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Processo nº 82/2024
(Com o Processo no 83/2024 em apenso)
(Autos de recurso jurisdicional)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por expedientes (autónomos) no dia 16.05.2024 apresentados no Tribunal de Segunda Instância, pediram, A (甲) e B (乙), respectivamente, mãe e filha com os restantes elementos de identificação, a “suspensão de eficácia” de actos administrativos que identificaram nas suas petições que, após registadas e distribuídas, vieram a ser autuadas como “Autos de Suspensão de Eficácia” n°s 346/2024 e 347/2024, onde, por Acórdãos do mesmo Tribunal de Segunda Instância de 30.05.2024 se decidiu indeferir as aludidas pretensões; (cfr., fls. 262 a 265-v e 286 a 290 respectivamente que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformadas com o decidido, as ditas requerentes recorreram para esta Instância, vindo os seus recursos a ser autuados como Autos de Recurso de Decisão Jurisdicional em Matéria Administrativa n°s 82/2024 e 83/2024, e, considerando-se que verificados estavam os pressupostos do art. 84° do C.P.A.C., por despacho de 11.07.2024, procedeu-se à sua “apensação”, (do assim decidido notificando-se todos os intervenientes processuais; cfr., fls. 304 e segs. dos presentes autos).

*

Observada que se nos apresenta estar a tramitação processual legalmente prevista com o douto Parecer do Ministério Público, (cfr., fls. 314 a 316), e, nada parecendo obstar, urge decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal de Segunda Instância foi considerada como relevante e provada seguinte a matéria de facto:

- em sede do Proc. n.° 346/2024, (referente à recorrente A, e nesta Instância registado como Proc. 82/2024):
“1. Em 4 de Março de 2009, à requerente A (甲) e sua filha B (乙) foi concedida autorização de residência com fundamento em reagrupamento familiar com o seu cônjuge C (丙).
2. A requerente foi condenada, no processo n.º CR4-22-0255-PCC, pela prática de um crime de falsificação de documento, por ter obtido a autorização de residência em Macau através de contracção de casamento fictício, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos. A respectiva sentença transitou em julgado em 6 de Julho de 2023.
3. Em 14 de Setembro de 2023, a requerente apresentou à entidade requerida um pedido no sentido de não ser revogada, por razões humanitárias, a autorização de residência que lhe fora concedida.
4. A requerente reside na [Endereço(1)], distrito de Xiangzhou da Cidade de Zhuhai da Província de Guangdong (廣東省珠海市香洲區[地址(1)]).
5. Em 9 de Fevereiro de 2024, o Secretário para a Segurança de Macau declarou inválida a autorização de residência concedida à requerente”;

- em sede do Proc. n.° 347/2024, (referente à recorrente B, e nesta Instância registado como Proc. 83/2024):
“A requerente nasceu em 11 de Maio de 1989 em Xinhui da Província de Guangdong.
Em 4 de Março de 2009, a requerente foi a Macau com a sua mãe, A, para se reagrupar com o seu padrasto, C, e obteve a autorização de residência.
A mãe da requerente, A, foi condenada, no processo n.º CR4-22-0255-PCC, pela prática de crime de falsificação de documento, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos. A respectiva decisão transitou em julgado em 6 de Julho de 2023.
Em 14 de Setembro de 2023, a requerente apresentou um pedido à entidade requerida solicitando a não revogação, por razões humanitárias, da sua autorização de residência.
A requerente reside actualmente na [Endereço(2)], Vila de Tanzhou da Cidade de Zhongshan da Província de Guangdong (廣東省中山市坦洲鎮[地址(2)]).
Em 9 de Fevereiro de 2024, a autorização de residência da requerente foi declarada inválida pela entidade requerida.
O marido e o filho da requerente vivem, trabalham e estudam actualmente em Macau”; (cfr., fls. 264 a 264-v e 286 a 286-v respectivamente).

Do direito

3. Como resulta do que se deixou relatado, trazem as já referidas A e B os presentes recursos que tem como objecto os Acórdãos pelo Tribunal de Segunda Instância proferidos nos Procs. n°s 346/2024 e 347/2024 onde se decidiu indeferir os pedidos de suspensão de eficácia que aí apresentaram.

E, antes de mais, uma nota se apresenta de fazer desde já.

Como – bem – se observou nos doutos Pareceres do Exmo. Magistrado do Ministério Público juntos aos autos aquando da sua pendência no Tribunal de Segunda Instância – com os n°s 346/2024 e 347/2024 – não obstante terem as então requerentes pedido a suspensão de eficácia de “várias decisões”, “os dados constantes destes autos e do P.A. demonstram, com clareza e toda a certeza, que o Exmo. Sr. Secretário para a Segurança decretou apenas um despacho na Proposta n.º200230/SRDARPA/2023P (doc. de fls.32 a 33 dos autos), cujo texto integral é de «Concordo, proceda-se conforme proposto»”; (cfr., fls. 246 a 248 e 270 a 272 respectivamente).

Certo sendo que foi tal entendimento integralmente acolhido pelo Tribunal de Segunda Instância nos seus Acórdãos objecto dos recursos a este Tribunal de Última Instância trazidos, e dúvidas também não havendo que sobre o assim considerado e decidido nada dizem as ora recorrentes, mostra-se de ter como (definitivamente) clarificado este aspecto, (sobre o “acto administrativo” cuja suspensão de eficácia pretendem as ora recorrentes); (valendo aqui a pena recordar o teor da aludida “informação” na qual foi o mesmo “despacho” exarado:
“ Governo da Região Administrativa Especial de Macau
CORPO DE POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
Parecer:
- Concordo com o parecer e a proposta do Chefe substituto do Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência;
- À consideração do Secretário para a Segurança.
Comandante do CPSP
Ass. vide o original
25.Jan.2024

1. Foi concedida pelo CPSP em 23 de Fevereiro de 2009 (sic.) a autorização de residência a A (que agora tem 64 anos), interessado, e sua filha B (que agora tem 34 anos), titulares do Salvo-Conduto de “Ida”, com fundamento em reagrupamento familiar com o cônjuge/padrasto C; elas são titulares do BIR permanente de Macau.
2. De acordo com a sentença n.º CR4-22-0255-PCC do TJB, o interessado contraiu casamento falso com C no Interior da China e, aproveitando a identidade de residente de Macau deste, obteve o registo e a certidão de casamento que não estavam conformes à realidade, por conseguinte, enganou as autoridades do Interior da China e de Macau com essa certidão e apresentou-lhes os pedidos de reagrupamento e de fixação de residência em Macau com fundamento em reagrupamento casal e relação entre o padrasto e a filha, a fim de obter para si e a sua filha os documentos legais necessários para residirem e permanecerem em Macau, a sua conduta prejudicou a fé pública deste tipo de documentos comprovativos, lesou os interesses da RAEM e do terceiro, no fim, conseguiu adquirir para A e B o direito à residência e o BIRM; em 16 de Junho de 2023, o TJB condenou o interessado A e C pela prática dum crime de falsificação de documentos respectivamente em pena de prisão de 2 anos e 3 meses, cuja execução ficou suspensa por 2 anos, a sentença foi transitada em julgado em 6 de Julho de 2023 (doc. 47-60).
3. A autorização de residência de A foi concedida com base na certidão de casamento, que não estava conforme à realidade, a conduta criminosa envolvida serviu de factor essencial para a concessão da autorização, o TJB também proferiu a sentença condenatória sobre a conduta criminosa, pelo que, o nosso Departamento instaurou o procedimento da audiência escrita nos termos da lei, pretendendo declarar nula a autorização de residência concedida ao interessado e sua filha, e enviou-lhes a notificação da audiência escrita.
4. Em 14 de Setembro e 18 de Setembro de 2023, o CPSP recebeu as alegações escritas e respectivos documentos entregues pelo advogado do interessado e sua filha, o teor centra-se no sentido de que elas vivem em Macau há muito tempo e esperam que possam manter a sua autorização de residência por motivo humanitário; o advogado também entregou os depoimentos escritos das testemunhas sobre a residência habitual e a situação familiar do interessado e sua filha em Macau.
5. Após analisados os documentos entregues na fase da audiência pelo interessado e sua filha, afigura-se insuficiente a fundamentação; além disso, ponderando que: 1. A relação matrimonial entre o interessado A e C foi o elemento principal considerado no acto administrativo de concessão da autorização de residência, ou seja, o pressuposto e requisito, foi impossível conceder a autorização se não houvesse essa relação; 2. A relação matrimonial entre A e C foi falsa, o acto administrativo de concessão da autorização de residência, em que se envolveu a conduta criminosa do interessado, padeceu do vício do erro; 3. A única razão pela qual B adquiriu a sua autorização de residência foi a relação matrimonial entre a mãe A e C, igualmente, o acto de concessão da autorização foi afectado pela referida conduta criminosa; pelo que, propõe-se declarar nula a autorização de residência do interessado A e sua filha B, ao abrigo do art.º 122.º n.º 2 alínea c) do CPA.
À consideração do Comandante.
17/Jan/2024
Chefe substituto do Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência
Ass. vide o original
D, subintendente
Despacho:

Concordo, proceda-se conforme proposto.
O Secretário para a Segurança
Ass. vide o original
Wong Sio Chak
09/02/2024
”; cfr., fls. 32 a 33 e 42-v a 43, respectivamente).

Aqui chegados, vejamos então se tem as recorrentes razão quanto à pretensão que apresentam.

Batem-se as mesmas recorrentes pela revogação dos Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância com os quais se decidiu indeferir os seus pedidos de suspensão de eficácia do acto administrativo que declarou nulas as suas autorizações de residência em Macau.

Como sabido é, o “acto administrativo” pode ser definido como “a conduta voluntária de um órgão da Administração no exercício de um poder público que para prossecução de interesses a seu cargo, pondo termo a um processo gracioso ou dando resolução final a uma petição, defina, com força obrigatória e coerciva, situações jurídicas num caso concreto”, (cfr., art. 110° do C.P.A.), e, como tal, (e nos termos do art. 117° do mesmo C.P.A.), “goza da presunção de legalidade, o que envolve a sua imediata obrigatoriedade e a executoriedade dos imperativos nele contidos”; (sobre o tema, cfr., v.g., M. Caetano in, “Manual de Direito Administrativo”, Vol. I, pág. 463 e segs.).

De facto, como regra geral, a interposição de recurso (contencioso) de um acto administrativo visando a declaração da sua invalidade não tem “efeito suspensivo”.

Tal ausência de efeito suspensivo – como afirma Santos Botelho, no seu “Contencioso Administrativo”, 3ª ed., pág. 446 – “prende-se e encontra a sua justificação na necessidade que, de uma maneira geral, a Administração tem de evitar que a celeridade que com carácter normal deve presidir à actividade administrativa venha a ser entravada por um uso formalista (e reprovável) das garantias contenciosas.

Todavia, impõe-se reconhecer que situações existem em que a imediata execução do acto pode produzir efeitos tais que se torne impossível, mais tarde, quando verificada a sua nulidade ou causa da sua anulação, faze-los desaparecer.

Precisamente para obviar tais situações, admitiu o legislador a possibilidade de o particular se socorrer do meio processual de “suspensão de eficácia do acto”, procurando obviar a que a administração execute o respectivo acto administrativo, desencadeando os seus efeitos jurídicos e materiais de modo a criar ao particular, situações tornadas “irremediáveis” ou “dificilmente reparáveis”.

O “pedido de suspensão de eficácia” apresenta-se assim como que ligado à necessidade de acautelar, ainda que provisoriamente, a integridade dos bens ou a situação jurídica litigiosa, garantindo, correspondentemente, a execução real e efectiva da decisão (e utilidade) do recurso.

Tem, assim, como meio processual acessório de natureza cautelar, o objectivo de evitar os inconvenientes do “periculum in mora” decorrentes do funcionamento do sistema judicial; (neste sentido, vd., Vieira de Andrade in, “A Justiça Administrativa”, 2ª ed. pág. 167 e F. do Amaral in, “Direito Administrativo”, Vol. IV, pág. 302).

É assim a “suspensão da eficácia de actos administrativos” – matéria regulada nos art°s 120 e segs. do C.P.A.C. – uma “providência cautelar” que visa impedir que, durante a pendência de um recurso contencioso (ou acção), ocorram prejuízos ou que a situação de facto se altere de modo a que a decisão que se vier a proferir, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela, tornando-se numa decisão (puramente) “platónica”.

Assim, sem mais demoras, importa apreciar se verificados estão os “requisitos” para a concessão da requerida “suspensão de eficácia” do acto administrativo atrás identificado.

Antes de mais, mostra-se de atentar que nos termos do art. 120° do C.P.A.C.:

“A eficácia de actos administrativos pode ser suspensa quando os actos:
a) Tenham conteúdo positivo;
b) Tendo conteúdo negativo, apresentem uma vertente positiva e a suspensão seja circunscrita a esta vertente”.

E, assim, só os actos positivos ou negativos com vertente positiva é que são passíveis de suspensão da sua eficácia; (cfr. art. 120° do C.P.A.C.).

É de considerar “acto negativo” o indeferimento de uma pretensão constitutiva, pois que o mesmo é “neutro” do ponto de vista dos seus efeitos, uma vez que tudo permanece na mesma, deixando intocada a esfera jurídica do interessado.

E como – bem – observa José Cândido de Pinho:

“«Acto administrativo de conteúdo positivo» é todo aquele que altera a ordem jurídica existente no momento em que é praticado. Introduz modificações na ordem jurídica e nas posições jurídicas substantivas dos interessados em relação ao que antes dele (acto objecto do pedido) acontecia. São exemplos disso, os actos de nomeação de um funcionário, os actos de demissão, ou os actos de autorização.
Portanto, e ao contrário do que sugere o adjectivo «positivos», para este efeito não se refere o legislador apenas aos actos favoráveis, àqueles que se reflectem positivamente na esfera de direitos e interesses dos interessados.
O vocábulo «positivos» tem aqui um sentido mais vasto, de modo a cobrir qualquer invasão daquela esfera, tanto favorável, como negativamente. Quer dizer, também os actos desfavoráveis ao requerente são considerados actos positivos na acepção que aqui está em causa, na medida em que alteram um “status” anterior. Portanto, desde que haja um corte total ou parcial com o passado, alterando-o, desde que o acto seja total ou parcialmente ablativo relativamente a uma situação anteriormente existente, desde que haja uma perda ou diminuição da posição jurídica substantiva do interessado requerente, estaremos também perante um acto positivo como condição de acesso ao uso do meio de suspensão de eficácia. Exemplo disso é o acto que determina a cassação de uma licença ou impõe a cessação de uma actividade”; (in “Notas e Comentários ao C.P.A.C.”, Vol. II, pág. 190 e segs.).

Nesta conformidade, atenta a “decisão em questão”, cremos pois que inegável se apresenta a sua vertente “positiva” (ou “efeito positivo”), já que dela decorre uma “alteração” da prévia situação jurídica das ora recorrentes, sendo assim o mesmo – e, por ora, em abstracto – passível de suspensão da sua eficácia.

Nos termos do art. 121° do C.P.A.C.:

“1. A suspensão de eficácia dos actos administrativos, que pode ser pedida por quem tenha legitimidade para deles interpor recurso contencioso, é concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos:
a) A execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso;
b) A suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto; e
c) Do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso.
2. Quando o acto tenha sido declarado nulo ou juridicamente inexistente, por sentença ou acórdão pendentes de recurso jurisdicional, a suspensão de eficácia depende apenas da verificação do requisito previsto na alínea a) do número anterior.
3. Não é exigível a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 para que seja concedida a suspensão de eficácia de acto com a natureza de sanção disciplinar.
4. Ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito previsto na alínea b) do n.º 1, a suspensão de eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente.
5. Verificados os requisitos previstos no n.º 1 ou na hipótese prevista no número anterior, a suspensão não é, contudo, concedida quando os contra-interessados façam prova de que dela lhes resulta prejuízo de mais difícil reparação do que o que resulta para o requerente da execução do acto”.

Atenta a redacção do preceito em causa, tem-se vindo a entender que os requisitos enumerados nas “alíneas a), b) e c)” são de verificação “cumulativa”; (cfr., v.g., entre outros, os Acs. deste T.U.I. de 16.05.2018, Procs. n°s 21/2018 e 38/2018, de 04.10.2019, Proc. n.° 90/2019, de 26.02.2020, Proc. n.° 136/2019, de 13.01.2021, Proc. n.° 212/2020, e as Decisões Sumárias de 26.04.2021, Proc. n.° 49/2021 de 19.04.2022, Proc. n.° 41/2022, de 07.06.2022, Proc. n.° 70/2022 e de 09.07.2024, Proc. n.° 74/2024/A).

No caso dos presentes autos, entendeu o Tribunal de Segunda Instância que verificados não estavam os necessários “previsíveis prejuízos de difícil reparação” para as ora recorrentes em resultado da (imediata) execução do “acto administrativo” em questão.

E, nesta conformidade – considerando não verificado o requisito (atrás) enunciado na al. a) do n.° 1 do art. 121° do C.P.A.C. – indeferiu os seus pedidos de suspensão de eficácia que deduziram.

Sem embargo do muito respeito devido, cremos que não se pode manter o assim decidido.

Vejamos.

Antes de mais, e sobre a matéria que agora nos ocupa, vale a pena recordar o seguinte excerto do comentário por Cândido de Pinho efectuado ao referido “pressuposto”:

“8 – (…)
Com o advérbio- previsivelmente, está o legislador a alertar que o interessado invoque e prove uma situação de facto de onde se extraia com muita probabilidade a ocorrência dos danos. Quer isto dizer, que o requisito em apreço não se basta com uma alegação vaga, superficial, mais ou menos conclusiva dos danos. Também não é suficiente invocar ou reproduzir as palavras da lei. É preciso expor e especificar muito bem a situação factual concreta, de modo a que fique bem claro que, sem a suspensão, a esfera jurídica do interessado ou dos que ele defende, ficará muito provavelmente lesada. É que, neste capítulo, a alínea demonstra perfeitamente que não estamos perante um quadro de presunção “iuris tantum” acerca da existência do prejuízo.
Depois, é preciso ainda que os efeitos danosos sejam de tal modo severos que se tomem de difícil reparação. É evidente que este é um conceito indeterminado. Mas até por assim ser, mais cuidado deve o requerente elaborar e expor um quadro fáctico bem fundamentado, capaz de convencer o tribunal de que o recurso contencioso bem sucedido seguido da execução do julgado dificilmente será apto a reparar os prejuízos sofridos, a ponto de repor integralmente a situação actual hipotética. Portanto, deverá ser neste requisito que o recorrente deve depositar a sua máxima atenção.
E claro que a prova aqui não tem que ser cabal, perfeita e exaustiva, como aquela que se faz geralmente numa acção; em vez disso, é perfunctória, característica e própria de uma providência cautelar, de processado urgente. Isso, contudo, não desobriga o interessado de narrar circunstanciadamente os factos, expor muito bem a sua situação jurídico/material pretérita e actual, bem como os danos advenientes e futuros que sejam causa do acto suspendendo. O referido conceito indeterminado deve ser, portanto, densificado o máximo que puder ser através de factos que sejam verosímeis e demonstráveis, sem prejuízo daqueles que, por muito evidentes, tenham a natureza de notórios (art. 250°, n°2 do CC e 434°, do CPC).
(…)
12 – Deve ter-se em conta que os danos a invocar e provar são os danos que devem resultar do acto através de um juízo assente na lógica e na consequência pura. Quer dizer, segundo um padrão objectivo, os prejuízos hão-de decorrer da execução do acto, de tal modo que é pressuposta a verificação de uma relação de causa-efeito entre o acto e a sua execução. Desta feita, entende-se que ficam fora da previsão da alínea os prejuízos hipotéticos, eventuais e conjecturais.
13 – E os danos morais serão de considerar na figura?
Qualquer decisão ablativa, qualquer acto decorrente de uma Administração dita “agressiva”, até mesmo qualquer indeferimento pode provocar aborrecimentos, dores de cabeça, arrelias, mal-estar; é natural, é próprio da reacção do ser humano perante uma adversidade. E pode ser ainda uma “perda de face”, uma indignidade perante a sociedade em geral ou perante um grupo (profissional, social, lúdico, desportivo, etc.) no qual o interessado se encontre incluído, uma humilhação, a vergonha profunda, um forte desgosto, etc.
Também não repugna admitir que a demolição da casa, que sempre serviu de moradia do requerente e da sua família mais próxima e directa e que, portanto, neles criou uma ligação afectiva, ou a separação de uma mãe do seu filho menor de terna idade, que dos seus cuidados e amparo precisa, haverá de gerar danos desse tipo.
Todavia, independentemente da verificação de danos morais, o que releva para a caracterização do requisito será intensidade deles. E isso, só casuisticamente pode ser analisado. Portanto, o que podemos dizer é que os danos morais não estão necessariamente afastados da previsão da norma em apreço; devemos, por outro lado, entender que só devem ser atendidos aqueles que, pela sua gravidade, intensidade e objectividade, mereçam a tutela do direito. Assim o proclama o art. 489° do Código Civil”; (in ob. cit., pág. 214 e segs., e, no mesmo sentido, V.
Lima e A. Dantas in, “C.P.A.C. Anotado”, pág. 347 e segs., e, v.g., o Ac. deste T.U.I. de 13.01.2021, Proc. n.° 212/2020).

Na verdade, só existe “prejuízo de difícil reparação” quando a avaliação dos “danos” e a sua “reparação”, não sendo de todo em todo “impossíveis”, podem tornar-se “muito difíceis”, sendo de se considerar “prejuízo de difícil reparação” a privação de rendimentos geradora de uma “situação de carência quase absoluta” e de “impossibilidade de satisfação das necessidades básicas e elementares”, (ao requerente cabendo, como se referiu, o “ónus” de alegar e provar, com elementos objectivos e concretos, a verificação do “prejuízo de difícil reparação” causado pelo acto administrativo cuja suspensão de eficácia requer).

Sobre idêntica questão à que ora se aprecia, já se pronunciou também este Tribunal de Última Instância, considerando, nomeadamente, que:

“I – No procedimento cautelar de suspensão de eficácia de actos administrativos, para que a pretensão seja concedida, é necessário verificar-se o requisito do prejuízo de difícil reparação para o requerente, causado pela execução do acto, salvo no caso de acto com a natureza de sanção disciplinar.
II – Assim, desde que não se verifique tal requisito, está o tribunal dispensado de examinar a verificação dos outros requisitos.
III – Existe prejuízo de difícil reparação naquelas situações em que a avaliação dos danos e a sua reparação, não sendo de todo em todo impossíveis, podem tornar-se muito difíceis.
IV – Trata-se de prejuízo difícil reparação o consistente na privação de rendimentos geradora de uma situação de carência quase absoluta e de impossibilidade de satisfação das necessidades básicas e elementares”, (cfr., v.g., o Ac. de 25.04.2001, Proc. n° 6/2001, e, no mesmo sentido, os já citados Acs. de 16.05.2018, Proc. n.° 21/2018 e 38/2018, podendo-se também ver, os Acs. de 14.05.2010, Proc. n.° 15/2010, de 15.07.2015, Proc. n.° 28/2015, de 27.09.2018, Proc. n.° 69/2018, de 30.07.2019, Proc. n.° 71/2019, de 04.10.2019, Proc. n.° 90/2019, de 30.10.2019, Proc. n.° 99/2019, de 26.02.2020, Proc. n.° 136/2019 e de 13.01.2021, Proc. n.° 212/2020, assim como as Decisões Sumárias de 26.04.2021, Proc. n.° 49/2021 e de 19.04.2022, Proc. n.° 41/2022, e, J. Cândido de Pinho in, ob. cit., pág. 215 e segs., quanto aos critérios a utilizar para a densificação do conceito indeterminado “prejuízos de difícil reparação”).

In casu, e em face da “matéria de facto” que entendeu considerar “assente”, e como se referiu, decidiu o Tribunal de Segunda Instância que verificados não estavam os necessários “previsíveis prejuízos de difícil reparação” para as ora recorrentes.

Considerou-se, aliás, (ou melhor, de forma mais rigorosa), que as recorrentes não alegaram, de forma “concreta” e “objectiva”, em que consistiam tais “prejuízos”.

E, assim, perante tal “ausência de matéria”, outra solução não existia que não o decretado indeferimento dos seus pedidos.

Ora, como cremos que se deixou explicitado, óbvio é que é ao (próprio) requerente de um pedido de suspensão de eficácia – como os dos autos – que cabe o “ónus” de alegar e especificar – e provar – os “prejuízos irreparáveis” que considera vir a ter ou sofrer com a (imediata) execução do “acto administrativo objecto do seu pedido”, não bastando invocar – ainda que grandes – “inconvenientes”, “sofrimentos”, “perdas económico-financeiras”, sem concretizar, de forma clara, perceptível e visível, em que consistem, de forma a se poder aferir qual a sua “extensão”, “intensidade” e “potencialidade” de causar os aludidos prejuízos.

E, no caso dos autos, analisando tudo o que as ora recorrentes então alegaram nas suas respetivas “petições”, assim como os “documentos” que com as mesmas juntaram para sua explicitação (e prova), cremos que, (embora acertada), “curta” e “insuficiente” se nos apresenta a “factualidade” pelo Tribunal de Segunda Instância dada como “relevante” e “provada” sobre a sua “real situação”.

–– Vejamos, começando pela recorrente A.

Pois bem, para além do que em sede da atrás retratada factualidade provada se consignou como relevante e provada, da sua petição inicial e documentos apresentados, (cfr., fls. 3 e segs. do Processo no Tribunal de Segunda Instância registado com o n.° 346/2024), consta, e retira-se, nomeadamente, que a mesma alegou ser natural de Xinhui da Província de Guangdong, portadora de B.I.R.P.M. n.° XXXXXXX(X), ter 65 anos de idade, estando na idade de aposentação, que com a autorização da sua residência na R.A.E.M., onde fez formação profissional, trabalhou e efectuou descontos e contribuições para o Fundo de Segurança Social, cancelou a sua conta (original) no Interior da China, (onde actualmente reside), que precisa dos cuidados e apoio da sua filha, (ora também recorrente e igualmente residente no Interior da China), e que, com a execução do acto administrativo em questão perderá toda a assistência e subsídios que necessita e beneficia, especialmente, em resultado das contribuições que durante os anos que viveu e trabalhou em Macau efectuou, deixando, assim, de ter as “condições mínimas de vida”; (cfr., art°s 79° a 91°, 114° e 115° da aludida petição inicial).

Ora, admite-se, que se possa, eventualmente, considerar o alegado algo “vago”, até porque, e muito infelizmente, muito do que na referida petição inicial se alegou não tem (efectivamente) utilidade e relevância alguma, apenas podendo servir para dar a aparência de que encetado foi um “grande esforço argumentativo”…

Porém, e sendo os “documentos” pelas partes juntos com os seus articulados uma “forma” de expor, complementar e explicitar, (e provar) os factos aí alegados, importa, (especialmente), não perder de vista que, in casu, da sentença proferida no Proc. n.° CR4-22-0255-PCC, datada de 16.06.2023 – cuja cópia a recorrente juntou, (cfr., fls. 45 a 56), e se fez expressa referência na atrás aludida “factualidade provada” – consta como “matéria de facto dada como provada” pelo Colectivo do Tribunal Judicial de Base que a recorrente encontra-se “desempregada”, “recebendo (apenas) um subsídio do Fundo de Segurança Social de Macau de MOP$2.800,00 por mês”.

E, em face do que nestes termos se deixou exposto – e sabendo-se, igualmente, que o Governo da R.A.E.M. concede aos seus residentes com a referida idade outros subsídios e ajudas; (cfr., o Capítulo das “Prioridade da acção governativa para o ano de 2024”, no “Relatório das Linhas de Acção Governativa”, e as aí previstas “medidas em prol do bem estar da população”) – mostra-se-nos de considerar que, no que toca à ora recorrente, realmente “curta” é a factualidade pelo Tribunal de Segunda Instância tida como relevante e provada, sendo, desta forma, (manifestamente) “insuficiente” para uma decisão de direito que se deseja, (e quer), rigorosa e conscienciosa, e, naturalmente, assente em “situação fáctica” com adequada e a mais exacta correspondência possível com a realidade e verdade material.

–– Relativamente à recorrente B, a mesma se nos apresenta ser a situação.

Com efeito, resulta também da sua petição inicial e documentos pela mesma juntos, (cfr., fls. 3 e segs. do Proc. n.° 347/2024 do T.S.I.), que é natural de Xinhui da Província de Guangdong, portadora de B.I.R.P.M. n.° XXXXXXX(X), tem um filho menor, nascido em 16.03.2018, que vive com o pai, seu marido, em Macau, onde também estuda, e que embora ela viva no Interior da China, onde (igualmente) já não possui conta, estudou e trabalha na R.A.E.M. há vários anos, onde pagou e paga impostos e outras contribuições, e que a imediata execução do acto administrativo em questão implicará, necessariamente, a quebra e perda de um permanente e contínuo contacto com o seu filho menor que precisa da sua assistência, assim como a perda do emprego que tem e do respectivo vencimento mensal, e, assim, das suas “condições mínimas de vida”; (cfr., nomeadamente, os art°s 133° a 140°, 147° e 163° da dita petição inicial).

E, na sequência de tudo o que se deixou exposto, quid iuris?

Pois bem, antes de mais, mostra-se-nos adequado consignar que se nos afigura que, nos tempos que correm, ultrapassada se deve considerar uma concepção “tradicional” em matéria de sentido e alcance do conceito jurídico (e indeterminado) de “prejuízo absolutamente irreparável”, mais adequada sendo uma ponderação onde se dê relevância a critérios como o da “irreversibilidade” ou da “intolerabilidade”; (cfr., v.g., Vieira de Andrade in, “A justiça Administrativa”, pág. 168).

E, nesta conformidade, em nossa modesta opinião – sendo mesmo de aqui afirmar que o pelas recorrentes alegado nas suas petições iniciais não seja propriamente um “modelo” de exemplar e perfeito exercício de alegação de matéria de facto, (e, ainda que se possa considerar ser algo vago, e com deficiências – mostra-se-nos porém claro que existe efectivamente “matéria de facto” (relevante) por apurar, havendo, assim, em face da referida insuficiência, que se proceder a sua uma ampliação nos termos do art. 650° do C.P.C.M., aqui aplicável, impondo-se anular as decisões em causa para que, nada obstando, pela Instância recorrida a tal se proceda com nova decisão sobre o pelas ora recorrentes requerido; (sobre a matéria e questão da “ampliação da matéria de facto”, cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 19.12.2001, Proc. n.° 10/2001, de 18.01.2006, Proc. n.° 25/2005, de 06.03.2013, Proc. n.° 5/2013, de 18.06.2014, Proc. n.° 19/2014 e de 13.11.2019, Proc. n.° 106/2019).

Decisão

4. Face ao expendido, em conferência, acordam anular os Acórdãos recorridos para que pelo Tribunal de Segunda Instância se venha a proceder à referida “ampliação da matéria de facto” com nova decisão sobre o pedido das ora recorrentes.

Sem tributação.

Registe e notifique.

Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.S.I. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 29 de Julho de 2024


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
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