Processo nº 31/2023
(Autos de recurso jurisdicional)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. “A”, (“甲”), instaurou, no Tribunal Administrativo, “acção sobre contrato administrativo” contra “FUNDO DE DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL E DE COMERCIALIZAÇÃO”, (“工商業發展基金”), e, a REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU, pedindo que fossem os RR. condenados a pagar-lhe a quantia de MOP$931.853,41 acrescida dos juros à taxa legal a contar de 19.01.2018; (cfr., fls. 2 a 12 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, proferiu o Mmo Juiz do Tribunal Administrativo sentença julgando a acção (parcialmente) procedente, “Condenando o 1º Réu Fundo de Desenvolvimento Industrial e de Comercialização a pagar à Autora a quantia de MOP931.853,41 acrescida dos juros à taxa legal a contar de 30 de Março de 2018 até efectivo e integral pagamento”, e “Absolvendo a 2ª Ré Região Administrativa Especial de Macau”; (cfr., fls. 558 a 568).
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Do assim decidido, recorreu o (1°) R. “FUNDO DE DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL E DE COMERCIALIZAÇÃO”, e, por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 10.11.2022, (Proc. n.° 369/2022), concedeu-se provimento ao recurso, absolvendo-se o dito recorrente do pedido; (cfr., fls. 759 a 769).
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Inconformado, traz agora o A., “A”, o presente recurso jurisdicional, para este Tribunal de Última Instância, alegando para, a final, produzir as seguintes conclusões:
“1.ª – O Ac. recorrido enferma de erro de julgamento por erro de interpretação e aplicação da cláusula 4.ª/2 do Acordo de Garantia de Créditos a Pequenas e Médias Empresas e da norma do artigo 299.°/1, primeira parte, do CC;
2.ª – As cláusulas 3.ª e 4.ª do referido Acordo referem-se a realidades distintas: uma a constituição do direito de exigibilidade do cumprimento da garantia; outra, diferentemente, as condições (temporais) do exercício da referida faculdade;
3.ª – A cláusula 3.° prevê os requisitos de exigibilidade do cumprimento da obrigação do garante; a cláusula 4.ª, as condições do exercício de tal direito;
4.ª – Contrariamente ao entendimento do Tribunal Recorrido, tal cláusula não estabelece qualquer dever de comunicação ou de informação da data em que a empresa mutuária cessou de reembolsar o crédito, sob pena de se extinguir a responsabilidade de garantia, mas antes, as condições (o prazo) do exercício do referido direito de exigibilidade do cumprimento da obrigação, sob pena de já não o poderá fazer relativamente à garante, por caducidade de tal direito;
5.ª – Nos termos das cláusulas 4.ª e 8.ª/2, o requerimento, exigindo o cumprimento da obrigação por parte da garante, apenas poderá ser apresentado no prazo de 1 (um) ano a contar do momento em que se verifiquem os factos que alicerçam o direito à referida exigibilidade;
6.ª – O termo inicial do prazo aqui em causa deve ter como ponto de partida a existência objectiva das condições necessárias e suficientes para que o direito possa ser exercitado;
7.ª – Com interpretação ficam plenamente salvaguardadas as razões objectivas de segurança jurídica, bem como a da necessidade de definição, dentro de um prazo razoável, das situações jurídicas;
8.ª – Tal interpretação não deixa de pressupor bem diferenciadas as situações subjacentes às cláusulas 3.ª e 4.ª;
9.ª – Da cláusula 4.ª resulta claro que o prazo para o exercício de tal direito é de 1 ano e que o mesmo se conta a partir da data da cessação de pagamento por parte da mutuária;
10.ª – A interpretação que se defende não vai para além do que consta do Acordo, não criando cláusulas e excepções que não haviam sido previstas, o que se procura é chegar ao resultado interpretativo adequado, considerando os vários factores hermenêuticos a que corre a ciência jurídica, no domínio aqui em causa, sendo certo que sendo que, contrariamente ao que se pressupõe no douto Ac. recorrido, o resultado interpretativo não tem que coincidir com o sentido literal;
11.ª – Releva na interpretação a fazer de tal cláusula o facto de a mesma integrar um contrato administrativo, qualificação resultante da consideração não só da natureza de um dos contraentes, a pessoa colectiva pública RAEM, mas também a natureza pública dos interesses através dele manifestamente prosseguidos, os quais evidenciam uma clara ambiência de direito público;
12.ª – Nos termos da sua cláusula 14.°/5, aplicam-se às relações aí em causa a Lei n.° 5/2003, o Regulamento Administrativo n.° 19/2003, o Regulamento Administrativo n.° 19/2009 e outros regulamentos administrativos e diplomas vigentes em na RAEM;
13.ª – A natureza administrativa do contrato aqui em causa advém-lhe do facto de o mesmo se encontrar submetido a um regime substantivo de direito público, ter sido celebrado com a intervenção do ente público RAEM no exercício de funções materialmente administrativas, visando directamente a realização de um interesse público legalmente definido, que cabe àquele ente satisfazer, o qual se assume na posição de contraente público, dotado de prerrogativas ou podere de autoridade, nomeadamente, os de resolução da garantia de créditos prestada em determinadas situações e os de fiscalização da actividade da actividade das empresas beneficiárias de tal garantia, de resto previstos nos diplomas supra referidos;
14.ª – É apressada e levaria a resultados indesejáveis a aplicação, sem mais, das normas jurídicas relativas à interpretação e a integração do CC aos contratos administrativos, por não atender à necessária funcionalização da actividade administrativa à prossecução do interesse público, à procedimentalização da actividade contratual administrativa, etc., contrastam com a autodeterminação de fins que preside ao exercício da autonomia privada;
15.ª – A interpretação do contrato administrativo deve ser orientada por uma finalidade predominantemente objectiva, devendo entender-se que o sentido das disposições contratuais é, não o que as partes quiseram dar às suas declarações negociais, mas aquele que lhe seria atribuído por uma pessoa normal;
16.ª – Os meios de interpretação do contrato administrativo são os argumentos gerais de interpretação jurídica, nomeadamente, os argumentos linguísticos, genéticos, sistemáticos e, podemos acrescentar, teleológicos;
17.ª – A Recorrida não alegou e muito menos provou que a RAEM tenha alguma vez esclarecido a ora Recorrente, na fase de negociações e da celebração do contrato dos autos, qual fosse o real e concreto sentido que pretendia atribuir a tal cláusula contratual, devendo prevalecer o sentido que a tal cláusula seria atribuído pelo homem médio, normal;
18.ª – De acordo com as directrizes supra definidas, o texto da cláusula 4.a, concretamente a formulação linguística "a data em que a empresa mutuária cessa de reembolsar", não é susceptível de ser interpretada no sentido de considerar como tal qualquer não pagamento do empréstimo, como parece entender o Tribunal recorrido;
19.ª – O incumprimento tanto pode traduzir-se na simples mora do devedor, quando a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido, como num incumprimento definitivo, que se verifica na hipótese de o credor perder o interesse na prestação, em consequência da mora, ou se a prestação não for realizada dentro do prazo que razoavelmente foi fixado por aquele;
20.ª – O argumento literal, só por si, não impõe nenhum dos sentidos, antes se concilia perfeitamente com o sentido de que tal momento seja o momento em que a mutuária entrou em incumprimento definitivo ou com o momento em que se verificam a situações tipificada nas duas primeiras alíneas da cláusula 3/3;
21.ª – Em virtude da natureza subsidiária de tal garantia, não faz sentido que a Recorrente tivesse de accionar a referida garantia perante um mero retardamento no pagamento das prestações;
22.ª – Mais adequado aos interesses económicos e financeiros da RAEM é que seja a entidade financeira mutuante, e não a RAEM, a proceder activamente no sentido do reembolso junto da mutuária, concedendo a esta possibilidade de reparar eventuais atrasos, incentivando-a a pagar voluntariamente as prestações de reembolso em atraso;
23.ª – A mesma conclusão é suportada pelo argumento teleológico;
24.ª – A lei supra referida teve por finalidade imediata facilitar o acesso das pequenas e médias empresas ao crédito bancário, com vista ao desenvolvimento das mesmas, "criando junto I do sector bancário a confiança necessária ao desbloqueamento dos capitais necessários ao desenvolvimento das empresas";
25.ª – Consagrando a cláusula referida uma extinção da responsabilidade da Região, que se verifica pelo transcurso do prazo de 1 ano, a contar do momento em que a mutuária "cessou de pagar as amortizações" sem que a instituição bancária credora tenha apresentado o pedido de efectivação de tal garantia, sendo tal cláusula restritiva dos direitos da referida instituição bancária, a mesma não pode deixar de interpretada no sentido mais favorável à instituição bancária credora, que é o sentido correspondente ao objectivo previsto lei, expressamente confessado, e que é o de ver tal momento verificado no momento do incumprimento definitivo da obrigação ou no memento em que se verificam as situações referidas na duas primeiras alíneas da cláusula 3.ª/3;
26.ª – Não seria congruente com objectivo um entendimento de tal cláusula que traduzisse a ideia de "dar com uma mão e tirar com a outra";
27.ª – O entendimento que aqui se defende é o único capaz de conferir segurança e certeza à instituição bancária credora, que não é dado seguramente pelo entendimento que considere como momento relevante para efeitos de início do referido prazo o simples retardamento do pagamento do empréstimo;
28.ª – O entendimento do douto Tribunal recorrido pressupõe que tal momento apenas seja conhecido de forma retrospectiva, isto é, que decorra algum tempo depois de uma prestação do devedor para se saber se ele cessou ou não definitivamente o pagamento das amortizações;
29.ª – No caso dos autos, houve vários atrasos nos pagamentos de prestações e nenhum deles foi considerado como momento relevante para o início da contagem de tal prazo;
30.ª – O sentido adoptado pelo douto Tribunal recorrido introduz um factor de grande incerteza e insegurança nas relações entre a instituição bancária credora e a RAEM, garante de tal crédito, o que não deve existir numa situação que é justamente a da determinação do momento a quo da contagem do prazo para efeito da exigibilidade do cumprimento da obrigação de garantia;
31.ª – A interpretação adoptada pelo Tribunal recorrido da referida cláusula não pode ser de aceitar, por não ser a que corresponde ao resultado interpretativo que resulta das directrizes da hermenêutica relativa aos contratos administrativos, dos termos a utilizar pelo homem médio, considerando os termos do contrato, os interesses que nele estão em jogo e a consideração de qual seja o mais razoável tratamento, e as finalidades prosseguidas pelo contrato;
32.ª – A interpretação da Recorrente tal como a do Tribunal Administrativo da referida cláusula são as únicas que garantem que a entidade bancária mutuante possa beneficiar do prazo de 1 acto, tal como se estabelece na mesma, para a exigibilidade do cumprimento da obrigação por parte da ora Recorrida, sendo que a interpretação do Tribunal recorrido apenas garantirá, contra a letra da própria cláusula, o prazo de 6 meses;
33.ª – O resultado interpretativo que se impõe como adequado para cláusula 4.°/2 do Acordo aqui em causa é aquele que passa por considerar, como momento inicial do referido prazo de 1 ano para a efectivação da garantia de crédito junto da Recorrente, o momento em que a mutuária entrou em incumprimento definitivo, o que ocorreu em 20/2/2017 (tal como resulta dos documentos de fls. 66 e 159 dos presentes autos) ou então, como considerou o Tribunal Administrativo, o momento resultante da verificação das situações previstos nas duas primeiras alíneas da cláusula 3.ª/3;
34.ª – Tendo o Tribunal recorrido considerado estar em causa nos presentes uma situação de prescrição extintiva e não de caducidade, a interpretação que aqui se defende é aquela que se sustenta na norma do artigo 299.°/1 do CC;
35.ª – Que sentido faria impor-se um determinado momento para a instituição bancária mutuante formular o pedido de cumprimento da obrigação por parte da entidade garante se esta, nesse momento, por falta da verificação dos respectivos requisitos, ainda não estava "obrigada a cumprir a responsabilidade da garantia de créditos"?
36.ª – A natureza das coisas não pode deixar de impor que tal cláusula seja interpretada no sentido de o cumprimento da obrigação de garantia de créditos apenas possa ser exigida pela instituição bancária mutuante, no prazo de um ano, a partir do momento do incumprimento definitivo por parte da empresa mutuária ou pelo menos a partir do momento em que a entidade garante estivesse constituída na obrigação de cumprir a respectiva responsabilidade, isto é, uma vez verificados os dois primeiros requisitos mencionados na cláusula 3.a/3 do referido Acordo;
Sem conceder,
37.ª – A posição do Tribunal recorrido incorre em erro manifesto de interpretação e aplicação de tal cláusula, quando considera que a empresa mutuária cessou de reembolsar no dia 6/1/2017;
38.ª – Tendo-se considerado provado que, de acordo como contrato de concessão de empréstimo, a mutuária estava sujeita à prestação média mensal do capital e juros ao dia 6 de todos os meses (facto provado 8), tal não pode deixar de significar que o momento em que a empresa mutuária "cessa de reembolsar" nunca poderia ser o dia 3/1/2017, mas antes o dia 6/2/2018;
39.ª – No dia 3/1/2017, a empresa mutuária não deixou de pagar, ainda que uma pequena quantia;
40.ª – E se empresa mutuária pagou em 3/1/2017, tal não pode significar que cessou de reembolsar, o que seria ilógico e incongruente;
41.ª – De acordo com o facto provado n." 8, a empresa mutuária cessou de reembolsar no dia 6/2/2018;
42.ª – Pelo que, em qualquer caso, se terá concluir que o pedido formulado pela Recorrente em 19/1/2018 (facto provado 11.°) se deve considerar apresentado tempestivamente e não fora do prazo, como erradamente foi julgado pelo Tribunal recorrido;
43.ª – O Ac. recorrido violou, nomeadamente, a cláusula 4.°/2 e a norma 299.°/1, 1.ª parte do CC”; (cfr., fls. 782 a 807).
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Em resposta, bate-se o (1°) R. “FUNDO DE DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL E DE COMERCIALIZAÇÃO” pela confirmação da decisão recorrida; (cfr., fls. 811 a 815).
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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Exmo. Juiz do Tribunal Administrativo foi considerada como assente a seguinte factualidade:
“1. Em 30 de julho de 2009, a autora e a 2ª ré celebraram o “Acordo de Garantia de Créditos a Pequenas e Médias Empresas” (adiante designado por “Acordo de Garantia”), que entrou em vigor desde o dia de celebração (fls. 401 a 405v. dos autos).
2. Os outorgantes referidos acordaram o seguinte no art.º 3.º n.º 2 e 3 do “Acordo de Garantia”:
“...
2. Em qualquer das seguintes situações, a 1ª outorgante é obrigada a cumprir a responsabilidade de garantia de créditos:
(1) O tribunal de Macau emitiu certidão ou documento judicial equivalente sobre a situação de execução de liquidação da dívida, que mostre a incapacidade de reembolso do empréstimo por parte da empresa mutuária;
(2) O liquidador emitiu certidão, que mostre a incapacidade de reembolso do empréstimo por parte da empresa mutuária;
(3) O tribunal de Macau ou o Juízo de Arbitragem Voluntária, instituído nos termos do art.º 13.º do presente Acordo, julgou que a 1ª outorgante deve cumprir a responsabilidade de garantia de créditos.
3. Se forem preenchidas todas as seguintes condições, a 1ª outorgante é obrigada a cumprir a responsabilidade de garantia de créditos:
(1) A empresa mutuária parou de reembolsar o empréstimo concedido há mais de 6 meses;
(2) A 2ª outorgante já interpelou, conforme o procedimento bancário comum de interpelação, a empresa mutuária e os indivíduos que assumam a responsabilidade solidária sobre o reembolso do empréstimo, mas ainda não conseguiu receber o pagamento de todo o empréstimo;
(3) A 1ª outorgante reconheceu segundo as provas oferecidas pela 2ª outorgante que não se vê perspectiva de reembolso por parte da empresa mutuária...”
3. O art.º 4.º n.º 2 do referido Acordo de Garantia dispõe que:
“… se a 2º outorgante não tiver solicitado à 1ª outorgante cumprir a responsabilidade de garantia de créditos dentro de 1 ano contado a partir do dia de a empresa mutuária violar as disposições do contrato de concessão de empréstimo e cessar de reembolsar o empréstimo, a 1ª outorgante não assume qualquer responsabilidade de garantia…”
4. O art.º 8.º do “Acordo de Garantia” dispõe que:
“… 1. Se o empréstimo a que a 1ª outorgante prestou a garantia não seja reembolsado atempadamente ou na empresa mutuária ocorra ou seja possível ocorrer situação que influencie a recuperação da dívida, a 2ª outorgante deve fazer interpelação oportunamente conforme o procedimento bancário comum de interpelação.
2. Ao solicitar o cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos, a 2ª outorgante deve preencher e entregar ao Fundo de Desenvolvimento Industrial e de Comercialização o “requerimento de cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos”, bem como oferecer os documentos que o segundo entende necessários.
3. Sendo suficientes os elementos necessários, o Fundo de Desenvolvimento Industrial e de Comercialização deve verificar dentro de 2 meses a responsabilidade de garantia de créditos e responder a 2ª outorgante por escrito.
4. Se for acordado o cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos, o Fundo de Desenvolvimento Industrial e de Comercialização é obrigado a verificar e fixar o valor de compensação e prestar à 2ª outorgante a respectia quantia dentro de 10 dias de trabalho contados do dia de emissão da resposta escrita mencionada no número anterior.
5. Após cumprida a responsabilidade de garantia de créditos, a 1ª outorgante tem o direito de sub-rogação contra a empresa mutuária.
6. Se a 1ª outorgante constitua a 2ª outorgante para proceder à rogação, a 2ª outorgante não pode negar o pedido, as quantias recebidas ou as despesas decorrentes da rogação são distribuídas ou suportadas entre as 1ª e 2ª outorgantes à proporção de 70%:30%.
7. Após vendidos os bens que serviram como garantia, a 2ª outorgante é obrigada a pagar à 1ª outorgante 70% da receita…”
5. Em 3 de Dezembro de 2014, o Chefe do Executivo aprovou o requerimento da “B” no Plano de Garantia de Créditos a Pequenas e Médias Empresas, o valor da garantia foi de MOP$2.310.000,00, com o prazo de 5 anos, C, D e E emitiram a livrança no mesmo valor para prestar a contragarantia. (vide a fls. 365 dos autos e as fls. 100 e 100v. do processo administrativo 1)
6. Em 30 de Dezembro de 2014, o Presidente do Fundo de Desenvolvimento Industrial e de Comercialização emitiu à autora o documento de confirmação n.º 54/2014 do Plano de Garantia de Créditos a Pequenas e Médias Empresas. (vide a fls. 366 dos autos)
7. Em 6 de Janeiro de 2015, a autora, a mutuária “B” e os 3 garantes C, D e E celebraram um contrato de concessão de empréstimo no valor de MOP$3.300.000,00, emprestando a respectiva quantia à mutuária. (vide as fls. 88 a 89 do processo administrativo 1)
8. De acordo com o contrato de concessão de empréstimo supracitado, a mutuária estava sujeita à prestação média mensal do capital e juros ao dia 6 de todos os meses. (Idem)
9. Em 3 de Janeiro de 2017, a autora só podia retirar automaticamente da conta da mutuária uma quantia de MOP$0,01. (vide as fls. 42 e 42v. do processo administrativo 1)
10. Em 31 de Março de 2017, a autora intentou perante o Tribunal Judicial de Base o processo ordinário de execução n.º CV3-17-0077-CEO contra a mutuária e os 3 garantes. (vide as fls. 44 a 47 do processo administrativo 1)
11. Em 19 de Janeiro de 2018, a autora requereu ao 1º réu o cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos, relativamente a uma quantia de MOP$931.853,41. (vide as fls. 37 a 43v. do processo administrativo 1)
12. Em 13 de Junho de 2018, o 1º réu respondeu por carta à autora que, foi indeferido o requerimento de cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos, com fundamento em que a autora “não apresentou ao nosso Fundo o pedido de cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos dentro de 1 ano contado a partir da cessação de reembolso do empréstimo por parte do empresário mutuário, por isso, nos termos do art.º 4.º n.º 2 do «Acordo de Garantia de Créditos a Pequenas e Médias Empresas», celebrado em 30 de Julho de 2009 entre a RAEM e o vosso Banco, a Comissão de Administração do nosso Fundo decidiu em 6 de Junho de 2018 indeferir o vosso pedido de cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos……” (vide a fls. 5 do processo administrativo 1).
13. Em 8 de Setembro de 2020, a autora intentou ao Tribunal a presente acção sobre contrato administrativo, pedindo condenar o Fundo de Desenvolvimento Industrial e de Comercialização, 1º réu, a cumprir a responsabilidade de garantia de créditos.
14. Até 4 de Novembro de 2021, foi respectivamente no montante de MOP$40,00 e de MOP$98,08 o saldo das contas bancárias da mutuária “B”, penhoradas no referido processo ordinário de execução n.º CV3-17-0077-CEO. (vide as fls. 532 a 545 dos autos)”; (cfr., fls. 558-v a 560 e 762-v a 764-v).
Do direito
3. Como se deixou relatado, vem o A. “A”, recorrer do Acórdão datado de 10.11.2022 pelo Tribunal de Segunda Instância proferido que, revogando a decisão do Mmo Juiz do Tribunal Administrativo, absolveu o (1°) R., “FUNDO DE DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL E DE COMERCIALIZAÇÃO” do pedido de condenação pelo mesmo deduzido.
A fim de melhor se perceber os motivos que levaram a tal decisão (de revogação), vale a pena recordar no que ponderou o Tribunal de Segunda Instância no seu Acórdão agora recorrido.
Tem, (na parte que agora interessa), o teor seguinte:
“São duas as questões que se colocam em sede de recurso, já aliás enunciadas na sentença recorrida:
- Da tempestividade do pedido de pagamento da garantia;
- Da verificação dos pressupostos para a efectivação da garantia.
Nas suas conclusões e alegações de recurso insurge-se o Recorrente contra a interpretação feita na decisão recorrida da cláusula 4ª nº 2 do Acordo de Garantia celebrado entre Autor e 2ª Ré, entendendo em síntese que o prazo de caducidade ali consagrado se conta a partir da data da cessação da restituição do empréstimo, sustentando que os 3 requisitos exigidos na cláusula 3ª nº 3 são as condições para o cumprimento do fiador mas não pressupostos para o Banco formular o pedido.
Sobre esta matéria entendeu-se na decisão recorrida o seguinte:
«No caso, analisando os fundamentos das partes, o Tribunal entende que, para o conhecimento, há as seguintes questões a resolver:
Ao abrigo do art.º 4.º n.º 2 do “Acordo de Garantia”, foi apresentado fora do prazo ou não o requerimento de cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos, deduzido pela autora ao 1º réu;
Se entenderem que não foi apresentado fora do prazo, esse requerimento reuniu ou não as condições necessárias para requerer o cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos, previsas pelo art.º 3.º n.º 3 do “Acordo de Garantia”.
No tocante à 1ª questão, ao contrário dos fundamentos dos réus, a autora sustenta que, o seu requerimento de 19 de Janeiro de 2018, sobre o cumprimento da garantia de créditos, não foi apresentado fora do prazo, uma vez que, o prazo de caducidade, previsto pelo art.º 4.º n.º 2 do “Acordo de Garantia”, deve ser contado a partir do dia em que o atraso em cumprimento contratual pela mutuária se transitou, após interpelação devida, em incumprimento definitivo. No caso, o incumprimento definitivo da mutuária começou em 20 de Fevereiro de 2017, por isso, o requerimento foi apresentado com tempestividade. Mesmo que não concordem, deve ser contado a partir de 8 de Fevereiro e de 31 de Março de 2017, altura em que a autora compensou a respectiva dívida com o saldo das contas bancárias da mutuária e garantes.
Dispõe o art.º 4 (exclusão de responsabilidade) n.º 2 do “Acordo de Garantia” que: ...se a 2º outorgante não tiver solicitado à 1ª outorgante cumprir a responsabilidade de garantia de créditos dentro de 1 ano contado a partir do dia de a empresa mutuária violar as disposições do contrato de concessão de empréstimo e cessar de reembolsar o empréstimo, a 1ª outorgante não assume qualquer responsabilidade de garantia...”
Isso é a vontade das partes, pela qual se fixa, através de negócio jurídico, um prazo da natureza de caducidade para o exercício do direito (vide o art.º 291.º n.º 2 do Código Civil).
Analisando o sentido apenas com base no texto, são indubitáveis a interpretação e a aplicação dessa disposição pelos réus - o prazo de caducidade para o exercício do direito, pela entidade de crédito que concedeu o empréstimo, de requerer ao Governo cumprir a garantia de crédito deve ser de 1 ano contado a partir do dia em que a mutuária parou pela primeira vez de reembolsar o empréstimo. Mesmo que, como disse a autora, a cessação ou não do reembolso seja indeterminável até que se reunem posteriormente as condições para chegar a conclusão, não obsta para os outorgantes fixar, no momento de celebração do acordo e por vontade comum, o dia de “cessação do reembolso” pela mutuária como a data decisiva para contagem inicial.
De acordo com os factos provados, o último pagamento da dívida pela mutuária “B” efectuou-se em 3 de Janeiro de 2017, altura em que “a autora só podia retirar automaticamente da conta da mutuária uma quantia de MOP$0,01”. Evidentemente, já passou 1 ano quando a autora requereu o cumprimento da garantia de crédito em 19 de Janeiro de 2018, parece que o seu direito já foi caducado.
Mas, não se esqueça de que, o acordo de garantia de créditos em questão é um contrato administrativo, na interpretação das suas disposições atender-se-ão, para além do sentido do texto, os princípios fundamentais da lei administrativa, nomeadamente os interesses públicos que o outorgante com poderes públicos pretende realizar na celebração do contrato e a transparência do procedimento de formação do contrato, o que faz o sentido das disposições objectivamente determinável (vide Digo Freita do Amaral, Curso de Direito Administrativo, volume II, 3ª edição, pp. 493 a 495, e vide Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Actividade administrativa, pp. 340 a 341).
E mais, o Tribunal Administrativo Supremo também apoia o mesmo entendimento no acórdão n.º 0739/04 de 8 de Março de 2005: “um dos princípios da disciplina legislativa dos contratos é o princípio da confiança, que nos leva à doutrina válida em matéria da sua interpretação, que terá de ser sempre enformada pelo princípio da boa fé, pois que este princípio deve acompanhar toda a vida do contrato, desde a sua feitura até à sua extinção.” (vide http://www.dgsi.pt)
No caso, os outorgantes do “Acordo de Garantia” já fixaram um prazo de caducidade do direito, ao abrigo do art.º 321.º do Código Civil, o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido. Então, quando a mutuária praticou o acto de cessação do reembolso, reconhecido pelos réus, o banco mutuante reuniu ou não as condições para apresentar tempestivamente o requerimento segundo o “Acordo de Garantia” e solicitar ao garante cumprir a responsabilidade de garantia previamente acordada? Isto é, na altura era possível exercer o seu direito nos termos da lei? Conforme a nossa interpretação do “Acordo de Garantia”, era realmente impossível.
Pode-se ver que, os n.º 2 e 3 do art.º 3.º (âmbito e pressupostos de garantia de créditos) do “Acordo de Garantia” estabelecem 2 regimes diferentes do cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos. A autora apresentou o respectivo requerimento ao 1º réu com fundamento em preenchimento do n.º 3, que impõe ao garante o cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos só quando estejam satisfeitas as seguintes condições enumeradas nele: “(1) A empresa mutuária parou de reembolsar o empréstimo concedido há mais de 6 meses; (2) A 2ª outorgante já interpelou, conforme o procedimento bancário comum de interpelação, a empresa mutuária e os indivíduos que assumam a responsabilidade solidária sobre o reembolso do empréstimo, mas ainda não conseguiu receber o pagamento de todo o empréstimo; (3) A 1ª outorgante reconheceu segundo as provas oferecidas pela 2ª outorgante que não se vê perspectiva de reembolso por parte da empresa mutuária...”
No tocante à 1ª condição, se o mutante só puder requerer o cumprimento da garantia de crédito quando “A empresa mutuária parou de reembolsar o empréstimo concedido há mais de 6 meses” mas o prazo de caducidade do direito for contado a partir da 1ª cessação do reembolso pela mutuária, o prazo para o mutante exercer o direito conferido pelo contrato, de facto, é inferior a 6 meses, nos primeiros 6 meses após o dia de cessação do reembolso ele não reune a condição para apresentar o requerimento.
A 2ª condição para pedir cumprir a responsabilidade de garantia de créditos é “já interpelou, conforme o procedimento bancário comum de interpelação, a empresa mutuária e os indivíduos que assumam a responsabilidade solidária sobre o reembolso do empréstimo, mas ainda não conseguiu receber o pagamento de todo o empréstimo”.
Essa disposição é correspondente ao art.º 8.º (cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos) n.º 1 do “Acordo de Garantia” - antes de pedir o cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos, “Se o empréstimo a que a 1ª outorgante prestou a garantia não seja reembolsado atempadamente ou na empresa mutuária ocorra ou seja possível ocorrer situação que influencie a recuperação da dívida, a 2ª outorgante deve fazer interpelação oportunamente conforme o procedimento bancário comum de interpelação.” Por isso, a interpelação procedimental ao devedor também é o pressuposto de a autora exercer o direito e requerer o cumprimento da responsabilidade de garantia de crédito. Realmente, é fundamentado o entendimento da autora no sentido de que o prazo de caducidade deve ser contado a partir do dia em que o atraso em cumprimento contratual pela mutuária se transitou, após interpelação devida, em incumprimento definitivo. Mesmo não recorrendo para o regime geral do incumprimento da dívida, previsto pelos art.º 793.º a 797.º do Código Civil, basta a pura interpretação das disposições do “Acordo de Garantia” para chegar à mesma conclusão.
Os réus estão preocupados com esse entendimento porque, se a data de contagem inicial do prazo de caducidade depende completamente da acção da autora - ou seja, a interpelação ou não ao devedor, a eventual atitude omissiva da autora pode possivelmente resultar em prorrogação injusta do respectivo prazo, fazendo com que o garante tenha de assumir por longo período a responsabilidade de garantia de créditos.
Mas a essência da questão consiste em que, não podem ser produzidos os efeitos, esperados na fixação do prazo de caducidade, de incentivar o banco mutuante a tomar iniciativas para garantir a satisfação do direito de crédito, uma vez que, os pressupostos do requerimento do cumprimento da responsabilidade de garantia de créditos restringem a sua tomada de iniciativas, ele só pode exercer o direito quando estejam preenchidas todas as condições. Se não tiver interpelado a mutuária ou a mutuária tiver cessado de pagar a dívida há menos de 6 meses, é impossível para a autora aproveitar suficientemente os benefícios do prazo de caducidade.
Tal conclusão está contrariada sem dúvida ao princípio geral previsto pelo art.º 321.º do Código Civil. Segundo esse princípio, o exercício do direito pelo titular não pode impedir a iniciação de contagem do prazo de caducidade, salvo outra disposição da lei. O acordo entre as partes, mesmo sendo válido, não pode excluir a aplicação desse princípio.
Por outro lado, no momento de celebração do Acordo com a ré, a autora previa que discutiria as regras detalhadas com a mutuária quando teria todo um ano para exercer o seu direito e, com base nisso, modificava os direitos e deveres entre as partes e coordenava a execução das regras, esperando a satisfação efectiva do seu direito de crédito. Pelo que, não podemos considerar precipitadamente que, o prazo de caducidade que na verdade é inferior a 1 ano está conforme à vontade comum dos outorgantes. Mas agora, os réus recusam-se a cumprir a responsabilidade de garantia com base na sua interpretação unilateral das disposições do acordo, nomeadamente respeitantes ao prazo de caducidade, parece que prejudicam a confiança da autora como outra parte outorgante e violam o princípio da boa fé que devem cumprir nas actividades administrativas.
Deste modo, o Tribunal entende que, o prazo de caducidade de 1 ano, previsto pelo art.º 4.º n.º 2 do “Acordo de Garantia”, deve ser contado pelo menos a partir da satisfação das primeiras duas condições do art.º 3.º n.º 3 pela entidade de crédito mutuante.
No tocante à 3ª condição - “A 1ª outorgante reconheceu segundo as provas oferecidas pela 2ª outorgante que não se vê perspectiva de reembolso por parte da empresa mutuária”, a sua natureza é diferente das duas supracitadas. Se entenderem que, as primeiras duas condições constituem os pressupostos suficientes e necessários da apresentação do requerimento pela mutuante, essa condição final determina que a aprovação ou não do requerimento depende da existência ou não das provas suficientes para apreciação. Por isso, a satisfação ou não dessa condição tem nada a ver com o exercício oportuno do direito pelo mutuante.
Pelo que, se entenderem que a cessação do reembolso pela empresa mutuária em causa começou desde 3 de Janeiro de 2017, a autora só reuniu as condições objectivas, pelo menos desde 3 de Julho do mesmo ano, 6 meses após a cessação do reembolso, para apresentar o requerimento ao Fundo de Desenvolvimento Industrial e de Comercialização. Por isso, o requerimento de 19 de Janeiro de 2018 não foi apresentado fora do prazo.».
Numa primeira abordagem somos tentados a acompanhar a decisão recorrida, mas se começarmos a equacionar esta solução outros problemas surgem que não têm resolução em face da resposta dada.
Se considerarmos que o prazo de um ano referido na cláusula 4ª nº 2 só começa a contar depois de verificados os requisitos do nº 3 da cláusula 3ª então não podemos apenas dizer que o prazo se inicia após o prazo de seis meses referido no nº 1 mas também após a verificação do requisito da impossibilidade de recuperação total do empréstimo, ou de alguma das situações previstos no nº II da Cláusula 3.ª, contudo, não foi nada disso que se escreveu no acordo.
Ou seja, o mutuante teria um ano a contar do final do prazo de seis meses ou a contar do momento em que passou a haver prova da impossibilidade de recuperação total do empréstimo para pedir a efectivação da garantia de crédito.
Tal equivalia a dizer-se que embora o contrato estabeleça que o garante não assume qualquer responsabilidade da garantia se o mutuante não solicitar o pagamento no prazo de 1 ano a contar da data em que a mutuária cessar de reembolsar em violação do contrato de crédito, deixaria de ter um termo inicial certo para ter um termo inicial incerto, isto é, seis meses após a cessação do pagamento pela mutuária se acaso nesse prazo já havia a prova da impossibilidade de pagamento total e superior a seis meses se essa prova só fosse obtida posteriormente.
Pergunta-se então para quê fixar o prazo de um ano a contar da cessação do pagamento por banda da mutuária se afinal os momentos a partir do qual o prazo se conta são outros?
A resposta só pode ser que não foi essa a intenção dos contratantes.
Os contraentes o que disseram é que cessa a obrigação do garante de prestar a garantia se o mutuante não tiver reclamado a efectivação daquela no prazo de um ano a contar da cessação do pagamento por banda do mutuário.
Entende-se na decisão recorrida e a Recorrente que este prazo é de caducidade por ser o prazo que o mutuante tem para exercer o direito. Mas também aqui discordamos, pois o que ali se consagra é uma prescrição extintiva, o garante fica sem responsabilidade de garantia se o mutuante decorrido um ano sobre a cessação de pagamentos por banda do mutuário não lhe comunicar (ao garante) este facto no prazo de um ano.
Ao se falar de extinção da responsabilidade mais apropriado será falar de prescrição extintiva, ou seja, não se comunicando no prazo que ocorreu a condição primeira (cessação de pagamentos pela mutuária) para a efectivação da garantia, a obrigação do garante extingue-se.
Mas o que é certo é que dúvidas não há-de que o momento a partir do qual o prazo se conta é o da data da cessação de pagamentos pela mutuária.
Salvo melhor opinião, acompanhamos o Recorrente que o que se estabelece na cláusula terceira e quarta são realidades diferentes.
Na cláusula quarta consagra-se o prazo durante o qual o mutuante há-de comunicar que cessaram os pagamentos sob pena de se extinguir a responsabilidade do garante.
Na cláusula terceira consagram-se os requisitos que se têm de verificar para que a garantia seja efectivada.
Nada obsta que antes de decorrido o prazo de seis meses após a cessação dos pagamentos o mutuante comunique a cessação de pagamentos e prove a impossibilidade de recuperação total do empréstimo se estiver em condições de o fazer.
De igual modo tudo indica que nada obsta que durante o ano subsequente à cessação de pagamentos se comunique tal facto, mas só após este ano venha a haver prova da impossibilidade de recuperação total do empréstimo, nomeadamente as previstos na Cláusula 3.ª II.
O que se determina no acordo são dois momentos distintos, na clausula 4ª estabelece-se o prazo durante o qual o mutuante tem de comunicar sob pena de se extinguir a responsabilidade do garante e na cláusula 3ª os requisitos para que seja efectivada a garantia.
O contrato administrativo haverá de ser interpretado de acordo com as suas cláusulas não sendo legítimo ao intérprete ir para além do que naquele consta, criando cláusulas e excepções que não haviam sido previstas.
Destarte, não acompanhamos a decisão recorrida, concluindo que se a mutuária cessou os pagamentos em 3 de Janeiro de 2017 a responsabilidade do garante aqui 1º Réu se extinguiu 1 ano após, isto é, estava já extinta quando em 19 de Janeiro de 2018 a Autora requereu o cumprimento da responsabilidade de garantia.
Tendo-se extinguido a responsabilidade do garante pelo decurso do prazo sem que lhe haja sido comunicada a cessação de pagamentos, fica prejudicada a apreciação dos requisitos para que se efectivasse a garantia, impondo-se decidir em conformidade.
(…)”; (cfr., fls. 764-v a 769).
Aqui chegados, vejamos que solução adoptar perante o recurso que nos é trazido para apreciação e decisão.
–– Tem se como adequada a seguinte “nota prévia”.
Em face do que pelo A. foi alegado e peticionado, ocorrem-nos (algumas) dúvidas quanto ao (real) “valor da acção”.
Porém, atento o estatuído no art. 248°, n.° 2 e 250° do C.P.C.M., e privilegiando-se uma decisão de mérito, entende-se que se deve avançar para o conhecimento do presente recurso.
Nesta conformidade, vejamos.
–– Se bem ajuizamos, para o ora recorrente, a cláusula 4ª, n.° 2 do “Acordo de Garantia” com a 2ª R. celebrado em 30.07.2019, (cfr., ponto 1° da matéria de facto dada como provada), deve ser entendida no sentido de que a exigência do “cumprimento da obrigação por parte da garante apenas poderá ser apresentado no prazo de 1 (um) ano a contar do momento em que se verifiquem os factos que alicerçam o direito à referida exigibilidade”, e, desta forma, o “termo inicial” do referido prazo deve ter “como ponto de partida a existência objectiva das condições necessárias e suficientes para que o direito possa ser exercido”.
Defende, ainda, (entre considerações algo vagas sobre a “interpretação de contratos administrativos”), que caso fosse de seguir o entendimento sufragado pelo Tribunal recorrido, sempre se teria de observar a norma imperativa do art. 299°, n.° 1 do C.C.M., pelo que a considerada verificada “prescrição” só poderia iniciar a sua contagem a partir do momento em que o direito pudesse ser exercido, ou seja, com a verificação dos dois primeiros requisitos constantes da cláusula 3ª, n.° 3 do mesmo “Acordo de Garantia”, não se podendo, por isso, contar a partir do dia 03.01.2017, alegando, além disso, que no dia 03.01.2017 foi ainda (parcialmente) reembolsado o empréstimo, (não obstante a diminuta quantia de MOP$0,01), pelo que a cessação do reembolso apenas teria ocorrido em 06.02.2017.
Ora – notando-se que, em nossa opinião, em causa não está a mera “apreciação da interpretação” pelo Tribunal de Segunda Instância feita à cláusula 4ª, n.° 2 do referido “Acordo de Garantia”, mas antes, de se aferir se aquela respeitou os preceitos legais que incidem sobre a matéria – impõe-se, em primeiro lugar, consignar, (e recordar), que da dita cláusula 4ª, n.° 2, (ponto 3° da matéria de facto dada como provada), consta que:
“… se a 2.ª outorgante não tiver solicitado à 1.ª outorgante cumprir a responsabilidade de garantia de créditos dentro de 1 ano contado a partir do dia de a empresa mutuária violar as disposições do contrato de concessão de empréstimo e cessar de reembolsar o empréstimo, a 1.ª outorgante não assume qualquer responsabilidade de garantia…”.
Por sua vez, de olvidar igualmente não é que está também demonstrado que “De acordo com o contrato de concessão de empréstimo supracitado, a mutuária estava sujeita à prestação média mensal do capital e juros ao dia 6 de todos os meses”; (cfr., ponto 8° da matéria de facto dada como provada).
E, atentos os referidos “factos” – que se tem como (especialmente) “relevantes” para a solução a adoptar em sede do presente recurso – cremos que se deve começar por ponderar da questão de saber se o referido “prazo” da cláusula 4ª, n.° 2 do “Acordo de Garantia” em questão é um prazo de “caducidade”, ou antes, (um prazo) de “prescrição extintiva”.
Vejamos, então.
Pois bem, foi sempre (algo) complexa (e discutível) a distinção das “situações” que implicavam a intervenção do instituto da “caducidade” e da “prescrição”.
Para Vaz Serra, a “prescrição” aplicava-se “em princípio, a quaisquer direitos disponíveis e não apenas aos de crédito, porque o critério de recurso aos prazos não está na diversa índole dos direitos que se extinguem pelo decurso daqueles, mas no objecto da lei que os submete a um prazo”; (cfr., Aníbal de Castro in, “A Caducidade – Na Doutrina, na Lei e na Jurisprudência”, 3ª ed., pág. 37).
Manuel de Andrade procurava distinguir as duas figuras com base numa ideia assente no “objecto” dos direitos em causa: “a prescrição extintiva é própria dos direitos subjectivos; a caducidade é própria dos direitos potestativos”; (in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, pág. 464).
Autores havia que consideravam também que “Esta diferença entre a prescrição e a caducidade fica a dever-se à diversidade dos fundamentos que subjazem a um ou outro instituto. (…)
A prescrição extintiva, possam embora não lhe ser totalmente estranhas razões de justiça, é um instituto endereçado fundamentalmente à realização de objectivos de conveniência ou oportunidade. Por isso, encarada exclusivamente numa perspectiva de justiça, foi pelos antigos crismada de «impium remedium» ou «impium praesidium». Apesar disso, porém, sempre intervém na fundamentação da prescrição uma ponderação de justiça. Diversamente da caducidade, a prescrição arranca, também, da ponderação de uma inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo, o que faz presumir uma renúncia ou, pelo menos, o torna indigno da tutela do Direito, em harmonia com o velho aforismo «dormentibus non succurrit jus».
Por isso, embora a prescrição – tal como a caducidade – vise desde logo satisfazer a necessidade social de segurança jurídica e certeza dos direitos, e, assim, proteger o interesse do sujeito passivo, essa protecção é dispensada atendendo também ao desinteresse, à inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo. Há, portanto, uma inércia do titular do direito, que se conjuga com o interesse objectivo numa adaptação da situação de direito à situação de facto.
Na caducidade, porém, só o aspecto objectivo da certeza e segurança é tomado em conta. O que explica, p. ex., que a caducidade seja apreciada oficiosamente pelo tribunal – ao contrário da prescrição, que tem de ser invocada –, bem como o facto de influírem sobre o prazo de prescrição, e não sobre o da caducidade, situações e acontecimentos que excluem a possibilidade de a falta de exercício do direito ser atribuída a inércia do titular – situações e acontecimentos que podem suspender ou interromper a prescrição, mas não a caducidade”, considerando, ainda, que o certo é que “A nossa lei seguiu, porém, um critério formal, afirmando que quando um direito deva ser exercido durante certo prazo se aplicam as regras da caducidade, salvo se a lei se referir expressamente à prescrição (art. 298.º, n.º 2)”; (cfr., v.g., Carlos Alberto da Mota Pinto, António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto in, “Teoria Geral do Direito Civil”, 5ª ed., pág. 374 e segs.).
E, como igualmente nota Pedro Pais de Vasconcelos, “construir a distinção entre prescrição e caducidade com base na qualificação do direito como subjectivo ou potestativo era uma manifestação do conceptualismo então dominante na Doutrina, e envolvia sérios problemas de aplicação. A operacionalidade do critério enfrentava dificuldades graves em muitos casos em que o direito em questão era um direito subjectivo com poderes potestativos ou em que se isolava como direito potestativo um simples poder potestativo integrante de um direito subjectivo. Estas dificuldades eram irremovíveis porque os direitos potestativos são direitos subjectivos com uma forte componente de poderes potestativos. Os direitos potestativos contêm naturalmente no seu seio poderes potestativos.
Tal como resulta hoje do artigo 298.º, n.º 2, o critério de distinção é eficaz, embora formal: estão sujeitos a prescrição direitos subjectivos disponíveis, que não sejam direitos reais e que não sejam temporários; estão sujeitos a caducidade os direitos temporários, isto é, aqueles cujo exercício esteja sujeito a certo prazo”; (in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed., pág. 768).
Ora, em nossa modesta opinião, o mesmo regime resulta também do C.C.M., onde, no seu art. 291°, n.° 2, se prescreve que: “Quando, por força da lei ou por vontade das partes, se estabeleça que um direito deve ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição”.
Daí que, “Diferentemente da prescrição, que é de ordem pública, o regime da caducidade está ao alcance da autonomia privada. O artigo 330.º permite, com grande amplitude, a estipulação das partes em matéria de caducidade. As partes podem nos negócios que celebram, estipular casos de caducidade, modificar o seu regime legal e renunciar-lhe. Esta liberdade tem os limites da autonomia privada e, por isso, o referido artigo restringe esta liberdade a matéria disponível e, de um modo redundante, proscreve a fraude às regras da prescrição. Aos casos negociais de caducidade devem ser aplicadas, na dúvida sobre a vontade das partes, as regras legais sobre a suspensão da prescrição.
A autonomia privada só actua em matéria disponível e a caducidade não constitui excepção a esta regra. A intervenção da estipulação negocial, em tema de caducidade, incide sobre a limitação do exercício de direitos a certos prazos ou limites de tempo. No exercício do poder jurígeno em que se traduz a autonomia privada, as partes clausulam com frequência, nos contratos que celebram, prazos dentro dos quais certos poderes ou direitos devem ser exercidos e passados os quais o não podem já ser. Esgotados esses prazos, caducam esses direitos ou poderes das partes”; (cfr., v.g., Pedro Pais de Vasconcelos in, ob. cit., pág. 768).
Por todas estas razões, (e respeitando-se sempre melhor opinião), afigura-se-nos pois que à cláusula 4ª, n.° 2, do “Acordo de Garantia” aqui em questão são aplicáveis as regras da “caducidade”, não sendo, por isso, aplicável o art. 299° do C.C.M., conforme sugere o ora recorrente.
E, assim postas as coisas, avancemos então no confronto entre as “posições” que foram defendidas pelas Instâncias recorridas em relação à cláusula 4ª, n.° 2 do dito “Acordo de Garantia”.
Pois bem, para o Tribunal Administrativo, “Analisando o sentido apenas com base no texto, são indubitáveis a interpretação e a aplicação dessa disposição pelos réus – o prazo de caducidade para o exercício do direito, pela entidade de crédito que concedeu o empréstimo, de requerer ao Governo cumprir a garantia de crédito deve ser de 1 ano contado a partir do dia em que a mutuária parou pela primeira vez de reembolsar o empréstimo. (…)
Mas, não se esqueça de que, o acordo de garantia de créditos em questão é um contrato administrativo, na interpretação das suas disposições atender-se-ão, para além do sentido do texto, os princípios fundamentais da lei administrativa, nomeadamente os interesses públicos que o outorgante com poderes públicos pretende realizar na celebração do contrato e a transparência do procedimento de formação do contrato, o que faz o sentido das disposições objectivamente determinável (vide Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, volume II, 3.ª edição, pp. 493 a 495, e vide Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Actividade Administrativa, pp. 340 a 341).
(…)
No caso, os outorgantes do “Acordo de Garantia” já fixaram um prazo de caducidade do direito, ao abrigo do art.º 321.º do Código Civil, o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido. Então, quando a mutuária praticou o acto de cessação do reembolso, reconhecido pelos réus, o banco mutuante reuniu ou não as condições para apresentar tempestivamente o requerimento segundo o “Acordo de Garantia” e solicitar ao garante cumprir a responsabilidade de garantia previamente acordada? Isto é, na altura era possível exercer o seu direito nos termos da lei? (…)
Tal conclusão está contrariada sem dúvida ao princípio geral previsto pelo art.º 321.º do Código Civil. Segundo esse princípio, o exercício do direito pelo titular não pode impedir a iniciação de contagem do prazo de caducidade, salvo outra disposição da lei. O acordo entre as partes, mesmo sendo válido, não pode excluir a aplicação desse princípio”; (cfr., fls. 765-v a 767).
Ora, atento o que se deixou transcrito, (e não olvidando a ponderação sobre a mesma matéria efectuada no Acórdão recorrido), cremos não haver qualquer desacordo sobre o teor do contrato entre o Tribunal Administrativo e o Tribunal de Segunda Instância.
A divergência, (nas respectivas conclusões), apenas ocorre porque incorreu o Tribunal Administrativo num “erro de direito”, (o que se diz com todo o respeito e ressalvando sempre melhor entendimento).
Com efeito, (e em nossa opinião), o (invocado) art. 321° do C.C.M. não se aplica à situação em apreço nos autos porque tal norma tem em vista as situações de “caducidade decorrentes da lei”, (e não de um “contrato”), como aliás resulta da sua própria letra, (“se a lei não fixar outra data”), isto, sem prejuízo de “aplicação supletiva” quando o contrato não fixe o momento a partir do qual se conta o prazo de caducidade.
E, in casu, foi precisamente isso que sucedeu, visto que as partes, ao abrigo do art. 322° do C.C.M., fixaram que o prazo de caducidade começava a correr a partir do “do dia em que a mutuária parou pela primeira vez de reembolsar o empréstimo”, (aliás como também considerou o Tribunal Administrativo antes de limitar o alcance da cláusula contratual por conta da suposta aplicabilidade da regra contida no art. 321° do C.C.M.).
E, nesta conformidade, (e com todo o respeito devido), ficou a partir de tal equívoco inquinada toda a lógica subjacente ao raciocínio seguido pelo Tribunal Administrativo para justificar uma “conclusão” que se afasta (claramente) do que vem disposto no próprio contrato, (sendo mesmo de se consignar, que a se entender de outro modo, tal equivaleria a “riscar” ou fazer tábua rasa do teor da cláusula 4ª, n.° 2 do “Acordo de Garantia” no trecho que aqui é relevante…), mostrando-se-nos pois assim que o entendimento pelo Tribunal Administrativo sufragado colide com o art. 230°, n.° 1 do C.C.M., (conforme entendeu também, embora com fundamento diferente daquele que vem aqui expresso, o Tribunal de Segunda Instância, e que, na parte em questão, considerou que:
“Pergunta-se então para quê fixar o prazo de um ano a contar da cessação do pagamento por banda da mutuária se afinal o momento a partir do qual o prazo se conta são outros?
A resposta só pode ser que não foi essa a intenção dos contratantes.
Os contratantes o que disseram é que cessa a obrigação do garante de prestar a garantia se o mutuante não tiver reclamado a efectivação daquela no prazo de um ano a contar da cessação do pagamento por banda do mutuário.
(…)
O contrato administrativo haverá de ser interpretado de acordo com as suas cláusulas não sendo legítimo ao intérprete ir para além do que naquele consta, criando cláusulas e excepções que não haviam sido previstas”; cfr., fls. 768 a 768-v).
Dest’arte, (e não obstante o diverso percurso seguido), cremos que bem andou o Tribunal de Segunda Instância quanto ao entendimento assumido relativamente à cláusula 4ª, n.° 2 do “Acordo de Garantia”, pois que aí é dito, (clara e expressamente), que o prazo de 1 ano é contado: “a partir do dia de a empresa mutuária violar as disposições do contrato de concessão de empréstimo e cessar de reembolsar o empréstimo”.
–– Afirma, ainda, o recorrente, que as regras dos art°s 228° a 231° do C.C.M. não podem ser directamente aplicáveis à interpretação dos contratos administrativos, invocando a doutrina dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos.
Ora, como é evidente, muito respeito nos merece o douto entendimento destes Insignes Professores.
Porém, em nossa opinião, cremos que o que esses mesmos autores pretendem referir é, somente, que a interpretação dos contratos deverá “atender à necessária funcionalização da actividade administrativa à prossecução do interesse público (…) e à procedimentalização da actividade contratual administrativa (…), que contrastam com a autodeterminação de fins que preside ao exercício da autonomia privada e com o carácter desprocedimentalizado da contratação interprivada. As regras da interpretação dos contratos administrativos devem, assim, deduzir-se a partir do sistema de direito administrativo”, e que, assim, “para o apuramento do seu sentido concorre decisivamente o teor de actos procedimentais como o anúncio de abertura do procedimento pré-contratual, o programa do procedimento e/ou os convites à apresentação de propostas, o caderno de encargos, a memória descritiva e a solução escolhida, os termos de referência, os esclarecimentos prestados pela administração sobre as peças do procedimento, as propostas apresentadas e os esclarecimentos que sobre elas prestem os concorrentes, as actas da fase de negociação, os relatórios preliminar e final elaborados pelo júri do procedimento e, em particular, o sentido provável da adjudicação e, eventualmente, outros actos posteriores, como actos administrativos de aclaração e o acto de aprovação da minuta do contrato (cada um destes actos carece, por sua vez, de interpretação)”, nunca se podendo, no entanto, perder de vista, que esses mesmos Autores referem ainda que “os argumentos linguísticos têm a importância que em geral decorre do facto de os enunciados linguísticos através dos quais foi exteriorizado o contrato constituem o ponto de partida e o limite da interpretação”; (cfr., v.g., Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos in, “Contratos Públicos, Direito Administrativo Geral”, Tomo III, 2ª ed., pág.132 e segs.), o que, de resto, decorre, do teor do art. 230°, n.° 1 do C.C.M..
Aliás, tal entendimento, já antes era também expresso por Marcello Caetano, que a este respeito afirmava (nomeadamente) que:
“Surgem com frequência dúvidas e contestações acerca do sentido das cláusulas estipuladas num contrato administrativo. Na interpretação deste há que observar certos princípios relativos ao seu carácter peculiar.
Em primeiro lugar os contratos administrativos são típicos. (…) Daí resulta que cada contrato desta categoria há-de apresentar as características dominantes do seu tipo e tem de ser entendido de acordo com elas, nos termos estabelecidos nas leis e regulamentos que se lhes referem.
Em segundo lugar sabemos que por via de regra os contratos administrativos se formam ao longo de um processo gracioso no qual são produzidos vários actos preparatórios cujo conhecimento é indispensável à compreensão do acordo final. As dúvidas sobre o que foi definitivamente estipulado quando as cláusulas do contrato sejam obscuras podem nesses casos ser esclarecidas através do exame do anúncio do concurso e do respectivo programa, do caderno de encargos, da acta da sessão de abertura das propostas, do texto da proposta sobre que recaiu a adjudicação definitiva, das reclamações formuladas no processo pelo adjudicatário e decisões sobre elas dadas, da minuta do contrato…
O exame do processo revelará porventura a vontade real das partes, tal como se manifestou no seu decurso, de maneira a esclarecer dúvidas surgidas acerca do significado das expressões do contrato final.
Mas não pode esquecer-se que as cláusulas estipuladas no instrumento do contrato é que traduzem o acordo formado e por isso é sempre à sua letra que tem de se atender: a interpretação consiste em determinar o sentido duvidoso de um texto, fixando o seu significado objectivo. Os elementos de interpretação, tais como os trabalhos preparatórios, valem na medida em que possam ajudar a entender o que se quis, mas não prevalecem sobre a letra do contrato”; (in “Manual de Direito Administrativo”, Vol. I, 10ª ed., pág. 610 e 611).
Por outras palavras, e como que em síntese, cabe pois considerar então que estando em causa um “contrato administrativo”, a sua “interpretação” pode ser feita com recurso a elementos relativos ao período “pré-contratual”, podendo aí esclarecer-se o sentido (e observar algumas nuances) na interpretação da sua letra.
Contudo, (e importa sublinhar), nada disso autoriza uma (completa) “desconsideração dos elementos literais” constantes do próprio teor do contrato.
Nesta conformidade, (e do nosso modesto ponto de vista), adequado se nos apresenta de concluir que nada obsta à aplicação do estatuído nos art°s 228° e 230° do C.C.M., desde que se não deixe de observar e respeitar o carácter e natureza peculiar do contrato administrativo, (sendo de consignar que, não obstante as vagas considerações que a este respeito tece o recorrente, a verdade é que não consegue explicar, cabalmente, por que razão é que uma cláusula contratual que fixa – perfeitamente – o “momento” a partir do qual se deve contar o prazo de caducidade – “contado a partir do dia de a empresa mutuária violar as disposições do contrato de concessão de empréstimo e cessar de reembolsar o empréstimo” – deve ser posta de lado, e substituída por uma leitura em – clara e frontal – colisão e violação da “letra” do próprio contrato, fazendo depender esse “momento” de um “termo incerto”, o que, aliás, e da mesma forma, foi também observado e salientado no Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância proferido e ora recorrido).
Em suma, não se afiguram procedentes os “argumentos” pelo recorrente suscitados nas suas alegações de recurso a respeito do “sentido e alcance” da cláusula 4ª, n.° 2, do “Acordo de Garantia”, sendo, por sua vez, também claro que, (em face do teor do “ponto 11° da matéria de facto dada como provada”), “caducada já estava a garantia prestada”.
–– Vem, por fim, o recorrente defender que, no dia 03.01.2017, foi (parcialmente) “reembolsado o empréstimo”, (não obstante o ter sido com a diminuta quantia de MOP$0,01), pelo que, a cessação do reembolso apenas teria ocorrido em 06.02.2017, (devendo, o prazo de um ano tão só se contar a partir desta data).
Ora, também aqui, carece de razão.
Desde já, importa atentar que no “ponto 8° da matéria de facto dada como provada” se diz (expressamente) que:
“De acordo com o contrato de concessão de empréstimo supracitado, a mutuária estava sujeita à prestação média mensal do capital e juros ao dia 6 de todos os meses”; sendo de notar também que assente está também que:
“Em 3 de Janeiro de 2017, a autora só podia retirar automaticamente da conta da mutuária uma quantia de MOP$0,01”; (cfr., fls. 42 e 42-v do P.A.).
Dest’arte, e da leitura destes dois “factos”, resulta, (em nossa opinião, sem margem para dúvidas), que a mutuária não pagou a prestação média mensal do capital e juros no dia 06.01.2017, sendo, no mínimo, pouco sério, supor que foi feito o “reembolso, parcial, de 1 cêntimo”.
Assim – e, mesmo que se considere não constituir esta uma “questão nova”, o que não cremos, pois que, se não estamos em erro, nunca antes havia sido considerado que o reembolso do empréstimo não tinha cessado em “Janeiro de 2017” – vista está a solução para tal questão e para o presente recurso, havendo que se deliberar como segue.
Decisão
4. Em face do que se deixou exposto, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 15 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 29 de Julho de 2024
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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