ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
A e B, ambos melhor identificados nos autos, propuseram,conjuntamente com outros e junto do Tribunal Administrativo Acção para Efectivação de Responsabilidade Civil Extracontratual contra a Região Administrativa Especial de Macau.
Por sentença proferida nos autos n.º 349/19-RA, decidiu o Exmo. Juiz titular do processo julgar improcedente a acção e, em consequência, absolver a Ré dos pedidos formulados pelos Autores (cfr. fls. 783 a 791 dos autos).
No recurso interposto pelos Autores (Proc. n.º 1153/2019) e por acórdão constante de fls. 894 a 905v dos autos, o Tribunal de Segunda Instância decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Inconformados com a decisão, vêm os Autores recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. O Acórdão proferido é nulo, por omissão de pronúncia, ao não se ter pronunciado sobre os erros de julgamento imputados à sentença proferida pelo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 571.º, alínea d), primeira parte, do Código de Processo Civil, dada a inaplicabilidade do artigo 631.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, em face da presença de um voto de vencido no Acórdão.
II. O Acórdão proferido é nulo por falta de especificação dos factos provados, e respectiva fundamentação, e por falta de fundamentação da decisão quanto segunda causa de pedir deduzida – responsabilidade por acto lícito –, em violação do artigo 562.º, n.os 2 e 3, nos termos do artigo 571.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
III. O artigo 429.º, n.º 1, alínea b), apenas permite que seja proferido saneador-sentença se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. De maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final.
IV. No caso dos autos já factos controvertidos e várias soluções plausíveis de direito, conforme sustentado pela doutrina maioritária referenciada no recurso interposto e pela doutrina civilista maioritária referenciada nos Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância, de 27/02/2020, processo n.º 1152/2019 (também nos Processos n.os 1144/2019; 1155/2019; 1176/2019 e 1199/2019) e na declaração de voto proferida nos presentes autos.
V. Havendo várias soluções plausíveis de direito e factos controvertidos, a conjugação entre o artigo 429.º, n.º 1, alínea b), e o artigo 430.º, n.º 1, do Código de Processo Civil vincula o julgador a abrir a fase de instrução.
VI. Ao decidir manter a sentença do Tribunal Administrativo, considerando inútil especificar factos provados ou abrir a instrução do processo, o Tribunal de Segunda Instância incorreu em erro de julgamento, com violação dos artigos 87.º, 429.º, n.º 1, alínea b), e 430.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e dos cânones de interpretação positivados no artigo 8.º do Código Civil.
VII. Ao considerar a RAEM como se de um privado se tratasse, para efeitos de negar qualquer relação entre esta e os promitentes compradores, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nesse artigo 4.º do Código do Procedimento Administrativo.
VIII. O dever de fundamentação das sentenças exige que se identifique o raciocínio expendido pelo julgador para alcançar uma conclusão de direito, não se bastando com a identificação dessa conclusão.
IX. Ao considerar que o Tribunal Administrativo não incorreu em nulidade por falta de fundamentação relativa à segunda causa de pedir inscrita na petição inicial, o Acórdão recorrido incorre em erro de julgamento, com violação do disposto no artigo 562.º, n.os 2 e 3, nos termos do artigo 571.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil e (ii) por considerar que uma fundamentação inexistente é suficiente.
X. Ao considerar a RAEM como um terceiro relativamente aos recorrentes e aos contratos-promessa celebrados, o Acórdão recorrido (ao remeter a sua fundamentação para o conteúdo da sentença do Tribunal Administrativo) incorreu em erro de julgamento, com violação do artigo 5.º do Código de Registo Predial.
XI. Ao considerar que a RAEM se limitou a actuar dentro dos limites conferidos pelo seu estatuto de concedente ou dos poderes autoritários inerentes ao procedimento administrativo, o Acórdão recorrido (ao remeter a sua fundamentação para o conteúdo da sentença do Tribunal Administrativo) incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nos artigos 2.º, 4.º e artigo 167.º, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo e 220.º da LT/2013.
XII. Ao considerar que a actuação da RAEM é insusceptível, por natureza, de lesar os promitentes compradores por com eles não se ter relacionado directamente, o Acórdão recorrido (ao remeter a sua fundamentação para o conteúdo da sentença do Tribunal Administrativo) incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nos artigos 3.º, 4.º, 7.º e 8.º do Código do Procedimento Administrativo e dos artigos 2.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril.
XIII. Ao considerar que a culpa do serviço não opera perante actuações especialmente chocantes da Administração, fundadas no abuso de direito de terceiro, o Acórdão recorrido (ao remeter a sua fundamentação para o conteúdo da sentença do Tribunal Administrativo) incorreu em erro de julgamento.
XIV. Ao considerar inexistir nexo de causalidade entre o acto que declarou a caducidade da concessão e os prejuízos sofridos pelos recorrentes, o Acórdão recorrido (ao remeter a sua fundamentação para o conteúdo da sentença do Tribunal Administrativo) incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto no artigo 557.º do Código Civil.
Em representação da RAEM, apresentou o Ministério Público a resposta, pugnando pela improcedência do recurso (cfr. fls. 992 a 996v dos autos).
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.
2. Fundamentação
Imputam os recorrentes ao acórdão recorrido os seguintes vícios:
- Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, por não se ter pronunciado sobre os erros de julgamento imputados à sentença proferida pelo Tribunal Administrativo, nos termos do art.º 571.º, al. d), primeira parte, do CPC, dada a inaplicabilidade do art.º 631.º, n.º 5 do CPC, em face da presença de um voto de vencido no acórdão;
- Nulidade do acórdão por falta de especificação dos factos provados, e respectiva fundamentação, e por falta de fundamentação da decisão quanto à segunda causa de pedir deduzida – responsabilidade por acto lícito, em violação do art.º 562.º, n.os 2 e 3, nos termos do art.º 571.º, n.º 1, al. d) do CPC; e
- Erros de julgamento, com violação de várias normas legais, incluindo os art.ºs 87.º, 429.º, n.º 1, al. b), 430.º, n.º 1, 562.º, n.os 2 e 3 do CPC, o art.º 8.º e 557.º do CC, os art.ºs 2.º, 3.º, 4.º, 7.º, 8.º e 167.º, al. a) do CPA, o art.º 5.º do Código de Registo Predial, o art.º 220.º da Lei de Terras (2013) e os art.ºs 2.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 28/91/M.
Vejamos.
2.1. Da nulidade por omissão de pronúncia
Alegam os recorrentes que é nulo o acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, ao não se ter pronunciado sobre os erros de julgamento imputados à sentença proferida pelo Tribunal Administrativo, nos termos do art.º 571.º, al. d) do CPC, dada a inaplicabilidade do art.º 631.º, n.º 5 do CPC, uma vez que houve um voto de vencido nesse acórdão.
Ora, nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do CPC, é nula a sentença “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
Quanto às questões a resolver na sentença, decorre do art.º 563.º do CPC que o juiz deve resolver todas as questões suscitadas pelas partes, devendo ocupar-se apenas dessas questões, salvo questões de conhecimento oficioso.
E só a omissão de pronúncia sobre questões que o juiz tem a obrigação de conhecer determina a nulidade da sua sentença.
Por questões entendem-se “(…) todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes”.1
Cumpre notar, no entanto, que “A obrigatoriedade de o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não significa que o juiz tenha, necessariamente, de apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para fundamentarem a resolução de uma questão.” 2
É também esse o entendimento do Tribunal de Última Instância da RAEM: “E só a omissão de pronúncia sobre questões, e não sobre os fundamentos, considerações ou razões deduzidas pelas partes, que o juiz tem a obrigação de conhecer determina a nulidade da sentença.” 3
No caso vertente, o vício foi assacado porque, na óptica dos recorrentes, não é aplicável a norma contida no art.º 631.º, n.º 5 do CPC, em face de existência de um voto de vencido.
Com a epígrafe “Elaboração do Acórdão”, dispõe a norma invocada o seguinte:
“Quando o Tribunal de Segunda Instância confirmar inteiramente e sem voto de vencido o julgado em primeira instância, quer quanto à decisão, quer quanto aos respectivos fundamentos, pode o acórdão limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos invocados na decisão impugnada.”.
Trata-se duma faculdade conferida ao Tribunal no uso do qual pode este limitar-se a negar provimento ao recurso através da mera remissão para os fundamentos expostos na decisão recorrida, fazendo seus tais fundamentos.
Para a doutrina, “O n.º 5 permite a fundamentação por simples remissão para os termos da decisão recorrida, desde que esta haja sido confirmada inteiramente e por unanimidade, sem qualquer declaração de voto. É evidente que a aplicação deste regime pressupõe que todas as questões suscitadas pelo recorrente encontram resposta cabal na decisão recorrida, sob pena de ocorrer a nulidade por omissão de pronúncia. (…)”4
Resulta claramente da norma que o uso da faculdade só é possível no caso em que o TSI confirma inteiramente e “sem voto de vencido” o julgado em primeira instância.
No nosso caso concreto, é verdade que, não obstante a confirmação da sentença do Tribunal Administrativo, o acórdão recorrido não foi tirado por unanimidade, havendo uma declaração de voto vencido subscrito por um dos juízes que fez parte do Colectivo que julgou o recurso interposto daquela sentença.
No entanto, não se vislumbra no acórdão recorrido uma situação em que o Tribunal recorrido se tenha limitado a negar provimento ao recurso, fundamentando a sua decisão por simples remissão para os termos da decisão recorrida.
Tal como se pode constatar no acórdão recorrido, a verdade é que, pese embora a referência ao disposto do art.º 631.º n.º 5 do CPC, após a transcrição inteira da sentença de primeira instância, o Tribunal recorrido não se limitou a sufragar a fundamentação e a decisão explanada na sentença, não ficando por aí; antes pelo contrário, continuou a expor os motivos que o levaram a subscrever e aderiu aos argumentos deduzidos naquela sentença, de modo a deixar claro o seu entendimento, devidamente fundamentado, de considerar justa e correcta a decisão recorrida (fls. 903v a 905v dos autos).
Acresce que nada obsta a que, na concordância com os fundamentos expostos na sentença de primeira instância, o TSI decida aderir aos mesmos, sem necessidade de uso de faculdade prevista no n.º 5 do art.º 631.º.
Repetindo, não se pode afirmar que o TSI se tenha limitado a confirmar a decisão recorrida por simples remissão para os seus fundamentos.
É ainda de salientar que o Exmo. Juiz do Tribunal Administrativo fez na sua decisão uma análise aprofundada sobre as questões que se mostram relevantes para conhecer dos pedidos formulados pelos Autores, tendo concluído pela improcedência da acção intentada.
Assim sendo, não se afigura verificada a imputada nulidade por omissão de pronúncia.
2.2. Da nulidade por falta de fundamentação
Na óptica dos recorrentes, o acórdão recorrido “é nulo por falta de especificação dos factos provados, e respectiva fundamentação, e por falta de fundamentação da decisão quanto segunda causa de pedir deduzida – responsabilidade por acto lícito –, em violação do artigo 562.º, n.os 2 e 3, nos termos do artigo 571.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil”.
Desde logo, é de reparar que a alegada falta de fundamentação, enquanto uma das causas da nulidade da sentença, se encontra prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 571.º do CPC, segunda a qual é nula a sentença “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Como é sabido, tanto a doutrina como a jurisprudência têm vindo a considerar que só constitui a dita nulidade da sentença a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente.
“Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da fundamentação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”, sendo que “por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”. 5
E importa esclarecer que “a nulidade da alínea b) (quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão) só se verifica na ausência total de fundamentação.
Se a fundamentação é deficiente ou incompleta, não há nulidade. A sentença será então, ilegal ou injusta, podendo da mesma ser interposto recurso, nos termos gerais.”6
Sobre a questão ora em causa, este Tribunal de Última Instância tem reiterado o seu entendido no sentido de que a insuficiência de fundamentação não gera a nulidade da sentença mas sim pode redundar em erro de julgamento7 e que “apenas a total omissão de fundamentos constitui a falada nulidade de sentença e não já a deficiente fundamentação”.8
E “não se deve confundir a falta de fundamentação da sentença, que só no caso de falta absoluta se pode conduzir à sua nulidade, com a escassez ou insuficiência da fundamentação ou o seu erro jurídico, consubstanciado no erro de julgamento, em que se baseia a discordância de recorrente”.9
Posto isto e face à argumentação e aos motivos expostos pelo Tribunal recorrido no seu acórdão para fundamentar a decisão, cremos que não se verifica, in casu, o vício imputado.
Vêm os recorrentes afirmar que nem a sentença do Tribunal Administrativo nem o acórdão do TSI procederam a uma especificação da matéria de facto, para além de sustentar a falta de fundamentação da decisão quanto à segunda causa de pedir deduzida – responsabilidade por acto lícito.
Salvo o devido respeito por entendimento diferente, afigura-se-nos não assistir razão aos recorrentes.
Desde logo, é verdade que nos autos não foi efectuada a selecção da matéria de facto.
Constata-se na sentença do TA que este decidiu pela manifesta inviabilidade da acção, sem que tenha efectuado a selecção da matéria de facto, pois considerou que “a decisão conscienciosa para o caso concreto depende só da solução da questão meramente jurídica, que não se considera impedida pelo conhecimento prévio da excepção de prescrição, motivo pelo qual despicienda a precisão do apuramento fáctico, passa a conhecer imediatamente dos pedidos dos Autores, …”, sendo por isso irrelevante a eventual prova de todos os factos alegados.
Tal entendimento mereceu acolhimento pelo TSI que, na apreciação da questão suscitada pelos Autores a este aspecto, deixou muito explícita a sua posição sobre a desnecessidade de proceder-se à selecção da matéria de facto, invocando o disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 429.º do CPC e citando ainda as considerações de Paulo Ramos de Faria (fls. 903v a 905 dos autos).
Fica assim demonstrado o “porquê” de não selecção da matéria de facto (e de não produção da prova), “dispensa” esta que é legalmente admissível nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 429.º do CPC, tal como salienta o acórdão recorrido.
Por outro lado e quanto à segunda causa de pedir deduzida pelos Autores, resulta do acórdão ora recorrido que, no entender do TSI, “não se verifica a alegada falta de fundamentação da decisão quanto à segunda causa de pedir, a saber, a responsabilidade por acto lícito, considerando que o Tribunal recorrido adoptou a mesma fundamentação da decisão em relação à primeira causa de pedir” (fls. 905 do autos).
E na sentença proferida, o Exmo. Juiz do TA fez a devida análise e pronúncia sobre os factos alegados pelos Autores e “reportados a uma série de condutas dos serviços da Ré, alegadamente ilícitas e impeditivas da conclusão do aproveitamento do respectivo terreno por parte da C”, que “se integram nas causas de pedir”, tendo concluído que os mesmos nunca poderiam fundamentar qualquer direito dos recorrentes a uma indemnização, pois entendeu que “as imputadas condutas, mesmo que fossem verdadeiras, não seriam aptas a indicar a existência de uma actuação culposa da Ré para com os Autores, porque nunca aquela se intrometeu directamente na esfera jurídica destes” (fls. 788v e seguintes dos autos), considerações e conclusão estas que merecem também a concordância do Tribunal ora recorrido.
Tanto para o TA como para o TSI os factos alegados pelos recorrentes, a título de causa, nunca poderiam fundamentar a pretensão deles, independentemente de ser lícitos ou ilícitos.
Assim sendo, não há qualquer falta de fundamentação. O que os recorrentes criticam é, na sua perspectiva, a deficiente fundamentação do TSI, o que não implica a nulidade do acórdão.
Improcede o recurso, também nesta parte.
2.3. Do erro de julgamento
É esta a questão de fundo colocada pelos recorrentes.
Desde logo, é de recordar que, em outros processos semelhantes e sobre a questão idêntica ora em causa, este Tribunal de Última Instância já foi chamado para emitir a pronúncia.
No acórdão proferido em 4 de Maio de 2022 no Processo n.º 101/2020, já transitado em julgado, o TUI fez uma análise profunda sobre a questão e expôs o seguinte entendimento que se passe a transcrever, seguido no acórdão de 13 de Maio de 2020, proferido no Processo n.º 116/202010:
«…, tendo presente o sentido das decisões proferidas pelas Instâncias recorridas e o pelos recorrentes alegado, cabe dizer que, em nossa modesta opinião, a verdadeira “questão” da presente lide recursória consiste (e resume-se) em saber se existe, (ou não), “inconcludência jurídica” na acção pelos ditos recorrentes proposta.
Isto é, importa apreciar (e decidir) se a(s) “causa(s) de pedir” por estes alegada(s) e articulada(s) permitem alcançar o “efeito jurídico” pretendido através do preenchimento da previsão normativa e regime jurídico relevante, e que, no caso, consiste, exactamente, no deduzido “pedido” de condenação da R.A.E.M. no pagamento de uma indemnização no valor de …, montante pelos ditos recorrentes alegado como o “prejuízo” pelos mesmos sofrido em virtude da conduta pela R. desenvolvida e que culminou com a “declaração de caducidade da concessão do terreno” à “C”, com quem aqueles celebraram dois “contratos de promessa de compra e venda” de duas fracções autónomas a construir no terreno em questão, e que, em virtude da resultante “impossibilidade objectiva” na celebração dos contratos definitivos, afirmam ter que despender para adquirir duas fracções semelhantes às que tinham prometido comprar; ….
Com efeito, e como cremos ser pacífico, se o conjunto dos factos pelos recorrentes alegados enquanto “factos constitutivos do seu (reclamado) direito” não preencher – de modo algum – as “condições de procedência da acção”, absolutamente indiferente é então a sua prova, sendo, obviamente, (e totalmente), inútil, toda a tarefa de “selecção da matéria de facto”, “instrução” e posterior “audiência de discussão e julgamento” da mesma; (cfr., v.g., José Lebre de Freitas in, “C.P.C. Anotado”, Vol. 1, pág. 344, e Vol. 2, pág. 373, e in “A Acção Declarativa Comum, À luz do Código Revisto”, 2000, pág. 159, e Abrantes Geraldes in, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. II, pág. 135 a 137).
Ora, constatando-se que os AA., ora recorrentes, invocam a “responsabilidade extracontratual” da R.A.E.M. nos termos do Decreto-Lei n.º 28/91/M de 22.04 – e certo sendo que nos termos do art. 97º do C.P.A.C., “As acções têm por objecto, designadamente, o julgamento de questões sobre: e) Responsabilidade da Administração ou dos titulares dos seus órgãos, (…) por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, (…)”, meio processual este que é de “plena jurisdição”, estando especialmente regulado nos artºs 116º e 117º do mesmo código; (sobre o tema podendo-se ver V. Lima e A. Dantas in, “C.P.A.C. Anotado”, pág. 296 e segs.) – afigura-se-nos, assim, essencial, passar-se a ponderar sobre os (necessários) “requisitos legais” para essa reclamada responsabilização e indemnização.
Apresenta-se-nos porém útil uma nota prévia.
É a seguinte.
Antes de mais, (cabe observar), não se pode perder de vista que em causa está uma questão de “responsabilidade civil”, que – apenas – tem lugar “quando uma pessoa deve reparar um dano sofrido por outra”; (cfr., v.g., Mário Júlio de Almeida Costa in, “Direito das Obrigações”, 12ª ed., pág. 517 e 518, podendo-se também sobre o tema, ver, v.g., R. Alarcão in, “Direito das Obrigações”, pág. 205 e segs., A. Varela in, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 518 e segs., M. Cordeiro in, “Tratado de Direito Civil Português II, Direito das Obrigações”, Tomo III, pág. 285 e segs., e, Manuel Trigo in, “Lições de Direito das Obrigações”, F.D.U.M., pág. 237 e segs.).
Com efeito, nos termos do art. 477º do C.C.M.:
“1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”.
Por sua vez, adequado se nos mostra de atentar que preceitua também o art. 480º do mesmo código que:
“1. É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
2. A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”.
Ora, atento o assim preceituado é opinião – no mínimo – dominante (na doutrina e jurisprudência) que a “responsabilidade civil”, de acordo com a “natureza do dever jurídico violado” se pode distinguir em “contratual” e “extracontratual”, (delitual ou aquiliana), certo sendo ainda que “em função da culpa” pode também ser classificada como responsabilidade “objectiva” e “subjectiva”, consoante a vítima necessite ou não de provar a culpa do agente.
Em relação à matéria da “responsabilidade (civil) administrativa”, (e em abreviada síntese), habitual é dividir-se a evolução do seu regime em 3 períodos (essenciais): o da “irresponsabilidade”, o “civilístico” (ou misto), e o “publicista”.
O primeiro, constituindo característica dos estados absolutistas, assentava, (essencialmente), na (famosa) premissa “the King can do no wrong”, (ou seja, “o rei não erra”), pois que se considerava que sendo o Estado expressão da Lei e do Direito, não havia como considerá-lo violador da norma jurídica.
Em decorrência da evolução das relações Estado-Sociedade, surge, após a Revolução Francesa, (Séc-XVIII), a “teoria da culpa civilística”, que aplicava à responsabilidade do Estado as mesmas regras do direito privado, isto é, era necessária a culpa do agente estatal para que se configurasse a responsabilização do ente público.
Revelando-se, igualmente, insuficiente, surgiram, posteriormente, as “teorias publicistas”, onde a responsabilidade estatal passa a ser examinada sob o prisma dos princípios (próprios) do Direito Administrativo.
Nesta conformidade, reconhecendo-se que em sociedade, é inevitável a ocorrência de danos para as pessoas e o seu património, pois que, a crescente complexidade da vida, em grande parte motivada pela evolução tecnológica, multiplicou, exponencialmente, tal probabilidade, (de tal modo que, como bem identificou Ulrich Beck in, “Risk Society: Towards a New Modernity”, vivemos na actualidade numa “sociedade de risco” «Risikogesellschaft»; cfr., Guimarães Osório in, “A Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração por Violação do Direito da União Europeia”, pág. 12, F.D.U.P.), e para se colmatar uma lacuna até então existente no sentido de se “definir o tipo de responsabilidade por actos ilícitos no domínio da gestão pública, de molde a proteger os legítimos interesses e direitos dos particulares e clarificar o âmbito do dever de indemnizar por parte dos sujeitos lesantes”, tutelando-se, também, “direitos ou interesses que eventualmente venham a ser lesados por factos casuais e actos administrativos legais ou materialmente lícitos”, aprovou-se, em Macau, o referido Decreto-Lei n.º 28/91/M de 22.04; (in B.O. n.º 16/199).
De facto, ao desempenhar as suas funções, a Administração deve fazê-lo de acordo e no estrito cumprimento da “legalidade”, da “realização do interesse público”, no respeito da “igualdade” e “proporcionalidade”, da “justiça”, “imparcialidade” e da “boa fé”; (cfr., artºs 3 e segs. do C.P.A.).
Quando tal actuação provocar “dano”, deverá então ser responsabilizada reflectindo tal possibilidade uma das exigências do (próprio) “Estado Social de Direito”.
A “responsabilidade – civil – administrativa”, consiste, assim, num “conjunto de circunstâncias” das quais emerge, para a Administração Pública e para os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, a “obrigação de indemnizar” pelos prejuízos causados a outrem no exercício da actividade administrativa; (cfr., v.g., Marcelo Rebelo de Sousa in, “Responsabilidade Civil Administrativa – Direito Administrativo Geral”, Tomo III, Publicações Dom Quixote, pág. 11, podendo-se também ver, v.g., M. J. Rangel de Mesquita in, “Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública”).
Desta forma, a “responsabilidade civil pública” será uma obrigação que incide sobre uma pessoa colectiva pública de indemnizar os danos que tiver provocados a um particular no exercício da sua actividade.
Porém, ao se falar em “responsabilidade civil administrativa”, importa ter em conta que o uso do termo “civil” não significa que estamos em sede de “Direito Civil”.
Esta designação indica apenas que a responsabilidade em causa não é “política”, “criminal” ou “contra-ordenacional”, pretendendo-se tão só a prevenção, ou punição, de condutas que se mostrem “antijurídicas”, ou seja, que a Administração repare os danos que possa ter causado na esfera jurídica de um particular.
Como no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência deste Tribunal de Última Instância de 18.01.2006, (Proc. n.º 23/2005), se teve oportunidade de considerar, em teoria, é fácil distinguir a responsabilidade civil “contratual” da “extracontratual”.
Esta última – a extracontratual – assenta na violação de deveres gerais de abstenção, correspondentes aos direitos absolutos, (como, v.g., o direito à vida ou o direito à integridade física).
Por sua vez, a responsabilidade “contratual” resulta do não cumprimento dos deveres próprios das obrigações, (sendo também sabido que, por vezes, o mesmo acto pode originar simultaneamente responsabilidade “contratual” e responsabilidade “extracontratual”: é o caso do médico privado que, em intervenção cirúrgica, culposamente, provoca a morte do paciente. Incorre em responsabilidade contratual por violação da obrigação, do direito de crédito. Incorre em responsabilidade extracontratual por violação do direito absoluto à vida).
Como nota Mário Júlio de Almeida Costa:
“A responsabilidade contratual resulta da violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico. Verificamos, portanto, que o qualificativo corrente não se mostra rigoroso, dado que, além dos contratos, existem outras fontes de tais vínculos, cujo incumprimento ocasiona essa espécie de responsabilidade civil. Podem eles, do mesmo modo, surgir de negócios jurídicos unilaterais e, inclusive, directamente da lei. Mercê da razão exposta, alguns autores preferem chamar-lhe responsabilidade negocial ou responsabilidade obrigacional.
Contraposta à categoria mencionada, surge, em termos residuais, a da responsabilidade extracontratual, onde se abrangem os restantes casos de ilícito civil. Deriva, «maxime», da violação de deveres ou vínculos jurídicos gerais, isto é, de deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos, ou até da prática de certos actos que, embora lícitos, produzem dano a outrem. (…)”; (in ob. cit., pág. 539 e 540).
E como se sabe, embora predomine a “responsabilidade subjectiva”, baseada na “culpa”, sancionam-se também situações excepcionais de “responsabilidade objectiva ou pelo risco”, isto é, situações independentes de qualquer dolo ou culpa da pessoa obrigada à reparação.
Pois bem, da (mera) leitura e comparação das suas respectivas normas legais, pode-se concluir que o atrás referido Decreto-Lei n.º 28/91/M – que, mantendo-se em vigor na R.A.E.M., define o “regime da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, dos seus titulares, e agentes por actos de gestão pública”, (cfr., o seu art. 1º) – tem a sua origem no então vigente Decreto-Lei de Portugal n.º 48 051 de 21.11.67, (entretanto revogado pela Lei n.º 67/2007 de 31.12 que, por sua vez, foi também alterada pela Lei n.º 31/2008 de 17.07).
Cabendo salientar que tal Decreto-Lei n.º 28/91/M colmatou uma lacuna no direito positivo que ocorreu com a publicação do então vigente Código Civil de 1966, o qual, tão só regulou a matéria da responsabilidade civil extracontratual da Administração e demais pessoas colectivas públicas por actos ilícitos praticados no exercício de actividade de “gestão privada”, (cfr., art. 494º do C.C.M.), apresenta-se de ter desde já como unânime que são pressupostos da responsabilidade civil, a “ilicitude”, a “culpa”, o “dano” e o “nexo de causalidade entre o dano e o facto ilícito (e culposo)”, sendo a verificação destes pressupostos “cumulativa”, (ou seja, bastando que um deles se não verifique, para que não exista responsabilidade); (cfr., v.g., e entre outros, F. Pessoa Jorge in, “Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil”, Antunes Varela in, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 532 e segs., e M. Trigo in, “Lições de Direito das Obrigações”, pág. 249 e segs.).
Pronunciando-se sobre o aludido diploma português já teve o S.T.A. (de Portugal) oportunidade de considerar que:
“O legislador faz depender a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, da verificação dos seguintes pressupostos:
a) o facto voluntário, que se traduz numa acção ou omissão da Administração praticada no exercício das funções que lhe foram cometidas pelo legislador e por causa delas;
b) a ilicitude, traduzida na violação por esse facto, do bloco de legalidade;
c) a culpa, como nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto à vontade do agente, a título de dolo ou negligência;
d) o dano, lesão ou prejuízo de valor patrimonial, produzido na esfera de terceiros;
e) e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, a apurar segundo a teoria da causalidade adequada, consagrado no artigo 563.º do CC”; (cfr., Ac. de 27.11.2014, Proc. n.º 1506/13, aqui citado a título de “jurisprudência comparada”).
Na verdade, e como se mostra bastante evidente, longe de verdade não estaremos se tivermos como adequado que no domínio da “responsabilidade civil extracontratual”, a formação da obrigação de indemnizar pressupõe, em princípio, a existência de um facto voluntário ilícito – isto é, controlável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal, um direito ou interesse de outrem legalmente protegido – censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico – ou seja, que lhe seja imputável a título de dolo ou culpa – de um dano ou prejuízo reparável, e, ainda, de um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto, (cfr., artºs 477º, n.º 1, 480º, n.º 2, 556º, 557º e 558º, n.º 1, do C.C.M.), o que, em face do estatuído no art. 2º do referido Decreto-Lei n.º 28/91/M, se apresenta também adequado para o caso da “Responsabilidade da Administração e demais pessoas colectiva públicas”.
E, então, voltando à situação dos presentes autos, importa sublinhar que relativamente ao aludido requisito da “ilicitude”, a mesma não se basta com a verificação de uma qualquer “ilegalidade”, necessário sendo que a mesma constitua ou assente numa violação de uma norma jurídica que tutele (expressa e directamente) uma posição jurídica subjectiva, (cuja lesão se pretende ver reparada).
Assim, adequado se mostra pois de considerar que um acto só será gerador de responsabilidade se as normas ou princípios violados (ou incumpridos) revelarem uma “intenção normativa de protecção de posições jurídicas substantivas dos particulares”, ou, melhor, tão só e apenas, quando se verifique uma “ilegalidade qualificada” é que a mesma determina o surgimento de um “acto gerador de responsabilidade”.
Em suma – e este nos parece constituir o entendimento dominante, (pelo menos, na altura do Decreto-Lei n.º 48 051 Português) – a violação de meros preceitos jurídicos não era, por si só, fundamento bastante para responsabilizar civilmente a Administração, exigindo-se a “ofensa de direitos subjectivos” ou de disposições legais destinadas a proteger os “interesses materiais do lesado”; (orientação que se veio a apelidar de “teoria das normas de protecção”, realçando-se a “dimensão subjectiva do pressuposto da ilicitude”, e exigindo-se, noutra formulação, a necessidade da “ilicitude do resultado”, por mera contraposição à “ilicitude da conduta”; cfr., v.g., Gomes Canotilho in, “O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos”, Coimbra, 1974, pág. 75, nota 17, e Comentário ao Ac. do S.T.A. de 12.12.1989, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 125º, n.º 3816, pág. 83 e 84; Rui Medeiros in, “Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos”, Coimbra, 1992, pág. 168 a 170; Margarida Cortez in, “Responsabilidade civil da Administração por actos administrativos ilegais e concurso de omissão culposa do lesado”, Stvdia Ivridica, 52, 2000, pág. 70 a 72; Ivo Miguel Barroso in, “Ilegalidade e ilicitude no âmbito da responsabilidade civil extracontratual da Administração”, Novas e Velhas Andanças do Contencioso Administrativo – Estudos sobre a Reforma do Processo Administrativo, Lisboa, 2005, pág. 213; Vieira de Andrade in, “A Responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função administrativa na nova lei sobre responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 137º, n.º 3951, 2008, pág. 365; Carlos Alberto Cadilha in, “Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas – Anotado”, Coimbra, 2008, pág. 152 a 154; Luís Cabral de Moncada in, “Responsabilidade civil extra-contratual do Estado – a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro”, Lisboa, 2008, pág. 67; Marcelo Rebelo De Sousa e André Salgado De Matos in, “Direito Administrativo Geral – Actividade Administrativa”, 2ª ed., Lisboa, 2010, pág. 499; Paulo Otero in, “Causas de exclusão da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública por facto ilícito”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Vol. II, Coimbra, 2010, pág. 978 e 981; Alexandra Leitão in, “Duas questões a propósito da responsabilidade extracontratual por (f)actos ilícitos e culposos praticados no exercício da função administrativa: da responsabilidade civil à responsabilidade pública. Ilicitude e presunção de culpa”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Vol. IV, Coimbra, 2012, pág. 53 e 54; e Mário Aroso de Almeida in, “Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas”, Lisboa, 2013, pág. 254; podendo-se, também, a título de jurisprudência comparada, e entre outros, ver os Acs. do S.T.A. de Portugal de 12.12.1989, Proc. n.º 24814A, de 08.11.1994, Proc. n.º 31900, de 16.02.1995, Proc. n.º 36023, de 01.07.1997, Proc. n.º 41588, de 04.11.1998, Proc. n.º 40165, de 20.12.2000, Proc. n.º 44649, de 13.02.2001, Proc. n.º 44445, de 25.02.2003, Proc. n.º 1992/02, de 24.03.2004, Proc. n.º 1690/02, de 18.11.2004, Proc. n.º 728/04, de 27.01.2010, Proc. n.º 513/09, e de 23.02.2012, Proc. n.º 1107/11).
Nesta conformidade, visto cremos estar que necessário se torna então averiguar, atenta a situação do caso concreto, a “relação” (concretamente) existente entre as normas e princípios violados e a esfera jurídica substantiva do particular, no caso, dos recorrentes, de forma a determinar se aqueles comandos jurídicos tinham (também) por fim a protecção dos seus “direitos subjectivos” e/ou “interesses legalmente protegidos”.
Ora, in casu, (e em abreviada síntese que se nos mostra acertada), os AA., ora recorrentes, assentaram o seu pedido indemnizatório em “causa de pedir composta”, alegando, (resumidamente), que sem qualquer previsão legal expressa que o permitisse, a R.A.E.M. deu (subitamente) lugar a um conjunto sucessivo de novas “exigências”, (não obstante a aprovação do projecto de arquitectura da atrás referida “C”, no caso, a concessionária do terreno onde seria construído o projecto imobiliário “X X” e onde os ditos recorrentes prometeram comprar àquela duas fracções autónomas desse projecto imobiliário), sujeitando, designadamente, a aprovação do projecto originariamente apresentado pela dita “C” à obtenção de parecer prévio favorável da D.S.P.A. relativamente a um estudo ou relatório de impacto ambiental a apresentar, alegando, também, que a D.S.P.A. foi colocando novas e renovadas exigências quanto aos elementos a apresentar em sede de estudo de impacto ambiental, impedindo, assim, a referida “C” de iniciar e concluir a construção que projectara com o aproveitamento do terreno concedido dentro do seu prazo de concessão, sendo, desta forma, de se considerar que o dito não aproveitamento do terreno por parte da “C” – e a consequente caducidade da concessão – teve lugar por “factos imputáveis à R.A.E.M.”, (seus órgãos e funcionários), e daí se concluindo que foi a R.A.E.M. (e os seus serviços) que deram causa à impossibilidade dos recorrentes de adquirirem as fracções autónomas prometidas comprar, devendo aquela responder civilmente pelos danos que sofreram, pois que bem sabia da existência dos contratos-promessa celebrados com a “C”, e, não obstante, levou a cabo diversas condutas que culminaram na “impossibilidade objectiva” desta (“C”) em construir o que havia projectado no prazo da concessão.
No fundo, (e em apertada síntese), alegam que se os serviços da R.A.E.M. não tivessem colocado novas exigências – e não tivessem demorado tanto tempo para emitir as suas pronúncias, v.g., sobre todos e cada um dos elementos do estudo de impacto ambiental que foram sendo apresentados – a “C” teria executado a construção projectada dentro do prazo de aproveitamento previsto no contrato de concessão, pelo que não ficaria impossibilitada de cumprir com os contratos-promessa celebrados (nomeadamente) com os recorrentes; (sucintamente, estes os “elementos” que, em nossa opinião, configuram a “causa de pedir” dos recorrentes, e que, no seu entender, são válidos e bastantes para evidenciar a imputada existência da prática de facto(s) ilícito(s) culposo(s) pela R.A.E.M. e que a responsabilizam extracontratualmente perante os recorrentes).
Dest’arte, e se bem ajuizamos – sendo que na opinião dos ora recorrentes, os actos “voluntários da Administração” prendem-se com as “sucessivas exigências” formuladas pela Administração à Concessionária, o que aliado também à “excessiva morosidade” no funcionamento da Administração, teriam estado na base da caducidade da concessão por falta de aproveitamento pela concessionária, tornando consequentemente impossível o cumprimento por parte desta dos contratos-promessa celebrados com os recorrentes – apresenta-se-nos lógico que a questão que de imediato se coloca é pois a de saber quais os “direitos subjectivos” ou “interesses legalmente protegidos” dos recorrentes que foram pela R.A.E.M. violados.
Ora, considerando-se que defendem os recorrentes que a “celebração dos contratos prometidos” constituía um seu “interesse legalmente protegido”, e sendo, também, um interesse legalmente protegido a “confiança” que depositaram na aprovação do projecto de arquitectura e o conhecimento dos serviços da R.A.E.M. de que tinham sido celebrados contratos-promessa de compra e venda, parece-nos, salvo melhor opinião, manifesto o desacerto do seu entendimento explanado nas suas alegações, pois que não alegam, (nem invocam), concretamente, qualquer “norma de protecção” do seu dito interesse na celebração dos contratos prometidos.
Em primeiro lugar, (e antes de mais, em face de alguma confusão conceptual em que incorrem os recorrentes), mostra-se adequado esclarecer desde já que (segundo aquilo que temos como adequado):
“(…) tanto na figura do direito subjectivo como na do interesse legítimo existe um interesse privado reconhecido e protegido pela lei. Porém, no direito subjectivo essa protecção é imediata e plena, de tal modo que o particular tem a faculdade de exigir à Administração um ou mais comportamentos que satisfaçam integralmente o seu interesse privado e, bem assim, o poder de obter a sua completa realização em juízo em caso de violação ou não cumprimento. No interesse legítimo, ao invés, porque a protecção legal é mediata, ou de segunda linha – pois o interesse protegido directamente é um interesse público –, e não é plena, mas mitigada, o particular não pode exigir à Administração que satisfaça integralmente o seu interesse privado, mas apenas que não o prejudique ilegalmente; em caso de ilegalidade, o particular não poderá realizar plenamente o seu interesse em tribunal, mas, tão-somente, eliminar os actos ou comportamentos ilegais que o tenham prejudicado. (…)
Exemplo de um direito subjectivo: se a lei disser que ao fim de cinco anos de serviço o funcionário tem direito a uma diuturnidade, isso significa que o funcionário pode legalmente exigir a concretização dessa diuturnidade, e que o Estado tem a obrigação jurídica de fazer o respectivo pagamento ao funcionário. (…)
Exemplo de um interesse legítimo: a lei estabelece que para preencher um lugar de professor catedrático tem de se realizar um concurso público, ao qual podem concorrer todos aqueles que reúnam determinadas condições legais; suponhamos que concorrem três pessoas, mas que uma delas não se encontra nas condições legais exigíveis para concorrer, e que o júri a escolhe precisamente a ela para o provimento do cargo. Qualquer dos outros dois candidatos ficou prejudicado ilegalmente, porque a decisão que nomeou um candidato que não preenchia as condições legais foi ilegal. Esses dois candidatos podem impugnar a decisão, e têm direito a obter a sua anulação pelos tribunais. Isto significa que qualquer deles tem direito ao cargo? Claro que não. Significa apenas que eles podem remover um obstáculo ilegal à satisfação do seu interesse e significa, em segundo lugar, que terão uma nova oportunidade para tentar conseguir realizar esse interesse. (…)”; (cfr., v.g., Diogo Freitas do Amaral com a colaboração de Pedro Machete e Lino Torgal in, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. II, 3ª ed., pág. 59 e 60).
Adequado – e lícito – parece de assim concluir e considerar o que os “direitos subjectivos” e “interesses legalmente protegidos” em causa, são aqueles que, por força de lei, operam em face da Administração, não se confundindo, por isso, com um (mero) “direito subjectivo” qualquer, nomeada e especialmente resultante de uma relação creditícia (de natureza meramente “obrigacional”) a que a Administração é totalmente alheia, até mesmo porque, como é óbvio, um direito de crédito resultante de um mero contrato-promessa com terceiro, como é o caso dos autos, não é certamente um “direito” cuja satisfação possa ser exigido à Administração, (e, muito menos, por esta concretizado).
Com efeito, não se pode olvidar também, sendo aliás de se ter pois bem presente que a “ilegalidade” alegadamente cometida deve (necessariamente) envolver a (expressa e directa) violação de uma norma que “tutele a posição jurídica subjectiva cuja lesão se pretende ver reparada”, (cfr., v.g., o Ac. do S.T.A. de 31.05.2005, Proc. n.º 127/03, também citado no atrás referido Ac. de 27.11.2014, Proc. n.º 1506/13), sendo de se realçar que com tal se pretende dizer que “um acto só será gerador de responsabilidade se as normas ou princípios incumpridos revelarem uma intenção normativa de protecção de posições jurídicas substantivas dos particulares”, ou seja, (como atrás se referiu), “só uma ilegalidade qualificada é que determina o surgimento de um acto gerador de responsabilidade”.
Como (citando Gomes Canotilho) nota igualmente José Cândido de Pinho:
“a acção para a efectivação de responsabilidade civil extracontratual pode ser fundada em actos ilícitos (art. 2.º, 3.º, 4.º e 7.º, do DL n.º 28/91/M), e que, «… não é qualquer ilegalidade que determina o surgimento de um acto ilícito gerador de responsabilidade civil. Para haver ilicitude responsabilizante, é necessário que a Administração tenha lesado direitos e interesses legalmente protegidos do particular, fora dos limites do ordenamento jurídico, ou seja, é necessário que a norma violada revele a intenção normativa de protecção do interesse material do particular, não bastando uma protecção meramente reflexa ou ocasional».
Ou seja, a “ilicitude” não se reconduz, sem mais, ao conceito de “ilegalidade”, antes pressupõe a violação de uma posição jurídica substantiva (direito subjectivo ou interesse legalmente protegido) do particular, pois nem todas as normas têm por finalidade a protecção de direitos e interesses individuais dos particulares, sendo que é necessário, para que a ilegalidade gere ilicitude, que a norma violada revele uma intenção normativa de protecção do interesse cuja lesão o particular invoca, ou, como refere Gomes Canotilho, é necessário existir uma «conexão de ilicitude entre a norma e princípio violado e a posição juridicamente protegida do particular»”; (in “Notas e Comentários ao C.P.A.C.”, Vol. II, C.F.J.J., 2018, pág. 146 e 147).
E, assim, na situação sub judice, parece-nos manifesto que a “exigência” da Administração de apresentação por parte (tão só) da “concessionária”, (e não aos recorrentes), de determinados estudos de impacto ambiental que teriam de ser por aquela aprovados – e ainda que fosse de admitir, como afirmam os recorrentes, que há falta de regulamentação legal quanto aos requisitos do estudo de impacto ambiental ou que a sujeição a aprovação prévia desse estudo funcionou “ilegalmente” como “condição resolutiva” da aprovação do projecto de arquitectura, bem como a (eventual) “morosidade” da sua actuação no exame desses estudos – não implica a violação de quaisquer normas ou princípios que tutelavam qualquer “posição jurídica subjectiva dos recorrentes”.
Com efeito, (independentemente do demais), apresenta-se-nos claro que esse “modo de actuar” da Administração não representa qualquer infracção de normas jurídicas que estabeleciam qualquer “interesse legalmente” protegido dos recorrentes à “celebração do contrato prometido”, muito menos, se devendo, (ou podendo), confundir o conceito de “interesse legalmente protegido” com a figura da “protecção da confiança” que, aqui, inexiste totalmente pela simples razão que a Administração nunca entrou, a este respeito, em qualquer “relação” (ou “contacto”) com os recorrentes, (cfr., artºs 8º e 9º, n.º 2 do C.P.A.), pelo que também não se mostra existir qualquer “confiança juridicamente tutelada” dos recorrentes decorrente da aprovação do projecto de arquitectura da concessionária ou da comunicação da celebração de contratos-promessa e do pagamento do respectivo imposto do selo legalmente devido.
De facto, prescreve o art. 8º do C.P.A. que:
“1. No exercício da actividade administrativa, e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fé.
2. No cumprimento do disposto no número anterior, devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas e, em especial:
a) Da confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa;
b) Do objectivo a alcançar com a actuação empreendida”.
E, por sua vez, nos termos do seu art. 9º:
“1. Os órgãos da Administração Pública e os particulares devem actuar em estreita cooperação recíproca, devendo designadamente:
a) Prestar as informações e os esclarecimentos solicitados, desde que não tenham carácter confidencial ou de reserva pessoal;
b) Apoiar e estimular todas as iniciativas socialmente úteis.
2. A Administração Pública é responsável pelas informações prestadas por escrito aos particulares, ainda que não obrigatórias”.
Ora, como nota Jesus González Pérez, (in “Comentarios a la ley de procedimiento administrativo”, pág. 982 a 983):
“a aplicação do princípio da confiança está dependente de vários pressupostos, desde logo, o que se prende com a necessidade de se estar em face de uma confiança “legítima”, o que passa, em especial, pela sua adequação ao Direito, não podendo invocar-se a violação do princípio da confiança quando este radique num acto anterior claramente ilegal, sendo tal ilegalidade perceptível por aquele que pretenda invocar em seu favor o referido princípio.
Por outro lado, para que se possa, válida e relevantemente, invocar tal princípio é necessário ainda que o interessado em causa não o pretenda alicerçar apenas na sua mera convicção psicológica, antes se impondo a enunciação de sinais externos produzidos pela Administração, suficientemente concludentes para um destinatário normal e onde se possa razoavelmente ancorar a invocada confiança”.
Por outro lado, importa ter presente que um outro “pressuposto” relaciona-se precisamente com a necessidade de o particular ter “razões sérias” para acreditar na validade dos actos ou condutas anteriores da Administração, aos quais tenha ajustado a sua actuação, (cfr. v.g., Ramón Parada in, “Direito Administrativo, I, Parte General”, 2ª ed., pág. 341 a 342), sendo lógico assim considerar que não existe “violação do princípio da boa fé” se aos recorrentes, e como foi o que efectivamente sucedeu, não foram pela Administração criadas quaisquer “expectativas (minimamente) sólidas” relativamente à concretização dos aludidos contratos-promessa, com a “outorga das respectivas escrituras de compra e venda”.
Aliás, não se pode também perder de vista que “(…) um dos elementos que informa o conteúdo da noção de boa-fé consiste, precisamente, na necessidade de se estar perante uma conduta contraditória, que não fosse razoável intuir de um determinando comportamento anterior, destarte não existindo a invocada violação de dever jurídico-funcional de um comportamento consequente. (…)”; (cfr., sobre este ponto, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 125, pág. 85).
E, in casu, apresenta-se-nos, no mínimo, caricato, considerar que ao exigir da concessionária a apresentação de estudos de impacto ambiental, e, por ter declarado a caducidade da concessão após expirado o seu prazo, tenha a R.A.E.M. actuado de forma “contraditória” em relação aos contratos-promessa apenas e tão só entre a dita concessionária e os ora recorrentes celebrados.
Com efeito, (e em suma), ainda que demonstrado estivesse que existiram (efectivamente) “demoras procedimentais”, (cfr., art. 12º do C.P.A.), ou que foram formuladas exigências à margem da lei, tal não implicaria a violação de qualquer “norma de protecção” que (expressa e directamente) tivesse como objectivo acautelar os “interesses legalmente protegidos” dos recorrentes à celebração dos referidos contratos prometidos.
Dest’arte, (como se crê que se deixou explicitado), impõe-se constatar que são juridicamente inexistentes os supostos “interesses legalmente protegidos” pelos recorrentes invocados, sendo antes de se referir que se limitam a uma sua inadequada definição, com recurso, e a partir, do “direito civil”, através da afirmação de que têm um “direito subjectivo em relação ao devedor”, para daí retirar um “interesse” legalmente protegido em face da Administração.
Pelo exposto, impõe-se concluir que os “actos” da Administração supostamente “ilegais” pelos recorrentes invocados não violam nenhuma “disposição legal destinada a proteger os seus interesses”, (cfr., art. 7º, n.º 1, in fine, do Decreto-Lei n.º 28/91/M), cabendo também aqui notar que o próprio recurso contencioso pela “C” interposto do acto administrativo que declarou a “caducidade da concessão” foi julgado improcedente por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 19.10.2017, Proc. n.º 179/2016, o qual foi também posteriormente confirmado pelo Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 23.05.2018, Proc. n.º 7/2018.
Por sua vez, e constatando-se também que nem tal “norma” foi pelos recorrentes (sequer) alegada, forçoso é igualmente concluir que da matéria factual articulada e que configura a “causa de pedir” não se pode extrair, (por total falta de preenchimento da previsão normativa), o “efeito jurídico” pelos mesmos pretendido, ou seja, a “responsabilização extracontratual” da Administração com a sua condenação no pagamento da reclamada indemnização, sendo, aliás, de notar que os recorrentes nem sequer tem qualquer “legitimidade” para impugnar “contenciosamente” os actos por eles considerados ilegais, precisamente porque em relação aos mesmos são “terceiros alheios”, impondo-se, também desta forma consignar que não se vislumbra como possam ter sido afectados os seus direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos.
Assim, sem direito subjectivo ou interesse legalmente protegido afectado pelos “actos” da Administração, afastada está claramente qualquer pretensão no sentido da “responsabilização civil extracontratual” da Administração, (pelo que, falecendo este requisito essencial, desnecessário se torna apreciar os demais requisitos, como a “culpa”, cuja falta foi o fundamento da decisão tomada pelo Tribunal Administrativo).
Resultando desta forma evidente a atrás referida “inconcludência jurídica”, e podendo assim em despacho saneador conhecer-se do mérito do pedido, vista está a falta de razão dos recorrentes na parte em questão.
Na verdade, e como nota José Lebre de Freitas:
“(…) Em tal situação, é inútil produzir prova sobre os factos alegados, visto que eles nunca serão suficientes para a procedência do pedido. O réu é absolvido do pedido”; (in ob. cit., pág. 159).
–– Cumprindo agora emitir pronúncia sobre a “causa de pedir subsidiária”, ou seja, quanto à “responsabilidade por factos lícitos”, vejamos.
De acordo com o disposto no art. 10º do Decreto-Lei n.º 28/91/M:
“1. A Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais.
2. Quando a Administração do Território ou as demais pessoas colectivas públicas tenham, em estado de necessidade e por motivo de imperioso interesse público, de sacrificar especialmente, no todo ou em parte, coisa ou direito de terceiro, deverão indemnizá-lo”.
E, ressalvado o devido respeito, também aqui, a causa de pedir tal como pelos recorrentes vem articulada não constitui fundamento bastante e adequado do “pedido” em relação ao qual pretendem obter provimento.
Com efeito, útil é aqui ponderar o que Vieira de Andrade considerou a propósito de norma de idêntico teor contida no Decreto-Lei n.º 48 051, (art. 9º):
“(…)
A doutrina e a jurisprudência viram (…) a consagração da responsabilidade por acto lícito, como figura geral da responsabilidade administrativa, que incluía a obrigação de indemnização, quer pela imposição de encargos ou causação de prejuízos especiais e anormais no interesse geral, por actos administrativos legais ou actos materiais lícitos (n.º 1), quer pelo sacrifício especial, no todo ou em parte, de direitos ou de coisas, em estado de necessidade, por motivo de imperioso interesse público (n.º 2) – apesar da subdivisão do preceito, não seria possível encontrar nela um critério que fundasse uma diferença categorial entre a lesão ou ablação de direitos ou de coisas e a imposição de encargos ou prejuízos, até porque a referência ao sacrifício se fazia a propósito da lesão de direitos. (…)
Julgamos, porém, ser importante salientar que, ainda que estejam contidas no mesmo preceito legal, e ainda que ambas se distingam, pelas mesmas razões, da responsabilidade civil em sentido estrito, responsabilidade por acto lícito e indemnização pela sacrifício são, em rigor, institutos distintos, aos quais devem corresponder diferenças práticas de regime jurídico.
Com efeito, a indemnização pelo sacrifício resulta da circunstância de um acto do poder público, de carácter geral, ocasionar, indirectamente, prejuízos especiais e anormais, que devem ser compensados para garantir a reposição da igualdade dos particulares na contribuição para os encargos públicos. Trata-se de um instituto especialmente vocacionado para a compensação de prejuízos decorrentes de medidas de cunho normativo – “regulating” na terminologia anglo-saxónica –, medidas que visam um fim público de interesse geral, mas das quais resultem situações concretas que, de forma indirecta, envolvem, para determinadas pessoas ou grupos, prejuízos colaterais, patrimoniais ou pessoais, juridicamente relevantes.
Já a responsabilidade por acto lícito resulta da adopção de uma medida administrativa lícita (acto ou norma imediatamente operativa), mas que acarreta directamente e intencionalmente a lesão ou a ablação – “taking”, na terminologia anglo-saxónica –, de posições jurídicas subjectivas, lesão justificada, que tem de ser reparada pela comunidade através da indemnização dos danos patrimoniais ou pessoais provocados pela medida.
Assim, nesta perspectiva, a indemnização pelo sacrifício não tem uma função reparadora de danos, mas, sim, uma função compensadora de prejuízos e mede-se em função da intensidade do sacrifício ou prejuízo, tendo em conta a sua especialidade – apenas é operativa quando seja possível identificar, no conjunto de situações e pessoas abrangidas pela medida, um indivíduo ou grupo que irá sofrer os seus efeitos de forma desigual –, e a sua anormalidade – apenas é operativa quando aquele grupo diferenciado de destinatários sofra um prejuízo expressivo e desproporcionado, que ultrapasse os custos próprios da vida em sociedade e seja quantificável segundo o valor económico do direito ou interesse sacrificado e a intensidade do respectivo sacrifício. (…)
Por sua vez, a responsabilidade por acto lícito resulta da adopção de uma medida fundada no poder público, que é lícita ou justificada pelo princípio da proporcionalidade, mas que visa, ou da qual resulta, directamente, a lesão de posições jurídicas-substantivas – por exemplo, a eliminação de produtos alimentares ou abate de animais para proteger a saúde pública, a revogação de um acto administrativo válido constitutivo de direitos, quando admissível, ou as medidas adoptadas em estado de necessidade.
Nestes casos, existe uma posição jurídica subjectiva do particular que é lesada por incidência directa do acto do poder público e que pode justificar a reparação na medida da reconstituição dos danos, incluindo o dano da confiança.
No entanto, o alcance do mecanismo ressarcitório é, em princípio, limitado – diferentemente do que acontece na responsabilidade civil (por facto ilícito ou pelo risco), porque aqui se trata de uma actuação legítima no interesse geral –, operando apenas quando a medida origine um prejuízo especial e anormal, em nome do princípio da igualdade perante os encargos públicos, que tem aqui uma outra função: opera como elemento travão da socialização dos prejuízos ocasionados pelas medidas, ou “duplo travão”, pois que, para além de evitar a sobrecarga do tesouro público (na linguagem actualizada, dos contribuintes), assegura que apenas são indemnizados os danos verdadeiramente graves que incidem desigualmente sobre os cidadãos.
A responsabilidade por acto lícito resulta da circunstância de a actividade administrativa poder ter de lesar direitos dos particulares para realização de interesses públicos superiores, e de nem todos os danos assim causados se reconduzirem ao risco próprio da vida em sociedade que todos e cada um têm de assumir. Deste modo, embora a actividade desenvolvida pela entidade pública seja lícita e as medidas lesivas se encontrem fundamentadas no direito, pode existir um direito à reparação dos danos como consequência natural da necessidade de socializar os encargos resultantes dessa actividade, mas só daqueles danos que redundem numa violação especial e anormal de direitos subjectivos. (…)”; (in “A responsabilidade indemnizatória dos poderes públicos em 3D: Estado de direito, Estado fiscal, Estado social”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 140º, n.º 3969, pág. 353 a 356).
Pronunciando-se sobre a mesma matéria considerou também Marcello Caetano que:
“A outra modalidade da responsabilidade administrativa sem culpa é a originada por factos lícitos que vão sacrificar certos e determinados interesses legítimos em benefício da colectividade inteira. A Administração exerce então um direito que sacrifica outros direitos: dá-se uma colisão de direitos. (…)
Se um direito tem de ser sacrificado ao interesse público, torna-se necessário que esse sacrifício não fique iniquamente suportado por uma pessoa só, mas que seja repartido pela colectividade. Como se faz tal repartição? Convertendo o direito sacrificado no seu equivalente pecuniário (justa indemnização) pago pelo erário público para o qual contribui a generalidade dos cidadãos mediante a satisfação dos impostos.
Assim, a responsabilidade pelos prejuízos causados na esfera jurídica dos particulares em consequência do sacrifício especial de direitos determinado por factos lícitos da Administração pública funda-se no princípio da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos. (…)
Tem de haver um sacrifício especial e anormal, isto é, um sacrifício que não seja imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em razão de uma posição só dela, e que não possa considerar-se um risco normalmente suportado por todos em virtude da vida em colectividade. Subentende-se que o sacrifício há-de ser certo, actual (não eventual) e duradouro.
Tal sacrifício deve resultar de um acto administrativo legal ou de uma operação material lícita.
O sacrifício pode consistir na imposição de um encargo – o que abrange a hipótese da imposição de um dever de prestar ou de fazer algo – ou na produção de um prejuízo.
O objecto do sacrifício tem de ser um direito subjectivo, pessoal ou real, ou uma coisa, mas em qualquer caso deve ser susceptível de avaliação pecuniária. (…)
No nosso Direito encontram-se casos de sacrifício total e de sacrifício parcial dos direitos, condicionados a indemnização.
É total o sacrifício quando a Administração se apropria de bens dos particulares autoritariamente (expropriação por utilidade pública, requisição…) ou impõe a destruição deles (demolições, arranques de plantas ou árvores, abate de animais doentes…).
O sacrifício será parcial quando é limitado na sua duração (ocupações temporárias) ou na sua extensão (servidões administrativas)”; (in “Manual de Direito Administrativo”, Vol. II, 10a ed., pág. 1238 a 1241).
Igualmente, o S.T.A. de Portugal, (como aliás se pode ver da jurisprudência indicada no acórdão), tem entendido que:
“Este «dever de indemnizar», por parte, concretamente, do Estado Português, prescinde dos requisitos da «ilicitude e da culpa» na actuação do lesante, mas, exige, como elemento «travão», que os prejuízos causados sejam «especiais e anormais» para poderem e deverem ser ressarcidos.
É um dever que nasce, assim, à margem de qualquer ilicitude e censura jurídica dirigida ao lesante Estado Português, entrosando-se, antes, na circunstância de ter sido imposto por ele ao administrado um «sacrifício», em nome do interesse público, gerador de danos especiais e anormais.
Assim, na própria lógica deste instituto da responsabilidade extracontratual por acto lícito dos entes públicos, está a ideia de «sacrifício» imposto ao lesado, em benefício do interesse público, ideia que se compatibiliza, perfeitamente, com a de lesão provocada por actuação lícita da iniciativa unilateral da Administração, (…)
É a sua transcendência perante os encargos correntes, impostos a todos os que vivem em sociedade, que qualifica os «prejuízos indemnizáveis» causados por acto lícito das pessoas colectivas públicas.
No fundo, entende-se que os entes públicos, seja o Estado ou não, não podem exigir de alguém, em nome do interesse público, um sacrifício superior e mais intenso do que o normalmente imposto aos outros membros da colectividade. A indemnização, nestes casos, visará repor essa «igualdade entre os membros da comunidade», de modo a evitar desequilíbrios gravosos na contribuição de cada um para o funcionamento dos serviços públicos, equiparando a contribuição de todos os cidadãos.
É, pois, a ideia da necessária igualdade de todos face aos encargos públicos que justifica o dever, público, de compensar os prejuízos especiais e anormais a que alude o art. 9º do DL nº 48.051, de 21.11.67. Em bom rigor, pois, esse dever público resulta da vinculação da administração ao princípio da igualdade previsto no art. 13º, nº 1, da CRP. (…)”; (cfr., v.g., o Ac. de 01.06.2017, Proc. n.º 01274/16).
Ora, parece-nos evidente que os (alegados) actos da Administração a exigir da concessionária “C” a obtenção de um parecer prévio favorável quanto a um estudo de impacto ambiental relativo ao projecto imobiliário a ser desenvolvido por aquela – e o tempo (eventualmente) decorrido na apreciação dos estudos apresentados pela concessionária – não correspondem a “actos” que acarretam, directa e intencionalmente, a lesão ou a ablação de posições jurídicas subjectivas dos recorrentes, (até porque, os próprios reconhecem que não têm qualquer direito subjectivo à celebração dos contratos prometidos perante a Administração Pública, não havendo tão pouco qualquer “interesse legalmente protegido”).
Como sobre este ponto também considera Cândido de Pinho:
“Tanto na hipótese de a acção ser fundada no risco, como no de ser fundada em actos legais ou materiais lícitos, os prejuízos devem ser especiais e anormais, como se disse.
Mas, para serem considerados no âmbito desta responsabilidade por actos lícitos, não podem ser aqueles que a generalidade das pessoas sofreria em igualdade de circunstâncias. Por prejuízo especial entende-se aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma específica posição relativa; e por prejuízo anormal é tomado aquele que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração”; (in ob. cit., pág. 147 e 148).
E, assim, muito menos haverá qualquer “direito a uma indemnização” pelo alegado “sacrifício”, porque não está, desde logo, em causa um acto de “carácter geral”, (nem de cunho normativo), que cause, indirectamente, prejuízos “especiais” e “anormais”, que devem ser compensados para garantir a reposição da igualdade dos particulares na contribuição para os encargos públicos, sendo antes actos – unicamente – praticados no âmbito de uma “relação jurídico-administrativa de concessão”, entre a entidade administrativa concedente, e a concessionária, e tão só a estas dizendo respeito.
Nesta conformidade, aqui chegados, e concluindo-se que os recorrentes não tem qualquer posição juridicamente protegida junto da Administração, impõe-se concluir que inaplicável é o regime previsto no referido Decreto-Lei n.º 28/91/M.
Com efeito, e como se nos apresenta claro, a conduta da Administração que culminou com o acto do Chefe do Executivo que declarou a caducidade da concessão do terreno não impõe, de forma alguma, e muito menos, directa e intencionalmente, qualquer encargo ou sacrifício aos recorrentes, (que, como se referiu, não são seus os destinatários, sendo antes “completamente alheios”), apresentando-se, assim, por demais evidente que em causa não está nenhuma (ainda que aparente) “colisão de direitos”, não podendo, por isso, constituir “fundamento” de qualquer pretensão indemnizatória nos termos do dito Decreto-Lei n.º 28/91/M.
Dest’arte, e tudo visto, cabe pois também aqui repetir o que atrás se referiu no sentido de vista está a falta de razão dos ora recorrentes, (também na parte em questão).»
Ora, é de manter a posição acima exposta, não se vislumbrando razão para a alterar, pelo que subscrevemos a fundamentação transcrita, que se mostra válida e adequada também ao presente caso.
Concluindo, não se vê verificados os vícios imputados pelos recorrentes, razão pela que se deve negar provimento ao recurso.
3. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, com a taxa de justiça que se fixa em 15 UC.
Macau, 27 de Maio de 2022
Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai
1 A. Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122.º, pág. 112.
2 Viriato de Lima, Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum, 3.ª Edição, pág. 536.
3 Ac. do TUI de 20 de Fevereiro de 2019, Proc. n.º 102/2018, entre outros.
4 Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª Edição, 2004, pág. 612.
5 José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3.ª edição, Reimpressão, Coimbra, 2012, p. 140.
6 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, Manual de Direito Processual Civil, 3.ª edição, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2018, p. 568.
7 Cfr. Ac. do TUI, de 15 de Fevereiro de 2012, Proc. n.º 1/2012.
8 Cfr. Ac. do TUI, de 14 de Julho de 2004, Proc. n.º 21/2004.
9 Cfr. Ac. do TUI, de 16 de Janeiro de 2008, Proc. n.º 5/2007.
10 Nota-se que as questões colocadas pelos recorrentes nos presentes autos são idênticas às que foram suscitadas nos Proc.s n.º 101/2020 e 116/2020, sendo certo que em todos estes processos foi intentada, pelos promitente-compradores de fracções autónomas no projecto imobiliário “X X”, Acção para Efectivação de Responsabilidade Civil Extracontratual contra a RAEM.
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Processo n.º 117/2020