seja Regulamento Geral da Construção Urbana - RGCU) e terem sido emitidas para esse fim específico.
hhhh) Por isso, aquelas plantas não são definitivas nem têm o valor jurídico atribuído pelo artigo 14° do dito D.L. 3/94/M, e não consta em lado algum que aquelas plantas tenham sido publicitadas e aprovadas por Despacho do Secretário nos termos previstos na lei cadastral, tendo sido também supra especificados os meios probatórios que demonstram não serem as plantas de fls. 309 e 1442 plantas legal e materialmente definitivas.
iiii) Nos termos da lei, as plantas cadastrais elaboradas pela DSCC em cumprimento do disposto nas alíneas a) e b) do artigo 9.° do Decreto-Lei n.° 70/93/M, de 20 de Dezembro apenas têm natureza provisória (n.° 1 do artigo 3 do DL 3/94/M,) e as plantas provisórias só se convertem em definitivas através a um processo de aprovação e por despacho do Governador publicado no Boletim Oficial (n.° 1 e 2 do mesmo artigo).
jjjj) Isso não acontece quando a planta é requerida nos termos do RGCU, o que está previsto para instruir pedidos de aprovação de projectos_(Vd. art. 19° n° 6, aI. b) do DL 79/85/M, de 21 de Agosto).
kkkk) E essas plantas cadastrais "têm um prazo de validade de 12 meses contados da data da respectiva emissão." (art. 32°, n° 3, do mesmo DL).
llll) É verdade que se deu como provado que "Por anúncios publicados em 28 de Novembro e 5 de Dezembro de 1997, em jornais de língua portuguesa e de língua chinesa, foram publicadas as plantas cadastrais referentes a todos os prédios sitos na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa) e expostas publicamente em vários locais."
mmmm) E que aquelas plantas foram posteriormente convertidas em definitivas, por despacho de 27.03.98 do então Secretário-adjunto para os Transportes e Obras Públicas, publicado no Boletim Oficial n° 14, I Série, de 06.04.98."
nnnn) Só que a Autora não juntou aos autos cópias das plantas publicitadas que mostrassem que a descrição predial XXXX e/ou a configuração representada nas plantas 61, 309 e 1442 estava incluída nas plantas cadastrais da Freguesia de Nossa Senhora do Carmo publicado no B.O. n° 14, I Série, de 06.04.98.
oooo) A verdade é que (i) o terreno representado nas plantas das fls. 61, 309 e 1442 dos Autos não constava de nenhuma planta publicitada (fls.174-177), como (ii) não havia nenhuma planta referente à descrição predial XXXX, pelo que a conversão em definitivo das plantas cadastrais da Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa) não tiveram qualquer efeito jurídico em relação a essa descrição predial XXXX.
pppp) Isso mesmo resulta inequívoco da defesa do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, a págs. 6 do Acórdão do TSI proferido em 12.12.2001, no Proc. 76/01 (fls. 242v dos autos).
qqqq) Ou seja, não há prova nos autos de que as plantas de fls. 61,305 e 1442 tenham sido objecto do processo de divulgação, ou que tenham sido objecto de despacho de aprovação pelo Secretário competente publicado no Boletim Oficial, tal como previsto no DL 3/94/M.
rrrr) Não é possível aceitar, por isso, a posição expressa no ponto 4, a pág. 91 do Acórdão recorrido, de que "conforme as plantas na altura publicadas, o terreno discutido nos autos tem sido considerado sempre propriedade privada".
ssss) A verdade é que a DSCC emitiu até hoje 10 plantas sobre esse terreno XXXX (veja-se a cronologia do ponto 173) e nunca apôs em nenhuma dela a menção de "planta definitiva" e a data do respectivo despacho de aprovação.
tttt) Por outro lado, ao contrário do que defende o Tribunal a quo, o(s) Recorrente(s) não tinha(m) de suscitar a falsidade da planta cadastral de fls. 309 e/ou de fls. 1442, nem ilidir a sua autenticidade. E isso, além do mais, pela óbvia razão de as referidas plantas não serem plantas cadastrais definitivas, e até já estarem caducadas à data em que foram junta aos Autos.
uuuu) Essas plantas, apesar de terem sido emitidas pela entidade competente, não contêm quaisquer declarações quanto a actos praticados pela entidade emissora nem atestam actos praticados na sua presença.
vvvv) De acordo com o disposto no n° 1 do artigo 365° do Código Civil e segundo a melhor doutrina e jurisprudência, os documentos autênticos só fazem prova plena quanto aos factos que neles se referem como tendo sido praticados pela autoridade ou quanto aos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
wwww) Não há dúvidas de que o documento de fls. 309 e 1442 foi emitido pela autoridade competente, a DSCC. Mas, do seu conteúdo não consta qualquer declaração quanto a factos realizados ou percepcionados pela DSCC, limitando-se esta entidade a representar o terreno conforme requerido.
xxxx) Já do conteúdo da planta de fls. 61, resulta manifesto que a OSCC incorporou nele declarações suas que atestam o seguinte: que aquela planta se destina, exclusivamente, a fins judiciais; que não constitui qualquer presunção quanto à titularidade do terreno representado e que a indicação dos limites do prédio foi efectuada no local em 05/03/2009, pela Sra. K (a Mandatária da Autora que assinou a Petição Inicial).
yyyy) Face ao conteúdo da planta de fls. 61, 309 e 1442, emitida pela mesma entidade pública, uma conclusão imediata se impõe: para efeitos do n° 1 do artigo 365° do CC só a planta de fls. 61 poderia ser considerada como documento autêntico, uma vez que esta planta de fls. 61 foi emitida posteriormente, e somente nesta planta foram incorporadas declarações da entidade emissora e são atestados factos por si percepcionados, mas nunca um documento autêntico para efeitos do art. 14° do DL 3/94/M.
zzzz) Por conseguinte, não estando válida a planta de fls. 309 e 1442 à data em que foi junta aos Autos pela Autora; não obedecendo a planta de fls. 309 e 1442 ao modelo enunciado no n° 3 do artigo 2° e dela não constando a classificação como definitiva, e a data em que foi aprovada como definitiva, conforme determina a alínea f) do artigo 4°, ambos do D.L. 3/94/M; não constando da dita planta de fls. 309 e 1442 quaisquer factos como tendo sido praticados pela autoridade ou oficial público que são seus autores, nem se atestando factos com base em percepções da entidade documentadora, terá de se concluir, que não tinham os Réus que suscitar a falsidade nem ilidir a autenticidade do documento de fls. 309 e 1442.
ACERCA DA CONFIGURAÇÃO E LOCALIZAÇÃO DO TERRENO DESCRITO SOB O N° XXXX:
aaaaa) Nos autos há uma realidade inultrapassável: é impossível a prova directa da localização e das confrontações do terreno reivindicado pela Autora sem uma cópia da planta original do terreno XXXX, e essa é impossível de encontrar porque desapareceu convenientemente de todos os processos onde era suposto que estivesse arquivada.
bbbbb) Desapareceu a planta original, mas não despareceu a escritura que H outorgou para a aquisição do terreno descrito sob o n° XXXX, e que está junta aos autos a fls. 773 a 775, nem tão pouco o requerimento apresentado na Conservatória do Registo Predial para descrição do terreno e inscrição da aquisição, que se encontra a fls. 231 e 232, que pelo seu detalhe, é um elemento de prova fundamental que o TJB e o Tribunal a quo não poderiam ter ignorado a pretexto algum.
ccccc) A escritura indica as confrontações bem como a configuração geométrica do terreno por referência a coordenadas precisas.
ddddd) Mas mesmo fazendo a projecção dessas coordenadas, sem pré-condicionalismos ou a necessidade de as ajustar aos interesses prosseguidos nestes autos, ainda assim obtêm-se dois polígonos com formas geométricas com diferenças.
eeeee) De onde se pode concluir que, nem mesmo a partir da escritura é possível obter a exacta forma geométrica do terreno.
fffff) Isso mesmo se comprova pela intervenção dos peritos neste processo que, através do seu relatório pericial (de fls. 1811 e segs) demonstraram, através de formas geométricas feitas a partir das mesmas coordenadas, que é impossível saber exactamente qual é a configuração do terreno.
ggggg) E fazendo o exercício de colocarem aleatoriamente o polígono que desenharam em sobreposição com a parcela de terreno da planta de fls. 309, verifica-se que é impossível que coincidam.
hhhhh) Por mais exercícios que se façam, há uma conclusão inultrapassável: nenhuma das configurações geométricas (feitas a partir das coordenadas da escritura) se ajusta, de forma alguma, à configuração geométrica das plantas cadastrais da Autora de fls. 309 e 1442.
iiiii) Ou seja, e dizendo de outro modo: é impossível saber onde se localiza exactamente o terreno descrito sob o n° XXXX e em discussão nos autos.
jjjjj) E estas duas evidências demonstram, só por si, a impossibilidade lógica e jurídica de a Autora ter sucesso na reivindicação de um terreno que não se sabe exactamente como é e onde está!
kkkkk) Para ultrapassar esta dificuldade, o TJB não se pronunciou sobre se havia, ou não, correspondência física entre o terreno representado na planta de fls. 61, 309 e 1442 e o terreno da descrição XXXX, limitando-se a aceitar as delimitações da planta por a considerar definitiva e fazendo tábua rasa da evidência de ao longo das décadas se terem registado alterações geográficas, urbanas e morfológicas que alteraram significativamente a fisionomia da cidade como também daquela zona da Taipa.
lllll) O Tribunal a quo argumentou que o terreno descrito sob o n° XXXX não se localizava no antigo cemitério Sa Kong, ignorando a profusão de provas juntas pelo Recorrente e que se elencam no ponto 285 e 286 destas Alegações.
mmmmm) O Tribunal a quo argumentou, ainda, que o terreno descrito sob o n° XXXX não coincidia com o da Carreira de Tiro - indo ao ponto de dizer que não havia provas de que ela tinha sido construída -, ignorando os vastos elementos de prova juntos pelo Recorrente e que se elencam no ponto 288 destas Alegações.
nnnnn) Porém, perante os meios de prova indicados, que localizam o cemitério Sá Kong e que localizam a Carreira de Tiro da Taipa ao longo dos tempos, só com a sua desconsideração total, ou uma errada apreciação do que neles consta, pôde o Tribunal a quo a manter a decisão do TJB e dar como provados os Quesitos 1° a 4° da Base Instrutória, e considerar, sem nunca o dizer expressamente, que o terreno neles descrito e representado na planta de fls. 61, 309 e 1442 tem correspondência com o terreno da descrição XXXX, reivindicado pela Autora.
ACERCA DA CONDENAÇÃO DO IAM AO ABRIGO DO REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTOS ILÍCITOS:
ooooo) Fazendo a síntese das decisões tomadas neste processo obtém-se o paradoxo judiciário de a RAEM, a verdadeira e única possuidora do terreno reivindicado (i) não ter sido condenada a reconhecer o direito de propriedade reivindicado pela Autora e já não o poder ser porque a Autora não interpôs recurso da decisão de absolvição, que está transitada em julgado, (ii) não ter sido condenada a pagar qualquer indemnização pelo parte do terreno com 20,263 m2 que permitiu que o IAM ocupasse; e (iii) ter sido condenada a pagar à Autora uma indemnização pela parte do terreno (4,235 m2) onde foram construídas as estradas antes de a própria Autora ter adquirido o terreno.
ppppp) Por sua vez, o IAM, o mero detentor, ou possuidor em nome alheio (da RAEM) (i) ter sido condenado a reconhecer o direito de propriedade reivindicado pela Autora, e (ii) ter sido condenado a pagar indemnização referente aos com 20,263 m2 do terreno que a Autora reivindica, e que a RAEM permitiu ocupasse.
qqqqq) Com todo o respeito, é de todo incompreensível este resultado, nem mesmo à luz do mais negligente bonus paterfamilias!
Diga-se, em todo o caso,
rrrrr) O IAM esteve sempre convicto de estar a ocupar, de forma temporária, e mediante autorização da RAEM - remetendo-se para a cronologia factual exposta no ponto 305 destas Alegações -, o terreno do antigo cemitério Sa Kong, cuja gestão tinha pertencido à Câmara das Ilhas, não se verificando os pressupostos que permitam, em face da lei, a sua condenação pela prática de factos ilícitos e de acordo com o regime de responsabilidade civil estabelecido no art. 477° do CC.
sssss) Parece inquestionável que o possuidor é a RAEM e, como consta dos autos, o IAM pediu autorização à RAEM para ocupar o terreno do antigo cemitério Sá Kong para o qual estava prevista a construção do Parque Urbano da Taipa Norte.
ttttt) O IAM foi autorizado, em 2003, pelo então Secretário das Obras Públicas e Transportes do Governo da RAEM a usar o terreno nos seguintes termos: "Esta autorização de utilização temporária fica condicionada à desocupação do referido terreno quando for executada a obra do Parque Urbano da Taipa Norte, ou outras instalações necessárias" (cfr. doc. 39, fls. 1181/1199 - sublinhado nosso).
uuuuu) Tendo em conta a noção de posse estatuída no artigo 1175° da CC, para haver posse, é necessário que além do poder de facto exercido sobre a coisa exista uma actuação por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, pelo que é mais do que evidente que nunca o IAM agiu com esse animus porque sempre reconheceu que a verdadeira possuidora, em termos de direito de propriedade, é a RAEM.
vvvvv) E foi dado como provado pelo TJB que "A utilização do Terreno pelo IAM sempre se processou de forma pacífica, de boa fé; à vista de toda a gente" (Quesito 29°).
Não obstante,
wwwww) O IAM foi condenada ao pagamento de uma indemnização à Autora por se ter considerado que estavam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil enunciados no n° 1 do artigo 477° do Código Civil, e se ter concluído que o IAM incorria na obrigação de indemnizar a Autora nos termos desse regime jurídico.
xxxxx) Com o devido respeito, entende o Recorrente que houve errada interpretação dos factos provados e da lei por parte do Tribunal a quo e que não estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos.
yyyyy) Dão-se aqui por reproduzidos os argumentos que sobre esta matéria se desenvolvem nos pontos 319 a 344.
zzzzz) Vinca-se, em síntese, quanto à responsabilidade que se pretende atribuir ao Recorrente, que o IAM é um mero detentor do terreno, que ocupa com autorização da RAEM, sua verdadeira possuidora, em termos de direito de propriedade.
aaaaaa) Que o IAM não tinha qualquer legitimidade para proceder à entrega do terreno à Autora quando para o efeito foi por ela notificado para o fazer, porque o possuidor e titular do terreno é a RAEM.
bbbbbb) Que IAM teve sempre título bastante para ocupar o terreno passado pela RAEM, a qual considera que o mesmo lhe pertence.
cccccc) Que o IAM nunca prefigurou a violação do direito de propriedade da Autora porque sempre utilizou o terreno na convicção que era terreno do antigo cemitério Sá Kong e não o terreno da Autora.
dddddd) Que o IAM nunca prefigurou causar quaisquer danos à Autora porque sempre esteve convencido que o terreno do cemitério Sá Kong pertence à RAEM, que o autorizou a ocupar.
eeeeee) Que, o IAM, ao não entregar o terreno à Autora, não podia ter agido de outro modo tendo em conta o que faria um homem médio de Macau, notificado para entregar um terreno, nas mesmas circunstâncias em que o IAM o foi.
POR TUDO O EXPOSTO,
e nos demais de direito que V. Exas doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente:
1. Declarar-se a nulidade de todos os actos praticados neste processo desde que o Sr. Juiz TONG HIO FONG passou a constituir o colectivo de julgamento deste recurso e, consequentemente, deve declarar-se a nulidade do acórdão proferido, nos termos dos arts. 311°, n° 1, al. e) e art. 147°, n° 1, ambos do CPC.
Ou, se assim não se entender,
devem V. Exas revogar o Acórdão recorrido:
2. Por violação do disposto nos arts 1° a 4° da Carta de Lei de 1901, declarando que a aquisição ab initio do terreno da descrição XXXX, em 1913, é uma aquisição nula por ter sido transmitida por um indígena para um não indígena sem qualquer autorização ou confirmação que, a existir, teria de ser declarada e arquivada no acto da escritura, pois à data da publicação da Carta de Lei de 1901 o terreno em causa não tinha transitado legalmente para o domínio da propriedade particular. Essa nulidade é invocável a todo o tempo e tem efeitos retroactivos (arts. 279° e 282° n° 1 do CCM).
3. Por errada interpretação e violação do n.° 2 do art. 5.° do Código do Registo Predial de Macau, declarando-se:
- Que o bem integrou o domínio público de Território de Macau, não estando sujeito a registo, por estar fora do comércio jurídico. E que, mesmo integrando o domínio privado, e estando a expropriação sujeita a registo, o registo só produz efeitos enunciativos ou de mera publicidade ou notícia, sendo insusceptível de produzir os efeitos declarados na decisão recorrida.
- Que a viúva C1, à luz do Código de Seabra, não era herdeira do marido H (uma vez que o H tinha deixado, vivos, filhos legítimos), pelo que a dita C não poderia transmitir a totalidade do direito de propriedade sobre o terreno descrito sob o n° XXXX
- Que, ainda que se considere válida a compra do terreno da descrição XXXX pelo H e que se considere que a sua aquisição não violou os arts. 1 ° a 4° da Carta de lei de 9 de maio de 1910, este terreno foi expropriado em 1918 e por tal razão foi extinta a propriedade privada daquele terreno e o correspondente direito subjectivo na esfera jurídica do expropriado;
- Que face à extinção daquele direito subjectivo na esfera jurídica de H, tal terreno não podia ter sido transmitido aos seus herdeiros à data da sua morte, até porque a expropriação produz efeitos entre as partes e em relação aos seus herdeiros, mesmo não tendo sido levada a registo;
- Que o facto de o prédio ter sido expropriado e não integrar a massa da herança coloca-nos perante uma sucessão inexistente quanto ao prédio.
4. Caso assim se não entenda, quando a este ponto, verificando V. Exas que existe uma contradição entre a decisão de facto que inviabiliza a decisão de direito recorrida - na parte que diz que o terreno foi afecto ao domínio da RAEM por força da conclusão do processo expropriativo aludido em H) a M), a qual está em contradição com o facto provado da al. e) que diz que C adquiriu por sucessão hereditária o referido terreno - devem V. Exa revogar o Acórdão recorrido e mandar julgar novamente a causa nos termos do art. 650°, n° 1 do CPC.
Se assim não se entender,
5. Devem V. Exas revogar o Acórdão recorrido por violação do art. 7° da Lei Básica e por errada interpretação e aplicação do art. 284° do Código Civil, declarando que:
- Que a expropriação teve como resultado a aquisição originária, pelo Território de Macau, do direito sobre o terreno descrito sob o n° XXXX.
- Que, tratando-se de um direito originário, não há qualquer transmissão do direito real sobre o terreno entre os herdeiros de H e a B.
- Que o terreno descrito sob o n° XXXX se consolidou na esfera jurídica do Território de Macau antes da criação da RAEM, sendo insusceptível de transmissão privada depois de 20.12.1999, em face do art. 7° da Lei Básica.
- Que a Autora não é terceiro de boa fé para efeitos do art. 284° do CCM.
Ou, se for outro o entendimento de V. Exas,
Devem V. Exas revogar o Acórdão recorrido por interpretar erradamente a letra e o espírito do n° 3 do artigo 2°, do artigo 3°, da alínea f) do artigo 4°, e do artigo 14° Decreto-Lei 3/94/M, bem como dos arts. artigos 356.°, 363.° e 365.° do CC, e declararem:
- Que as plantas juntas a folhas 61, 309 e 1442 não são plantas definitivas e, consequentemente, não são documentos autênticos, não tendo o valor jurídico atribuído pelo Tribunal a quo, sendo, por isso, insusceptível de fundamentarem as respostas aos Quesitos 1° a 4°.
Em consequência, e uma vez declarado que as plantas cadastrais juntas aos autos não têm a força probatória que o Tribunal a quo lhes reconheceu, e por manifestamente se verificar o vício da insuficiência da matéria de facto para responder aos Quesitos 1° a 4a, devem V. Exa ordenar que os autos baixem ao Tribunal de Segunda Instância para, nos termos do art. 650, n° 1, do CPC, a matéria de facto ser ampliada para fundamentar uma nova decisão de Direito.
Finalmente,
devem V. Exas revogar o Acórdão recorrido por errada interpretação do regime jurídico da responsabilidade civil por factos ilícitos, nomeadamente do art. 477° do CCM, e, em consequência ser declarado não estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil quanto ao IAM, que deve ser declarado um mero detentor e utilizador provisório do terreno, absolvendo-se o IAM da obrigação de pagar à Autora qualquer indemnização.
Em todo o caso, revogando-se o Acórdão recorrido, devem V. Exa
i) Declarar que o prédio rústico sito na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° XXXX, a fls. 105, do livro BXX, com a área de 24.482 m2 pertence à RAEM devendo a Autora ser condenada a reconhecê-lo;
ii) Declarar que a descrição predial XXXX está integrada na descrição predial XXXXX e, assim sendo, nos termos dos artigos 77.° e 78.°. do Código do Registo Predial de Macau, mandar que seja inutilizada a descrição n.° XXXX.
iii) Declarar a nulidade e ordenado o cancelamento dos seguintes registos:
a) Inscrição n.° XXXXX (L XXXX, fls. 227), a favor de C ou C1;
b) Inscrição n.° XXXXX (L XXXX, fls. 228), a favor de D, casado com E ou E1 ou E2 e de F, casado com G;
c) Inscrição n.° XXXX (L XXXX, fls. 199) a favor de B;
d) Inscrição n.° XXXXXX a favor da Autora;
e) Inscrição n.° XXXXXX a favor do Interveniente principal”; (cfr., fls. 3034 a 3187).
*
Remetidos os autos a este Tribunal de Última Instância, e após a sua distribuição, veio a A. “requerer a declaração de impedimento” do Exmo. 2° Juiz-Adjunto que, por despacho de 27.07.2021, assim não entendeu, do mesmo tendo a aludida requerente apresentado “reclamação para a Conferência”; (cfr., fls. 3548 a 3556).
*
Por deliberação do Conselho dos Magistrados Judiciais de 21.12.2023 foram estes autos redistribuídos ao ora relator.
*
Por Acórdão de 28.02.2024, e com a intervenção do substituto legal do Exmo. Juiz autor do despacho objecto da referida “reclamação” foi esta julgada improcedente; (cfr., fls. 3596 a 3599-v).
*
Transitado em julgado estando o assim decidido, mantendo-se a validade de instância, e nada parecendo obstar, cumpre apreciar e decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
2. Como cremos que resulta do que até aqui se deixou relatado, várias são as “questões” nos presentes autos e recursos trazidas à apreciação e decisão desta Instância.
Umas, (chamemos), “prévias”, (de natureza “processual”), outras, relacionadas com o “acerto e mérito” do decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância objecto dos recursos pela 1ª e 2° RR., (R.A.E.M. e I.A.M.), interpostos.
Nesta conformidade, e como se apresenta lógico, comecemos por aquelas, e, assim – decidida estando a reclamação em sede do requerido “impedimento” do Exmo. Juiz-Adjunto – debrucemo-nos, desde já, sobre idêntica questão relativamente a um Exmo. Juiz que integrou o Colectivo do Tribunal de Segunda Instância que proferiu o Acórdão agora recorrido.
2.1 Do alegado “impedimento do Exmo. Juiz do Tribunal de Segunda Instância”.
Em sede do seu recurso, defende o 2° R., (I.A.M.), que o Exmo. Juiz Tong Hio Fong estava impedido de integrar o Colectivo de Juízes que apreciou o recurso jurisdicional que correu termos no Tribunal de Segunda Instância, uma vez que, (anteriormente), tinha tido intervenção no processo, designadamente, no início da audiência de discussão e julgamento que teve lugar no Tribunal Judicial de Base, tendo proferido alguns despachos relevantes para a decisão da causa, considerando, assim, violado o disposto no art. 311°, n.° 1, alínea e) do C.P.C.M., nos termos do qual, “O juiz está impedido de exercer as suas funções quando: e) Se trate de recurso interposto em processo no qual tenha tido intervenção como juiz, quer proferindo a decisão recorrida quer tomando de outro modo posição sobre questões suscitadas no recurso”.
Tem-se por adequada uma nota prévia, pois que, (como em sede da apreciação de idêntica matéria já se deixou referido), a intervenção do Exmo. Juiz em questão em sede do recurso para o Tribunal de Segunda Instância foi, com a sua distribuição, oportunamente notificada ao ora recorrente, não se deixando de estranhar assim que, tão só agora, após decisão dos recursos, seja o seu “impedimento” suscitado, apresentando-se-nos, assim, o que nesta sede se alega muito pouco feliz e compatível com o estatuído no art. 8° e 9° do C.P.C.M..
Contudo, e seja como for, e em causa estando a “imparcialidade” e “transparência” dos Tribunais e dos seus Magistrados, eis o que sobre a questão se nos mostra de considerar.
Pois bem, este Tribunal de Última Instância já teve oportunidade de se pronunciar sobre o teor e alcance do comando legal pelo recorrente invocado:
“(…)
Referem CÂNDIDA PIRES e VIRIATO LIMA a propósito da mencionada alínea que «A razão que está na base deste fundamento é, se não mesmo a consideração que o amor próprio exerce sobre o espírito do juiz que o levaria a manter a posição já tomada, pelo menos “a predisposição para reproduzir um juízo já emitido”.
Não há impedimento se o juiz do recurso foi o juiz do processo na instância inferior mas se limitou a proferir decisões que não estão em causa ou não têm ligação com a questão que se debate no recurso. Por exemplo, não existe impedimento se o juiz proferiu decisões interlocutórias e o recurso é da decisão final. Ou se julgou a matéria de facto, como juiz singular ou membro do tribunal colectivo, mas não proferiu a sentença e o recurso é restrito à matéria de direito.
Pode haver impedimento se o juiz interveio na primeira instância, proferindo a decisão de que se recorre para o TSI, e intervém a apreciar o recurso interposto da segunda instância, no TUI. Neste caso, o juiz não proferiu a decisão recorrida, mas está impedido se tomou posição sobre questões suscitadas no recurso».
O despacho do Ex.mo Juiz, a quem foi oposto o impedimento, e o acórdão recorrido, resolvem um dos fundamentos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 311.º do Código de Processo Civil, porque, na verdade, aquele Juiz não proferiu a decisão recorrida. Interveio no julgamento da matéria de facto e proferiu a sentença, sendo que tanto este julgamento como a sentença vieram a ser anulados e foi realizado um novo julgamento em que já não interveio, nem proferiu a sentença recorrida (a 2.ª).
A questão é que a lei também veda a participação do juiz que, no processo em causa, tomou posição sobre questões suscitadas no recurso.
Temos, assim, que saber que questões é que são suscitadas no recurso da sentença, para aferir se o Ex.mo Juiz tomou posição sobre essas questões enquanto Juiz do Tribunal Administrativo, que possam levar a duvidar-se da sua imparcialidade na intervenção como Juiz no recurso”; (cfr., v.g., o Ac. de 19.07.2017, Proc. n.° 43/2017).
Isto dito, vejamos.
In casu, no seu recurso perante o Tribunal de Segunda Instância apresentado, impugnou o ora recorrente a decisão do Tribunal Judicial de Base, com ele:
i) assacando vícios vários na decisão tomada sobre a matéria de facto;
ii) invocando a falta de pronúncia relativamente a questões (essenciais) da mesma matéria de facto, nomeadamente, a da “correspondência física do terreno”;
iii) arguindo, igualmente, a nulidade prevista na alínea d) do n.° 1 do art. 571° do C.P.C.M., por falta de pronúncia sobre questões que devia apreciar, como a falsidade das declarações da escritura das habilitações de herdeiros e da validade dos registos;
iv) arguindo a nulidade prevista na alínea e) do n.° 1 do art. 571° do C.P.C.M., ao condenar os RR. em objecto diverso do pedido ao proceder, oficiosamente, à “subdivisão” do terreno reivindicado em duas parcelas e ao ordenar a rectificação do registo quando lhe tinha sido pedida a restituição do terreno e o cancelamento dos registos;
v) arguindo a nulidade prevista na alínea b) do n.° 1 do art. 571° do C.P.C.M., ao condenar o I.A.M. ao pagamento de uma indemnização, acrescida de juros legais, com efeitos imediatos, sem qualquer fundamentação de facto e de direito que justificasse tal decisão, (cfr., fls. 2909);
vi) impugnando, também, a “decisão de direito” contida na sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base.
Ora, em face do que nos presentes autos foi processado e assim consta, o Exmo. Juiz Tong Hio Fong não participou na deliberação do “Acórdão” onde se emitiu decisão sobre a “matéria de facto”, o mesmo sucedendo com elaboração da subsequente “sentença” (final) onde se proferiu a correspondente decisão de direito (do Tribunal Judicial de Base).
E, assim, tendo o ora recorrente impugnado a decisão sobre a “matéria de facto” e a “decisão final” pelo Tribunal Judicial de Base proferidas, visto está assim que, em causa, não está qualquer decisão que tenha sido tomada ou em que o Exmo. Juiz Tong Hio Fong tenha participado.
Por sua vez, adequado se mostra de referir, igualmente, que quanto aos recursos pelos demais sujeitos processuais apresentados, estando também em causa a impugnação da mesma “decisão sobre a matéria de facto” e idêntica “decisão final”, o mesmo se nos mostra de dizer, pois que, como se viu, tanto numa como noutra, nenhuma intervenção teve o Exmo. Magistrado em questão.
Dest’arte, e como nos parece evidente, claro está que nenhum motivo existia, (ou existe), para se considerar que não devia o Exmo. Juiz Tong Hio Fong integrar o Colectivo do Tribunal de Segunda Instância que conheceu dos recursos aí apresentados do pelo Tribunal Judicial de Base decidido, (no referido Acórdão e sentença).
*
Resolvido(s) que assim nos parece(m) ficar o(s) suscitado(s) “impedimento(s)”, continuemos, passando-se a apreciar dos “recursos” e do acerto da decisão recorrida propriamente dita.
3. Dos factos.
O Tribunal Judicial de Base considerou “provados” os factos seguintes (que não foram objecto de alteração pelo Tribunal de Segunda Instância):
“a) Por escritura pública lavrada em 16 de Setembro de 2005, a fls. 119 do Livro 23 da Notária Privada K a A. (então denominada “A1”) comprou à B, o prédio rústico constituído por Terreno, sito na Taipa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXX, a fls. 105, do livro BXX, omisso na matriz, conforme certidão predial junta a fls. 50 a 60 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
b) O preço da aquisição do Terreno, no valor de HKD$175,000,000.00, foi parcialmente suportado por facilidades bancárias no montante de MOP$154,500,000.00 concedidas à A. pelo [Banco(1)], ora interveniente principal, contra a hipoteca do Terreno, facilidades bancárias e hipoteca que foram contratadas na mesma escritura que titulou a aquisição do Terreno, em conformidade com o teor do documento junto a fls. 37 a 49 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido;
c) A aquisição do Terreno pela A. encontra-se registada a título definitivo a favor desta na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXXX do Livro G, registo esse que foi efectuado com base na Ap. nº 135 de 20/09/2005;
d) A B adquiriu o Terreno por escritura outorgada a 4 de Agosto de 1997, a fls. 52 do Livro XX do [Notário Privado(3)], aquisição essa que, mediante a Ap. nº 137 de 04/08/1997, foi registada na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. 199 do Livro XXXX;
e) Pela apresentação nº 74 de 23.05.1997, C ou C1, viúva, adquiriu por sucessão hereditária o referido Terreno, tendo o registo sido efectuado com base na escritura de Habilitação outorgada em 22.01.1997, a fls. 77 do Liv. XXXX do 4º Cartório Notarial de Lisboa, documento junto a fls. 188 a 192 dos autos e que aqui se dá integralmente por reproduzido;
f) A mesma escritura de Habilitação serviu para o registo, feito através da Apresentação 75 de 23.05.1997, a favor de D, casado no regime da comunhão geral com E ou E1 ou E2 e de F, casado no regime da comunhão geral com G;
g) Por escritura pública de compra e venda outorgada em 25 de Outubro de 1913 no [Notário Privado(2)], H adquiriu o Terreno, tendo-o registado na Conservatória do Registo Predial através da apresentação nº 2, de 15.11.1913;
h) No Boletim Oficial de Macau nº 11, de 16 de Março de 1918, a Administração do Concelho da Taipa e Coloane, publicou um edital, com o teor constante do documento de fls. 258 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
i) No Boletim Oficial de Macau nº 38 de 21.09.1918, o Governo da Província de Macau publicou a Portaria nº 195, com o teor constante do documento junto a fls. 259 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
j) No Boletim Oficial nº 40, de 5 de Outubro de 1918, o Governo da Província de Macau publicou a Portaria nº 210, com o teor constante do documento junto a fls. 260 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
k) Em 10 e 17 de Janeiro de 1920 (Boletim Oficial de Macau nº 2 e 3, respectivamente) foram publicados Éditos, por ordem do Juízo de Direito da Comarca de Macau, citando quaisquer interessados que se julgassem com o direito a “um terreno com a área de 24.482m2, sito na ilha da Taipa, para dentro do prazo dos éditos virem deduzir os seus direitos sob pena de findo aquele prazo o mesmo terreno ser adjudicado livre e desembaraçado à Fazenda Nacional expropriante e a respectiva indemnização paga ao expropriado H dono do referido terreno”;
l) A Portaria 5.971 foi publicada no Boletim Oficial nº 7, de 16 de Fevereiro de 1957 com o teor constante do documento junto a fls. 173 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido
m) O Terreno foi afecto ao domínio da RAEM por força da conclusão do processo expropriativo aludido em h) a l);1
n) Sendo que na sequência dos editais aludidos em k), nenhum interessado se apresentou a deduzir quaisquer direitos sobre o Terreno;2
o) Por anúncios publicados em 28 Novembro e 5 de Dezembro de 1997, em jornais de língua portuguesa e de língua chinesa, foram publicitadas as plantas cadastrais respeitantes a todos os prédios sitos na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa) e expostas publicamente em vários locais;
p) Aquelas plantas foram posteriormente convertidas em definitivas, por despacho de 27.03.98 do então Secretário-adjunto para os Transportes e Obras Públicas, publicado no Boletim Oficial nº 14, I Série, de 06.04.98;
q) No dia 24 de Outubro de 2008, na sequência de iniciativa da A., esta reuniu com o Presidente do 2.º Réu IACM, o Sr. L Tam e com outros representantes deste Instituto;
r) A A. enviou ao 2º Réu, no dia 3 de Dezembro de 2008, uma carta solicitando, por um lado, a imediata cessação dos trabalhos de construção em curso no Terreno, e, por outro, fixando a data de 31 de Dezembro de 2008 como limite para a apresentação à A. de uma proposta para a resolução da situação;
s) A esta carta respondeu o 2º R. através do Ofício nº 22522/089/PCA/2008 junto a fls. 74 dos autos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais;
t) A este ofício do 2º Réu respondeu a A., através de carta datada de 19 de Dezembro de 2008, junto a fls. 76 a 77 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais;
u) A A., por carta datada de 7 de Janeiro de 2009, notificou o 2º R. de que dispunha até ao dia 9 de Março de 2009 para demolir as construções efectuadas no Terreno, desocupar o mesmo e devolvê-lo à Autora, em conformidade com o documento junto a fls. 79 a 80 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os efeitos legais;
v) No ano de 1994, a R. Região Administrativa Especial de Macau ocupou duas partes do Terreno com uma área total de 4,235m2;
w) Nessa área ocupada pela 1ª R., esta construiu estradas de acesso à Ponte da Amizade, ocupação que ainda hoje se mantém;
x) Em meados de 1999, o 2º Réu ocupou outra parte do Terreno, nele instalando um depósito de pneus;
y) Durante o verão de 2008, o 2º Réu ocupou outra parte do Terreno, iniciando a construção de um edifício;
z) Mais recentemente, em datas não apuradas, o 2º R. ocupou outras partes do Terreno, instalando uma caixa de electricidade e construindo barracas e alpendres, alguns de apoio à construção do aludido edifício;
aa) O 2º Réu actualmente ocupa uma área total de 20,263 m2;
bb) O Terreno encontra-se murado e vedado, salvo as partes ocupadas pela 1.ª Ré;
cc) O 2º Réu mantém na sua posse exclusiva, desde data anterior ao facto aludido em a), as chaves das fechaduras que instalou nos únicos dois portões que dão acesso ao Terreno;
dd) O 2º Réu impede dessa forma, e desde essa data o acesso total da A. a qualquer parte do Terreno, excluindo as partes ocupadas pela 1ª Ré;
ee) O aludido terreno tem actualmente a área de 24,498m2;
ff) E confronta a Nordeste com terreno omisso na CRP, junto à Estrada Almirante Magalhães Correia, Estrada Almirante Magalhães Correia e Avenida Padre Tomás Pereira;
gg) O terreno referido em ee) confronta a Sudeste com terreno omisso na CRP, junto à Estrada Almirante Magalhães Correia, Estrada Almirante Magalhães Correia;
hh) E confronta a Sudoeste com terreno omisso na CRP, junto à Estrada Almirante Magalhães Correia e a Noroeste com terreno omisso na CRP, junto à Estrada Almirante Magalhães Correia e Avenida Padre Tomás Pereira;
ii) A ocupação do Terreno com estradas pela 1ª R. e a posse exclusiva das chaves que abrem os portões de acesso ao remanescente do Terreno pelo 2º R., tem impedido a A. de aproveitar o Terreno;
jj) A Autora, em face do comportamento dos RR, não pode arrendar o terreno e não o pode alienar nas mesmas condições em que o faria se estivesse livre;
kk) O Terreno se estivesse desocupado e sem qualquer construção, poderia ter sido arrendado para diversos fins, tais como estacionamento ou armazenamento ou depósito de materiais;
ll) Em Abril de 2009 o valor locativo de mercado do Terreno era de HKD$594,000.00 (equivalente a MOP$611,820.00) por mês;
mm) O valor locativo de mercado do Terreno entre 27.04.2010 e 26.04.2011, cifra-se em HKD$609,000.00 (equivalente a MOP$627,270.00) por mês;
nn) O valor locativo de mercado do Terreno entre 27.04.2011 e 26.04.2012, cifra-se em HKD$639,000.00 (equivalente a MOP$658,170.00) por mês;
oo) O valor locativo de mercado do Terreno a partir de 27.04.2012 cifra-se em HKD$682,000.00 (equivalente a MOP$702,460.00) por mês;
pp) As ocupações do Terreno por parte do Réu IACM foram sendo autorizadas pela RAEM, através da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes;
qq) H quando faleceu deixou dois filhos maiores;
rr) Quando a Autora celebrou a escritura de compra e venda aludida em 16 de Setembro de 2005 o Terreno estava vedado;
ss) A utilização do Terreno pelo IACM sempre se processou de forma pacífica, de boa-fé, à vista de toda a gente;
tt) Pelo menos desde o ano 2000 a RAEM tinha conhecimento do teor e das conclusões do documento junto a folhas 251/254”; (cfr., fls. 1981-v a 1986-v e 2903 a 2905-v).
4. Do direito.
Como atrás se deixou relatado, dois são os recursos (pela 1ª e 2° RR.) trazidos a este Tribunal de Última Instância.
Reflectindo sobre o que neles vem alegado e considerado, cremos que as verdadeiras “questões (de fundo)” que nos cumpre apreciar consistem – essencialmente – em decidir da pela A. reclamado “direito de propriedade” do terreno em questão, e da pelos RR. propugnada “oponibilidade da sua expropriação” (pela então Província de Macau, hoje, R.A.E.M.), não obstante a “falta do seu registo”, (assim como da “aplicabilidade do art. 284° do C.C.M.” à situação dos autos).
Antes, porém, de nos ocuparmos das referias questões, cabe recordar que “A obrigatoriedade de o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não significa que o juiz tenha, necessariamente, de apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para fundamentarem a resolução de uma questão”, (cfr., v.g., Viriato de Lima in, “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., pág. 536, podendo-se também ver, entre muitos, os Acs. deste T.U.I. de 04.11.2022, Proc. n.° 79/2022, de 09.11.2022, Proc. n.° 98/2022, de 30.06.2023, Proc. n.° 138/2020, de 14.07.2023, Proc. n.° 137/2020, de 17.04.2024, Proc. n.° 28/2023 e de 08.05.2024, Proc. n.° 12/2024-I, onde se afirmou, repetidamente, que se tem considerado que: “só a omissão de pronúncia sobre questões, e não sobre os fundamentos, considerações ou razões deduzidas pelas partes, que o juiz tem a obrigação de conhecer determina a nulidade da sentença”).
Isto dito, adequado se mostra ainda de se fazer um (breve) parêntesis e consignar o que segue.
–– Da pela A. requerida “ampliação do recurso”.
Em sede da sua resposta ao recurso da 1ª R., (R.A.E.M.), pretende a A. que nos termos do art. 549°, n.° 2 do C.P.C.M., se dê como “não escrita” a resposta ao “quesito 18° da Base Instrutória”, considerando estar em causa matéria “conclusiva” e de “direito”; (cfr., concl. XLII e segs. da sua resposta ao recurso apresentado pela 1ª R., R.A.E.M.).
Não obstante o facto da A. ter requerido a “ampliação do âmbito do recurso” a título subsidiário na sua resposta às alegações de recurso apresentado pela 1ª R., por uma razão de ordem sistemática procede-se desde já à apreciação desta matéria, pois a questão em si apresenta-se relevante para a decisão da questão de direito em discussão nos autos.
Nesta conformidade, vejamos.
Pretende a A. que se dê como “não escrito”, (ou “não provado”), que o “processo expropriativo foi concluído”, e, como tal, que “não teria havido expropriação”.
Ora, dispõe o art. 590° do C.P.C.M. que:
“1. Se forem vários os fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
2. Pode ainda o recorrido, na respectiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnada pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.
3. Na falta dos elementos de facto indispensáveis à apreciação da questão suscitada, pode o tribunal de recurso mandar baixar os autos, a fim de se proceder ao julgamento no tribunal onde a decisão foi proferida”.
E, antes de mais, importa atentar no sentido alcance da faculdade concedida pelo transcrito n.° 2 do art. 590°.
Pois bem, como nota Lopes do Rego, tal norma surge na sequência da “substancial ampliação dos poderes de cognição da Relação quanto à matéria de facto, consequentes ao regime estabelecido no DL n.º 39/95, [que] ditou a necessidade de se facultar identicamente ao recorrido a ampliação do âmbito do recurso, de modo a poder este questionar a solução dada a certos pontos da matéria de facto.
Pode, na realidade, suceder que a acção (ou a defesa) tenha sido julgada procedente apesar de o tribunal não ter considerado provada toda a matéria de facto alegada pela “parte vencedora” – designadamente, porque entendeu que os factos provados eram, só por si, suficientes para alcançar o efeito jurídico pretendido por quem os havia alegado; ora, se a parte vencida impugnar perante a Relação tal entendimento da “fattispecie” normativa em que assentou a procedência da acção ou da defesa, teria necessariamente de se reconhecer à parte vencedora a possibilidade de – a título subsidiário – ampliar o âmbito do recurso interposto pela parte contrária, de modo a abarcar a decisão proferida sobre o segmento da matéria de facto que a 1.ª instância havia considerado “não provada”. Na verdade, se assim não fosse, ficaria tal parte, apesar de vencedora na 1.ª instância, indefesa perante um possível e eventual entendimento diverso da Relação, que se não bastasse – para alcançar o efeito jurídico pretendido – com a parcela da matéria de facto que o tribunal considerou provada”; (in “Comentários ao C.P.C.”, Vol. I, 2ª ed., 2004, pág. 575).
No mesmo sentido considera também Fernando Amâncio Ferreira que: “Pode, com efeito, acontecer que nem toda a matéria de facto alegada pela parte vencedora, em apoio da sua pretensão, tenha sido considerada como provada pelo tribunal de 1.ª instância, não obstante este ter entendido que a julgada como provada era suficiente à obtenção do efeito jurídico por aquela visado; ora, se o recorrente questionar esta suficiência, pode o recorrido, a título subsidiário, impugnar a decisão sobre o segmento da matéria de facto que o tribunal a quo considerou como não provado”; (in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9ª ed., pág. 164).
E, assim, (e como, em nossa opinião, se apresenta claro), evidente é que em causa não está um “facto pela A. alegado em apoio da sua pretensão” que tenha ficado “não provado”, mas, antes (e muito pelo contrário), “matéria alegada e provada pela 1ª R., R.A.E.M., enquanto fundamento da sua defesa e do seu pedido reconvencional”.
Com efeito, está assente nos autos que houve uma “expropriação a favor da 1ª R.”, sendo essa a (verdadeira) razão que levou as Instâncias recorridas a considerar que a acção proposta pela A., era, (somente), “parcialmente procedente”, não se tendo assim condenado a dita 1ª R. a reconhecer a A. como “proprietária do terreno” nem tão pouco a lhe “devolver o mesmo terreno”.
Esta “decisão”, na sequência da sua confirmação pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, e na falta de recurso – “independente” ou “subordinado” – da A., (como é a situação dos autos), transitou em julgado, consolidou-se na ordem jurídica, e tornou-se, assim, “definitiva”.
E, nesta conformidade, claro se nos mostra que não podia a A. recorrer ao aludido (mecanismo do) art. 590° para vir colocar em causa a “resposta positiva” dada a um facto que fundamentou a “improcedência parcial” da acção por si movida.
Com efeito, e como se apresenta igualmente evidente, não pode pois a A. recorrer agora ao dito art. 590°, n.° 2, quando, na verdade, o que realmente pretende, é atacar a convicção do Tribunal quanto a matéria de facto que fundamentou o trecho decisório que lhe foi desfavorável, pois que a parte simultaneamente vencedora e vencida, que não interpôs recurso independente ou subordinado, não pode, através da ampliação do âmbito do recurso, visar a alteração da decisão recorrida na parte em que ficou vencida.
Isto dito, outra nota se mostra de consignar.
É a seguinte.
De todo o modo, (e seja como for), não nos parece igualmente que a resposta dada ao “quesito 18°” da Base Instrutória – segundo o qual “O Terreno foi afecto ao domínio da R.A.E.M. por força da conclusão do processo expropriativo aludido em h) a l)” – consubstancie “matéria conclusiva” ou de “direito”.
Com efeito, embora se tenha utilizado termos com alguma “carga jurídica”, (como é o caso de “domínio”), o certo é que o Tribunal Judicial de Base considerou dois elementos (claramente) “factuais” e “objectivos” na resposta ao quesito em causa: por um lado, que o “processo expropriativo” aludido noutras alíneas tinha sido “concluído”, e, por outro, qual a “entidade expropriante”, sendo que, no caso, está perfeitamente claro que a expropriação levou a que o Terreno se integrasse no “domínio da 1ª R., R.A.E.M.”.
Não se vislumbra assim que a “matéria” em questão se apresente como uma “resposta conclusiva ou de direito”, (apesar da utilização de elementos com alguma carga jurídica), já que, o que rigorosamente em causa estava era simples: tão só saber se o processo de expropriação tinha sido “concluído” e quem tinha sido a “entidade expropriante”, pelo que (também por aí), inegável se mostra a improcedência desta questão.
–– Do “pedido reconvencional da 1ª R.”, (R.A.E.M.).
Vale também a pena um esclarecimento sobre o “pedido reconvencional” formulado pela 1ª R., R.A.E.M..
Pois bem, como se colhe do que já se deixou consignado, a “questão central” dos autos resume-se ao “direito de propriedade” sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.° XXXX, a fls. 105, do livro BXX, omisso na matriz, e que pela A. era reivindicado com a “acção (de reivindicação)” proposta no Tribunal Judicial de Base e que deu origem à presente lide recursória.
E, nesta conformidade, cabe desde já referir e notar que o “direito à reivindicação” – reconhecido ao proprietário há longo tempo, desde os tempos do Direito Romano através do instituto da “rei vindicatio” (que pode ser traduzido como “condenação a restituir”) – representa a “expressão mais dinâmica do próprio direito real que tutela”, (cfr., v.g., Pires de Lima e Antunes Varela in, “C.C. Anotado”, Vol. III, pág. 112 e segs.), valendo a pena atentar (também) que, com esta (mesma) epígrafe, prescreve o art. 1235° do C.C.M. que:
“1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.
Ora, em face do assim estatuído, tem-se (pacificamente) entendido que a “acção de reivindicação” é uma acção petitória, (declaratória e condenatória), destinada à defesa da propriedade, (estando este tipo de acção prevista na Seção II do Título II, precisamente dedicada à “Defesa da Propriedade”), tratando-se assim do “meio processual próprio” para obter a “restituição da coisa” de que se é proprietário do seu possuidor ou detentor; (sobre o tema, cfr., v.g., Correa Teles, que já dizia que “vindicar é tirar o que é nosso da mão de quem injustamente o possui”, in “Doutrina das Acções”, 3ª ed., §68; Coelho da Rocha in, “Instituições de Direito Civil Português”, 4ª ed., Tomo II, pág. 406; Manuel Rodrigues in, “A reivindicação no direito civil português”, R.L.J., Ano 57, pág. 113 e segs.; Gonçalves Salvador in, “A causa de pedir na acção de reivindicação”, na “Justiça Portuguesa”, Ano 27, pág. 16 e segs.; J. R. Bastos in, “Direito das Coisas, Segundo o Código Civil de 1966”, Vol. I, pág. 138 e segs.; J. O. Ascensão in, “Acção de Reivindicação”; Pires de Lima e Antunes Varela in, “C.C. Anotado”, Vol. III, pág. 112 e segs.; e Menezes Cordeiro in, “Direitos Reais”).
Como (expressivamente) já notava Manuel Rodrigues, “há na acção de reivindicação um indivíduo que é o titular do direito de propriedade, que não possui, há um possuidor ou detentor que não é o titular daquele direito, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade, e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração da existência da propriedade no autor e pela entrega do objecto sobre que o direito de propriedade incide”; (in “A reivindicação no direito civil português”, na R.L.J., Ano 57, pág. 144).
Na verdade, essencial à caracterização de uma acção como de “reivindicação” – que é, como se referiu, uma manifestação da “sequela”, do próprio conteúdo do direito real – é que esta prossiga uma “dupla finalidade” típica da «rei vindicatio»:
- o “reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre a coisa”, (imóvel ou móvel; cfr., aqui o Ac. deste T.U.I. de 30.11.2007, Proc. n.° 10/2006, onde, tratando do tema, considerou que “Só as coisas corpóreas podem ser objecto do direito de propriedade regulado no Livro de Direitos das Coisas do Código Civil”); e,
- a consequente “restituição – entrega – da coisa” pelo possuidor ou detentor dela; (pois que se o autor já estiver na posse da coisa mas pretender obter o “reconhecimento judicial” do seu direito de propriedade porque alguém o colocou em séria dúvida, o meio adequado a prosseguir a sua pretensão já não será a acção de reivindicação, mas sim a “ação de simples apreciação positiva”, o mesmo sucedendo, se alguém pretender a entrega da coisa porque o dono lha emprestou ou alugou, sendo então a acção a intentar, não é a da reivindicação, mas sim a “acção de cumprimento”).
Consequentemente, a acção de reivindicação é integrada e caracterizada por dois pedidos: o reconhecimento do direito de propriedade, (“pronuntiatio”), e a restituição da coisa (“condemnatio”).
Só através destas duas finalidades se preenche o esquema da “acção da reivindicação”, pondo-se, contudo, em destaque, que se o reivindicante se limitar a pedir a restituição da coisa, não formulando expressamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade, entende-se que aquele pedido encontra-se implícito no da restituição.
Por outro lado, reconhecido que seja o “direito de propriedade” do reivindicante sobre a coisa reivindicada, esta, nos termos do n.º 2 do enunciado no transcrito art. 1235° do C.C.M., só não lhe será restituída se o reivindicado alegar e provar que é titular de um direito real (por ex: “servidão”, “usufruto”, etc…), ou de um direito de crédito, (ex: “contrato de arrendamento”), que legitime a sua recusa em restituí-la, pelo que ao reivindicante apenas compete alegar e provar que é “proprietário” da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do reivindicado, cumprindo, por sua vez, ao reivindicado o “ónus de alegar e provar” matéria que extinga, modifique ou impeça o direito do reivindicante em ver-lhe restituída a coisa.
Aliás, claro é o teor do dito n.° 2 do art. 1235° do C.C.M. ao prescrever que “Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.
Feitas estas considerações que se nos afiguram pertinentes para se enquadrar a “pretensão” pela A. deduzida, importa pois recordar que, com as suas decisões, entenderam as Instâncias recorridas que a A. adquiriu o terreno – a “non domino” – estando, essa aquisição salvaguardada nos termos do art. 284° do C.C.M., pois que, em nossa opinião, esta a ponderação efectuada e o sentido da fundamentação explicitada no Acórdão pelo Tribunal Judicial de Base proferido:
“(…)
Quanto a esta parcela volta-se a colocar a questão anterior, isto é, por força da expropriação passou a pertencer à RAEM, mas não foi integrada no domínio público desta.
Embora não fizesse parte do acervo da herança, por estar registada ainda em nome de H vem a ser registada a aquisição por quem se habilitou à sucessão e em momento algum veio o beneficiário da expropriação, a RAEM, reclamar ser a proprietária do bem em causa e reivindica-lo daqueles.
Posteriormente o bem vem a ser vendido e anos volvidos, a ser vendido outra vez desta feita à aqui Autora.
Igualmente não se demonstra que estes adquirentes soubessem da situação do bem, isto é, que o mesmo havia sido expropriado e pertencia à RAEM – é claro estamos sempre a falar, não da parcela afecta ao domínio público, os tais 4,235 m2, mas apenas da parcela de 20,263 m2-.
Por outro lado a reconvenção é registada em 23.03.2010 e a aquisição da Autora havia sido registada em 20.09.2005 (cf. fls. 325 e 329).
Destarte, face ao disposto nos n.º 1, 2 e 4 do art.º 284.º do C. Civ. é inócuo estar a apreciar da validade da sucessão no que concerne à titularidade do bem (bem alheio) uma vez que a reconvenção quando é registada, há muito que já havia decorrido o ano indicado no n.º 2 do referido preceito legal e ainda que assim não fosse também não se demonstrou que os adquirentes não estivessem de boa-fé”; (cfr., fls. 1995 e 1995-v).
Por sua vez, e, como se viu, foi o assim entendido confirmado pelo Tribunal de Segunda Instância que considerou também que:
“(…)
Prosseguindo, a douta decisão, salientando que como a expropriação não foi registada o terreno continuou registado em nome de H e, posteriormente, em nome dos habilitados, tendo sido vendido por estes e volvidos uns anos, novamente vendido agora à Autora (tudo nos termos dos factos provados designados na douta decisão recorrida como a) e c) a g)), sem que a Recorrente/1.ª Ré alguma vez tenha reclamado, em sede própria, ser a proprietária do mesmo e pretender ser reconhecida como tal, pedido que de resto também não formulou – e atento o disposto nos artigos 212.º e 217.º do CPC já não pode formular – nos presentes autos.
(…) na ausência do respectivo registo, e porque assim o determina o artigo 5.º do CRP, nunca consubstanciaria qualquer direito dos Réus que fosse oponível à A., atenta a protecção que lhe era dada, enquanto adquirente de boa fé a non domino, pelo artigo 284.º do CC, pelo que jamais poderia obstar à procedência da presente acção. (…)
Realce-se, ademais, que a boa-fé da Autora (e da sua antecessora) nos presentes autos é indiscutível, porque o terreno estava registado definitivamente em nome dos seus transmitentes melhor identificados na referida alínea f) (cfr. certidão predial com todas as inscrições em vigor e não em vigor de fls. 50 a 60), tal como estavam definitivamente registadas todas as aquisições anteriores, pelo que a Autora (bem como a sua antecessora), como qualquer outra pessoa medianamente diligente colocada perante aqueles registos, não tinha qualquer motivo para pensar que as aquisições registadas pudessem padecer de qualquer vício e confiou na veracidade daqueles registos.
Assim, em face dos factos alegados e provados, tanto a Autora, como a sua antecessora, são terceiras de boa-fé nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 284.º do CC, porquanto, não revelando o registo qualquer irregularidade na escritura de habilitação de herdeiros – como de resto, não podia já que nada se provou quanto a esta – ou menção à alegada expropriação, desconheciam, no momento das respectivas aquisições, sem culpa, quaisquer vícios de que pudessem padecer os negócios em causa”; (cfr., fls. 2791-v a 2973, pág. 206 a 209 do Ac. recorrido).
E, aqui chegados, adequado se mostra (também) de clarificar a consideração pelas Instâncias recorridas efectuada no sentido de que a 1ª R., (R.A.E.M.), “em sede de reconvenção”, não alegou nem sustentou ser a “proprietária do bem”, (o que tornaria inócuo desenvolver a questão da “validade” da sucessão de bem alheio).
Vejamos.
Ora, admite-se que, (expressamente), a 1ª R., limitou-se a pedir que fosse declarado que o Terreno foi afecto ao “domínio público da R.A.E.M.”, por força da expropriação operada pela Portaria n.° 195, publicada no Boletim Oficial de Macau n.° 38, de 21.09.1918.
No entanto, não se pode deixar de observar que não só a 1ª R., (R.A.E.M.), se afirmou como “proprietária do terreno” na sequência da expropriação efectuada em 1918 ao longo de toda a sua contestação, como também é isso que resulta, (para nós), de forma bastante, cristalina, do (teor do) alegado no referido pedido reconvencional.
E, (seja como for), não nos parece possível entender um pedido de declaração de que um determinado imóvel foi “afecto ao domínio público da R.A.E.M. por força de uma expropriação”, sem que se considere que o mesmo imóvel seja, (ou integre, o direito de) “propriedade da R.A.E.M.”.
É que para ser um bem “afecto ao domínio público”, tem, primeiro, de ser um “bem próprio da R.A.E.M.”, asserção que nos parece evidente, e que resulta (claramente) do que foi alegado ao longo da contestação então apresentada, pois que o “direito de propriedade da R.A.E.M.” sobre o terreno adviria da expropriação realizada em 1918, (vindo depois a ser integrado no aludido “domínio público”), não tendo assim ocorrido qualquer “alteração” ou “correcção do pedido” em momento processual não admissível.
Por sua vez, (e não menos relevante), não se pode igualmente ignorar, ou perder de vista, que foi a A. que deu início aos presentes autos com a sua “acção de reivindicação” que propôs no Tribunal Judicial de Base, competindo-lhe, por isso, (e como se deixou referido) sustentar o «seu» “direito de propriedade”, (através de factos alegados e provados e de direito aplicável), assim como a correspondente “falta de título” dos que alega serem os (meros) “possuidores” ou “detentores”.
E, como se viu, a dita acção foi (apenas) considerada “parcialmente procedente”, (tendo sido precisamente julgada improcedente, por decisão transitada em julgado, em relação à 1ª R., R.A.E.M. – que, diga-se de passagem, é, exactamente, quem se arroga ser “proprietária” do terreno em relação à A. – sendo que, no seu recurso, insurge-se também claramente o 2° R. (I.A.M.) contra o trecho decisório que o condenou a reconhecer a A. como proprietária de uma parcela do mesmo terreno, mostrando-se-nos assim que este Tribunal de Última Instância se deve debruçar, (especialmente), sobre a “questão” de saber se a A., é, ou não, a (verdadeira) “proprietária do terreno”, “falsas”, (ou irrelevantes), se apresentando, por ora, quaisquer outras questões, pois que se a dita “acção de reivindicação” movida pela A. vier a ser julgada totalmente improcedente, vista está a solução.
Da mesma forma, salvaguardando sempre o devido respeito, (e como nota adicional), diga-se que também não se compreende em que termos é que pode ser imputada qualquer responsabilidade à 1ª R., (R.A.E.M.), por não ter reivindicado, “em momento algum”, o “bem em causa” dos habilitados à sucessão de H, já que, como a factualidade provada e atrás retratada bem demonstra, os ditos habilitados à sucessão de H nunca tiveram o terreno na sua posse, pois que o (anterior) “Governo da Província de Macau”, (antecessor da “R.A.E.M.”), adquiriu a posse do mesmo “há mais de 100 anos”, não se alcançando como é que se poderia pedir “a restituição de uma coisa” – cfr., art. 1235° do C.C.M. – de quem não a tem na sua posse…
*
Nesta conformidade, e aqui chegados, vejamos então o sentido das decisões proferidas pelas Instâncias recorridas quanto à reclamada “propriedade do terreno”, (em especial, quanto à parcela que não teria sido integrada no domínio público e que teria uma área de 20,263m2).
–– Da “propriedade” e da “expropriação” do terreno dos autos.
Pois bem, o Tribunal Judicial de Base entendeu adequado:
“(…) concluir, que o mesmo constitui património privado/particular do Estado, estando assim no comércio jurídico como resulta do já citado art.º 370.º do Código Civil de 1867.
(…) por força da expropriação passou a pertencer à RAEM, mas não foi integrada no domínio público.
Embora não fizesse parte do acervo da herança, por estar registada ainda em nome de H vem a ser registada a aquisição por quem se habilitou à sucessão e em momento algum veio o beneficiário da expropriação, a RAEM, reclamar ser a proprietária do bem em causa e reivindica-lo daqueles.
Posteriormente o bem vem a ser vendido e anos volvidos, a ser vendido outra vez desta feita à aqui Autora.
Igualmente não se demonstra que estes adquirentes soubessem da situação do bem, isto é, que o mesmo havia sido expropriado e pertencia à RAEM – é claro estamos sempre a falar, não da parcela afecta ao domínio público, os tais 4,235 m2, mas apenas da parcela de 20,263 m2-.
Por outro lado a reconvenção é registada em 23.03.2010 e a aquisição da Autora havia sido registada em 20.09.2005 (cf. fls. 325 e 329).
Destarte, face ao disposto nos n.º 1, 2 e 4 do art.º 284.º do C. Civ. é inócuo estar a apreciar da validade da sucessão no que concerne à titularidade do bem (bem alheio) uma vez que a reconvenção quando é registada, há muito que já havia decorrido o ano indicado no n.º 2 do referido preceito legal e ainda que assim não fosse também não se demonstrou que os adquirentes não estivessem de boa-fé.
Pelo que, à míngua de outro vício que houvesse de apreciar impõe-se concluir que a Autora adquiriu o prédio a que se reportam os autos, mas apenas no que concerne à parcela de 20,263 m2”; (cfr., fls. 1988, 1995 e 1995-v, pág. 31, 45 e 46 do Ac. do T.J.B.).
Praticamente no mesmo sentido, considerou também o Tribunal de Segunda Instância que:
“Quer isto dizer que o douto Tribunal a quo decidiu, no que respeita à parcela ocupada pelo IACM, de 20,263 m2, no sentido que a A. sempre defendeu, i.e. que a (alegada mas não provada) expropriação, na ausência do respectivo registo, e porque assim o determina o artigo 5.º do CRP, nunca consubstanciaria qualquer direito dos Réus que fosse oponível à A., atenta a protecção que lhe era dada, enquanto adquirente de boa fé a non domino, pelo artigo 284.º do CC, pelo que jamais poderia obstar à procedência da presente acção. (…)”; (cfr., fls. 2972, pág. 207 do Ac. recorrido).
Aqui, importa desde já (e antes de mais) efectuar uma ressalva, pois que o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância contém uma referência a uma “alegada mas não provada” expropriação que, salvo o devido respeito, apenas se pode considerar como um (evidente) lapso.
Com efeito, se não houve “expropriação”, isto é, se aquela “expropriação” não ficou – ou estivesse efectivamente dada como – “provada”, então a “solução de direito” não poderia passar pela aplicação dos art°s 5° do C.R.P. ou 284° do C.C.M., (cabendo aqui referir também que, de resto, e como infra se verá, as Instâncias recorridas não parecem estar muito seguras quanto ao “regime legal” a aplicar, sendo – manifestamente – distinta a situação do referido “art. 284° do C.C.M.” em relação à do “art. 5° do C.R.P.”).
Na verdade, e se não tivesse havido “expropriação”, (já que não estaria “provada”), que razão haveria para se defender que houve uma “aquisição tabular” do terreno que salvaguarda a posição da A., ao invés de se considerar que a A. é – pura e simplesmente – a “proprietária do terreno” em face de uma (normal e legal) aquisição (derivada) de tal direito?
Por outro lado, (e mais relevante ainda), não se pode fazer “tábua rasa” da matéria constante da resposta dada ao “quesito 18°” da Base Instrutória, de onde resulta, (claramente), que “O Terreno foi afecto ao domínio da RAEM por força da conclusão do processo expropriativo aludido em h) a l)”, o que apenas pode significar que foi “concluída a expropriação” do terreno, e que esse facto teve como entidade expropriante o então Governo da Província de Macau, (antecessora da R.A.E.M.), pois, como se afigura evidente, só assim era possível a sua afectação ao “domínio da R.A.E.M.”.
Feito este esclarecimento – que, aliás, também é reclamado pela 1ª R., (R.A.E.M.), em sede do seu recurso, (cfr., art°s 53° a 78° das alegações de recurso) – e, continuando, cabe consignar que ambos os 1ª e 2° RR., (tanto a R.A.E.M., como o I.A.M.), defendem que a decisão recorrida enferma de “erros de direito na aplicação do art. 5° do C.R.P. e art. 284° do C.C.M.”.
E, então, vejamos.
Pois bem, para uma, (em nossa opinião), adequada reflexão sobre a “questão” aqui em causa, necessário se mostra de tomar em conta diversos “pressupostos” que se tem como relevantes, (para a boa decisão do pleito).
Importa, antes de mais, apurar e identificar o “sistema de registo” em vigor na R.A.E.M., e o sentido e alcance do “conceito de terceiros para efeitos de registo”, (cfr., art°s 6° e 7° do C.R.P. de Portugal de 1967, e art°s 4° e 5° do C.R.P. de Macau de 1999), que, como se crê ser sabido, não é (exactamente) o mesmo que os no art. 284° do C.C.M. referidos “terceiros subadquirentes”, para, depois, se averiguar se essas concepções são relevantes para influenciar o sentido da decisão em face da situação dos autos.
Além disso, importa delimitar a figura da “expropriação por utilidade pública”, e “qualificar o respectivo registo”, sendo ainda relevante proceder a um breve excurso pela figura da “aquisição tabular”.
Por sua vez, cabe referir que se afigura irrelevante para a boa solução dos autos as várias “sucessões de leis” verificadas no longo do período de tempo que decorreu entre 1918 e 2005, já que o sistema de registo predial “declarativo” ou ”consolidativo” de base latina, como, em nossa opinião, é indiscutivelmente o caso da R.A.E.M., não foi em momento algum afectado pela sequência de qualquer diploma legal.
Com efeito, estando aqui em causa um “conflito” entre um “direito não registado” e um “direito registado” (numa sequência de “ocorrências” que teve início em 1997) – e quer se considerem os alegados “herdeiros” como “terceiros”, (o que nos parece incorrecto pelo simples facto destes não serem “terceiros para efeitos do registo”), quer se considere que a invocada “aquisição tabular” se deu com o “registo da aquisição” pela “B” – apresenta-se-nos irrelevante a sucessão legislativa entre o C.R.P. de 1967 de Portugal e o C.R.P. de Macau de 1999 para efeitos da questão da “aquisição tabular”; (seja ao abrigo do art. 7° do C.R.P. de Portugal de 1967, seja ao abrigo do art. 5° do C.R.P. de Macau de 1999).
Isto dito, continuemos.
Comecemos por reflectir sobre o conceito de “terceiros para efeitos de registo”.
A determinação do conceito de “terceiros” para efeitos do art. 5° do C.R.P. de 1999, (como já resultava do art. 7° do C.R.P. de 1967, anteriormente vigente em Macau), tem sido objecto de um dos mais complexos e prolongados debates doutrinários e jurisprudenciais em matéria de registo; (cfr., v.g., o Ac. Uniformizador de Jurisprudência n.° 15/97 do S.T.J. de Portugal).
Numa introdução ao tema, defende Luís Carvalho Fernandes que “(…) não cabem nos terceiros a que se aplica o regime contido no n.º 1 do art.º 5.º, desde logo, os terceiros não-interessados, ou estranhos. São eles todos os terceiros que não invoquem uma situação jurídica incompatível com a que emerge do facto jurídico não registado. Exemplificando: o adquirente de um prédio urbano, que não registou o facto aquisitivo, não está impedido de invocar a sua qualidade de proprietário, em acção de despejo movida contra um inquilino do prédio, com fundamento em acto que lhe atribua o direito à resolução do contrato de arrendamento. Do mesmo modo, o dono de um prédio urbano, que não registou a sua aquisição, não está impedido de invocar a sua qualidade de proprietário numa acção de condenação movida ao dono de prédio vizinho que, ao demoli-lo, causou danos naquele”; (in “Lições de Direitos Reais”, 4ª ed., pág. 129 e 130).
No mesmo sentido, considera Vicente João Monteiro que, “A questão reveste-se de grande complexidade e melindre e demanda que se esclareça em primeiro lugar que o conceito de terceiros comporta duas vertentes: São terceiros aqueles em relação aos quais o direito é eficaz a partir do momento da sua constituição, independentemente do registo, ou seja, os que a doutrina classifica de terceiros civis; mas são também terceiros aqueles para quem o direito real só é oponível depois de efectuado o registo da correspondente aquisição, e que são designados de terceiros para efeitos de registo. São estes que interessa aqui analisar. (…)”; (in “Código do Registo Predial de Macau”, 2016, pág. 145).
Daqui resulta, (sem margem para dúvidas), que na R.A.E.M. vigora, (como sempre vigorou), um sistema de “registo declarativo”, (ou quiçá, mais rigorosamente, um sistema de “registo consolidativo”, pois que, se o registo fosse “constitutivo”, então nem perante “terceiros indiferentes” se poderia invocar a qualidade de “proprietário”).
Com efeito, num sistema de “registo constitutivo”, o registo funciona na grande maioria das situações como “modus adquirendi”, não sendo a aquisição do direito perfeita até que o mesmo seja inscrito no registo; (cfr., v.g., Mónica Jardim in, “Efeitos Substantivos do Registo Predial – Terceiros para Efeitos de Registo”, pág. 85 a 89).
Sendo assim de excluir os “terceiros não-interessados”, (ou “terceiros civis”), do conceito de “terceiros” previsto no art. 5° do C.R.P., cumpre então responder à questão que mais vem dividindo a doutrina e a jurisprudência.
Pois bem, na doutrina, a discussão centra-se, essencialmente, em duas concepções de “terceiros”, (de um lado, uma concepção “restrita” que, na sequência dos ensinamentos de Manuel de Andrade, foi defendida por Orlando de Carvalho, e, por outro lado, uma concepção “ampla”, que foi, e é defendida pela maioria da doutrina, como Vaz Serra, Antunes Varela e Henrique Mesquita, Luís Carvalho Fernandes, Menezes Cordeiro e Carlos Ferreira de Almeida).
Refira-se desde já que a “dicotomia” entre o conceito “restrito” e o conceito “amplo” de terceiros não é perfeitamente rigorosa, uma vez que os defensores da tese ampla não têm opiniões inteiramente coincidentes, o que introduz uma grande variabilidade na solução de distintos casos concretos, não obstante, geralmente, reconduzirem as suas posições ao conceito amplo de terceiros; (havendo mesmo quem dispense o requisito da boa fé do terceiro e o carácter oneroso da aquisição, outros exigindo a boa fé mas dispensando a onerosidade).
Note-se, ainda, (porque se nos apresenta relevante para o enquadramento e solução da questão em apreciação), que o debate doutrinário tem gravitado em relação “à integração, no referido conceito de terceiro, do adquirente, na venda executiva, e do credor penhorante. A jurisprudência mais recente tem fundamentado, em razões conceituais, a exclusão da protecção registal do credor exequente, que obteve o registo prioritário de uma penhora sobre um bem do devedor, entendendo que não se verifica uma aquisição de um direito real, por via negocial ou por acto voluntário do executado. Neste caso, não estaríamos perante uma alienação de um direito real de que seja autor ou transmitente o executado, mas antes perante o exercício do poder judicial”; (cfr., v.g., Maria Clara Sottomayor in, “Invalidade e Registo – A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé”, pág. 339).
Com efeito, independentemente das (várias) “definições de terceiros para efeitos de registo” propostas pelos diferentes autores, (algumas das quais coincidentes em teoria, mas com resultados práticos distintos), a diferença entre as duas teses resume-se, essencialmente, e em bom rigor, na questão de saber se o adquirente na venda executiva e o credor penhorante devem ou não ser tidos como “terceiros” em face do verdadeiro titular do direito real não registado.
Para a tese restrita, o credor penhorante não é “terceiro” (para efeitos de registo), ao passo que solução oposta é a defendida pelos autores que sufragam o conceito amplo de “terceiros” (para efeitos de registo).
O mesmo é dizer que a referida dicotomia se repercute apenas, e tão só, no âmbito de “direitos adquiridos de forma derivada”, com base no princípio da legitimação.
O que, aliás, bem se compreende, porque, (como infra melhor se tentará demonstrar), estando em causa um sistema de “registo declarativo/consolidativo”, o art. 5°, n.° 1 do C.R.P. tem de ser apreciado dentro dos limites demarcados pelos “princípios do trato sucessivo” e da “legitimação”, já que o mesmo pretende oferecer uma solução a um conflito entre direitos que têm a sua origem no “encadeamento tabular”, (em respeito pelos ditos princípios do trato sucessivo e da legitimação).
Feitas estas notas, e começando pelo “conceito restrito de terceiros”, vale a pena atentar que Orlando de Carvalho, (no seu artigo “Terceiros para Efeitos de Registo”, publicado no Boletim da Faculdade de Direito, LXX, 1994, pág. 97 a 106), considera que “terceiros para efeitos de registo são os que do mesmo autor ou transmitente recebem sobre o mesmo objecto direitos total ou parcialmente conflituantes”, e, afirmando que “A lógica do mecanismo fica perfeitamente clara”, dá o seguinte exemplo para a ilustrar:
“Se A vende validamente a B, B não regista, e A vende, em seguida, a C e C regista, a venda a B, sendo embora venda a domino, perante C é como se não existisse. Por isso, a venda a C, sendo uma venda a non domino, funciona como uma venda a domino e, porque C regista, prevalece sobre a de B, fazendo o direito deste decair”.
Essa concepção de “terceiros”, exclui, como se disse, o “adquirente na venda executiva” e o “credor penhorante” do conceito de “terceiros para efeitos de registo”, não protegendo as suas posições em face de um titular de direito real de propriedade que não tenha sido levado ao registo, (sendo de notar que este conceito restrito de terceiros procura a sua justificação no sistema de “registo instituído”, situação que se encontra bem explicitada no voto de vencido do Juiz Conselheiro Agostinho Manuel Pontes de Sousa Inês anexo ao atrás referido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 15/97 do S.T.J. de Portugal).
Por sua vez, Vaz Serra sustentou o “conceito amplo de terceiros”, (apesar da definição de terceiros por si utilizada indiciar a tese restrita, o que demonstra que acima de tudo, as diferenças conceptuais se repercutem na solução de duas situações práticas em concreto), considerando que “só são terceiros entre si aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis sobre o prédio”, (in “Anotação ao Ac. do S.T.J. de 12.07.1963”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 97°, pág. 56), reafirmando, pois, posteriormente que “Terceiros, para efeitos do registo predial, são, em princípio, os adquirentes de direitos sobre a coisa incompatíveis entre si e procedentes do mesmo autor”; (in “Anotação ao Ac. do S.T.J. de 11.02.1969”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 103°, pág. 165, afigurando-se-nos que, pela definição adoptada, a posição de Vaz Serra também se poderia enquadrar na tese “restrita”, sendo esta aparência meramente ilusória, o que reflecte claramente os “problemas” que por vezes surgem com o simples recurso a uma definição).
Na mesma linha de raciocínio, (e procurando aperfeiçoar e vincar a diferença entre os conceitos de terceiros em confronto), Antunes Varela e Henrique Mesquita, (in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 127°, pág. 20), sustentaram também que o conceito de terceiros no registo predial engloba “não só aqueles que adquiram do mesmo alienante direitos incompatíveis mas também aqueles cujos direitos, adquiridos ao abrigo da lei, tenham esse alienante como sujeito passivo, ainda que ele não haja intervindo nos actos jurídicos (penhora, arresto, hipoteca, judicial, etc.) de que tais direitos resultam”.
Pronunciando-se igualmente sobre o tema, e após uma análise em conjunto das situações configuradas na lei como causas de um registo aquisitivo, acaba José de Oliveira Ascensão por concluir que o credor penhorante não é terceiro para efeitos de registo: “O efeito não se produz portanto em relação a actos que têm outra natureza. Assim, a penhora não faz funcionar o registo atributivo”; (in “Direito Civil – Reais”, 5ª ed., pág. 376 e 377, podendo-se sobre o tema ver ainda Carlos Ferreira de Almeida in, “Publicidade e Teoria dos Registos”, pág. 260 a 262 e 268, e Isabel Pereira Mendes in, “Código do Registo Predial Anotado”, 17ª ed., pág. 163 e segs.).
Em sentido concordante, defende também Vicente João Monteiro que, “Na verdade, citando ainda outras passagens do referido trabalho daqueles Professores, pode ver-se que do seu ponto de vista se «todo aquele que adquira um direito sujeito a inscrição no registo não pode opô-lo a terceiros enquanto a inscrição não for efectuada, (…havendo…) duas aquisições incompatíveis que provenham do mesmo causante ou transmitente – seja através de negociação em que este intervenha por sua livre vontade, seja através de alienação feita em processo executivo –, aquela que prevalece não é a mais antiga, mas sim a que primeiro for inscrita no registo».
Nota-se, pois, que aqueles Ilustres Professores defendem, ainda assim, um conceito mais restrito do que o que foi adoptado naquele acórdão uniformizador de jurisprudência, na medida em que para eles ambas as aquisições terão de ter proveniência no mesmo causante ou transmitente, ainda que seja dispensada a sua cooperação, nomeadamente nos casos de alienação forçada em processo executivo. Ora, naquele acórdão foi-se mais longe ao nele se referir a dado passo que «Não é, porém, exacto que só possa falar-se de terceiros quando o transmitente ou alienante seja comum» e daí se ter fixado a regra de que será suficiente qualquer facto jurídico não registado ou registado posteriormente. (…)”; (in “Código do Registo Predial de Macau”, 2016, pág. 150).
Com efeito, e como igualmente notou Luís Carvalho Fernandes, “(…) o que está em causa é saber que terceiros merecem tutela por terem confiado num registo viciado ou incompleto.
Pela nossa parte, continuamos a pensar que são aqueles que a noção ampla de terceiros acolhe. (…)
Está nele configurada uma alienação de coisa imóvel feita por A a B, que não registou a aquisição. A partir dessa base comum, podem considerar-se duas hipóteses: numa delas, aproveitando-se da falta de registo de B, A aliena, de seguida, a mesma coisa a C, que regista; noutra, D, credor de A, valendo-se de este continuar a figurar como titular inscrito do direito de propriedade sobre a referida coisa, penhora-a e regista este acto. (…)
Devem compreender-se no conceito, não só os que adquirem, do mesmo alienante, um direito incompatível com o de outrem, titulado por negócio anterior não registado ou só registado posteriormente, mas também, como se diz no sumário do acórdão de 1997, «todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente”; (in “Lições de Direitos Reais”, 4ª ed., pág. 132 e 133).
O que apenas reforça que toda a discussão doutrinária sobre o conflito entre as teses “restrita” e “ampla” de terceiros, enquadra-se – vale a pena sublinhar e salientar – no âmbito de “aquisições derivadas de direitos”, pois que, não estando, (nem nunca tendo estado), instituído um regime de “registo constitutivo”, terá de se conceder que toda a “arquitectura do registo predial” acaba por assentar no “princípio da aquisição derivada de direitos”, (do qual são afloramentos os princípios do trato sucessivo e da legitimação).
No fundo, e como (expressivamente) já afirmava Adriano Vaz Serra, “A função do registo predial é assegurar a quem adquire direitos de certa pessoa sobre um prédio que esta não realizou em relação a ele actos susceptíveis de prejudicar o mesmo adquirente, (por ex., assegurar ao comprador do prédio que o vendedor não o transmitiu já a outrem ou não constituiu direitos sobre ele a favor de outrem): não é a sua função assegurar ao adquirente a inexistência de quaisquer outros direitos sobre o prédio (não lhe garante, por ex., que o prédio pertença ao transmitente, e não a outrem).
Aqueles que, não tendo adquirido direitos de um autor comum, forem titulares de direitos entre si incompatíveis, não são terceiros, pois o registo predial não se destina a resolver um conflito desta natureza: tal conflito resolve-se por aplicação de outros princípios. Assim, se A tiver comprado um prédio a B, e C o tiver comprado a D, o conflito entre A e C resolve-se atribuindo a propriedade ao que tiver adquirido do verdadeiro proprietário, quer dizer, de B ou de D, conforme fosse aquele ou este o proprietário: se aqui se aplicassem os princípios do registo predial, teríamos que a propriedade do prédio caberia àquele que primeiro tivesse registado a sua aquisição, ainda que tivesse adquirido do não-proprietário, com o que se tornaria fácil, mediante a alienação pelo não proprietário e subsequente registo da aquisição, a subtracção da propriedade ao seu legítimo dono, e se tornaria difícil ao verdadeiro proprietário encontrar quem quisesse adquirir a propriedade. Ora, o registo predial não serve para sanar a falta ou os vícios do direito do transmitente: conserva, não cria direitos”; (in “Anotação ao Ac. do S.T.J. de 12.07.1963”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 97°, pág. 57).
Na sequência da reflexão e exposição que sobre o conceito de “terceiros para efeitos do registo predial” nos foi possível aqui efectuar, apresenta-se agora adequado tecer também aqui algumas considerações quanto ao “princípio da aquisição derivada”, do qual resulta que “ninguém pode transmitir a outrem mais direitos do que aqueles que tem ou um direito mais forte do que aquele que possui”.
Com efeito, “A autonomia privada exige que ninguém transfira da sua esfera jurídica a titularidade de um direito sem o concurso da sua vontade, o que tem por consequência que só o proprietário de um bem pode dispor dele eficazmente”; (cfr., v.g., Maria Clara Sottomayor in, ob. cit., pág. 86).
Este “princípio da aquisição derivada” é fundamental na medida em que é o pressuposto em que assentam as normas e o sistema instituído pelo C.R.P., (bem como os princípios que lhe estão subjacentes, tais como os referidos “princípios do trato sucessivo e da legitimação”).
No entanto, como também refere Maria Clara Sottomayor, “Um respeito escrupuloso por este princípio corresponde a negar qualquer protecção aos terceiros adquirentes e a atribuir à invalidade do negócio jurídico de disposição uma eficácia real. Nestes casos, dá-se, então, um conflito entre o dogma da vontade e a protecção da confiança de terceiros. A confiança é tanto mais tutelada quanto mais a doutrina do negócio jurídico for elaborada de forma independente do dogma da vontade.
O princípio nemo plus iuris não se impõe ao legislador nem goza da intangibilidade das leis físicas, por isso, por razões de pragmatismo e de justiça, foi atenuado, através de institutos criados por desenvolvimentos jurisprudenciais ou consagrados legalmente, concebidos como excepções à regra, e que a doutrina costuma considerar como formas de tutela da aparência. Esses institutos são a tutela do terceiro de boa fé que adquire do herdeiro aparente; a validade das aquisições efectuadas pelos sub-adquirentes de boa fé, no campo da acção pauliana; a inoponibilidade a terceiros de boa fé do acto simulado; a inoponibilidade da nulidade e da anulação, no âmbito dos negócios translativos, quando se verifica uma invalidade em cadeia; as aquisições a non domino, resultantes do funcionamento do instituto do registo predial”; (in ob. cit., pág. 86 a 88).
Daqui, resulta, desde logo, que o “princípio da aquisição derivada” (e os corolários que do mesmo se retiram), encontram algumas “excepções” em virtude da “protecção da confiança de terceiros”, (e, por isso mesmo, “O sacrifício do interesse do verdadeiro proprietário consiste numa violação do princípio nemo plus iuris, a que a doutrina tem atribuído uma natureza excepcional, restringida aos casos em que a lei expressamente a prevê, como os casos da aquisição registal e da aquisição por aplicação do art. 291.º, em virtude da inoponibilidade da nulidade e da anulação a terceiro de boa fé. De acordo com a doutrina dominante, estas hipóteses legais de protecção dos terceiros adquirentes constituiriam excepções ao princípio nemo plus iuris, e as normas respectivas seriam insusceptíveis de aplicação analógica”; in ob. cit., pág. 91).
Em idêntico sentido, considera também José Alberto Vieira que “Proteger um terceiro que “adquire” um direito na base de uma situação registal desconforme significa preterir sempre o titular do direito real na ordem substantiva, em última análise, o proprietário, a favor de quem não adquiriu validamente o seu direito. A protecção de terceiro com base na ordem registal, a acontecer, constitui uma inversão da prevalência da ordem substantiva sobre a registal e ergue o acto de registo (a inscrição registal) em verdadeiro facto aquisitivo de direitos reais. Desta maneira, a norma jurídica onde se atribua tal protecção a terceiro constitui uma norma jurídica excepcional, com tudo o que esta categoria de normas envolve, nomeadamente, a proibição de analogia”, (in “Direitos Reais”, 2008, pág. 291, sendo, porém, de notar também que se está perante – um “desvio” ao princípio do nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet, isto é – uma excepção que prevalece perante uma “aquisição derivada” de direitos reais e não uma excepção que opera em face de qualquer aquisição de direitos reais, sendo neste contexto que se – deve e – tem de interpretar o art. 5°, n.° 1 do C.R.P., na medida em que através do mesmo se pretende oferecer uma “solução a um conflito entre direitos que têm a sua origem no encadeamento tabular, em respeito pelos princípios do trato sucessivo e da legitimação”).
Daí que se entenda que “O princípio do trato sucessivo não abrange, na verdade, a disciplina dos registos dos factos criadores de direitos originários, os quais poderão obter registo independentemente da intervenção do anterior proprietário, ou possuidor inscrito, pois nenhuma relação têm com o direito deste. Tais factos impõem-se ao titular de per si, e independentemente de registo. A norma do n.º 2, do artigo 34.º do CRP – semelhante ao art. 10°, n.° 2 do C.R.P. da R.A.E.M. – tem, pois, de ser entendida no seu contexto lógico e histórico, o que conduz, necessariamente, a uma interpretação que, sem contrariar a sua letra, dela exclui o registo dos factos geradores de direitos originários”, (cfr., Rui Januário, Filipe Lobo D´Ávila e Luís de Andrade Pinhel in, “Direito Civil – Direito das Coisas”, pág. 541), considerando, igualmente, Mónica Jardim que “É necessária a identidade de regime entre o direito do terceiro e o direito que o terceiro pretende afastar.
Não é, por isso, terceiro o titular de um direito de crédito insusceptível de ser registado (por exemplo, um direito de comodato), dado que, sempre que a inoponibilidade do direito não decorra da falta de registo, o seu titular não se pode prevalecer da falta de registo de outrem. Nem é terceiro aquele que adquire a título originário (por exemplo, em virtude de expropriação, de acessão industrial imobiliária ou da invocação da usucapião – cfr. al. a) do n.º 2 do art. 5.º do Cód. Reg. que apenas se refere à usucapião, mas vale, obviamente, para qualquer forma de aquisição originária), ou por força da lei (por exemplo, a aquisição de privilégios creditórios, de um direito legal de preferência, etc.). uma vez que a aquisição originária e a aquisição ex vi legis não estão sujeitas a registo sob pena de inoponibilidade e o direito assim adquirido prevalece, sempre, mesmo em face de direitos registados.
Portanto, a norma pressupõe um “conflito” entre pelo menos dois adquirentes, por aquisição derivada, de direitos sujeitos a registo (sob pena de inoponibilidade), sobre a mesma coisa imóvel”, (in ob. cit., pág. 542 e 543), o que, aliás bem se compreende, pois que, como se referiu, o que verdadeiramente, está em causa, é um desvio ao princípio da aquisição derivada de direitos reais, permitindo-se que, por efeito de uma excepcional “tutela da aparência”, o registo da aquisição de um imóvel transmitido por um alienante ilegítimo venha a prevalecer sobre o que, até então, era o verdadeiro titular do direito real, (o mesmo valendo para as demais situações em que está em causa a constituição de direitos reais de garantia ou o recurso a meios processuais – arresto ou penhora – que operam em termos semelhantes a garantias reais).
Assim, adequado se mostra pois de afirmar que a denominada “aquisição tabular” apenas funciona perante “conflitos entre aquisições derivadas”, até porque “O registo declarativo, como condição de oponibilidade, típico do sistema francês e dos países latinos, pretende ser apenas uma representação da realidade jurídica que se estabelece solo consensu. Já no sistema alemão, o registo é um elemento essencial no processo de criação da realidade jurídica”; (cfr., v.g., Maria Clara Sottomayor in, ob. cit., pág. 201).
De outro modo, teríamos de concluir que o “registo predial da R.A.E.M.” configura, (ou configurou), um sistema de “registo constitutivo”, o que, manifestamente, não corresponde à realidade, (notando-se também desde já porque será relevante para a análise do caso dos autos, que a “aquisição tabular” configura-se, juridicamente, como uma “aquisição derivada”, embora não esteja fundada num direito real do transmitente e apresente a peculiaridade de ser uma “aquisição derivada sui generis”; cfr., v.g., Mónica Jardim in, ob. cit., pág. 536 a 541).
Esclarecido que se nos mostram estar o “sistema de registo da R.A.E.M.”, o “conceito de terceiro para efeitos de registo”, e a natureza jurídica da “aquisição tabular”, continuemos.
Nos termos do art. 6° da Lei Básica da R.A.E.M., (e como um dos seus “princípios gerais”): “O direito à propriedade privada é protegido por lei na Região Administrativa Especial de Macau”.
Também, e com relevo para a solução do litígio dos autos, importa ter igualmente presente que, no seu art. 103°, (referente ao Capítulo da “Economia”), se preceitua que:
“A Região Administrativa Especial de Macau protege, em conformidade com a lei, o direito das pessoas singulares e colectivas à aquisição, uso, disposição e sucessão por herança da propriedade e o direito à sua compensação em caso de expropriação legal.
Esta compensação deve corresponder ao valor real da propriedade no momento, deve ser livremente convertível e paga sem demora injustificada.
O direito à propriedade de empresas e os investimentos provenientes de fora da Região são protegidos por lei”; (vejam-se, a propósito das controvérsias sobre o tema, as considerações por Tong Io Cheng tecidas no seu estudo “Origem do Direito da Propriedade e Legitimidade da Existência do Regime Interpretação de uma Pessoa de Direito Civil sobre o Regime de Protecção da Propriedade Privada na Lei Básica de Macau”, onde não deixa de salientar que “A Lei Básica, de características constitucionais, é fundamento da legislação em geral, pelo que os valores ou os direitos garantidos são concretizados e instituídos pela lei ordinária. Esta máxima aplica-se à garantia do direito patrimonial. Com a garantia dada pela Lei Básica e o enquadramento por ela estabelecido, o Código Civil de Macau, o Código Comercial de Macau e o Regime Jurídico da Propriedade Intelectual, entre outra legislação ordinária, constituem em particular o sistema do direito patrimonial”, podendo-se também ver Lok Wai Kin que, com particular interesse para a matéria dos autos, considera que “As disposições da Lei Básica têm efeitos jurídicos supremos, fornecendo uma garantia fundamental ao direito patrimonial. Por outro lado, são fundamento para que a legislação garanta o direito patrimonial.” “A Lei Básica apenas pode dispor princípios fundamentais relativos ao direito patrimonial. Segundo a Lei Básica: (1) O direito patrimonial é um dos direitos básicos do homem que não pode ser lesado. (2) O direito patrimonial é limitado em termos legais, em face do interesse público; por exemplo, o governo pode requisitar bens, nos termos da lei, caso ocorram necessidades por parte do interesse público. Esta disposição está em conformidade com os regimes de todos os estados. Devido à necessidade do desenvolvimento económico, à interferência do Governo na economia ou ao interesse público, a natureza sagrada e a inviolabilidade do direito patrimonial são, por assim dizer, revistas nesse momento; assim, o direito patrimonial não é absoluto, é limitado face aos interesses públicos. Nos meados do Século 20, muitos estados inscreveram este tipo de disposição no seu direito constitucional”, in “Introdução à Lei Básica da R.A.E.M.”, pág. 109 e segs., e “A Protecção da Propriedade na Lei Básica de Macau e as Requisições para Utilidade Pública”, Cadernos de Ciência Jurídica, n.° 3, F.D.U.M., pág. 125 a 131).
Porém, o conceito legal de “direito de propriedade” não nos é dado pelo C.C.M., tendo o legislador optado por “regulamentá-lo”, deixando, no silêncio, as dificuldades de uma noção conceitual; (sobre a matéria, e diversamente, cfr., também, os art°s 45° e segs. da Lei da Propriedade da R.P.C., aprovada na 5ª Secção do X Congresso Nacional do Povo de 16.03.2007).
Assim não sucedia com o (anterior) Código Civil de 1867 que, no seu art. 2167°, definia a “propriedade” como a “faculdade, que o homem tem, de aplicar à conservação da sua existência, e ao melhoramento da sua condição, tudo quanto para este fim legitimamente adquiriu, e de que, portanto, pode dispor livremente”.
Sendo uma definição – pelo Prof. Mota Pinto considerada – “nimbada de certo espírito humanista e filosófico…”, cremos que se compreende a (propositada) omissão da definição de (direito da) “propriedade”.
Tentando uma definição – a que chamaríamos abrangente – do “direito de propriedade”, consideram P. Lima e A. Varela que o mesmo é “o direito que se traduz num poder directo, perpétuo, exclusivo, elástico e, em regra, ilimitado, conferido sobre certa coisa”, (in “Noções Fundamentais de Direito Civil”, 4ª ed., 2°-3), notando, em sentido próximo C. Gonçalves que, “é aquele que uma pessoa singular ou colectiva efectivamente exerce numa cousa certa e determinada, em regra, perpetuamente, de modo normal absoluto, sempre exclusivo e que todas as pessoas são obrigadas a respeitar”; (in “Da propriedade e da posse”).
Voltando ao C.C.M., e recordando que nos termos do seu art. 1226°, “Só as coisas podem ser objecto do direito de propriedade regulado neste Código”, vale a pena atentar que sob a epígrafe “Conteúdo do direito de propriedade”, prescreve o art. 1229° que “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.
Por sua vez, vários são os “modos de adquisição do direito de propriedade”, preceituando-se no art. 1241° do referido Código que “O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei”, (o que, em face do ínsito na “parte final” do preceito, permite desde logo concluir não se tratar de um comando com enumeração “taxativa”).
Classificando-se também segundo critérios diversos, adequado se mostra de considerar que, quanto à “procedência”, (ou “causa da aquisição”), pode ser, (como atrás também já se referiu), “originária” ou “derivada”; (sendo que, quanto ao “momento da aquisição”, prescreve o art. 1242° do C.C.M. que: “O momento da aquisição do direito de propriedade é:
a) No caso de contrato, o designado nos artigos 402.º e 403.º;
b) No caso de sucessão por morte, o da abertura da sucessão;
c) No caso de usucapião, o do início da posse;
d) Nos casos de ocupação e acessão, o da verificação dos factos respectivos”).
E, centrando agora a nossa atenção na “causa de aquisição”, cabe notar que é da primeira espécie, ou seja, “originária”, quando não há “transmissão” de um sujeito para outro.
O interessado, em dado momento, torna-se “dono” de uma coisa por “fazê-la sua”, sem que lhe tenha sido transmitida por alguém, ou porque jamais esteve sob o domínio de outrem.
Não há “relação causal” entre a propriedade adquirida e o estado jurídico anterior da própria coisa.
Como já salientava N. Espinosa Gomes da Silva:
“existe quando o direito que se adquire é novo, direito constituído no próprio momento da sua aquisição. Tanto pode não ter preexistido qualquer direito de anterior titular (ocupação de res nullius) como ter existido, mas neste último caso, o direito que se adquire é novo, é independente do direito abandonado pelo primitivo proprietário (…)”; (in “Dir. Sucessões”, 1980, pág. 13, podendo-se ainda ver, G. Telles in, “Direito das Sucessões”, 4ª ed., pág. 14, e Castro Mendes in, “Direito Civil, Teoria Geral”, 1979, Vol. II, pág. 56, que citando Larenz, refere que “a aquisição é originária quando a legitimidade da aquisição resulta só das circunstâncias da mesma aquisição, em face da lei”).
A aquisição é, por sua vez, “derivada”, quando resulta de uma “relação negocial entre o anterior proprietário e o adquirente”, havendo, pois, uma “transmissão do domínio”, como no registo do título translativo e na tradição; (cfr., os autores supra citados, valendo a pena sublinhar aqui o entendimento de Castro Mendes, in ob. cit., que considera que aqui se está numa situação em que a legitimidade da aquisição se “funda num direito anterior alheio”).
Isto dito, mostra-se de consignar, então, que o direito de propriedade pode existir num património em virtude de uma aquisição “originária”, ou “derivada”.
Na “aquisição originária”, (que não pressupõe qualquer relação jurídica pré-existente), o direito de propriedade é um direito autónomo e independente do direito de propriedade anterior.
Na “aquisição derivada”, tem de levar-se em conta o direito do transmitente, o qual influi profundamente no direito do adquirente, pois os negócios translativos, como a compra e venda, a doação e outros, não “criam a propriedade, apenas a transferem”.
E, assim, numa “acção de reivindicação”, como é a que pela A. foi proposta, necessário é antes de mais conhecer e atentar na “forma de aquisição” do reclamado direito de propriedade, (pois que a situação do reivindicante varia conforme o modo de “aquisição” do direito que invoca).
Na aquisição “derivada” – como é a que assenta num “contrato de compra e venda” – (e como igualmente já se deixou referido), não basta o “título de aquisição” para se provar que ao adquirente pertence, efectivamente, um direito real que vale, ou quer fazer valer, sobre qualquer possuidor ou detentor.
Tal título, prova, tão só, que o adquirente “recebeu os direitos que eram pertença do alienante”.
Com efeito, “se o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, a usucapião, ou a acessão, apenas precisa provar o facto de que emerge o seu direito.
Se a aquisição é derivada, não basta provar, por ex., que comprou a coisa, ou que esta lhe foi doada.
Nem a compra e venda, nem a doação são constitutivas do direito de propriedade, mas, apenas, translativas desse direito.
É preciso, pois, provar que tal direito já existia no transmitente”; (cfr., v.g., Pires de Lima e Antunes Varela in, “C.C. Anotado”, Vol. III, comentário ao art. 1311°).
Também, Manuel Salvador assim entende: “Supor, porém, que pelo facto de se ter um título, o alienante é‚ legítimo, é inaceitável dada a regra fundamental da aquisição derivada: a legitimidade de o antecessor ter sido o verdadeiro titular e sucessivamente. O título é uma simples presunção nominis, mais frágil que a presunção legal de posse”; (in “Suplemento aos Elementos da Reivindicação”, pág. 66).
A aquisição da propriedade por “ocupação”, “acessão” ou “usucapião”, (cfr., o atrás transcrito art. 1241°), é, tal como a “expropriação”, considerada como forma de “aquisição originária”, (sendo as restantes formas de “aquisição derivada”).
E como nota A. Menezes Cordeiro, (in “Direitos Reais”, 1979, pág. 794), “expropriação” é “o evento jurídico pelo qual se extinguem direitos reais sobre bens imóveis, constituindo-se, concomitantemente, novos direitos na titularidade de pessoas que se entende prosseguirem o interesse público, mediante o pagamento de justa indemnização”, podendo-se ainda ver Marcello Caetano, (in “Manual de Direito Administrativo”, 9ª ed., Vol. II, pág. 996), que considerava a expropriação como “relação jurídica pela qual o Estado, considerando a conveniência de utilizar determinados bens imóveis em um fim específico de utilidade púbica, extingue os direitos subjectivos constituídos sobre eles e determina a sua transferência definitiva para o património da pessoa a cujo cargo esteja a prossecução desse fim, cabendo a esta pagar ao titular dos direitos extintos uma indemnização compensatória”.
Com efeito, e como igualmente salienta J. Vieira Fonseca, “a expropriação deve ser entendida não só como acto ablatório ou limitador do direito de propriedade, mas como um “procedimento de aquisição de bens, com vista à realização de um interesse público”; (in “Principais linhas inovadoras do código das expropriações de 1999”, Revista jurídica do Urbanismo e do Ambiente n.°11/12, podendo-se sobre o tema ver ainda P. Elias Costa in, “Guia das Expropriações por Utilidade Pública”).
Atentando-se, ainda, na lição de A. Menezes Cordeiro, (in “Da usucapião de imóveis em Macau”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 53, 1993, pág. 37 a 59), que considerava que “tradicionalmente, domínio público traduz o conjunto de bens que o Estado aproveita para os seus fins usando poderes de autoridade, ou seja, através do Direito Público”, e sabido estando que no caso dos autos, invoca a A. como causa ou origem do seu reclamado “direito de propriedade” a celebração de um “contrato de compra e venda” sobre o terreno reivindicado, sendo, que provada está por sua vez a sua “expropriação pela R.A.E.M.”, adequado é recordar os ensinamentos de José de Oliveira Ascensão que, sobre esta específica “forma de aquisição”, considera o que segue:
“A expropriação importa, nos casos normais, a extinção definitiva do direito existente e a constituição dum novo direito. Nunca há uma sucessão ou transmissão do antigo ao novo titular, ao contrário do que se dá em consequência da venda. (…)
III – A aquisição por expropriação é originária.
O carácter originário de uma aquisição não resulta apenas de esta atingir todos os direitos que porventura recaiam sobre a coisa, que for o seu objecto; resulta ainda de ao adquirente caber uma posição que é absolutamente independente da que cabia ao anterior titular. Não está sujeita ao título daquela situação; nomeadamente, não padece dos vícios que porventura atinjam aquele.
Mesmo que tivesse havido uma transferência de todos os direitos que gravavam a coisa, se a aquisição fosse derivada, o expropriante não teria sobre a coisa uma posição independente, mas uma posição diminuída por quaisquer limitações que porventura gravassem aqueles direitos – sujeito portanto a vê-la amanhã atingida por obrigações de terceiros, ou até extinta, por actuação de uma causa de invalidade ou de resolução.
Não vão seguramente nesse sentido as finalidades da expropriação. O expropriante precisa dos bens livres, para os afectar a uma utilização de prevalente interesse público. Por isso o direito resultante da expropriação não está inquinado por eventuais vícios do título precedente.
As excepções que beneficiariam terceiros não são oponíveis.
A aquisição é constitutiva e não translativa.
IV – Por isso a expropriação vale mesmo que não seja dirigida contra o verdadeiro titular. (…)
Esta relativa irrelevância do titular verdadeiro mostra-nos também que estamos perante uma aquisição originária”; (in “Direito Civil – Reais”, 5ª ed., pág. 402 e 403, podendo-se, no mesmo sentido, ver o Parecer da Procuradoria-Geral da República de Portugal n.° 106/1980, publicado no B.M.J., n.° 303, pág. 91 e segs., onde se considerou também
que “Conceitualmente, a expropriação por utilidade pública, importa salientá-lo, é um instituto de direito público que é concomitantemente uma forma de extinção e aquisição do direito de propriedade por via de autoridade, em consequência do reconhecimento pelo Estado, no exercício do seu poder soberano, da necessidade de desafectar do domínio privado determinado bem que será mais útil à satisfação e realização do interesse público na disponibilidade de outra pessoa pública ou privada mas, neste caso, encarregada de prosseguir determinados fins públicos.
Por força do acto de direito público de expropriação, extingue-se o direito de propriedade do titular da coisa expropriada – que o vê substituído por um direito de crédito, o de recebimento da correspondente indemnização – e nasce um novo direito de propriedade sobre a mesma coisa radicado no expropriante, que é absolutamente independente do direito daquele e do seu conteúdo e que opera sem necessidade de qualquer conduta do expropriado no sentido da entrega, efectiva ou simbólica, da coisa.
Por isso mesmo se tem entendido que a expropriação, do ponto de vista do expropriante, é uma forma de aquisição originária – e não derivada – do direito de propriedade. Na medida em que for admissível a utilização em direito público de conceitos do direito privado, tal entendimento é correcto, uma vez que o direito de propriedade do expropriante, adquirido por via da expropriação, é, como já ficou referido, absolutamente independente do direito do anterior proprietário – ou, sequer, da sua existência – e das condições ou limites em que ele o exercia. (…)
Desde logo, o princípio da extinção do direito do expropriado sobre a coisa objecto da expropriação está implícito no artigo 1308.º do Código Civil, que, subordinado à epígrafe «Expropriações», determina que «ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados na lei»; e está nitidamente expresso nos artigos 1536.º, n.º 1, alínea f), e 1542.º relativos ao direito de superfície, no artigo 1480.º, referente ao usufruto, e no artigo 1485.º, respeitante ao uso e habitação, na medida em que remete para as disposições aplicáveis ao usufruto”).
É também essa a posição de Luís Menezes Leitão, para quem a expropriação é um facto jurídico-real que implica a extinção dos direitos reais incidentes sobre a coisa e que, “Sendo uma causa de extinção dos direitos reais, a expropriação não implica, no entanto, que as coisas expropriadas fiquem nullius, uma vez que se verifica uma aquisição originária dessa propriedade por parte da entidade expropriante. O proprietário expropriado pode em certos casos adquirir um direito de reversão da sua propriedade (cfr. art. 5.º C. Expr.), mas tal constitui um novo facto aquisitivo, e não uma anulação da expropriação”; (in “Direitos Reais”, 2013, 4ª ed., pág. 238, valendo ainda a pena atentar que, do mesmo modo, e a propósito dos factos jurídicos com eficácia real, diz igualmente José Alberto Vieira que “Os direitos reais extinguem-se por expropriação, nos termos da lei. A expropriação é um facto extintivo de todos os direitos reais, sem excepção, apesar do Código Civil apenas dispor genericamente a propósito da propriedade (…)
Os bens expropriados não ficam nullius; sobre eles constitui-se uma propriedade originária a favor da entidade expropriante. (…)”, (in “Direitos Reais”, pág. 459), considerando, também, Luís Carvalho Fernandes que “A limitação dos direitos reais, decorrente da sua sujeição à expropriação, quando actuada, mediante a efectiva expropriação do bem, determina a extinção do correspondente direito, constituindo-se um direito novo em benefício da entidade expropriante. Não se verifica, pois, aqui um verdadeiro fenómeno de transmissão”; (in “Lições de Direitos Reais”, 4ª ed., pág. 203).
No mesmo sentido ainda, e como referem Rui Januário, Filipe Lobo D´Ávila e Luís de Andrade Pinhel, “A expropriação por utilidade pública é, igualmente, um evento jurídico pelo qual se extinguem Direitos reais sobre bens imóveis, constituindo-se, concomitantemente, novos direitos na titularidade de sujeitos que se entende que prosseguem o interesse público, mediante o pagamento de justa indemnização. De facto, a expropriação por utilidade pública é a relação jurídica pela qual o Estado, considerando a conveniência de utilizar determinados bens imóveis num fim específico, extingue os direitos subjectivos constituídos sobre esses, e determina a sua transferência definitiva para o património da pessoa, a cujo cargo esteja a prossecução daquela finalidade, cabendo a esta pagar ao titular dos direitos extintos uma indemnização compensatória. (…)
Pelo contrário, na expropriação por utilidade pública o beneficiário adquire a título originário, isto é, vê constituir-se ex novo um direito próprio sobre a coisa expropriada. Consequentemente, a expropriação provocará a extinção do direito ou direitos anteriores. (…) O direito do expropriante, uma vez constituído, em nada padece dos vícios de que pudesse enfermar o direito anterior. (…)
Quanto ao direito expropriado, ninguém, nos dias de hoje, contesta que se trata de um direito originário, adquirido ex novo pelo expropriante, e não transmitido pelo anterior proprietário”; (in “Direito Civil – Direito das Coisas”, pág. 521, 535 e 539, podendo-se sobre a matéria ver também Mónica Jardim in, “Efeitos Substantivos do Registo Predial – Terceiros para Efeitos de Registo”, pág. 532 a 534 e 542).
Aqui chegados, feitas as considerações que se deixaram expostas, e tendo-se presente que a “expropriação por utilidade pública” – que como se sabe, não deixa de constituir um “instrumento jurídico” para a “execução de planos de ordenamento do território e de gestão urbanística”, e que inclui assim a “transformação do solo, sua ocupação e uso…”; (cfr., v.g., Fernando Alves Correia in, “O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade”, Coimbra, 1974 e “Anotação ao Acórdão do TCAS de 18.10.2012, Proc. n.° 01597/06 – (A expropriação de sacrifício: finalmente, a sua consagração jurisprudencial)”, R.L.J., Ano 142°, 2013, e, Paula Natividade Bernardo Gomes in, “A Expropriação por Utilidade Pública como Instrumento de Planeamento Territorial e Urbano”, F.L.U.L., 2009) – implica a extinção do direito de propriedade e de outros direitos, ónus e encargos existentes sobre o prédio ou fracção predial expropriados, e, com isso, o facto de o terreno expropriado passar a ser uma “coisa pública”, e como tal “fora do comércio”, procuremos a resposta para a “vexata quaestio” dos autos.
–– O caso dos autos.
Pois bem, recordando-se o que atrás se deixou transcrito do art. 6° e 103° da Lei Básica da R.A.E.M. – tendo-se também presente o estatuído no art. 1° da Lei n.° 12/92/M, que desenvolve o “Regime das Expropriações por Utilidade Pública”, onde no seu n.° 2 se prescreve que “Os bens imóveis e direitos a eles inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública, mediante o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização”, e provada estando a matéria de facto onde se diz que “O Terreno foi afecto ao domínio da RAEM por força da conclusão do processo expropriativo aludido em h) a l)” – vejamos; (sobre o tema, cfr., v.g., Mai Man Ieng in, “As Características e os Princípios do Regime de Expropriação em Macau”, Cadernos de Ciência Jurídica, n.° 3, F.D.U.M., pág. 145 a 150; Rafael Zibaia Pedreiro in, “A Expropriação por Entidade Pública – O Procedimento e a Problemática da Indemnização”, U.C., 2018; Liliana Seixas Ferreira in, “A Expropriação como limitação ao Direito de Propriedade Privada”, F.D.U.P.; e Zhang Xiaoyu in, “Restrição por fins de utilidade pública e sua compenasação”, Universidade Zhejiang, podendo-se, ainda, sobre a “situação” que levou às “expropriações” como a dos autos decretadas em Macau no início do Século XX ver, Manuel da Silva Mendes in, “As expropriações em Macau”, jornal “O Macaense”, de 19.10.1919; José da Conceição Afonso in, “Macau: Uma Experiência de Urbanismo Estratégico e Higienista dos Finais do Séc. XIX aos começos do Séc. XX”, Revista de Cultura, n.° 38/39 (2ª Série), 1999, pag. 221 e segs.; e Manuel Viseu Basílio in, “A Expropriação e a Extinção das Povoações Rurais”, jornal “Tribuna de Macau”, de 14.10.2022).
Ora, como resulta do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, as Instâncias recorridas consideraram – em síntese – que a favor da A. ocorreu uma “aquisição tabular” em face da “falta de registo da expropriação” por parte do Território de Macau, (actual R.A.E.M.), aquisição (tabular) essa, (recorda-se), que se teria verificado através de uma suposta “sucessão a non domino” ao abrigo do art. 5° do C.R.P., sendo que a transmissão do bem pelos sucessores para outros adquirentes estaria salvaguardada nos termos do art. 284° do C.C.M., sendo ainda, indiscutível, a “boa fé da A. e da sua antecessora”, (a “B”).
Ora, em nossa modesta opinião, há – certamente – equívoco.
E, embora acabe por não ser relevante para a solução que se mostra de adoptar, permita-se a surpresa com a referida indiscutível “boa fé” da A. e da sua antecessora.
Com efeito, e como cremos ser adquirido, (juridicamente), a (expressão) “boa fé”, comporta um duplo sentido.
Umas vezes tem um sentido puramente “psicológico”: é a ignorância do vício de que padece determinada situação, ou a convicção (errónea e não culposa) da licitude dum acto ou situação jurídica. Logo, chama-se “boa fé” à ignorância dos fundamentos da ilicitude, imoralidade ou vício, ou de certo fundamento que a lei toma como essencial.
Outras vezes, assume um sentido acentuado “ético” e “objectivo”: age de boa fé quem actua de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis do homem no comércio jurídico; (cfr., v.g., Pires de Lima e Antunes Varela in, “C.C. Anotado”, 1ª ed., Vol. IV, pág. 177, podendo-se ainda ver A. Varela in, R.L.J., n.° 106, pág. 252, e A. Menezes Cordeiro in, “Da Boa Fé no Direito Civil” e “A boa fé nos finais do século XX”).
Quando a Lei refere que “no cumprimento da obrigação, no exercício do direito devem as partes proceder de boa fé”, refere-se à “boa fé” no sentido “ético” que é, então, a imposição da consideração pelos interesses legítimos da outra parte; (cfr., v.g., Castro Mendes in, “Direito Civil, Teoria Geral”, Vol. III, pág. 411 a 413).
Atendendo ao referido sentido e alcance da “boa fé”, e percorrida a “situação” em questão em face dos exactos termos da descrição factual atrás retratada, não se mostra de aceitar – como (minimamente) razoável – que a A. tenha decidido adquirir, (“comprar”), o “terreno” por escritura lavrada em 2005 e pelo preço de HKD$175.000.000,00, sem que tivesse, (ou que alguma vez lhe ocorresse), a mais pequena preocupação com a sua (efectiva) “entrega” pela vendedora, e, (simultaneamente), sem que tivesse, (uma só vez) sequer, ido ao terreno ver e averiguar a respectiva “situação” e “condições” do “bem” cuja compra estaria a negociar, pois que só assim se pode (tentar) compreender que ignorasse, por um lado, a existência de “muros”, “vedações” e “portões” que bloqueavam o seu acesso, (até mesmo à própria vendedora), e, por outro lado, que desconhecendo, também totalmente, a própria “localização” do mesmo terreno, ignorasse, igualmente, a existência de estradas de acesso à “Ponte da Amizade” que – saliente-se – foi inaugurada em 1994!
E, assim, será suposto crer que, em “completa escuridão” quanto às (reais) “circunstâncias e localização do terreno”, e, portanto, sem saber o que estava a comprar, tenha entendido pagar, mesmo assim, quase duas centenas de milhões de dólares de Hong Kong, limitando-se a confiar (cegamente) na “informação” constante do registo predial para celebrar o negócio, absolutamente nada verificando sobre as efectivas condições do terreno, nem se preocupando, tão pouco, em ser empossada até terem (apenas) decorrido “mais de 3 anos” sobre a data da escritura de compra e venda, em que, então, alegada e subitamente “surpreendida”, promove a acção de onde emerge a presente lide recursória…
Ora, é claro que, como ela própria o reconhece logo no início dos presentes autos, parte do preço pago – ou seja, MOP$154.500.000,00 – foi suportado por crédito bancário contraído mediante hipoteca do mesmo terreno…
Porém, uma coisa parece clara e não suscita grandes dúvidas: se a “posse não vale título”, não se pode deixar de reconhecer que a “posse constitui uma presunção de titularidade”, (cfr., art. 1193° do C.C.M.), o que, numa “estória” como a descrita, e como se mostra natural para qualquer “homem médio”, seria, ou deveria ter sido, motivo bastante para justificar uma (prévia) compreensão da “situação do terreno” por parte da A.…
O mesmo se diga relativamente à (suposta) anterior proprietária do terreno, a “B” que, desde a sua aquisição, ou seja, desde o mês de Agosto de 1997, até ao mês de Setembro de 2005, não obteve a “posse do terreno” em causa, e, pelos vistos, (calmamente), sem nada fazer, (ignorando totalmente o que lá se passava), limitou-se a negociar e a vender o mesmo terreno à A., (tudo, numa rara e estranha tranquilidade, e sem nenhuma e a mais pequena preocupação quanto ao facto de, pelo menos, em parte, o terreno se encontrar ocupado com estradas de acesso à Ponte da Amizade…).
É, pois, caso para se dizer que “o pior cego é aquele que não quer ver”, apresentando-se-nos, no mínimo, deveras insensato, ou fruto de (exagerada) “ficção”, (para não se dizer outra coisa), desconsiderar, em absoluto, a “realidade material da posse sobre o terreno em causa exercida” pelo então Território de Macau, e, depois, pela R.A.E.M., “ao longo dos anos”, (o que era, pelo menos, evidente desde 1994), para se escudar numa “ingénua ignorância” da realidade aliada a uma suposta “confiança cega” quanto a uns registos obtidos por uns alegados “herdeiros” de H, em “Maio de 1997”, através de uma “escritura de habilitação de herdeiros”, (que, como se sabe, constitui um título “pouco fiável”), e, assim, celebrar um contrato de compra e venda em “Agosto de 1997”, sem a mínima necessidade de os ditos herdeiros de H procederem, (ou ficarem minimamente “obrigados” a proceder), à “entrega do terreno” nos termos legalmente previstos; (cfr. art°s 869°, al. b), e 872° do C.C.M. actual, 879°, al. b), e 882° do C.C.M. vigente à época).
E, perante todos estes elementos, só se pode (razoavelmente) assumir que, tanto a “B”, como a própria A., não tinham, (nem nunca tiveram), qualquer expectativa (séria) de “entrega” (e “posse”) do terreno (pelos supostos proprietários alienantes), porque, sabiam, (claramente), que o dito terreno constituía um verdadeiro “terreno minado” relativamente à sua (verdadeira) titularidade…
Nesta conformidade, (e, pelo menos, quanto a nós), não se mostra que demonstrada esteja qualquer “boa fé” da A., (e, igualmente, da sua antecessora), não sendo de se olvidar que para a sua verificação se mostra especialmente necessária uma concepção “ética da boa fé”; (neste sentido, cfr., v.g., José de Oliveira Ascensão in, “Direito Civil – Reais”, 5ª ed, pág. 377 e Maria Clara Sottomayor in, “Invalidade e Registo – A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé”, pág. 484 e 485 que nota, expressa e precisamente, que perante “indícios claros de falta de coincidência entre a titularidade registal e a titularidade material, por exemplo, a posse pública e pacífica a favor de um terceiro”, sempre se imporia “o dever de investigar o fundamento jurídico destas situações (…)”, podendo-se ainda, com muito interesse ver, Manuel J. G. Salvador in, “Decisões e Notas, Conceito de Terceiro”, Petroni, 1960, e “Terceiro e os Efeitos dos Actos ou Contratos; A Boa Fé nos Contratos”, Petroni, 1962).
De todo o modo, (e porque não se nos apresenta como essencial para a resolução da situação dos presentes autos), deixemos de lado tal “aspecto”, e, atentemos, então, no seguinte trecho (essencial) da fundamentação do Tribunal Judicial de Base e que tem o seguinte teor:
“Como já se referiu o prédio a que se reportam os autos foi expropriado, contudo essa expropriação nunca foi registada. (…)
Embora não fizesse parte do acervo da herança, por estar registada ainda em nome de H vem a ser registada a aquisição por quem se habilitou à sucessão e em momento algum veio o beneficiário da expropriação, a RAEM, reclamar ser a proprietária do bem em causa e reivindica-lo daqueles. (…)
Por outro lado a reconvenção é registada em 23.03.2010 e a aquisição da Autora havia sido registada em 20.09.2005 (cf. fls. 325 e 329).
Destarte, face ao disposto nos n.º 1, 2 e 4 do art.º 284.º do C. Civ. é inócuo estar a apreciar da validade da sucessão no que concerne à titularidade do bem (bem alheio) uma vez que a reconvenção quando é registada, há muito que já havia decorrido o ano indicado no n.º 2 do referido preceito legal e ainda que assim não fosse também não se demonstrou que os adquirentes não estivessem de boa-fé”; (cfr., fls. 1994 a 1995-v).
No mesmo sentido, considerou também o Tribunal de Segunda Instância, consignando no Acórdão agora recorrido que:
“Quer isto dizer que o douto Tribunal a quo decidiu, no que respeita à parcela ocupada pelo IACM, de 20,263 m2, no sentido que a A. sempre defendeu, i.e. que a (alegada mas não provada) expropriação, na ausência do respectivo registo, e porque assim o determina o artigo 5.º do CRP, nunca consubstanciaria qualquer direito dos Réus que fosse oponível à A., atenta a protecção que lhe era dada, enquanto adquirente de boa fé a non domino, pelo artigo 284.º do CC, pelo que jamais poderia obstar à procedência da presente acção. (…)”; (cfr., fls. 2972, pág. 207 do Ac. recorrido).
Ora, salvo melhor opinião, os raciocínios seguidos nas decisões recorridas encontram-se – cremos nós – viciados, tendo-se adoptado, tanto quanto se julga, por um conceito de “terceiro” (com exagerada amplitude e) que, contraria, frontalmente, a “natureza” e os “fins” do “sistema de registo predial” que vigorou e encontra-se vigente em Macau.
Em primeiro lugar, e com todo o respeito o dizemos, não se vislumbra de que modo poderia ser dado relevo ao art. 284° do C.C.M., onde se prescreve que:
“1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição do terceiro for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.
2. Preenchidos os pressupostos do número anterior, os terceiros que tenham adquirido direitos de quem, nos termos constantes do registo, tivesse legitimidade para a sua disposição só vêm os seus direitos reconhecidos se a acção de nulidade ou anulação não for proposta e registada dentro do ano posterior à conclusão do negócio inválido.
3. Caso à data da aquisição do terceiro não existisse qualquer registo relativamente ao bem em causa, os direitos do terceiro só são reconhecidos se a acção de nulidade ou anulação não for proposta e registada dentro dos 3 anos posteriores à conclusão do negócio inválido.
4. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável”.
Com efeito, importa referir que, (na falta de uma norma à imagem do art. 17°, n.° 2 do Código do Registo Predial de Portugal), não se pode (tentar) extrair do dito art. 284° um alcance que o mesmo não comporta, e que é desde logo evidenciado porque o “terceiro” que aí é referido não se confunde com o “terceiro para efeitos de registo predial”.
Ressalvando-se sempre o devido respeito, seria (absolutamente) extraordinário que a A. fosse considerada “terceira” em relação à R.A.E.M. ao abrigo do referido art. 284°, quando a R.A.E.M. não se integra em nenhuma “cadeia transmissiva”, tendo, como se viu, adquirido o terreno – “originariamente” – através da já referida “expropriação”.
Na verdade, e conforme a doutrina (e jurisprudência) maioritária, o art. 284° do C.C.M. nunca poderia regular a situação dos autos, uma vez que tal norma destina-se a proteger a posição de um “terceiro subadquirente”, em relação ao primitivo titular do bem sujeito a registo, numa “sequência de negócios jurídicos sobre aquele bem”, pois aquele poderia ver o seu direito real afastado por conta de um vício que invalida o(s) negócio(s) jurídico(s) precedente(s), sendo, por isso, o “terceiro” referido no art. 284°, (muito) diferente do “terceiro” a que se refere o art. 5° do C.R.P., e onde, sob a epígrafe de “Oponibilidade a terceiros” se prescreve que:
“1. Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.
2. Exceptuam-se do disposto no número anterior:
a) A aquisição, fundada em usucapião, dos direitos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º;
b) As servidões aparentes;
c) Os factos relativos a bens indeterminados enquanto estes não forem devidamente especificados e determinados.
3. A falta de registo não pode ser oposta aos interessados pelos seus representantes legais a quem incumba a obrigação de o promover, nem pelos herdeiros destes”.
Como (impressivamente) se explica na doutrina, “A norma do art. 291.º – equivalente ao art. 284° do C.C.M. – visa resolver um conflito entre o direito do primeiro alienante e o direito do terceiro, numa cadeia de negócios inválidos, sendo entranha a esta qualquer finalidade sancionatória dirigida a quem não regista, como sucede no caso da dupla alienação”, (cfr., v.g., Maria Clara Sottomayor in, “Invalidade e Registo – A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé”, pág. 335, sendo pois de notar que o art. 284° do C.C.M. opera quando o negócio jurídico que deu início à cadeia de transmissão foi celebrado pelo titular do direito de propriedade sobre o bem).
Pelo exposto – e como bem referem os recorrentes nas alegações de recurso – não era (manifestamente) aplicável ao caso dos autos a previsão da norma do art. 284° do C.C.M., cabendo pois consignar que as Instâncias procederam indevidamente à resolução da situação dos autos com base numa noção “amplíssima” de “terceiros”, como se o registo predial tivesse adoptado um “regime constitutivo”, não cuidando de tomar, também, em devida consideração, os pressupostos de aplicação do art. 5° do C.R.P., (ou art. 7° do Código do Registo Predial de 1967), e as situações para as quais o mesmo está pensado, (e que foram alvo de acesa discussão doutrinária no direito comparado).
Na verdade, e adoptando-se um “conceito – muito amplo – de terceiros” para efeitos do art. 5° do C.R.P., ainda assim, também tão só “aparentemente” se poderia considerar que houve uma “aquisição tabular”, (quer seja pelos herdeiros de H, quer pela “B”).
Contudo, adequado não se apresenta o assim considerado.
O C.R.P. tem como pressuposto o “princípio da aquisição derivada”, justificando-se assim os princípios que lhe estão subjacentes, como os princípios do “trato sucessivo” e da “legitimação”.
Assim, e como nos parece claro e evidente, o art. 5° do C.R.P. tem de ser lido, interpretado e aplicado à luz dos ditos “princípios do trato sucessivo e da legitimação” enquanto corolários do “princípio da fé pública registral”, pois que são esses princípios que justificam, desde logo, a aparência que sustenta a “aquisição tabular” ao abrigo dessa norma do C.R.P., ou seja, uma aquisição através de um ex-dominus (mas) que (ainda) surge como titular inscrito no registo.
É pois neste contexto que se tem de interpretar o art. 5°, n.° 1 do C.R.P., na medida em que através do mesmo se pretende oferecer uma solução a um “conflito entre direitos que têm a sua origem no encadeamento tabular”, em respeito pelos aludidos princípios do trato sucessivo e da legitimação.
Com efeito, o art. 5°, n.° 1 do C.R.P. não dá resposta a um conflito com “direitos adquiridos de forma originária”, (nem sequer o poderia dar), visto que, tais direitos inutilizam os princípios do trato sucessivo e da legitimação que são os princípios fundamentais subjacentes ao dito C.R.P., (sendo por isso direitos que se impõem por si).
Por outras palavras, “o princípio do trato sucessivo (de absoluta garantia para o titular inscrito de um direito) só vigora, restritamente, quanto à aquisição derivada”; (cfr., v.g., Rui Januário, Filipe Lobo D´Ávila e Luís de Andrade Pinhel in, ob. cit., pág. 542).
Por isso, não se pode perder de vista, havendo que se ter bem presente, que o art. 5°, n.° 1 do C.R.P. tem como pressuposto um conflito entre “aquisições da mesma natureza”, isto é, actos de “aquisição derivada”, independentemente de serem actos praticados de forma voluntária ou contra a vontade do titular inscrito no registo, (como v.g., sucede com os actos de execução movidos pelo poder judicial, como “arrestos” ou “penhoras”).
Ora, in casu, e como se viu, a aquisição tabular configura uma forma, (peculiar é certo), de “aquisição derivada”.
E, por sua vez, e como sabido já é, a “expropriação”, como forma de “aquisição originária”, implica, por um lado, a extinção definitiva do direito de propriedade existente, constituindo-se, (posteriormente), um “novo direito a favor da entidade expropriante”, obtendo o expropriante uma posição “independente” sobre a coisa, não estando “sujeito portanto a vê-la amanhã atingida por obrigações de terceiros, ou até extinta, por actuação de uma causa de invalidade ou de resolução. (…) As excepções que beneficiariam terceiros não são oponíveis”; (cfr., v.g., José de Oliveira Ascensão in, “Direito Civil – Reais”, 5ª ed, pág. 403).
Basta aliás ver que a “expropriação” surge no art. 9°, n.° 4 do mesmo C.R.P. como uma “excepção ao princípio da legitimação”, visto que é (totalmente) irrelevante se o proprietário do imóvel a ser expropriado é, ou não, verdadeiramente, aquele que consta da inscrição, pois que, como se viu, a expropriação irá extinguir todos os direitos reais existentes sobre o imóvel, (não estando em causa o que normalmente sucederia com uma “aquisição derivada”).
E, contra isto, não vale a pena (procurar) ler no art. 9°, n.° 4 do C.R.P. mais do que aquilo que lá está claramente expresso, (como o faz a A.), pois que “Como diz o velho brocardo latino “in distinctione salus”, e a distinção impõe-se ao intérprete, sempre que necessária para a coerência do sistema normativo. A doutrina e a jurisprudência inclinam-se, de forma predominante, para o carácter originário do direito expropriado, problema cuja resolução não esteve certamente nos propósitos do legislador da codificação registral predial. (…)
O que do referido preceito transparece é, sem qualquer sombra de dúvidas, que se pretendeu excluir a aquisição resultante de expropriação das regras da legitimação prévia dos direitos sobre imóveis, como condição para a sua titulação. Ora, sendo uma das preocupações do Código do Registo Predial a concordância da realidade jurídica com a tabular, não faria qualquer sentido que o legislador permitisse a titulação de um direito cujo registo fosse impedido pelo funcionamento das regras do trato sucessivo”; (cfr., v.g., Rui Januário, Filipe Lobo D´Ávila e Luís de Andrade Pinhel in, “Direito Civil – Direito das Coisas”, pág. 541 e 542).
Com efeito, não se podem pois confundir duas coisas – bem – distintas: o facto de se poder registar uma “usucapião”, ou “expropriação”, não significa que tais factos só sejam oponíveis após o registo.
Isto porque o “conflito” entre a “aquisição originária” e a “aquisição derivada” em face do art. 5° do C.R.P. é “inexistente”, nunca se podendo verificar uma aquisição “tabular” contra um titular de um direito adquirido por via originária que, simplesmente, não registou essa aquisição, (como, em nossa opinião, é precisamente a situação dos autos).
E, nesta conformidade, dando como se viu a “expropriação” lugar a uma “extinção dos direitos existentes sobre a coisa”, (ocorrendo assim a sua “perda absoluta”), impõe-se considerar que o acto jurídico subjacente à suposta “aquisição tabular”, bem como os subsequentes, são “nulos”, (não só por “ilegitimidade”, mas) por uma autêntica “falta de objecto”; (cfr., art. 273°, n.° 1 do C.C.M.).
No fundo, e como se apresenta (bastante) óbvio, não se compreende pois como seria possível uma “aquisição tabular” que, em boa verdade, implicaria o “ressuscitar” de um direito já não existente.
No caso, e como vimos, os “actos jurídicos (sucessivos)” praticados desde os supostos herdeiros de H, até à A., tiveram por objecto a transmissão de um direito real – já – “extinto” e “inexistente”, pois que se tratava de um direito que já havia sido “suprimido do mundo jurídico”.
E, assim, mostra-se-nos pois constituir também uma clara situação de “falta de objecto”; (cfr., art. 273° do C.C.M.).
Em suma, (e como cremos que bem se vê), para a “resolução” do problema (jurídico) dos autos, acaba por ser irrelevante a discussão doutrinária sobre o conceito – “restrito” ou “amplo” – de “terceiros”, porquanto essa discussão apenas ocorre dentro de um quadro conflitual de “aquisições derivadas”, o que não é, (manifestamente), o caso dos autos, pois que, uma “aquisição originária” como sucedeu com a ocorrida “expropriação”, ao destruir todas as situações substantivas e/ou registrais, prevalece, sempre, ainda que não registada, sobre “aquisições derivadas”, uma vez que na aquisição originária o registo é meramente “enunciativo”; (sobre os vários “efeitos substantivos do revisto predial” com uma também muito clara exposição sobre a conturbada evolução do conceito de “terceiros” na doutrina e “jurisprudência”, vd., o estudo com o mesmo título de Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde in, “Os Efeitos Substantivos do Registo Predial”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 77, 2017, pág. 553 a 590).
Nestes termos, os (alegados) “herdeiros” de H, não sucederam em qualquer posição jurídica titulada por H – não está em causa uma transmissão de direito ou de posição jurídica viciada apenas por ilegitimidade, já que o “direito de propriedade” em causa já tinha sido extinto pela “expropriação” – e, muito menos, obtiveram qualquer “registo aquisitivo”.
É que, (seja como for), e independentemente da situação prevista no art. 5° do C.R.P., o certo é que não se vislumbra como possa haver uma “aquisição – derivada – tabular”, de um direito que já “não existe” no mundo jurídico!
E, inexistindo o direito, nada, nem a “aquisição tabular”, tem capacidade (ou qualquer outra virtude) de o fazer “renascer”.
O que se diz, vale, também, mutatis mutandis, para os “negócios jurídicos” celebrados entre a “B”, (vendedora), e a aqui A., (ora recorrida).
Com efeito, com os mesmos procurava-se a transmissão de um direito real (já) absolutamente suprimido do mundo jurídico, o que, a nosso ver, torna, os mesmos, igualmente, “nulos” por absoluta “falta de objecto”, nos termos do art. 273° do C.C.M.; (sendo de se notar tratar-se de uma nulidade de conhecimento oficioso, cfr., art. 279° do C.C.M.).
Não se pode pois olvidar que o “registo” desses negócios jurídicos não tem um “efeito resolutivo” sobre a aquisição originária por expropriação da 1ª R., R.A.E.M., (ora recorrente).
E, assim, não sendo a “aparência” nessa situação salvaguardada pela Ordem Jurídica, então as aquisições de um direito real (já) extinto a quem nem sequer foi o seu ex-dominus não produz qualquer efeito nem afecta a “posição da R.A.E.M.”, enquanto proprietária do imóvel.
Com efeito, e como cremos que já se deixou exposto, a “compra e venda”, não é “constitutiva do direito de propriedade”, apenas “transmite o direito” que existia na esfera jurídica do alienante – “nemo plus juris ad alium transfere potest, quam ipse habet” – e uma vez submetida ao registo predial, confere ao adquirente do direito de propriedade a possibilidade de o ver reconhecido desde que a presunção legal (registal) daí resultante não seja ilidida; (cfr., art. 342° e segs. do C.C.M.).
Tratando-se porém, e como igualmente já se viu, de uma modalidade de “aquisição derivada”, não resiste se lhe for oposta a “aquisição originária” do mesmo direito real: isto é, se aquele contra quem é invocado o direito na acção (de reivindicação) lograr demonstrar os factos de que emerge a “aquisição originária” do seu direito de propriedade.
É, assim, a 1ª R., R.A.E.M., a única “proprietária do terreno”, não tendo a A., (ora recorrida), qualquer direito sobre o mesmo, não sendo igualmente o seu registo oponível à dita 1ª R., nos termos já expostos, o mesmo valendo para todos os outros registos existentes sobre o terreno, (assim com os registos anteriores efectuados desde a suposta sucessão), que são, como se referiu, actos – manifestamente – “nulos”.
Aqui chegados, continuemos.
–– Da falta de fundamento legal que suporte a condenação da 1ª R., R.A.E.M., no pagamento de uma indemnização à A..
Em face da solução a que atrás se chegou, claro está que não há também qualquer fundamento legal que possa suportar a decretada “condenação da R.A.E.M. no pagamento de uma indemnização à A.”, visto que, como se deixou consignado, à mesma não assiste qualquer direito sobre o terreno.
–– Da responsabilidade civil do 2° R., I.A.M., por factos ilícitos.
Por sua vez, não tendo a A. qualquer direito (oponível) sobre o mesmo terreno, imperativo é concluir, igualmente, que o 2° R., I.A.M., não poderia ser condenado a indemnizar a A. por qualquer alegada privação do seu uso, ociosas se apresentando mais alongadas considerações sobre a matéria.
*
Resolvida que se nos apresenta assim a “questão de fundo” – e essencial – da presente lide recursória, mostra-se ainda adequado tecer as seguintes considerações para a sua cabal apreciação e pronúncia.
–– E, assim, e desde já, para se deixar claro que, como se apresenta evidente, é (absolutamente) “irrelevante” a pela A. pretendida “devolução dos autos ao Tribunal de Segunda Instância” para se apurar da sua “boa fé” na aquisição do terreno em causa, pois que, (independentemente do que sobre a matéria já se deixou considerado), aquela – “boa, (ou má), fé” – não consegue ultrapassar (ou alterar) o facto de uma (alegada) “aquisição tabular” não poder valer contra um direito adquirido originariamente por “expropriação”, pois que, como se deixou exposto, “uma aquisição derivada não resiste se lhe for oposta uma aquisição originária do mesmo direito real”.
–– A segunda, para se consignar o que segue.
O “Banco Industrial e Comercial da China (Macau), S.A.”, apresentou, na sua qualidade de “Interveniente”, um “recurso interlocutório” do despacho do Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade (e de falta de interesse) da 1ª R., R.A.E.M., e do 2° R., I.A.M., para sindicar as consideradas “falsas declarações” constantes da escritura de habilitação de herdeiros, e, no seu Acórdão, (objecto do presente recurso), o Tribunal de Segunda Instância não apreciou o dito “recurso interlocutório” ao abrigo do art. 628° do C.P.C.M..
Contudo, não obstante o estatuído nos art°s 652° e 630°, n.° 2 do C.P.C.M., a verdade é que se nos apresenta totalmente irrelevante (e “inócuo”) apreciar tal “questão”.
Com efeito, antes de mais, há que atentar no disposto no art. 628°, n.° 3 do C.P.C.M., nos termos do qual: “Os recursos que não incidam sobre o mérito da causa só são providos quando a infracção cometida tenha influído no exame ou decisão da causa ou quando, independentemente da decisão do litígio, o provimento tenha interesse para o recorrente”.
A propósito do sentido e âmbito de aplicação do preceituado neste art. 628°, n.° 3 do C.P.C.M., vale a pena recordar o que se ponderou no Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 15.07.2015, proferido no Proc. n.° 36/2015, de onde se extrai o seguinte excerto:
“O recurso em causa não incidiu sobre o mérito da causa, pelo que o acórdão recorrido deveria ter ponderado se a infracção cometida influiu no exame ou decisão da causa3. Porque se não influiu, então o TSI não devia ter provido o recurso.
Tal ponderação só não seria necessária se, pela violação em causa, fosse evidente a influência no exame ou decisão da causa. O que não era o caso.
Quando é que se pode dizer que a infracção cometida influiu no exame ou decisão da causa?
ALBERTO DOS REIS4 entende que a violação cometida tem influência no exame ou decisão da causa quando é relevante.
Resta saber quando é que a infracção é relevante ou irrelevante.
Pode dizer-se, parafraseando uma decisão de um tribunal português5, que fez uma boa síntese, interpretando norma idêntica, que a violação é irrelevante quando o despacho em causa não influi no andamento regular da causa, não só quando não obsta a que fosse convenientemente instruída e discutida em ordem a assegurar a sua justa decisão, como ainda quando não compromete a apreciação do fundo da causa na sentença final.
Também ANSELMO DE CASTRO6, pronunciando-se sobre expressão idêntica do Código português (influência no exame ou decisão da causa) utilizada a propósito das nulidades processuais, e constante, também, do artigo 147.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de Macau, dava exemplo do que constituiriam irregularidades susceptíveis de integrar o conceito: na citação, a falta de indicação do prazo para contestar e da cominação em que incorre o réu se não contestar. Ou seja, irregularidades que afectam a própria citação”, (além da doutrina e jurisprudência citada no sobredito veredicto, adequado se julga de referir ainda o Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 07.12.1989, in C.J., Ano XIV, 1989, tomo V, pág. 266 a 269, onde sobre idêntica questão considerou também que “Esta decisão, porventura contra legem, terá influído, de
algum modo, no exame ou decisão da causa? A resposta, adiante-se já, terá forçosamente de ser negativa. (…)
Não podendo, pois, a autora triunfar no pedido de declaração de nulidade da doação feita aos réus (a tal se oporia a prevalência da aquisição usucapiativa), evidente é que, mesmo que tal pedido não tivesse sido travado no despacho saneador, ele sempre, a final, acabaria por soçobrar.
Por isso, se conclui, como logo se anunciou, que a decisão agravada não influiu no exame ou decisão da causa”).
Fica, pois, assim claro que a “questão” suscitada no aludido “recurso interlocutório”, (ainda que fosse procedente), em nada afecta a solução dos autos, não se vislumbrando, tão pouco, qualquer interesse que o seu provimento possa ter para o Interveniente Principal e que seja independente da solução dada ao litígio.
–– Finalmente, duas derradeiras notas para esclarecer a pelo Interveniente Principal requerida “ampliação do recurso” e que teria ficado prejudicada pela solução a que chegou Tribunal de Segunda Instância, assim como de um alegado “abuso de direito” por parte da R.A.E.M..
Como atrás já se deixou exposto em relação ao requerimento de ampliação do recurso da A. para se dar como não escrita a matéria do “quesito 18°” da Base Instrutória, em idêntica situação se tem de considerar também a agora referida ampliação do âmbito do recurso, que aqui se conhece ao abrigo dos art°s 652° e 630° do C.P.C.M..
Com efeito, em causa não está um facto alegado pelo requerente, Interveniente Principal, em apoio de uma sua pretensão que tenha ficado “não provado”.
Está – antes – em causa, “matéria” que foi alegada e provada pela R.A.E.M. enquanto fundamento da sua defesa e do seu pedido reconvencional.
Da mesma caberia assim “recurso”, não podendo o Interveniente socorrer-se da figura da ampliação do objecto do recurso para colocar em causa questões de facto que foram fundamentais à improcedência parcial de um dos pedidos principais formulados pela A..
De facto, e como resulta do que decidido foi, a existência de uma “expropriação” a favor da (actual) R.A.E.M. foi a “razão” que levou as Instâncias a considerar que a acção proposta pela A. era, somente, “parcialmente procedente”, não tendo assim condenado a 1ª R., R.A.E.M., a reconhecer a A. como proprietária do terreno, nem tão pouco a proceder à sua devolução.
E, nesta conformidade, esta “decisão”, na sequência da sua confirmação pelo Tribunal de Segunda Instância, e na falta de “recurso”, independente ou subordinado, tornou-se “definitiva”, (pois que já transitou em julgado).
Relativamente ao alegado “abuso de direito por parte da 1ª R., R.A.E.M.”, cremos que, também sem esforço se mostra de concluir que o mesmo não existe, até mesmo porque, como da factualidade resulta, a dita 1ª R., poderia, além de invocar a “expropriação”, alegar, a título subsidiário, a “usucapião” do terreno com base na sua “posse pública, de boa fé, e ininterrupta, desde 1918”, o que teria o mesmo efeito, e, igualmente, de nada valeria o que consta do registo, (cfr., art. 5°, n.° 2, alínea a) do C.R.P.), não se dando, tão pouco, por aí, qualquer “abuso de direito”, (mostrando-se de consignar ainda que, como se apresenta óbvio, não se pode dar a um Parecer do Ministério Público o alcance que do mesmo o Interveniente pretende retirar, designadamente, quando o que está em causa é um simples “juízo opinativo” e “não vinculativo”, e, onde, a final, e em sede de conclusão se diz: “Pelo exposto e tendo em conta a complexidade do caso, submete-o a V. Ex.ª para efeitos de apreciação e orientação (…)”).
Outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.
*
Considerando porém tudo o que nos presentes autos foi processado, o teor dos pedidos pela A. e 1ª e 2° RR. deduzidos assim como da sentença do Tribunal Judicial de Base e Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, agora objecto da presente lide recursória, a natureza (e número) das questões suscitadas e apreciadas e nos efeitos das soluções por este Tribunal de Última Instância sobre as mesmas adoptadas, mostra-se-nos útil e adequado aqui fazer a “síntese conclusiva” que segue:
–– Por sentença do Tribunal Judicial de Base e apreciando-se os pedidos da A. e dos 1ª e 2° RR. decidiu-se:
“1. Quanto aos pedidos da Autora:
Julga-se a acção parcialmente procedente e em consequência:
1.1. Condena-se o 2º Réu a reconhecer a Autora como titular do direito de propriedade do prédio rústico constituído por Terreno, sito na Taipa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXX, a fls. 105, do livro BXX, omisso na matriz, com a área de 20,263 m2 e a entregá-lo à Autora livre e devoluto de pessoas e bens;
1.2. Condena-se o 2º Réu a pagar à Autora a indemnização de MOP$45.064.560,00 e ainda no montante de MOP$702.460,00 por cada mês ou fracção que se mantenha naquele prédio a contar de 10.11.2014 inclusive, tudo acrescido dos juros de mora à taxa legal a contar da presente data até efectivo e integral pagamento.
1.3. Absolve-se a 1ª Ré de todos os pedidos formulados pela Autora contra si;
2. Quanto aos pedidos reconvencionais:
2.1. Reconhece-se como pertencendo ao domínio público da RAEM a parcela ocupada com estradas com a área de 4,235 m2 do prédio rústico constituído por Terreno, sito na Taipa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXX, a fls. 105, do livro BXX, omisso na matriz;
2.2. Ordena-se que se proceda à correcção do cadastro no que concerne à localização, área e confrontações do prédio em causa de acordo com o decidido na alínea anterior e sua harmonização com o registo predial;
2.3. Mais se absolvem os Réus dos demais pedidos formulados pela Autora.
(…)”; (cfr., fls. 1973 a 2000 e pág. 12 deste aresto).
–– Por sua vez, com o Acórdão agora recorrido do Tribunal de Segunda Instância deliberou-se:
“- Negar provimento aos recursos interpostos pela 1ª Ré e pelo 2º Réu.
- Não tomar conhecimento dos recursos interpostos pela Interveniente principal ([BANCO(2)]) (quer no que toca à legitimidade de impugnação da escritura de habilitação notarial, quer no que se refere ao pedido de ampliação da matéria do recurso) nos termos do disposto nos artigos 590º e 628º do CPC.
- Julgar procedente o recurso interposto pela Autora, condenando a 1ª Ré a pagar 1ª Autora uma indemnização na quantia de HKD$30,275,000.00, equivalente a MOP$31,183,250.00, acrescida de juros, calculados à taxa legal (9,75%, nos termos da Ordem Executiva n.º 29/2006, em vigor desde 11/07/2006), desde a data da citação até efectivo e integral pagamento”, mantendo-se no demais “o já decidido na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância”; (cfr., fls. 2869 a 2975-v e pág. 13 deste aresto).
–– No seu recurso para este Tribunal de Última Instância pediu a 1ª R., R.A.E.M., que se decidisse no sentido de:
“(i) ser revogado o douto acórdão recorrido na parte em que condenou a Recorrente no pagamento de uma indemnização de HKD$30,275,000.00, equivalente a MOP$31,183,250.00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se a Recorrente desse pedido;
(ii) ser revogado o douto acórdão recorrido na parte em que não julgou integralmente procedente o pedido reconvencional deduzido pela Recorrente;
(iii) ser declarado que o prédio rústico sito na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX, a fls. 105, do livro BXX, com a área de 24.482 m2 pertence à Recorrente e ser a Autora condenada a reconhecê-lo;
(iv) ser declarada a nulidade e ordenado o cancelamento dos seguintes registos:
a) Inscrição n.º XXXXX (L XXXX, fls. 227), a favor de C ou C1;
b) Inscrição n.º XXXXX (L XXXX, fls. 228), a favor de D, casado com E ou E1 ou E2 e de F, casado com G;
c) Inscrição n.º XXXX (L XXXX, fls. 199) a favor de B;
d) Inscrição n.º XXXXXX a favor da Autora;
f) Inscrição n.º XXXXXX a favor do Interveniente principal”; (cfr., fls. 2994 a 3033-v e pág. 19 a 20 deste aresto).
–– E, no seu recurso para esta Instância peticionou também (e essencialmente) o 2° R., I.A.M., que fosse o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância revogado, decidindo-se no sentido de se:
“i) Declarar que o prédio rústico sito na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° XXXX, a fls. 105, do livro BXX, com a área de 24.482 m2 pertence à RAEM devendo a Autora ser condenada a reconhecê-lo;
ii) Declarar que a descrição predial XXXX está integrada na descrição predial XXXXX e, assim sendo, nos termos dos artigos 77.° e 78.°. do Código do Registo Predial de Macau, mandar que seja inutilizada a descrição n.° XXXX.
iii) Declarar a nulidade e ordenado o cancelamento dos seguintes registos:
a) Inscrição n.° XXXXX (L XXXX, fls. 227), a favor de C ou C1;
b) Inscrição n.° XXXXX (L XXXX, fls. 228), a favor de D, casado com E ou E1 ou E2 e de F, casado com G;
c) Inscrição n.° XXXX (L XXXX, fls. 199) a favor de B;
d) Inscrição n.° XXXXXX a favor da Autora;
e) Inscrição n.° XXXXXX a favor do Interveniente principal”; (cfr., fls. 3034 a 3187 e pág. 42 a 43 deste aresto).
–– Dest’arte, e em conformidade com tudo o que no presente veredicto se apreciou e se deixou exposto, (e na parte que agora interessa), imperativo é concluir pela procedência dos recursos pelos referidos 1ª e 2° RR. trazidos a este Tribunal de Última Instância, revogando-se o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância, e, desta forma, improcedentes ficando todas as pretensões pela A. apresentadas, julgam-se procedentes todos os pedidos (em reconvenção) pelo aludidos RR. deduzidos, declarando-se, a 1ª R., (R.A.E.M.), proprietária do “prédio rústico” identificado nos autos (com a condenação da A. ao seu reconhecimento), assim como a nulidade dos referidos registos, ordenando-se o seu respectivo e competente cancelamento e rectificação.
Decisão
5. Nos termos e fundamentos que se deixaram expendidos, em conferência, acordam conceder provimento aos recursos dos (1ª e 2°) RR., (R.A.E.M. e I.A.M.), revogando-se o Acórdão recorrido com a consequente total improcedência da acção pela A. proposta e procedência dos pedidos reconvencionais deduzidos nos seus exactos termos consignados.
Custas pela A. recorrida em ambas as Instâncias.
Registe e notifique.
Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 29 de Julho de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
1 Esta alínea foi inserida nesta ordem para manter uma sequência lógica dos factos. Corresponde à resposta dada ao item 18º da base instrutória.
2 Idem. Corresponde á Resposta dada ao item 19º da base instrutória.
3 Não está em causa o segmento “quando, independentemente da decisão do litígio, o provimento tenha interesse para o recorrente”.
4 ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, volume V, reimpressão de 1981, p. 463.
5 Acórdão da Relação do Porto de 7 de Março de 1985, Colectânea de Jurisprudência, 1989, 5.º, p. 266.
6 ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra, Almedina, volume III, p. 109. Em bom rigor, o ilustre processualista refere, não o prazo para contestar, mas o dia até ao qual pode ser oferecida a contestação, porque, ao tempo, era esse o regime da citação.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
Proc. 17/2021 Pág. 18
Proc. 17/2021 Pág. 19