打印全文
Processo nº 20/2025
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão de 05.07.2024 proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR1-24-0054-PCC, do Tribunal Judicial de Base, foi, A (甲), arguido com os restantes sinais dos autos, condenado pela prática como autor material de 1 crime de “homicídio”, p. e p. pelo art. 128° do C.P.M., na pena de 15 anos de prisão.

Em relação ao pedido de indemnização civil aí enxertado, decidiu-se condenar o mesmo arguido no pagamento de uma indemnização no montante total de MOP$2.196.279,62 e juros à assistente B (乙); (cfr., fls. 1089 a 1100 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 28.11.2024, (Proc. n.° 725/2024), negou provimento ao recurso; (cfr., fls. 1198 a 1204-v).

*

Ainda inconformado, traz o mesmo arguido o presente recurso para este Tribunal de Última Instância, e, limitando o seu recurso à “decisão crime”, assaca – em síntese – ao Acórdão recorrido, o vício de “erro notório na apreciação da prova”, pugnando, como já tinha feito no seu recurso para o Tribunal de Segunda Instância, pela alteração da qualificação jurídico-penal efectuada e pela sua condenação como autor de 1 crime de “ofensa simples à integridade física agravada pelo resultado”, p. e p. pelo art. 138°, al. d) e 139°, n.° 1, al. b) do C.P.M., e pedindo, subsidiariamente, a “redução da pena aplicada”; (cfr., fls. 1213 a 1219-v).

*

Em Resposta, foi o Ministério Público de opinião que o recurso não merecia provimento; (cfr., fls. 1222 a 1226).

*

Oportunamente, nesta Instância, e em sede de vista, juntou a Ilustre Procuradora Adjunta douto Parecer considerando também que o recurso devia ser julgado improcedente; (cfr., fls. 1243).

*

Efectuado que foi o exame preliminar, admitido o recurso, e colhidos os vistos dos Exmos Juízes-Adjuntos, é momento de decidir.

*

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Vem dada como provada a “matéria de facto” elencada nos Acórdãos do Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância que aqui se dá como integralmente reproduzida, (cfr., fls. 1091-v a 1095 e 1199 a 1202-v, notando-se que, oportunamente, se fará adequada referência à mesma).

Do direito

3. Insurge-se o arguido contra o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a decisão da sua condenação pelo Tribunal Judicial de Base como autor material da prática de 1 crime de “homicídio”, p. e p. pelo art. 128° do C.P.M., na pena de 15 anos de prisão.

Afirma que a decisão recorrida padece do vício de “erro notório na apreciação da prova”, considerando que o “ponto 30° da matéria de facto” – quanto ao seu “dolo”, ou “intenção de matar” – não devia ser dado como “provado”, pugnando pela alteração da qualificação jurídico-penal efectuada e pela sua condenação como autor de 1 crime de “ofensa simples à integridade física agravada pelo resultado”, p. e p. pelo art. 138°, al. d) e 139°, n.° 1, al. b) do C.P.M., pedindo, subsidiariamente, a “redução da pena aplicada”.

–– Pois bem, antes de mais, cabe notar que apenas a “decisão crime” constitui objecto do presente recurso, (e já não a relativa à “indemnização civil”), e que, com o seu Acórdão, o Tribunal Judicial de Base absolveu o arguido ora recorrente do inicialmente acusado crime de “homicídio qualificado”, p. e p. pelo art. 129°, n.° 1 e 2, al. c) do C.P.M., o mesmo sucedendo a um outro crime de “arma proibida”, p. e p. pelo art. 262°, n.° 3 do mesmo C.P.M., cuja prática em concurso real lhe era igualmente imputada.

E nada se tendo requerido (ou sugerido) em relação a esta “matéria”, concentremo-nos nas “questões” pelo ora recorrente colocadas.

–– Comecemos então, e sem mais demoras, pelo assacado “erro notório na apreciação da prova”.

Temos – repetidamente – afirmado que apenas existe o dito “erro” quando “se violam as “regras sobre o valor da prova vinculada”, as “regras de experiência” ou as “legis artis”, devendo ser um “erro ostensivo” e de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”, e, “assim, visto estando que o “erro notório na apreciação da prova” nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que o Tribunal devia ter dado relevância a determinado meio de prova – sem “especial valor probatório” – para formar a sua convicção (e assim dar como assente determinados factos), visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da “livre apreciação da prova” e de “livre convicção” do Tribunal”; (cfr., v.g., e para citar os mais recentes, os Acs. deste T.U.I. de 11.03.2022, Procs. n°s 8/2022 e 12/2022, de 27.07.2022, Proc. n.° 71/2022, de 21.09.2022, Proc. n.° 78/2022, de 13.01.2023, Proc. n.° 108/2022, de 03.03.2023, Proc. n.° 97/2022, de 29.09.2023, Procs. n°s 71/2023 e 81/2023, de 01.11.2023, Proc. n.° 82/2023, de 26.01.2024, Proc. n.° 98/2023-I, de 08.03.2024, Proc. n.° 9/2024-I, de 05.06.2024, Proc. n.° 43/2024 e de 28.11.2024, Proc. n.° 109/2024).

De facto, (e abreviando), não se pode olvidar que é na audiência de julgamento que se produzem e avaliam (todas) as provas, (cfr. art. 336° do C.P.P.M.), sendo da análise (global) do seu conjunto e no uso dos seus poderes de “livre apreciação da prova” conjugados com as regras da experiência, (cfr. art. 114° do mesmo código), que os julgadores adquirem a “convicção” sobre os factos objecto do processo, não bastando uma “dúvida pessoal”, ou uma mera “possibilidade ou probabilidade”, para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de “erro notório na apreciação da prova”.

In casu, com o atrás referido “ponto 30° da matéria de facto dada como provada”, deu-se como assente o “dolo” do arguido, ora recorrente, quanto ao crime de “homicídio” (simples) pelo qual foi condenado nos termos que se deixaram retratados.

E, em nossa opinião, não se vislumbra nenhum “erro”, muito menos “notório”.

Com efeito, resulta – claramente – da “matéria de facto dada como provada” que, na sequência de uma altercação com a vítima, o arguido, ora recorrente, muniu-se de uma tesoura de uma loja de fruta – com 8,5cm de lâmina, (cfr., facto 27°) – e com a mesma vibrou, indiscriminadamente, vários golpes no corpo da vítima, atingindo-a, nomeadamente, na zona do lado esquerdo do peito, fazendo com que a esta, em virtude das lesões que sofreu, caísse ao chão, altura em que o pontapeou, voltando a agredi-la com a dita tesoura por várias vezes, atingindo-a nomeadamente na perna, (coxa), o que lhe causou a ruptura da veia e artéria femoral que acabou por ser a mais relevante causa da morte por excessiva perda de sangue; (cfr., factos 14° e 15°, assim como o “relatório da autópsia” a fls. 637 a 642 dos autos).

Ora, sendo o arguido nascido em 1979, (portanto, com cerca de 45 anos de idade), lógico e natural se nos apresenta que com a agressão que perpetrou no corpo da vítima, e em especial, em face do “modus operandi”, locais atingidos e “meio empregue”, (ou seja, com uma tesoura com aquelas dimensões), evidente é que não poderia deixar de saber que tal conduta era apta e “idónea” a causar, como efectivamente causou, a morte do ofendido, (sendo de atentar também que igualmente “provado” está que, após a dita agressão, abandonou o local, deixando o ofendido no chão a sangrar abundantemente e à sua sorte – cfr., facto 16°).

Não se nega que alega que tinha consumido “álcool”, (cerveja), e que, antes, já se tinha “chamado a polícia”.

Porém, e como em nossa opinião, é bom de ver, tais “circunstâncias” não se apresentam válidas e eficazes para excluir a sua “culpa” quanto à sua “conduta” e (responsabilidade quanto) ao seu “resultado”.

Com efeito, o (mero) consumo de “algumas cervejas” – cerca de 3 – horas antes do sucedido, não constituiu, de forma alguma, qualquer tipo de “justificação” do que ocorreu, pois que nem sequer provado está que “estava «alterado» em virtude do álcool que horas antes tinha ingerido”…

Também o (mero) “alerta dado à Polícia” não se apresenta como qualquer “garantia de sobrevivência” do (infeliz) ofendido, ou de que este não viesse a falecer em resultado (directo ou necessário) das lesões que sofreu com a agressão de que foi vítima.

E, nesta conformidade, vista cremos que está a solução para esta questão, cabendo ainda salientar que o Tribunal Judicial de Base alterou – e bem – a “matéria” do dito “ponto 30°”, de onde inicialmente resultava matéria de facto que integrava o “dolo directo do arguido”, no mesmo fazendo constar que o arguido “agiu admitindo que a sua conduta podia causar a morte do ofendido, conformando-se com tal resultado”, dando assim (apenas) como provado o seu “dolo eventual”; (cfr., facto 30° e art. 13° do C.P.M.).

Dest’arte, e em face ao que até aqui se expôs, imperativa é a confirmação da decisão condenatória em questão.

–– Vejamos agora da “pena”.

Nos termos do art. 128° do C.P.M. ao crime de “homicídio” cabe a “pena de 10 a 20 anos”.

Ora, como sabido é, a “determinação da medida concreta da pena”, é tarefa que implica a ponderação de vários aspectos.

Desde logo, importa atentar que nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Sobre a matéria preceitua também o art. 65° do mesmo código onde se prescreve que:

“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.
2. Na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da determinação da pena”.

Isto dito, importa igualmente ter presente que em “matéria de pena”, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, pelo que o Tribunal de recurso deve intervir na pena, (alterando-a), apenas e tão só, quando detectar desrespeito, incorrecções ou distorções dos princípios e normas legais pertinentes no processo de determinação da sanção, pois que o recurso não visa, nem pretende eliminar, a imprescindível margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de julgamento.

Com efeito, de forma repetida e firme temos vindo a entender que “Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”; (cfr., v.g., os Acs. de 27.04.2018, Proc. n.° 27/2018, de 30.07.2019, Proc. n.° 68/2019, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020-I, de 23.06.2021, Procs. n°s 72/2021-I e 84/2021, de 11.03.2022, Procs. n°s 8/2022, 12/2022 e 14/2022, de 18.05.2022, Proc. n.° 52/2022, de 15.03.2023, Proc. n.° 30/2023, de 29.09.2023, Proc. n.° 71/2023 e de 28.11.2024, Proc. n.° 136/2024).

Dest’arte, revelando-se pela decisão recorrida, a selecção (adequada) dos elementos factuais elegíveis, a identificação (correcta) das normas aplicáveis, o cumprimento (estrito) dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida e justa dos critérios legalmente atendíveis, imperativa é a confirmação da(s) pena(s) aplicada(s); (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015, de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020, de 05.05.2021, Proc. n.° 40/2021, de 23.06.2021, Proc. n.° 72/2021-I, de 11.03.2022, Procs. n°s 8/2022, 12/2022 e 14/2022, de 15.03.2023, Proc. n.° 30/2023 e de 28.11.2024, Proc. n.° 136/2024).

Como nota Figueiredo Dias, (in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo 1, pág. 84), “em síntese, pode dizer-se que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa”.

In casu, tendo presente a moldura penal em questão – 10 a 20 anos de prisão – ponderando na “altercação” que ocorreu entre o ora recorrente e o ofendido, no facto de, como se viu, ter agido com “dolo eventual”, (e não “directo”, ou mesmo, “necessário”), e ao facto de ser “primário”, afigura-se-nos possível uma “redução da pena”.

Porém, não sendo de olvidar o “bem tutelado” com o crime em causa, evidente se nos apresenta que tal pretendida redução não pode ser muito significativa, apresentando-se-nos assim justa e adequada a pena de 13 anos e 9 meses de prisão, (pena esta, inferior ao meio da aludida moldura, a 3 anos e 9 meses do seu mínimo, e a 6 anos e 3 meses do seu limite máximo).

Outra questão não havendo a apreciar, resta decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixaram expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao presente recurso, ficando o arguido ora recorrente condenado na pena de 13 anos e 9 meses de prisão.

Pelo seu decaimento, pagará o recorrente a taxa de justiça que se fixa em 8 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 20 de Fevereiro de 2025


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Ho Wai Neng
Song Man Lei

Proc. 20/2025 Pág. 20

Proc. 20/2025 Pág. 21