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Processo nº 3/2024
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em sede dos Autos de Recurso Civil e Laboral n.° 331/2023 proferiu o Tribunal de Segunda Instância o seguinte veredicto datado de 26.10.2023:

“I) RELATÓRIO
A (doravante designada por “autora” ou “recorrente”) intentou a presente acção especial de divórcio litigioso contra B (doravante designado por “réu” ou “recorrido”).
Realizado o julgamento, foi a acção julgada improcedente.
Inconformada, recorreu a autora jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. A circunstância de a recorrente e o seu marido, aqui réu, terem casado e vivido juntos apenas num único país – as Filipinas – não autoriza que deva ou possa ser recusado à recorrente divorciar-se em Macau, perante os Tribunais da RAEM e utilizando como direito material o direito vigente na RAEM.
2.O n.º 1 do art. 53º do CC refere a “residência habitual comum” e não há dúvidas que só existiu entre a autora e o réu uma “residência habitual comum”: nas Filipinas, entre 2006 e 2008.
3. Sucede que o art. 50º está a ser aplicado por remissão do art. 53º, este sim respeitante ao divórcio, sendo que, como qualquer outra técnica remissiva, as normas mandadas aplicar (50º) pela norma remissora (53º) devem sempre e necessariamente aplicar-se cum granum salis, isto é, com as devidas adaptações e ressalvas.
4. A estrutura do próprio art. 50º contém “conexões móveis” quer quanto ao tempo quer quanto ao espaço, pelo que a referência a “residência habitual comum” constante do n.º 1 do 50º pode ser evolutiva ou adaptativa, isto no sentido de, aquando do julgamento, dever ser a mais actual ou a mais recente que deve ser considerada pelo julgador.
5. Assim, a referência a “residência habitual comum” constante do n.º 1 do 50º deve ler-se sempre como “residência habitual comum que os cônjuges ainda tenham” à data do julgamento, devendo ser desvalorizada ou desatendida uma outra eventual e anterior “residência habitual comum” que os cônjuges outrora tenham tido mas que entretanto já deixou de ocorrer.
6. Para efeitos da interpretação e aplicação do n.º 1 do 50º, a “residência habitual comum que os cônjuges ainda tenham” não existe in casu uma vez que quer a autora quer o réu não coabitam desde 2008 e desde 2012 aquela não mais quis reestabelecer a relação conjugal.
7. Se ao menos desde 2012 – senão mesmo desde 2008 – não existe qualquer “vida familiar” entre autora e réu, pareceria que o mesmo não teria in casu qualquer possibilidade de aplicação pois que a sua base fundante (vida familiar) simplesmente já não existe há 10 ou há 15 anos.
8. Todavia, o art. 50º regula e foi desenhado para as relações entre os cônjuges, isto é, em plena vigência sã e saudável da relação matrimonial, ao passo que o art. 53º diz respeito à fase patológica ou não-sadia dessa mesma relação matrimonial, situação esta na qual, tantas e tantas vezes, já não há de todo qualquer “relação familiar” naquele sentido e alcance concebido e pressuposta para a normalidade da vida conjugal.
9. Pelo que, por isso, é imperativo que ao “entrar” no domínio do 50º por força do comando remissivo do 53º se tenha de adequadamente contextualizar para que efeitos e em que pressupostos se tem de ir aplicar um instituto desenhado e pensado para a normal e sã vigência do casamento (50º) para efeitos da cessação ou pré-cessação patológica dessa mesma relação matrimonial (53º).
10. Sendo evidente que, in casu, estando ambas as partes separadas de facto no mínimo há pelo menos 10 anos, não existe obviamente qualquer “vida familiar” para efeitos de encaixe ou subsunção perfeita no âmbito do n.º 2 do 50º, a recorrente sustenta o entendimento de que, para efeitos da interpretação e aplicação do n.º 2 do 50º, o “lugar onde a vida familiar se ache mais estreitamente conexa” deve ser alvo de uma redução sistemática e teleológica, devendo ler-se – ao menos in casu – como sendo o “lugar onde a vida de um dos cônjuges se ache mais estreitamente conexa”.
11. Tal entendimento adequa-se, aliás, com a consideração de que o divórcio não tem de ser – nem quase nunca o é – um facto jurídico bilateral, pois que nem sempre o casamento se dissolve por via de divórcio por mútuo consentimento, mas, sim, muito frequentemente, corresponde ao exercício de um direito potestativo unilateral por parte de um único dos cônjuges.
12. Face ao que faz todo o sentido interpretar o n.º 2 do 50º com o alcance de que basta a consideração de qual o locus com o qual um só dos cônjuges se ache mais estreitamente conexionado, in casu, a aqui recorrente relativamente a Macau: que para aqui veio em 2008 e vive em união de facto há 10 anos com outrem que não o réu, com quem teve já 3 filhos, todos eles nascidos em Macau.
13. É, assim, Macau o lugar com o qual a vida da recorrente se mostra mais estreitamente conexionada e, atento o exposto, a recorrente crê, sustenta e pugna que, por força do n.º 2 do art. 50º do CC, o direito material a convocar in casu deveria ter sido o direito material vigente em Macau, no qual não só se prevê o instituto do divórcio como este se pode ancorar numa separação de facto mantida há mais de 2 anos e assistida da intenção firme de ao menos um dos cônjuges de não retomar a relação, o que notoriamente ocorre e se provou.
14. Ao não ter assim interpretado e aplicado os artigos 53º e 50º do CC, o Tribunal a quo procedeu à violação dessas mesmas normas jurídicas, o que se invoca nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 598º do CPC.
Termos em que se solicita a V. Ex.as seja julgado procedente o recurso, seja revogada a sentença recorrida e, destarte, seja determinada a admissibilidade e procedência da presente acção de divórcio.”
*
Ao recurso não respondeu o réu.
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Realizado o julgamento, foi dada como provada a seguinte factualidade:
- A Autora e o Réu casaram-se em 27 de Maio de 2006 nas Filipinas, aí vivendo após o casamento.
- Em 2008, a Autora veio para Macau à procura de emprego.
- Pelo menos a partir de 2012, a Autora decidiu não continuar a viver com o Réu.
- Pelo menos desde 2012 até hoje, a Autora trabalha e vive em Macau, enquanto o Réu não reside em Macau.
- Em 2012, a Autora encontrou um companheiro em Macau, passou a viver com ele como marido e mulher.
- Desta relação tem a Autora três filhos menores.
- Pelo menos a partir de 2012, a Autora deixou de ter a intenção de viver com o réu; (tradução nossa).
*
A questão que se coloca no recurso é saber qual é a lei aplicável em matéria de divórcio, ou seja, se ao divórcio é aplicável a lei da RAEM ou a lei filipina.
Entende o juiz de primeira instância que, no respeitante à questão do divórcio, é aplicável a lei filipina, enquanto a autora ora recorrente defende pela aplicação da lei da RAEM.
Vejamos.
Estatui o artigo 53.º do Código Civil de Macau que: “Ao divórcio é aplicável o disposto no artigo 50.º.”
Por seu turno, dispõe o artigo 50.º do mesmo Código o seguinte:
“1. Salvo o disposto no artigo seguinte: as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum.
2. Não tendo os cônjuges a mesma residência habitual, é aplicável a lei do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.”
Segundo as disposições legais supra citadas, havendo conflito de leis, o legislador manda aplicar, na determinação da lei aplicável ao divórcio, a lei da residência habitual comum dos cônjuges e, na falta de residência habitual comum, a lei do país/lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.
Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa1, “Este conceito indeterminado (país com o qual a vida familiar se acha mais estreitamente conexa) é preenchido atendendo às circunstâncias do caso concreto, podendo estabelecer-se essa conexão através, por exemplo, de uma anterior nacionalidade ou residência comum dos cônjuges, da residência actual de um dos cônjuges e dos filhos do casal ou ainda através da residência da família até ao abandono do lar conjugal por um dos cônjuges.”
Decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 27.11.2012, citado a título de direito comparado que: “O que tem de ser ponderado são as circunstâncias do caso concreto, face aos elementos disponíveis nos autos, uma vez que o tribunal não se pode abster de decidir, com fundamento na indeterminação da lei aplicável.”
No caso dos autos, provado está que a autora e o réu casaram-se nas Filipinas em 2006.
Dois anos depois, ou seja, em 2008, a autora veio a Macau para arranjar emprego.
A partir de 2012, a autora deixou de ter intenção de manter a relação conjugal com o réu, passando a viver em união de facto com o actual companheiro, e da referida relação (união de facto) nasceram três filhos.
Face à factualidade acima descrita, é bom de ver que desde 2008, ou se assim não se entender, a partir de 2012 o casal deixou de ter residência comum, pelo que na determinação da lei aplicável ao divórcio só se pode recorrer ao elemento de conexão subsidiário previsto no n.º 2 do artigo 50.º, aplicável por remissão do artigo 53.º, ambos do CC.
Isto é, não podendo determinar a lei aplicável de acordo com o n.º 1 do artigo 50.º, o n.º 2 do mesmo artigo estabelece que a lei aplicável é a lei do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa. E qual será essa lei?
Ora bem, o casal não tem filhos nem chegou a ter residência da família na RAEM, o único elemento que respeita à vida do casal é sinceramente a última residência comum de ambos os cônjuges, sita nas Filipinas.
Considerando que autora e réu celebraram o casamento em 2006 nas Filipinas, lá passando a viver juntos até 2008, e a partir de então a autora se deslocou sozinha a Macau para arranjar emprego, o elemento de conexão mais estreito respeitante à vida familiar é a última residência comum dos cônjuges, daí que a lei competente para regular o divórcio é a Lei Matrimonial das Filipinas.
Salvo o devido respeito, não nos parece que a posição defendida pela recorrente, pugnando pela aplicação da lei material da RAEM (por ser aquela com a qual só um dos cônjuges, neste caso a autora, se ache mais estreitamente conexionada), será a melhor solução, sob pena de violar a espectativa jurídica do réu, o qual nunca teve contacto e ligação com a lei material da RAEM mas que poderia vir a enfrentar a dissolução da relação matrimonial que nunca tinha esperado.
Posto isto, na medida em que a lei filipina não reconhece o divórcio, andou bem o juiz de primeira instância ao julgar improcedente o pedido de divórcio formulado pela autora.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, o Colectivo de Juízes deste TSI acorda em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pela autora A, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
(…)”; (cfr., fls. 107 a 111-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido, veio a A., (A), recorrer para este Tribunal de Última Instância, alegando para concluir nos termos seguintes:

“1. A circunstância de a recorrente e o seu marido, aqui réu, terem casado e vivido juntos apenas num único país - as Filipinas - não autoriza que deva ou possa ser recusado à recorrente divorciar-se em Macau, perante os Tribunais da RAEM e utilizando como direito material o direito vigente na RAEM.
2. O n.° 1 do art. 53.° do C.C. refere a "residência habitual comum" e não há dúvidas que só existiu entre a autora e o réu uma "residência habitual comum": nas Filipinas, entre 2006 e 2008.
3. Sucede que o art. 50.° está a ser aplicado por remissão do art. 53.°, este sim respeitante ao divórcio, sendo que, como qualquer outra técnica remissiva, as normas mandadas aplicar (50.°) pela norma remissora (53.°) devem sempre e necessariamente aplicar-se cum granum salis, isto é, com as devidas adaptações e ressalvas.
4. A estrutura do próprio art. 50.° contém "conexões móveis" quer quanto ao tempo quer quanto ao espaço, pelo que a referência a "residência habitual comum" constante do n.° 1 do 50.° pode ser evolutiva ou adaptativa, isto no sentido de, aquando do julgamento, dever ser a mais actual ou a mais recente que deve ser considerada pelo julgador.
5. Assim, a referência a "residência habitual comum" constante do n.° 1 do 50.° deve ler-se sempre como "residência habitual comum que os cônjuges ainda tenham" à data do julgamento, devendo ser desvalorizada ou desatendida uma outra eventual e anterior "residência habitual comum" que os cônjuges outrora tenham tido mas que entretanto já deixou de ocorrer.
6. Para efeitos da interpretação e aplicação do n.° 1 do 50.°, a "residência habitual comum que os cônjuges ainda tenham" não existe in casu uma vez que quer a autora quer o réu não coabitam desde 2008 e desde 2012 aquela não mais quis reestabelecer a relação conjugal.
7. Se ao menos desde 2012 - senão mesmo desde 2008 - não existe qualquer "vida familiar" entre autora e réu, pareceria que o mesmo não teria in casu qualquer possibilidade de aplicação pois que a sua base fundante (vida familiar) simplesmente já não existe há 10 ou há 15 anos.
8. Todavia, o art. 50.° regula e foi desenhado para as relações entre os cônjuges, isto é, em plena vigência sã e saudável da relação matrimonial, ao passo que o art. 53.° diz respeito à fase patológica ou não-sadia dessa mesma relação matrimonial, situação esta na qual, tantas e tantas vezes, já não há de todo qualquer "relação familiar" naquele sentido e alcance concebido e pressuposta para a normalidade da vida conjugal.
9. Pelo que, por isso, é imperativo que ao "entrar" no domínio do 50.° por força do comando remissivo do 53.° se tenha de adequadamente contextualizar para que efeitos e em que pressupostos se tem de ir aplicar um instituto desenhado e pensado para a normal e sã vigência do casamento (50.°) para efeitos da cessação ou pré-cessação patológica dessa mesma relação matrimonial (53.°).
10. Sendo evidente que, in casu, estando ambas as partes separadas de facto no mínimo há pelo menos 10 anos, não existe obviamente qualquer "vida familiar" para efeitos de encaixe ou subsunção perfeita no âmbito do n.° 2 do 50.°, a recorrente sustenta o entendimento de que, para efeitos da interpretação e aplicação do n.° 2 do 50.°, o "lugar onde a vida familiar se ache mais estreitamente conexa" deve ser alvo de uma redução sistemática e teleológica, devendo ler-se - ao menos in casu - como sendo o "lugar onde a vida de um dos cônjuges se ache mais estreitamente conexa".
11. Tal entendimento adequa-se, aliás, com a consideração de que o divórcio não tem de ser - nem quase nunca o é - um facto jurídico bilateral, pois que nem sempre o casamento se dissolve por via de divórcio por mútuo consentimento, mas, sim, muito frequentemente, corresponde ao exercício de um direito potestativo unilateral por parte de um único dos cônjuges.
12. Face ao que faz todo o sentido interpretar o n.° 2 do 50.° com o alcance de que basta a consideração de qual o locus com o qual um só dos cônjuges se ache mais estreitamente conexionado, in casu, a aqui recorrente relativamente a Macau: que para aqui veio em 2008 e vive em união de facto há 10 anos com outrem que não o réu, com quem teve já 3 filhos, todos eles nascidos em Macau.
13. É, assim, Macau o lugar com o qual a vida da recorrente se mostra mais estreitamente conexionada e, atento o exposto, a recorrente crê, sustenta e pugna que, por força do n.° 2 do art. 50.° do C.C., o direito material a convocar in casu deveria ter sido o direito material vigente em Macau, no qual não só se prevê o instituto do divórcio como este se pode ancorar numa separação de facto mantida há mais de 2 anos e assistida da intenção firme de ao menos um dos cônjuges de não retomar a relação, o que notoriamente ocorre e se provou.
14. Ao não ter assim interpretado e aplicado os artigos 53.° e 50.° do C.C., o T.S.I., secundando e coonestando o entendimento já adoptado pelo T.J.B., procedeu à violação dessas mesmas normas jurídicas, o que se invoca nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.° 2 do art. 598.° do C.P.C.
15. Consequentemente, deve o acórdão do T.S.I. ser revogado e, ergo, ser determinada pelo T.U.I. decisão que determine a admissibilidade e procedência da acção de divórcio sub judice”; (cfr., fls. 121 a 132).

*

Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre apreciar e decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

2. O presente recurso tem como objecto o atrás referido Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, datado de 26.10.2023, que nos termos que se deixou transcrito, confirmou a decisão de improcedência da “acção de divórcio” que a A., ora recorrente, tinha proposto no Tribunal Judicial de Base.

E, da reflexão que sobre as razões do decidido pudemos efectuar, somos de opinião que a razão está do lado da A., ora recorrente.

Passa-se a (tentar) expor este nosso ponto de vista.

Pois bem, como resulta da matéria de facto dada como provada e do certificado de casamento junto aos autos, (cfr., fls. 10), A. e R., ambos de nacionalidade filipina, casaram-se nas Filipinas, em 2006, aí vivendo após o casamento por um período de 2 anos, até que em 2008, a A. veio a Macau, tendo desde então aqui vivido, (como residente não permanente), e, deixando de ter intenção de voltar a viver com o R., em 2012, iniciou, (em Macau), uma nova relação, da qual tem 2 filhos menores; (cfr., petição inicial, a fls. 3, e respectivos assentos de nascimentos, a fls. 11 a 14).

Em face desta situação fáctica, e aplicando-se-lhe o estatuído no art. 50° do C.C.M., (por remissão do art. 53°), entenderam as Instâncias recorridas que em causa devia estar a “Lei do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa”, e que, era, assim, a das “Filipinas”, pois que aí viveram entre 2006, (data do casamento), até 2008, (altura em que a A. veio para Macau).

E, considerando que a Lei das Filipinas não prevê o “divórcio” como forma de “dissolução do casamento”, eis a razão da sentença de improcedência da acção no Tribunal Judicial de Base pela A. proposta e do presente recurso para este Tribunal de Última Instância do Acórdão que a confirmou.

Ora, não se nega, e confirma-se, desde já, que A. e R. tiveram “residência comum nas Filipinas” entre o ano de 2006 a 2008, e que, (se bem ajuizamos), o “The Family Code of the Philippines” de 06.07.1987, (Executive Order n.° 209), não autoriza, (ou prevê), a dissolução do casamento por “divórcio”; (cfr., art. 99° e segs. da dita Lei).

Porém, não obstante assim ser, outra se nos mostra que deva ser a solução para a pretensão da A., ora recorrente.

Como se colhe do que até aqui se deixou exposto, a “situação” – ou melhor, a “relação jurídica” – dos presentes autos tem “pontos de contacto” com mais de um ordenamento jurídico: a “acção de divórcio” é proposta perante os Tribunais de Macau, onde a A. (presentemente) reside, e invocando-se “factos” ocorridos nas Filipinas e em Macau, (“casamento”, e “separação de facto”), coloca-se a questão de saber qual a Lei àquela acção aplicável, (se a de Macau, ou a das Filipinas).

Especialmente para “situações” desta natureza, existem no C.C.M. um conjunto de preceitos identificados como “normas de conflitos” – art°s 24° a 62° – e que, (como se sabe), integram o ramo de Direito chamado de “Direito Internacional Privado”.

Com efeito, ainda que a “distância entre os povos” – e, especialmente, agora, com os avanços tecnológicos – esteja cada vez mais “curta”, a respectiva “produção legislativa”, (considerando, essencialmente, factores históricos e culturais), nem sempre é (tão) harmónica, existindo, naturalmente, particularidades e diferenças entre os ordenamentos jurídicos adoptados.

Em face de tais “diferenças”, surgem, muitas vezes, “conflitos”, (ou, somente, “dúvidas”), na procura da “solução jurídica” a adoptar em “situações” sobre a qual existe a possibilidade de fazer intervir dispositivos legais de vários ordenamentos jurídicos.

Esta, a (especial) razão de ser do “Direito Internacional Privado”, pois que este ramo de direito existe da necessidade de se resolver situações, (litígios), que são provocadas pela internacionalização da vida e actividade humana.

Porém, importa ter presente que o D.I.P. não regula, directamente, as relações privadas internacionais, limitando-se a indicar as normas jurídicas (e o respectivo ordenamento jurídico) às mesmas aplicáveis.

In casu, a “relação (familiar)” que os presentes autos nos dão conta, envolve, como se viu, a necessidade de se saber se, na apreciação do pela A. pretendido “divórcio”, devem os Tribunais de Macau aplicar a Lei das Filipinas, como entenderam o Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância.

E, assim, (dúvidas não havendo que era o Tribunal Judicial de Base o competente em razão da “matéria” para tal pronúncia; cfr., art. 16°, alínea i) do C.P.C.M.), vejamos então o que nos dizem as aludidas “normas de conflitos”.

Pois bem, na parte referente à “Lei reguladora das relações da família”, e com relevo para a questão a solucionar, importa atentar que preceitua o art. 53° do C.C.M. que “Ao divórcio é aplicável o disposto no artigo 50.º”, estatuindo, este art. 50°, que:

“1. Salvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum.
2. Não tendo os cônjuges a mesma residência habitual, é aplicável a lei do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa”.

Ora, como se viu, dando aplicação ao disposto no transcrito art. 50°, n.° 2, chegou-se à conclusão que aplicável era a Lei das Filipinas, e, por força desta, a solução de improcedência do pedido de divórcio pela A., ora recorrente deduzido.

Contudo, e como se deixou adiantado, esta não nos parece a solução (mais) adequada à situação dos presentes autos.

Não nos cabendo aqui tecer aqui qualquer consideração ou comentário sobre a (maior ou menor) bondade das soluções prescritas relativamente à matéria do “divórcio” na Lei das Filipinas – que, como é óbvio, constitui uma opção legislativa que nos merece todo o respeito – afigura-se-nos de notar, porém, que tanto quanto se julga saber, aquela é hoje, e com excepção do Estado do Vaticano, o único País a nível mundial que (ainda) não reconhece o “divórcio” como forma de “dissolução do casamento”, (civil, sendo de realçar também o facto de o Estado do Vaticano ter cerca de 800 habitantes, tendo as Filipinas uma população de cerca de 91 milhões).

E não nos parecendo (também) que a ninguém se deve poder exigir que mantenha, contra a sua vontade, uma “relação matrimonial” que apenas “existe no papel”, apresenta-se-nos que necessário é fazer-se uma outra leitura ao estatuído no comando legal do art. 50° do C.C.M..

Pois bem, como se referiu, as “normas de conflitos” definem a legislação aplicável a situações conectadas a mais de um sistema legal, tendo assim como objectivo sanar “conflitos de aplicação da Lei no espaço”.

Para tal, surgem os chamados “elementos de conexão”.

A “territorialidade”, (v.g.), é o elemento que se relaciona com as “coisas”, (“lex rei sitae”), também considerada “elemento de conexão real”, aplicável em temas concernentes à “propriedade”, (“bens móveis” e “imóveis”).

Também a “nacionalidade”, (juridicamente entendida como o “vínculo que une um indivíduo a um Estado”), ou o “domicílio”, assim como o “local da constituição da obrigação” e o “local da execução do negócio jurídico”, constituem, como é sabido, “elementos de conexão”.

Para o caso dos autos, (por remissão do art. 53°, e como já se viu), estatui o art. 50 do C.C.M. que: “as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum”, (n.° 1), acrescentando-se no n.° 2 que, “Não tendo os cônjuges a mesma residência habitual, é aplicável a lei do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa”.

In casu, não tendo A. e R. a “mesma residência habitual”, (pois que como se viu), a A. veio e reside em Macau desde 2008, (tendo o R., tanto quanto se julga saber pela sua citação, permanecido nas Filipinas), importa identificar o referido “lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa”.

Fazendo-o, veio-se a considerar como tal o “lugar” em que a A. e R. viveram (juntos) após o seu casamento, nas Filipinas, no período de 2006 a 2008.

Cremos – admite-se – que a razão de tal solução, (ou escolha), está na preferência que se quis dar à Lei do – único – “lugar” em que o casal partilhou efectivamente uma “residência habitual”.

E, em nossa opinião, aqui está o equívoco.

Não se nega que, (no caso dos autos), tal “situação” (ainda) teve uma duração de “2 anos”.

Porém, e se este período de “2 anos” fosse de apenas “1 mês”, (ou de “7 dias”, ou até menos…), devia-se ainda assim considerar ser o mesmo o “lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa”?

Especialmente quando em causa já está uma “inexistência de vida familiar”, com uma “separação” entre A. e R. que teve início em 2008, e que já dura cerca de 16 anos, devendo-se, mesmo assim, considerar aquela “residência habitual” que tiveram nas Filipinas – por um período de 2 anos, e há 16 anos – como o “elemento de conexão” relevante para se decidir da sorte do “pedido de divórcio” nos presentes autos em causa?

Ora, sem prejuízo do muito respeito por melhor entendimento, outra se nos apresenta que deva ser a solução.

Na verdade, não nos parece que o legislador tenha pretendido apagar, (e dar como absolutamente irrelevante), tudo o que, (entretanto, e recentemente), aconteceu, continuando a considerar como critério válido e definidor da Lei aplicável para um caso como o dos autos, uma “circunstância” que, na situação concreta em questão, tão pouca, (ou “quase nenhuma”), “importância” tenha tido para os verdadeiros interesses das pessoas que compõem a “Família” para a qual a norma foi elaborada, (sendo até o caso de se considerar constituir uma circunstância meramente “acidental”).

Com efeito, o que são os referidos “dois anos” de residência comum nas Filipinas, ocorridos há 16 anos, em comparação com estes mesmos “16 anos” em que a A. e o R. vivem em efectiva separação?

Referindo-se ao preceito legal em questão, e numa tentativa de solução para idêntica situação, consideram João Gil de Oliveira e José Cândido de Pinho que:

“(…) A solução do n° 2 parte de um critério aberto que caberá ao intérprete integrar a partir de elementos sobre os quais a vida familiar se revela, como pode ser o local onde se encontram os filhos, onde mais tempo a família se junta, onde se erigem os projectos comuns, onde se estabelecem os interesses comuns, etc.
As conexões referidas neste artigo não estão imobilizada no tempo e, portanto, a sua concretização pode variar a cada momento, havendo que identificar o momento relevante, como assinala Florbela Pires, Conflitos de Leis, Coimbra Editora, 2009, 68. (…)
(…) Se os cônjuges não residem habitualmente no mesmo Estado, mas todos os filhos vivem com um deles, não será difícil saber qual o país mais estreitamente associado à vida da família. Se, porém, os filhos estão repartidos entre os pais, se o casal não tem filhos, ou se os filhos vivem num país diferente daquele onde os progenitores têm residência, a aplicação do novo critério pode encontrar sérios embaraços e criará sobretudo as maiores incertezas entre os interessados. (…)
A conexão decisiva é aquela que se verificar à data do julgamento, pois é esse o último momento em que e possível aferir do facto determinante, o que resulta de que para a dissolução ter de reger a lei actual”; (in “C.C.M. Anotado e Comentado Jurisprudência”, Vol. I, C.F.J.J., 2018, pág. 439 e segs.).

De facto, (e como igualmente nota Florbela Pires in, “Conflitos de Leis”, Coimbra, 2009, pág. 68), as “conexões” em questão não estão “imobilizadas no tempo”, e, portanto, a sua concretização pode variar a cada momento, havendo que identificar o momento relevante, sendo pois de salientar também que, a solução do preceituado no n.° 2 em apreciação, parte de um “critério aberto” que caberá ao intérprete integrar a partir dos elementos concretos e relevantes da vida familiar em questão.

E, nesta conformidade, ponderando no que em causa está, somos pois levados a subscrever as considerações que se deixaram expostas, havendo desta forma que se identificar a “conexão” que, “neste momento”, existe, não sendo assim de se atender à referida “residência comum de 2 anos” que há cerca de 16 anos que já deixou de existir.

Com efeito, se os 2 filhos menores que a A., agora tem, (ou, um deles apenas), fosse fruto do seu casamento com o R., cremos que sem esforço se poderia concluir ser a “Lei de Macau” a aplicável, (por ser a Lei do local com o qual a “vida familiar se encontrava mais estreitamente conexa”).

E, haverá motivo válido – e de tal maneira relevante – para não se adoptar esta mesma solução pelo (simples) facto de os aludidos filhos não o serem do R.?

Será razoável negar-se à A. o “direito ao (seu pretendido) divórcio” (com o R.), e a poder escolher e manter, (livremente), a “relação” que tem com o seu companheiro, pai dos seus 2 filhos, podendo assim “regularizar” – legalizar – esta sua (nova) “vida familiar”, devendo-se, antes, “amarrá-la ao passado” e a uma “situação” que, (no mundo e vida real), já não existe, com base na aplicação da Lei do lugar onde há cerca de 16 anos atrás teve uma residência habitual com o R. que durou 2 anos?

Terá sido esta a intenção legislativa na redacção do art. 50°, n.° 2 do C.C.M., não se pretendendo dar qualquer – absolutamente nenhuma – relevância à “família” que a A., agora, neste momento tem, com os seus 2 filhos e o seu companheiro, pai destes, impedindo-a de poder recomeçar uma “vida nova” e de constituir uma “nova família”?

Em nossa modesta opinião, não cremos.

Não se pode olvidar que o “Direito da Família” tem como escopo regular as “relações jurídicas familiares” que, como se sabe, tem como fonte: “o casamento, o parentesco, a afinidade e a adopção”, (cfr., art. 146° do C.C.M.), constituindo um conjunto de normas profundamente inspirado pelo princípio do “respeito da dignidade da pessoa humana”, (da “igualdade dos cônjuges”, e “dos – de todos os – filhos”), cabendo assim consignar que o mesmo não pode deixar de regular tais “relações familiares” de acordo com a referida “dignidade”, respeitando-a, e protegendo-a, e não a sujeitando a “soluções” que, (em nossa modesta opinião), se apresentem como “pouco justas” e “menos razoáveis”, (valendo aqui a pena recordar as palavras de Luís Miguel Urbano, que na sua “Breve nota justificativa do C.C.M.”, considera que “Parece-me, aliás, ser suficientemente pacífico o entendimento de que é no âmbito das matérias de cariz institucional – entre as quais se incluem, desde logo, as relações familiares – que os Códigos mais se têm que assumir como um «produto atento» às especificidades das sociedades a que se destinam, capazes de assumirem os inputs da realidade e de se deixarem sensibilizar pelo pulsar da evolução das mentalidades, pelas transformações sociais e pelas particularidades do contexto da aplicação da lei. E tal, pelo simples facto de ser precisamente nestas áreas que as sociedades mais evidenciam as suas características próprias e individualizadoras, e em que a erosão provocada pela passagem do tempo mais deixa as suas marcas, por força de um particular dinamismo das transformações operadas nas últimas décadas nas sociedades modernas”; in “Código Civil”, I.O.M., 1999, pág. XXXIII).

Nesta conformidade, adequado se mostra de considerar também que tal “preocupação” deve obviamente existir igualmente nas opções legislativas que se vieram a assumir em sede da matéria das “normas de conflitos reguladoras das relações familiares”, devendo-se, então, ter como adequada uma “solução” que, num caso como o dos autos, proteja a “(única) família” que, no presente momento (realmente) existe, (em Macau), razoável não se afigurando pois uma outra que sacrifique, (ou desfavoreça), esta, em suposto “benefício” de uma “situação” tão só meramente formal, que nem a A. nem o R. estão interessados em manter, (pois que, este, para além de nada ter feito por muitos anos, nem tão pouco contestou a acção de “divórcio” pela A. proposta após a sua citação).

Como já salientava Ferrer Correia – in “A Revisão do Código Civil e o Direito Internacional Privado”, B.M.J., 283°-17, e in “Estudos Vários de Direito”, Coimbra, 1982, pág. 279 e segs. – “O direito internacional privado propõe-se como escopo precípuo promover e garantir a estabilidade e continuidade das situações interindividuais plurilocalizadas (i.e., conectadas com duas ou mais legislações), assegurar a livre circulação por sobre as fronteiras dos Estados dos direitos delas decorrentes. As suas normas - como o proclamava David Cavers em 1933, num breve estudo que hoje é um clássico na literatura sobre os conflitos de leis - operam a escolha do direito aplicável por assim dizer de olhos vendados, fazendo abstracção completa do conteúdo da lei a que submetem as situações multinacionais. Não é seu intento confiar o caso à melhor lei, a mais adequada à sua especificidade, senão à que mais próxima estiver da situação concreta”, notando, porém, de seguida, que quanto à questão de saber como podem as “normas de direito internacional privado” ser valoradas segundo a perspectiva da Constituição, designadamente a possibilidade de elas infringirem os “direitos fundamentais dos cidadãos”, se dever afastar, desde logo, em face da concepção actual do direito internacional privado, aqueloutra, “clássica”, de harmonia com a qual, tal direito era um direito “exclusivamente formal”, “indiferente ao conteúdo das normas substanciais concorrentes e aos critérios e valores da justiça material”.

Também Moura Ramos perfilha da ideia segundo a qual seria de afastar a “doutrina clássica”, da indiferença da constituição perante o direito internacional privado, e, consequentemente, da não legitimidade do juiz do foro negar, em toda e qualquer circunstância, a aplicação do direito estrangeiro com base na contradição desse direito com a sua lei básica, consagradora de direitos fundamentais “das gentes”; (in “Direito Internacional Privado e Constituição”, 3ª Reimpressão, Coimbra, 1994, pág. 171 e segs.).

Ora, o “Direito da Família”, sempre foi um domínio privilegiado das políticas públicas, nenhuma dúvida existindo quanto à importância da “família” como veículo e reflexo dos “valores sócio-culturais de uma sociedade”, o que constitui, desde logo, motivo (mais que suficiente) para justificar a intervenção do legislador neste domínio do direito, estabelecendo regras de “ordem pública”; (cfr., v.g., o art. 38° da Lei Básica da R.A.E.M., onde se prescreve que “A liberdade de contrair casamento e o direito de constituir família e de livre procriação dos residentes de Macau são legalmente protegidos. Os legítimos direitos e interesses das mulheres são protegidos pela Região Administrativa Especial de Macau. Os menores, os idosos e os deficientes gozam do amparo e protecção da Região Administrativa Especial de Macau”, podendo-se também ver o art. 3° da Lei n.° 6/94/M – “Lei de Bases da Política Familiar” – onde se preceitua que “A Administração reconhece a função da família enquanto elemento fundamental da sociedade, transmissora de valores e veículo de estreitamento das relações de solidariedade entre as gerações”).

Por sua vez, e como é sabido, o “casamento”, como “fonte das relações jurídicas familiares”, é um vínculo – “contrato” – que “une duas pessoas que pretendem constituir família”; (cfr., art. 1462° do C.C.M., e, sobre o tema, vd. Xia Yinlan in, “Estudo sobre o livro «Direito da Família» do Novo C.C.M.”, Revista “Perspectivas do Direito”, n.° 8, 2001).

Ora, tempos houveram em que se entendia que a “família”, formada pelo “casamento”, (ainda que civil), era “indissolúvel”.

Aos casais que optavam por não continuar com a união conjugal com origem no “casamento”, restava a “separação” – judicial, “de corpos e bens” – que extinguia a dita “sociedade conjugal”, mas não extinguia o “vínculo matrimonial”.

Havia assim uma diferença: o “fim do casamento”, (com a referida “separação”), sendo coisa diversa a sua “dissolução”.

E, desta forma, as pessoas, ainda que “separadas”, não podiam voltar a se casar.

Ao casal, era desta forma imposta a “obrigação” (perpétua) de se manterem unidos pelo casamento “até que a morte os separe”.

Porém, (com o muito devido respeito por eventual melhor entendimento), em nossa modesta opinião, (e como há mais de um século já tem sido legalmente reconhecido com a regulamentação do “divórcio”), esta “obrigação”, retira ao casal a sua “dignidade humana”, restringindo, injustificadamente, a sua “liberdade de agir de acordo com a sua vontade”.

Se há “liberdade para contrair casamento”, natural se apresenta que deva também haver – igual – “liberdade para se por fim à união”, a ninguém se devendo, (ou podendo), exigir que se mantenha casado ad eternum contra a sua vontade, (especialmente, agora que tanto se fala em “violência e abuso doméstico e familiar”).

E, aqui, e como igualmente salienta o Prof. Manuel Trigo, citando Luís Miguel Urbano: “Não se trata, ao contrário do que uma leitura imediatista possa querer fazer parecer, de um favor ou promoção do divórcio por parte do novo Código ou, tão-pouco, de uma qualquer menor consideração do relevo da instituição do casamento, mas antes da procura de reequacionar e reequilibrar os interesses de sinal contrário que aqui se digladiam. Por um lado, os interesses da família e da estabilidade da mesma – que não meramente formal ou jurídica, mas de promoção do casamento como célula fundamental da nossa sociedade baseada na plena comunhão de vida entre duas pessoas – e, por outro lado, a necessidade de defesa da liberdade e estabilização de situações em que a ruptura prolongada por determinado período não faça mais antever meios fáceis de reconciliação”; (in “Algumas questões sobre a separação de facto como causa de divórcio no regime em vigor em Macau”, B.F.D.U.M., Ano XXVI, n.° 51, 2022, pág. 133 e segs., com abundante doutrina sobre o tema).

Com efeito, como também nota Xia Yinlan, “O princípio da liberdade de casamento é na sociedade actual uma regra geral na elaboração de leis no âmbito do direito da família em todo o mundo. Este princípio abrange a liberdade de celebração do casamento e de dissolução do casamento. A liberdade de casamento é um dos direitos civis assegurados expressamente na Constituição chinesa. O artigo 38.º da Lei Básica também consagra como direito fundamental dos cidadãos de Macau a liberdade de casamento. Neste artigo está prevista a protecção legal da liberdade de casamento dos cidadãos de Macau. Por outro lado, a Lei de bases da família de Macau determina, logo no início, no n.º 1 do artigo 1.º, o seguinte: «Todos têm direito a constituir família e a contrair casamento em condições de plena igualdade». De acordo com o princípio da liberdade de casamento, o direito da família determina que a expressão da vontade de ambos os nubentes na celebração do casamento é um requisito necessário e define expressamente as condições e o processo de divórcio, além disso consagra como uma das formas legais de divórcio o divórcio por mútuo consentimento”; (in ob. cit.).

Nesta conformidade, ponderando no até aqui exposto, (e, especialmente que, “neste momento” nos é colocada a questão), apresenta-se-nos pois que mais adequado será considerar o preceituado no n.° 2 do art. 50° do C.C.M. como referindo-se ao “local” onde, a ora A., tem, presentemente, uma efectiva “vida familiar” (que mereça tal qualificação), sob pena de, optando-se pela Lei do local onde há cerca de 16 anos partilhou 2 anos de vida em comum com o seu cônjuge, se lhe estar a retirar toda a “liberdade de agir”, correndo-se, o – sério – risco, de se incorrer em violação do “princípio de ordem pública”, (pois que no art. 16°, n.° 1 da “Declaração Universal dos Direitos do Homem” se prescreve que “Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução”, o mesmo sucedendo com o art. 23° do “Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos” referido no art. 40° da Lei Básica da R.A.E.M., onde no seu n.° 1 estatui que “A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção da sociedade e do Estado”, prescrevendo, depois, no seu n.° 4 que “Os Estados Partes no presente Pacto tomarão as medidas necessárias para assegurar a igualdade dos direitos e das responsabilidades dos esposos em relação ao casamento, durante a constância do matrimónio e aquando da sua dissolução. Em caso de dissolução, serão tomadas disposições a fim de assegurar aos filhos a protecção necessária”).

Com efeito, e como – bem – observa Baptista Machado, (in “Lições de direito internacional privado: apontamentos das aulas teóricas do ano lectivo de 1971-1972 na Faculdade de Direito de Coimbra”, 3ª ed., Coimbra, 2002, pág. 256), “o juiz precisa de ter à sua disposição um meio que lhe permita precludir a aplicação de uma norma de direito estrangeiro, quando dessa aplicação resulte uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais que informam a sua ordem jurídica. Esse meio ou expediente é a excepção de ordem pública internacional ou reserva da ordem pública”, valendo a pena recordar também aqui a observação de Rui Moura Ramos no sentido de que “a actuação do sistema de normas de direito internacional privado implica como que um salto para o desconhecido (Sprung ins Dunkle) pelo que a persistência na actuação dos valores e regras do foro, com desconsideração do carácter internacional da relação, poria em causa o objectivo essencial do sistema de direito internacional privado que se traduz precisamente no reconhecimento da maior adequação da aplicação, em determinadas circunstâncias, das leis estrangeiras, expressão de diversas (e por vezes opostas) concepções das que inspiram a ordem jurídica do foro. Simplesmente, o voto de confiança dado por este sistema às ordens jurídicas estrangeiras não pode ser absoluto, tendo de comportar a possibilidade de recusar a aplicação ou o reconhecimento daqueles comandos jurídicos que sejam expressão de concepções que se revelem intoleráveis face à ideia de justiça do Estado do foro”; (in anotação ao Ac. do S.T.J. de 14.03.2017, in R.L.J., Ano 146°, n.° 4003, pág. 290 e segs.).

Ora, “obrigar” uma pessoa a permanecer casada contra a sua vontade para o resto da vida, constitui, em nossa opinião, uma clara e muito injusta afronta ao respeito devido à “dignidade humana”, à sua “liberdade”, assim como o seu direito (fundamental) à “afectividade”, “felicidade” e “bem estar”.

Dest’arte – e não sendo a “ordem pública” uma medida objectiva para aferir a compatibilidade concreta da norma estrangeira com os princípios fundamentais do direito nacional, e sendo, antes, a decisão de não aplicar uma lei estrangeira um “juízo” que joga (essencialmente) com avaliações acerca do sentimento jurídico dominante na colectividade e das reacções desse sentimento à constituição ou reconhecimento do efeito jurídico que se tem em vista – cremos pois que a decisão recorrida do Tribunal de Segunda Instância não se pode manter, havendo que se decidir pela sua revogação para que os autos voltem ao Tribunal Judicial de Base, onde, outro motivo não obstando, se deve proceder à apreciação e decisão do pedido pela A., ora recorrente, aí deduzido, em conformidade com o que provado está e com o que no presente aresto se consignou.

Decisão

3. Em face de tudo o que se deixou exposto, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido, devendo os presentes autos voltar ao Tribunal Judicial de Base nos exactos termos referidos.

Custas, em ambas as Instâncias, pelo R. recorrido.

Registe e notifique.

Macau, aos 22 de Maio de 2024


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 O Regime Jurídico do Divórcio, 1991, pág. 15.
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