Processo n.º 813/2024
(Autos de recurso em matéria cível)
Relator: Fong Man Chong
Data: 13 de Março de 2025
ASSUNTOS:
- Contrato-promessa de compra e venda, sinal, incumprimento da promessa, resolução e dano consideravelmente superior
SUMÁRIO:
I - A qualificação jurídica que as partes fazem dos factos a que cabe aplicar o Direito não vincula o tribunal (art. 567º do CPC), qualificação esta que determina o regime jurídico aplicável à relação contratual. No caso dos autos está em causa a aplicabilidade ou a inaplicabilidade da presunção legal de que é sinal toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente vendedor em cumprimento do contrato-promessa de compra e venda (art. 435º do CCM).
II - A qualificação do contrato tem essencialmente por base a vontade negocial das partes plasmada no clausulado concretamente acordado relativamente às prestações a que se pretenderam vincular. É feita por comparação ou subsunção, tendo em conta os elementos do concreto contrato a qualificar e os elementos dos diversos tipos contratuais.
III - A prestação característica do contrato-promessa é a celebração de outro contrato, o contrato prometido. As partes comprometem-se a celebrar outro contrato (art. 404º do CCM). Nos factos provados faz-se referência conclusiva à expressão “promessa de venda”. No entanto esta referência não é decisiva, pois que a qualificação do contrato é questão de direito e não de facto. Numa situação em que, tal como se detecta no caso dos autos, se desconhece a vontade real das partes e estas a exteriorizaram por escrito em termos moldáveis (porque se usam expressões diversas, tais como “contrato-promessa de compra e venda” “prometer comprar e “prometida venda”, “promitente-vendedor” e “promitente-comprador”), a declaração das vontades negociais vale com o sentido que lhe atribuiria o normal declaratário colocado na posição do real declaratário (art. 228º do CCM).
IV – O sinal é um elemento eventual do conteúdo do negócio jurídico, sendo nesta perspectiva, em essência, uma estipulação contratual, uma cláusula negocial. Seja qual for a qualificação que lhe seja dada, o sinal é sempre também uma convenção das pastes contratantes. Depende, pois, da existência de vontades negociais concordantes. Para se concluir se foi ou não estipulado sinal é necessário interpretar as declarações negociais das partes contratantes.
V - No caso do contrato-promessa de compra e venda, como ocorre na situação sub judice, a parte que se quiser prevalecer da existência de sinal beneficia da presunção legal inserta no art. 441º do CCM que diz que se presume “que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço”. Ora, quem tem a seu favor uma presunção legal, está dispensado de provar o facto a que ela conduz, sendo a parte contrária que tem de provar o facto contrário ao facto presumido (art. 343º, nºs 1 e 2 do CCM).
VI - O artigo 801º/-1 do CCM manda que “a pedido do devedor, a pena convencional pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente…”, normativo este que rege directamente a cláusula penal, a pena convencionada pelas partes para sancionar o incumprimento. É aplicável ao sinal com as necessárias adaptações, sendo que o sinal, mesmo sendo confirmatório, também funciona, ainda que supletivamente, como pena aplicável ao incumprimento.
VII - É de sublinhar que o julgamento segundo a equidade é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar o problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas. A equidade não remete, de modo algum, para o simples entendimento pessoal do juiz ou para a sua íntima convicção, afastando-se decisivamente do puro arbítrio judicial, não estando igualmente em causa, na decisão segundo o critério não normativo da equidade, uma apreciação intuitiva puramente individual, mas antes racional e objectivável. A racionalidade e a objectivação dessa apreciação pressupõe a aquisição da indispensável base de facto.
VIII - Por regra, a indemnização fundada no não cumprimento definitivo, que se cumula com a resolução, respeita apenas ao chamado interesse contratual negativo ou de confiança, visando colocar o credor prejudicado na situação em que estaria se não tivesse sido celebrado o contrato, e não naquela em que se acharia se o contrato tivesse sido cumprido.
IX - É de julgar improcedente a pretensão de indemnização superior ao valor do sinal relativamente à fracção “H29”, pois que pressupõe que o dano efectivo seja consideravelmente superior ao valor do sianal prestado (art. 436º, nº 3 do CC), o que não está provado, mesmo que seja admissível que a fracção que os autores venham a receber não tenha exactamente o valor que teria a fracção contratada “H29”. É necessária a demonstração de uma diferença consideravelmente superior ao valor do sianal prestado, o que não está demonstrado.
O Relator,
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Fong Man Chong
Processo nº 813/2024
(Autos de recurso em matéria cível)
Data : 13 de Março de 2025
Recorrente : - A, Limitada (A有限公司)
Recorridos : - B
- C
- D
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Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
A, Limitada (A有限公司), Recorrente, devidamente identificada nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 27/05/2024, veio, em 12/06/2024, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 1849 a 1876, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Constitui objecto do presente Recurso a, aliás, douta sentença do Tribunal Judicial de Base, que julgou parcialmente procedente a presente acção e condenou a Recorrente no pagamento de uma indemnização aos Recorridos, no montante global de HKD$39.692.470.50. Quanto aos juros de mora, considerou que relativamente ao valor arbitrado equitativamente, HKD$618.660,00, a sua contagem tem início na data da prolação da sentença e que, relativamente ao restante valor tem início com a data da citação, em ambos os casos até integral pagamento e à taxa anual de 9,75%.
2. Ocorreu uma impossibilidade jurídica superveniente e definitiva do cumprimento do contrato em discussão nos presentes autos mas tal impossibilidade não é imputável à Recorrente.
3. Com efeito, ficou provada praticamente toda a matéria alegada pela Recorrente susceptível de estabelecer que não conseguiu aproveitar o terreno dentro do prazo contratado e, assim, dar cumprimento ao contrato em apreço, por razões imputáveis aos Serviços da RAEM.
4. Todavia, com todo o respeito, a douta sentença recorrida acaba por não aprofundar as consequências jurídicas da referida factualidade provada, limitando a sua análise, à conduta da Recorrente no momento em que contratou, procurando apurar se ela actuou como um bom pai de família, fazendo depender um juízo de culpa exclusivamente desta circunstância.
5. E entendeu que a actuação da Administração era previsível e evitável, bem como, que o risco do incumprimento corre exclusivamente por conta da Recorrente, pelo que lhe deve ser imputada a culpa pela impossibilidade do cumprimento.
6. Ressalvado diverso entendimento, só se a impossibilidade do cumprimento não for imputável a terceiro, se poderá, deverá, partir então para a análise daquela outra questão, pelo que a douta sentença recorrida adoptou o prisma errado sob o qual deveria ter lugar a análise de direito no presente caso, com importantes reflexos na respectiva decisão.
7. Não obstante, salvo melhor opinião, a verdade é que contrariamente ao que reza a douta sentença recorrida, Uma tal actuação da DSSOPT e da DSPA era imprevisível.
8. Após a aprovação do projecto de arquitectura do empreendimento "XX", comunicada à Recorrente em 07/01/2011 qualquer promotor imobiliário em Macau colocaria as fracções autónomas em projecto (aprovado), a construír, no mercado.
9. Não era previsível que a DSSOPT fizesse depender a emissão dessa licença da apresentação e aprovação de um Relatório ambiental pela DSPA, como infelizmente o fez, pela primeira vez na história de Macau.
10. Essa falta de previsibilidade é evidente e resulta ainda da circunstância de, ao tempo, não existir norma legal ou regulamentar aprovada e em vigor que exigisse esse Relatório Ambiental ou que sugerisse, sequer, que conteúdo pudesse vir a ter de conter.
11. Muito menos era de esperar que a DSSOPT e a DSPA demorassem quase 3 anos a aprovar esse Relatório num procedimento moroso e ao sabor dos improvisos desses serviços.
12. Não se pode pretender.
13. E mesmo quando confrontada com essa exigência inesperada, a Recorrente previu, tal como qualquer bom pai de família no seu lugar o faria, que tal exigência seria rapidamente ultrapassada.
14. Com efeito, do Ofício de 07/01/2011 constante de fls. 360 a 369, no seu ponto nº 19, parte final, resulta que o Relatório ambiental exigido pela DSSOPT deveria consistir em 4 pontos muito simples.
15. No entanto, conforme está provado, os Serviços da Administração foram apresentando sucessivas e novas condições ao longo de quase 3 anos, à medida que as anteriores iam sendo cumpridas pela Recorrente, o que era manifestamente imprevisível, mesmo para um bom pai de família.
16. D'outro passo, a DSSOPT e a DSPA não actuaram como parte do contrato de concessão mas sim como Administração Pública, como puissance publique, sob as mesmas vestes com que actuam relativamente a qualquer privado.
17. A actuação da RAEM sempre seria inultrapassável. Os serviços da RAEM não emitiriam a licença de construção sem que fosse apresentado o Estudo Ambiental, rectius, sem que fossem apresentadas todas as versões do Estudo Ambiental que foi exigindo ao longo de cerca de 3 anos.
18. A única forma de a Recorrente procurar ultrapassar estas exigências era a de avançar para a via contenciosa, através do recurso contencioso de anulação destinado a anular os actos administrativos praticados pelos serviços da RAEM, por vício de violação de lei.
19. Ou seja, ao contrário do que se sugere na douta sentença recorrida, afigura-se que se está, efectivamente, em sede de "facto do príncipe".
20. Também não foi a Recorrente que trouxe os Recorridos para a esfera de risco dos contratos em causa. Foram eles que quiseram nela entrar.
21. Os Recorridos sabiam perfeitamente que haviam adquirido um bem que não existia à data do contrato que celebraram.
22. A Recorrente não faltou a deveres de informação que fossem devidos, nem prestou informação falsa ou sonegou informação que, de acordo com ditames de boa fé, estivesse vinculada a transmitir.
23. Mais: sujeitos como os Recorridos, que compram oito fracções, não são sujeitos que se subsumam no padrão de mera normalidade. Não são sujeitos "carecidos de protecção especial" (cfr. Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, Almedina, 2001, p. 550) e de especiais deveres de informação que recaiam sobre a Recorrente.
24. Pelo contrário, são sujeitos que actuam no mercado, que conhecem o mercado e os seus contornos. Que têm integral conhecimento do risco conatural à aquisição de bens imóveis futuros.
25. E que, de acordo com as regras daexperiência comum, tinham seguramente conhecimento do prazo do contrato de concessão, o qual de resto é público constante do Registo Predial.
26. Quanto à qualificação do contrato, o que se revela mais plausível e consentâneo com a aplicação das regras plasmadas entre os artigos 228º e 230º do CC é que se trata de um contrato de reserva ou de um contrato de compra e venda de um bem futuro.
27. Para a interpretação das declarações negociais relevam a letra do negócio, os textos circundantes, os antecedentes, a prática negocial, o contexto e o fim tido em vista pelas partes.
28. A respeito da letra do contrato, refira-se que as partes podem usar terminologia jurídica e fazer qualificações, mas esse aspecto não é vinculativo para o intérprete-aplicador, sendo que o artigo 228º do Código Civil (CC) resulta a consagração da Teoria da Impressão do Declaratário, preconizada por Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, pág. 303), segundo a qual relevam todas as circunstâncias que acompanhem a conclusão do contrato e possam, objectivamente, inculcar num declaratário hipotético, razoável e cuidadoso, colocado na posição do declaratário real, um determinado sentido para a declaração.
29. Relativamente à redacção do contrato em apreço, logo na sua cláusula 5ª, as partes acordaram numa redacção que excluiu propositadamente a utilização da expressão "訂" referente ao conceito de "sinal" (com o sentido de penalização), em prol da expressão "訂金", correspondente ao conceito de "depósito" (que não tem sentido penalizador).
30. Deste modo, as partes estão a manifestar a sua vontade em afastar a qualificação de sinal aos pagamentos efectuados por conta do contrato em causa.
31. A cláusula 22ª não indicia que as partes celebraram uma promessa de compra e venda em vez de uma compra e venda de um bem futuro ou um contrato de reserva.
32. Em contrário do que se considerou na douta sentença recorrida, a previsão da cláusula 9ª de um consentimento para a cessão também não permite reconduzir o contrato base a um contrato-promessa.
32. É esta a solução preconizada no artigo 418º do CC pela simples razão de que em contratos com prestações recíprocas, como é o caso, a Recorrente tem o dever de entregar o imóvel objecto do contrato, mas o adquirente tem o dever de pagar um preço e, no caso vertente, de pagar o preço em prestações distintas e sucessivas.
33. Quanto à circunstância de poder eventualmente inferir-se de alguns dos segmentos do clausulado a necessidade de celebração de um segundo contrato, é, nos termos do artigo 866º do Código Civil (CC), uma formalidade absolutamente essencial, quer para o contrato-promessa, quer para o contrato de reserva, quer para o contrato de compra e venda imediata de um bem futuro.
34. Por seu turno, as suas cláusulas 10ª a 12ª são previsões que raramente ou nunca são reguladas no contrato-promessa, mas sim no contrato de compra e venda.
35. Também os textos preliminares e circundantes constantes dos autos conectados com o contrato em questão, designadamente, a certidão predial da fracção em causa, os recibos de pagamento e o facto de o contrato conter uma planta da fracção adquirida em anexo, apontam para uma perspectivação dos contraentes outra que não a de estarem a celebrar uma mera promessa.
36. Relativamente ao elemento histórico subjacente ao contrato em causa, há a destacar que o contrato foi celebrado antes da publicação da Lei nº 7/2013, que foi elaborada em resposta a um vazio legal que disciplinasse estes casos, o que permite vincar a sua especificidade em relação às figuras existentes a esse tempo na ordem jurídica de Macau, incluindo a figura do contrato-promessa tipificada no Código Civil.
37. Como afirma João Vicente Monteiro na sua mais recente obra, Código do Registo Predial de Macau Anotado, pág. 299, "Estes 'contratos-promessa' têm sido tradicionalmente utilizados para formalizar verdadeiros contratos de compra e venda sobre as fracções autónomas em construção".
38. In casu, o fim do negócio tido em mente pelas partes é o seguinte: para a parte compradora, um imóvel a ser construído fica reservado contra o pagamento de uma certa quantia, por inteiro ou dividida em prstações; para a parte vendedora é receber do adquirente um determinado preço pela fracção autónoma que vai construír e lhe vai entregar.
39. Se o beneficiário desistir perde essa quantia a favor da outra parte; quando não, o contrato mantém-se. Em contrapartida, o vendedor deixa de poder dispor da fracção autónoma não podendo celebrar nenhum outro contrato com terceiros que tenha por objecto essa fracção autónoma.
40. Subsidiariamente, mesmo que se entenda que o contrato em discussão nos presentes autos se trata de um contrato-promessa típico, a verdade é que as quantias que a Recorrente recebeu enquanto pagamentos de uma parte do preço da fracção a construir que foi vendida, configura um cumprimento antecipado do contrato prometido tendo em vista a satisfação de obrigação futura, previsto no artigo 434º do Código Civil.
41. Relativamente à indemnização a arbitrar, uma vez que a impossibilidade superveniente não é imputável à Recorrente, tem aplicação o disposto no artigo 779º/1 do CC: "A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor."
42. As consequências são as do artigo 784º/1 do CC: o interessado na aquisição fica desobrigado da contraprestação e pode exigir a restituição do valor que entregou ao alienante, em singelo, nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa, conforme o estipulado nos artigos 467º e 473º/1 do CC.
43. Deste modo, salvo melhor opinião, na perspectiva da Recorrente, o quantum final da indemnização a arbitrar cifra-se em HKD$11.443.500,00, equivalentes a MOP$11.786.805,00, acrescido dos respectivos juros de mora, a contar desde a citação da Ré para contestar, à taxa legal de 9,75% ao ano.
44. No entanto, a douta sentença recorrida considerou que a indemnização devia ser calculada com base no dano excedente, de acordo com a previsão do nº4 do artigo 436º do CC.
45. Quanto à fracção "H29" foi decidido que não há dano excedente e têm os Recorridos direito a receber HKD$1.473.000,00 a título de restituição da quantia que pagaram à Recorrente e, ainda, HKD$618.660,00 a título de indemnização.
46. Relativamente a este último valor douta sentença recorrida entende que deve ser aplicada uma taxa anual de 3,5% por referência a um período de 12 anos, porque o ano em que os Recorridos fizeram o pagamento de HKD1.473.000,00 à Recorrente foi o de 2011, tendo tal capital ficado imobilizado durante aquele período quando podia ter sido depositado no banco rendendo juros a tal taxa.
47. Porém, resulta da cláusula 10ª dos contratos donde emerge este pagamento, que os Recorridos contrataram voluntariamente com a Recorrente em como tal quantia ficaria imobilizada, sem que tenham acordado em qualquer compensação por esse efeito, o que afasta uma tal obrigação por parte da Recorrente.
48. Ora, o momento a ser tomado em conta nos termos da cláusula 10ª é um momento indeterminado. Consequentemente, salvo melhor opinião, é o momento em que a impossibilidade do cumprimento se tornou definitiva e não o momento em que foi feito o pagamento do "preço", do "depósito" ou do "sinal" que deve ser tomado em conta.
49. Esse momento foi o momento em que a declaração de caducidade do contrato de concessão foi proferida e se tornou irreversível, o que ocorreu com o trânsito em julgado do douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal de Última Instância em 23 de Maio de 2018, no âmbito do Processo nº 7/2018, que sobre tal acto se debruçou, confirmando-o.
50. Pelo que, ressalvado diverso entendimento, o momento a ser tomado em consideração para o cálculo do dano equitativo é o ano de 2018 e, como tal, compreende um período de 5 anos, devendo a indemnização equitativa computar-se em HKD257.775,00 (1.473.000,00 x3,5% x 12).
51. Assim, o valor total da indemnização quanto a esta fracção cifra-se, parece-nos, em HKD$1.730.775,00 (1.473.000,00 + 257.775,00).
52. Quanto às fracções "A29" a "G29", a douta sentença recorrida considerou que os Recorridos tinham direito a serem indemnizados pelo dano excedente, ou seja, a uma indemnização pelo dano efectivo que excede o dano predeterminado pelo sinal.
53. No entanto, como bem se sabe, tal solução foi criada pelo legislador justamente com a declarada intenção de impedir que, por força do rápido aumento de preços do imobiliário em Macau, o vendedor seja tentado a não cumprir um eventual contrato-promessa por lhe ser mais vantajoso pagar o sinal em dobro e depois revender a fracção a terceiro.
54. Mas no caso vertente o que ocorre é exactamente o oposto: a Recorrente sempre quiz cumprir os contratos, podendo ler-se na fundamentação da decisão de facto que, "é uma evidência que a ré tinha vontade firme de concluir o empreendimento "XX", o que resulta da consideração dos esforços e dispêndios que fez, incontestáveis e incontestados nos autos, incluindo por via judicial" (pág. 7 da Decisão da Matéria de Facto).
55. Em Macau, dada a existência de uma anormalmente rápida valorização do imobiliário em tempos normais, o legislador teve essencialmente em vista punir severamente a eventual má-fé do vendedor, mas tal não ocorre, antes pelo contrário, no caso da Recorrente.
56. E visa proteger os interesses do promitente fiel típico que procura adquirir uma fracção autónoma para nela habitar ou para a arrendar, mas não a actividade de especulação imobiliária.
57. Daí que, ao publicar a legislação especificamente destinada a proporcionar aos compradores do "XX" uma fracção sucedânea daquela que adquiriram à Recorrente, o legislador haja limitado o benefício a uma só fracção, independentemente do número de fracções que um qualquer comprador houvesse adquirido - vd. Lei nº 8/2019, de 12 de Abril, por via do Despacho do Chefe do Executivo 89/2019, de 30 de Maio e cfr. Factos nºs. 13 a 17 da douta sentença recorrida.
58. Deste modo, com todo o respeito devido, a douta sentença recorrida não tomou em consideração o espírito subjacente à previsão contida no nº 4 do artigo 436º do CC, aplicando-a unicamente em função da sua literalidade.
59. Um outro factor foi desconsiderado na douta decisão recorrida: os Recorridos apenas pagaram 30% do preço das fracções e não se sabe, nem pode saber, se iriam ou não, pagar os restantes 70% dos respectivos preços.
60. A situação patrimonial real dos Recorridos no presente traduz-se na perda do valor correspondente a estes 30%, isto é, na perda de HKD9.970.500,00; a sua situação hipotética caso não houvessem sofrido um tal dano, traduz-se, salvo melhor opinião, num activo correspondente a 30% do valor de mercado destas fracções autónomas ao tempo do encerramento da discussão em la Instância, o qual resultou provado ser o de HKD$60.865.310,50.
61. Como tal, face ao disposto no nº 4 do artigo 560º do CC, o valor da indemnização por dano excedente deveria cifrar-se em HKD$27.980.998,92, equivalentes a MOP$28.820.429,00, calculados da seguinte forma: HKD$9.970.500,00 + HKD$18.010.498,92 (60.865.310,50 x 30%).
62. Relativamente à indemnização no valor de HKD$39.073.810,50, a douta sentença recorrida entendeu que, apesar de baseada no dano excedente, a contagem dos juros de mora deveria ter início com a data da interpelação.
63. Salvo o devido respeito, que é muito, pelo distinto tribunal a quo, parece-nos que sempre será necessário proceder à liquidação da obrigação quando o pedido radica no dano excedente.
64. O dano excedente não é o valor de mercado, mas sim os prejuízos sofridos pelo lesado em acréscimo à indemnização predeterminada.
65. Confirmando este entendimento da Recorrente e em sentido contrário à tese da douta sentença recorrida pronunciou-se igualmente o Venerando TUI, em acórdão proferido em 29 de Novembro de 2019, no âmbito do Processo nº 58/2019, nos termos do qual, "a autora só tem direito a juros de mora sobre o valor do dano excedente, a partir da data do presente acórdão, face ao disposto no n.º 4 do artigo 794.º do Código Civil."
66. Temos assim, que, no caso subjudice, os juros de mora relativamente ao "sinal" ou "parte do preço" prestados pelos Recorridos, HKD$9.970.000,00, começam a contar-se com a citação, mas os juros de mora incidentes sobre a parte da indemnização correspondente ao dano excedente começam a contar-se com a data da prolação da sentença.
67. Ressalvado diverso entendimento, a douta decisão recorrida incorre na violação dos artigos 228º, 229º, 230º, 435º, 436º, 467º, 473º/1, 556º, 560º/5, 779º/1, 784º/1, 795º e 801º do Código Civil.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente Recurso ser julgado procedente, com as legais consequências, assim se fazendo, serenamente, Justiça.
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B, C e D, Recorridos, com os sinais identificativos nos autos, ofereceu a resposta constante de fls. 1960 a 1972, tendo alegado o seguinte::
I. Ponto Prévio
1. De modo a evitar repetições desnecessárias, os Recorridos dão por ora reproduzida toda a factualidade assente e dada como provada pelo douto Tribunal a quo, devidamente transcrita em sede da Sentença Recorrida (doravante "Sentença"), constante especificamente de fls. 1827 e seguintes dos autos.
2. Nos termos propostos pela Recorrente nas suas alegações de recurso, verifica-se que a mesma apresenta 3 temas de discórdia face à Sentença, a saber: 1) a qualificação jurídica dos contratos em apreço nos presentes autos, 2) a imputação de impossibilidade superveniente de cumprimento a terceiro, bem como 3) a indemnização determinada pelo douto Tribunal a quo.
3. Salvo melhor e fundamentada opinião, nenhuma razão assiste à Recorrente, conforme os Recorridos passarão a demonstrar.
II. Da Natureza Jurídica dos Contratos em Apreço
4. Insurge-se a Recorrente contra a (correcta, adianta-se) qualificação jurídica oferecida pelo douto Tribunal a quo relativamente à natureza dos contratos melhor descritos enquanto Facto Assente B) - doravante, os "Contratos" -, algo que não deixa de causar estupefacção aos Recorridos, ainda para mais considerando as diversas sentenças contra a Recorrente proferidas acerca da mesma temática, às quais se junta a própria posição do Venerando Tribunal ad quem ínsita nos Acórdãos proferido no âmbito dos Processos n.º 22/2024 e 220/2024.
5. Em todos esses arestos, a posição jurisprudencial foi unívoca: estamos efectivamente perante contratos-promessa de compra e venda de imóveis e não perante qualquer contrato de compra e venda de bem futuro (seja denominado "E" ou outro), nem sequer perante um contrato de reserva. Por outras palavras, todas as teses carreadas para os autos por parte da Recorrente a este respeito (seja para os presentes autos, seja para outros análogos) foram rejeitadas pelos Tribunais da R.A.E.M. - como, aliás, se impunha, tendo em conta a concreta factualidade subjacente aos referidos Contratos e as mais basilares regras de boa interpretação dos mesmos.
Senão vejamos,
6. De facto, a venda das fracções autónomas do projecto XX não tem qualquer particularidade de relevo, face à comercialização de quaisquer outras fracções autónomas em fase de projecto, no que é uma prática antiga. A promotora do empreendimento - a Recorrente - coloca no mercado as fracções autónomas enquanto bem futuro, prometendo a sua venda, financiando-se assim para prosseguir com a construção. Os pagamentos são faseados, à medida que a construção evolui, e a transmissão da propriedade apenas se faz com a escritura pública de compra e venda, uma vez terminada a construção.
7. A qualificação dos contratos depende, sobretudo, das prestações típicas a que as partes contratantes se obrigam. No caso do contrato-promessa, as partes obrigam-se a celebrar um outro contrato (definitivo), como resulta claro do artigo 404.º do Código Civil. Importa, pois, analisar o teor do contrato celebrado pelas partes para verificar se a prestação típica é, ou não, a celebração de um outro contrato. Uma análise dos contratos não deixa margem para dúvidas. Particularmente claro é o disposto nas cláusulas 9.ª e 15.ª dos contratos celebrado entre as partes, onde acordam na celebração da escritura pública de compra e venda do imóvel em questão. Este é o verdadeiro fim dos contratos e as partes arredam, de forma terminante, qualquer discussão a esse propósito.
8. É certo que a terminologia utilizada pelas partes não vincula o Tribunal, mas não menos certo é o facto de os contratos em apreço nos presentes autos fazerem várias referências a contrato-promessa, a promitente comprador, a promitente vendedor e outras que são usuais em contratos-promessa.
9. Desde logo, o título dos contratos evidencia o que era a intenção das partes, ao darem-lhes o nome de 樓宇買賣預約合約. Depois, na cláusula 1.ª ficou acordado que a Parte A promete vender à Parte B. Sob pena de aduzir argumentos ad nauseam, aponte-se ainda o facto de os Contratos ora em apreço determinarem, por exemplo, a perda dos valores pagos, caso a Parte B falhasse algum pagamento (cláusula 5.ª, tipicamente cláusula de sinal, decalcada do normativo ínsito no n.º 2 do artigo 436.º do Código Civil), a necessidade de a Parte B obter consentimento da Parte A para o caso de pretender revender a fracção autónoma antes da celebração da escritura pública de compra e venda, pagando ainda uma comissão de 1% (cláusula 9.ª), a sujeição da Parte B a obras de decoração interior e exterior levadas a cabo pela parte A sem possibilidade de oposição (cláusula 22.ª), entre outras.
10. Tais cláusulas revelam efectivamente que não estamos perante qualquer contrato definitivo passível de transferir a propriedade dos imóveis em apreço para a esfera jurídica dos Recorridos.
11. Ao invés, todas estas cláusulas demonstram que o objecto do contrato é a celebração de uma escritura pública de compra e venda e que, até esse momento, a Parte B apenas detém direitos de natureza obrigacional. Qualquer outra teorização apenas se poderá reputar como atentatória da realidade material subjacente, realidade essa que clama pelo respaldo absoluto e sem reservas da qualificação da natureza dos Contratos operada pelo Tribunal a quo.
12. A Recorrente parece começar a querer aceitar tal factualidade, conforme se pode retirar de páginas 28 a 30 das suas alegações de recurso, quando afirma: "Mesmo que se entenda que os contratos em discussão nos presentes autos se tratam de contratos-promessa típicos, a verdade é que, por todo o exposto, que aqui se dá por reproduzido, as quantias que a Ré recebeu enquanto pagamentos de uma parte do preço das fracções a construir e que foram vendidas aos Autores, configuram um cumprimento antecipado dos contratos prometidos tendo em vista a satisfação de obrigação futura, conforme previsto no artigo 434º do Código Civil". Louve-se a aparente inflexão do discurso - no sentido de não colocar de parte a qualificação dos presentes contratos como contratos-promessa -, mas aponte-se a entorse gritante das regras legais aplicáveis ao caso em apreço ensaiada pela Recorrente.
13. Como a Recorrente bem sabe, as partes podem identificar os pagamentos feitos pelo promitente-comprador como sendo depósito, sinal ou preço, indiferenciadamente. No final das contas e por força do disposto no artigo 435.º do Código Civil, presume-se que todos esses pagamentos têm o carácter de sinal e, consequentemente, seguem o regime estabelecido para o efeito.
14. Mais, a Recorrente também não pode ignorar que tentou afastar a aplicação ao caso concreto do regime do sinal, sem sucesso (vide resposta oferecida pelo douto Tribunal a quo ao Quesito n.º 6, a fls. 1797v.). Uma vez que se está perante uma presunção juris tantum, caberia à Recorrente inverter a citada presunção de modo a conferir respaldo à sua pretensão, tendo falhado redondamente.
15. Fácil se torna a conclusão de que, com a argumentação expendida a este respeito em sede das suas alegações de recurso, a Recorrente - passe a expressão - pretende fazer entrar pela janela aquilo que não conseguiu fazer entrar pela porta...
16. O mesmo desfecho ter-se-á de apontar à sugestão de enquadramento típico dos contratos objecto dos presentes autos enquanto contratos de reserva, os quais poderão ser conceptualmente descritos como pré-contratos sujeitos à liberdade contratual.
17. Sobre esse tópico, cite-se o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do Processo n.º 25178/20.3T8LSB.L1-7, a título de jurisprudência comparada, no qual se conclui:
"Em todo o caso, tem-se entendido que o "Contrato de Reserva" já assumiu alguma tipicidade social, na vida económica corrente, pela frequência com que vem sendo convencionado, estando subordinado essencialmente às regras da liberdade contratual (Art. 405.º n.º 1 do C. C.).
Higina Castelo (in "Reserva de Imóvel: com vista à futura celebração de contrato relativo a bem imóvel": disponível in "blook.pt") reconhece que esta figura possa ser recortada dentro dos chamados "acordos intermédios", que para uns são meros instrumentos jurídicos, destituídos de natureza contratual, servindo de simples auxiliares de negociação de um dado acordo mercantil (cfr. Engrácia Antunes in "Direito dos Contratos Comerciais", pág. 97); para outros são uma forma de "contratação mitigada", o que não significa que seja uma contratação fraca, mas antes uma contratação de tipo diferente, em que os deveres são de simples procedimento, de esforço e negociação, mas existem e devem ser cumpridos (cfr. Menezes Cordeiro in "Manual de Direito Comercial", pág. 497); para outros ainda a sua juridicidade depende de interpretação casuística (cfr. Ana Prata in "O Contrato Promessa e o seu Regime Civil", pág. 125 a 136).
No fundo não são ainda um contrato-promessa, com esse tipo de vinculação típica, nem estão sujeitos ao seu regime, mas são preliminares doutros contratos, estabelecidos ainda numa fase em que é possível o arrependimento, mas não deixam de ser verdadeiros contratos, nomeadamente quando neles seja estipulado o direito ao arrependimento mediante o pagamento de indemnização (cfr. Higina Castelo, in Ob. Loc. Cit. pág.s 14 a 16).
Para Higina Castelo o contrato de reserva será um contrato bilateral ou sinalagmático, na medida em que cada uma das partes se obriga a realizar a sua prestação porque a parte contrária se obriga a efetuar a dela e para que esta se concretize, sendo cada prestação contrapartida e justificação da outra. Em concreto, o interessado na aquisição compromete-se a adquirir ou celebrar um contrato promessa de aquisição (sem prejuízo de poder alternativamente pagar pela sua desistência injustificada com quantia que adianta), porque a parte contrária se compromete a alienar ou celebrar contrato promessa de alienação (sem prejuízo de poder pagar pela sua desistência ad nutum, perdendo a quantia adiantada e, geralmente, outro tanto); e para que isso aconteça, o interessado na alienação compromete-se a alienar ou celebrar o contrato-promessa, porque a parte contrária se compromete a adquirir ou celebrar o contrato-promessa. O que implica que as partes se comportem de determinada forma, diligenciando o necessário naquele sentido, obtendo de documentação necessárias, como licenças, financiamentos bancários, procedendo a notificações de preferentes ou abstendo-se de negociar a coisa com terceiros (cfr. Higina Castelo in Ob. Loc. Cit. pág. 19).
É normal que, quando as partes celebrem um contrato de reserva de imóvel, a vontade relativa ao contrato final ainda não se encontre suficientemente consolidada, pretendendo as partes manter a liberdade de contratar".
18. Nada disso resulta dos Contratos. Ao invés, aquilo que resulta dos Contratos é que as Partes prometeram vender e comprar, respectivamente, os imóveis, assim como prometeram celebrar os respectivos contratos definitivos, através de escritura pública de compra e venda - ou seja, celebraram contratos-promessa de compra e venda de imóveis, tout court.
19. Em face do exposto, naufraga a argumentação acerca da qualificação dos Contratos operada pela Recorrente, sendo de manter a decisão do Tribunal a quo.
III. Do Incumprimento Contratual Definitivo Imputável à Recorrente
20. Os Contratos ora em apreço não foram cumpridos pela Recorrente e a prestação típica a que a Recorrente se obrigou - a celebração da escritura pública de compra e venda sobre as fracções autónomas A29 a H29, 29.º andar, Bloco XX, Lote XX s/n da XX - tornou-se impossível. Este é um facto que a Recorrente não quis inicialmente aceitar, mas que hoje é indesmentível e pacífico. A concessão do terreno onde a Recorrente planeava construir o empreendimento XX caducou - Factos Assentes E) e F) -, sendo do conhecimento público que aquele lote de terreno foi concedido à F, conforme Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 5/2021, de 1 de Março de 2021, para desenvolvimento imobiliário.
21. Inconformada com a decisão do douto Tribunal a quo, vem a Recorrente vem colocar em crise a causa dessa mesma impossibilidade, alegando que “a impossibilidade [de cumprimento dos Contratos] se deve à actuação de um terceiro”, in casu a R.A.E.M., na figura da (então) Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (doravante, "DSSOPT") e da Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental (doravante, "DSPA"), mais alegando que a actuação da Administração deverá ser reputada de imprevisível e inevitável.
22. Diga-se que a Recorrente pretende provar nestes autos aquilo que não conseguiu provar quando demandou a RAEM na acção com o processo n.º 317/18-RA (acção para efectivação da responsabilidade civil extracontratual), que foi julgada improcedente. De igual modo, a Recorrente desistiu do pedido de intervenção acessória provocada da RAEM nestes mesmos autos. Isto é, a Recorrente optou por tentar imputar à RAEM responsabilidade no incumprimento dos Contratos, mas não quer que a RAEM sequer se pronuncie sobre essa imputação. É, naturalmente, mais fácil fazê-lo tendo apenas os Recorridos como interlocutores, os quais não participaram ou sequer acompanharam os meandros da negociação do contrato de concessão e sua execução.
23. A Recorrente procura argumentar no sentido de que a culpa do incumprimento não lhe pode ser imputada, mas sim à RAEM, numa tentativa de ilidir a presunção de culpa que sobre si impende. Trata-se de uma linha de argumentação que é destituída de qualquer mérito, conforme facilmente se demonstra.
Em concreto,
24. Alega a Recorrente que a conduta da Administração foi imprevisível, começando por assentar a razão da sua discórdia com a Sentença proferida pelo Tribunal a quo no (suposto) facto de “... quando a Recorrente contratou, já o projecto de arquitectura tinha sido incondicionalmente aprovado e com imediata eficacidade".
25. Tal raciocínio é manifestamente incorrecto.
26. Desde logo, padece de um vício de base, uma vez que resulta provado pelo Tribunal a quo que "a DSSOPT aprovou o projecto sem o sugerido afastamento entre torres e em 7/1/2011 notificou a ré dessa aprovação e notificou-a ainda para apresentar o relatório de estudo de impacto ambiental que teria a construção do edifício em matéria de fluxo de ar, efeito biombo, ilhas de calor e expansão dos poluentes e referindo à ré que não lhe seria emitida licença de obras sem que o referido relatório fosse apresentado e aprovado".
27. Sublinhe-se que a matéria de facto não foi alvo de impugnação por parte da Recorrente.
28. Ora, como é bom de ver, a aprovação do projecto de arquitectura da Recorrente foi feita de forma condicional, uma vez que, para emissão da licença de obra a Recorrente teria de apresentar e obter aprovação do relatório de estudo de impacto ambiental requerido.
29. Caso tal aprovação não fosse condicional - como foi -, bastaria à Recorrente requerer a emissão da licença de obra, nos termos do artigo 42.º do Regulamento Geral da Construção Urbana, algo que a Recorrente não fez, à data, nem tão pouco colocou tal acto administrativo em crise, pelo que vício não lhe notou ou assacou.
30. Em sentido diametralmente oposto, resulta provado que "em 11/5/2011, a ré apresentou à DSSOPT um relatório do estudo de impacto ambiental requerido". Ou seja, a própria actuação (comprovada) da Recorrente demonstra à saciedade que a mesma bem sabia que o seu projecto, à data de 7 de Janeiro de 2011, não havia "sido incondicionalmente aprovado e com imediata eficacidade". E tanto sabia que a própria Recorrente apenas após a aprovação do último relatório de estudo de impacto ambiental - em 15/10/2013 - é que requereu à DSSOPT a emissão de licença de obras, mais concretamente em 24/10/2013.
31. Por último, diga-se ainda que a Recorrente bem sabe que a argumentação expendida a propósito da suposta aprovação incondicional do seu projecto de arquitectura, trazido ao conhecimento da Recorrente por via do ofício notificado em 7 de Janeiro de 2011 é, no mínimo, falaciosa, até porque contraria a matéria dada por assente e provada em diversos arestos (nos quais se estabeleceu que o projecto de arquitectura conheceu aprovação definitiva em 29/08/2013), conforme seja aquela que resultou da sentença proferida no Processo n.º 317/18-RA, do Tribunal Administrativo (acção para efectivação de responsabilidade civil extracontratual intentada pela Recorrente contra a RAEM), do acórdão proferido em sede de recurso contencioso pelo Tribunal de Segunda Instância, no âmbito do Processo n.º 179/2016, ou mesmo no acórdão proferido pelo Tribunal de Última Instância, no âmbito do Processo n.º 55/2016, factualidade essa que foi já sobejamente tratada e trazida ao conhecimento do Venerando Tribunal a quo, e que respalda, por completo, a argumentação supra aduzida.
32. Mas, da factualidade supra elencada, resulta clarividente a periclitância e total falta de validade dos argumentos tecidos pela Recorrente no que à suposta imprevisibilidade da Administração diz respeito, em face do incumprimento dos Contratos sub judice.
33. Em acréscimo, afirma ainda a Recorrente que "no caso vertente, não era previsível que a DSSOPT fizesse depender a emissão dessa licença, da apresentação e aprovação de um Relatório ambiental pela DSPA, como infelizmente o fez".
Ora,
34. Estando assente que os Contratos foram celebrados entre Recorrente e Recorridos em 11 de Março de 2011, e resultando provado que a Recorrente, já em 7 de Janeiro de 2011, havia sido notificada de que, para obter a emissão da licença de obra, a Recorrente teria de apresentar e obter aprovação do relatório de estudo de impacto ambiental requerido pela Administração, como é que a Recorrente pode aspirar ancorar uma qualquer réstia de imprevisibilidade ao facto em apreço?
35. Cristalino resulta que quando a Recorrente decidiu contratar com os Recorridos, já sabia das regras impostas pela Administração, tendo-se conformado com as mesmas, não as questionando ou levantado óbice. Mas nunca informou os Recorridos da condição imposta pela Administração para que a licença de obras fosse emitida - questão essa que será tratada, a devido tempo.
36. Para além disso, a Lei n.º 2/91/M, de 11 de Março (Lei de Bases do Ambiente) estabelece que os planos, projectos, trabalhos e acções que possam afectar o ambiente, a saúde e a qualidade de vida da população, que sejam da responsabilidade e iniciativa de um organismo da Administração ou de instituições públicas ou privadas, devem ser acompanhados de estudo de impacte ambiental (artigo 28.º, n.º 1) e que a aprovação do estudo de impacte ambiental é condição essencial para o licenciamento final das obras e trabalhos pelos serviços competentes (artigo 28.º, n.º 3). Certamente que a Recorrente, companhia experiente na área da construção civil, estaria familiarizada com tal diploma legislativo - e, ainda que não o estivesse, ignorantia juris non excusat, conforme decorre do artigo 5.º do Código Civil.
37. O acompanhamento do quadro regulatório existente na R.A.E.M. foi inicialmente feita pelo Conselho do Ambiente, até ter existido um reforço concreto da actuação na área ambiental por parte da Administração da RAEM, o qual culminou na Lei n.º 6/2009, onde se materializou a extinção do citado Conselho do Ambiente e a criação da DSPA. Esta pretendia-se com capacidade de intervenção revigorada, procurando-se reforçar a "protecção dos direitos ambientais e a aplicação da lei", bem como assegurar o gradual desenvolvimento e a plena implementação das políticas ambientais do Governo de Macau. (págs.2 e 3 do Parecer n.º 2/III/2009, da 2.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa).
38. Tendo em conta a dimensão (18 torres habitacionais) que o projecto da Recorrente contemplava, ter-se-á de convir que a exigência de estudos de impacto ambiental não tem, pois, nada de ilegal e possui, até, plena justificação, maxime em prol da prossecução do interesse público.
39. Tudo isto porque a Recorrente não queria respeitar a recomendação feita pela DSSOPT de assegurar um afastamento mínimo entre as torres. Competia, pois, à Recorrente demonstrar que o projectado empreendimento não teria consequências nefastas em matéria de circulação de ar. As exigências feitas pela DSPA nesta matéria foram mais que razoáveis, pois que a finalidade deste exercício não era provar que o distanciamento entre torres que foi sugerido pela DSSOPT era necessário, mas sim que o projecto, sem respeitar essa sugestão, era viável em termos ambientais. E isso foi conseguido.
40. Ora, se a exigência de estudos de impacto ambiental encontra pleno esteio na letra da lei desde, pelo menos, 1991, não se entende a argumentação da Recorrente, muito menos pretendendo emprestar à sua actuação um cariz diligente, algo que falece pela base. A Administração exigiu o cumprimento da lei, nada mais, e a acusação de inexistência de norma legal em respaldo da mesma proferida pela Recorrente não é séria. A RAEM não criou qualquer entrave ilegal à actuação da Recorrente, limitou-se a cumprir a lei nos termos que entendeu melhor prosseguirem o interesse público e a Recorrente não consegue avançar qualquer argumento sério que aponte em sentido contrário, caindo por terra a sua (parca) argumentação no sentido de estarmos perante um denominado "facto do princípe".
41. Por outro lado, alega a Recorrente que a actuação da R.A.E.M. configurou uma força inultrapassável - em concreto, "os serviços da RAEM não emitiram a licença de construção sem que fosse apresentado o Estudo Ambiental". No entanto, desconhecem os Recorridos se essa mesma licença de construção foi pedida junto da DSSOPT, após a suposta aprovação do projecto, notificada à Recorrente em 7 de Janeiro de 2011. Se a Recorrente tinha tanta certeza da sua posição jurídica em detrimento daquela defendida pela Administração, cabia-lhe, enquanto contratante diligente, requerer a emissão da licença de obras. Mas a Recorrente não o fez. Assim como nunca a Recorrente impugnou, reclamou ou recorreu de qualquer acto da Administração no âmbito do processo em apreço, onde manifestasse o seu desagrado ou preocupação com a forma como o processo estava a ser conduzido. Só depois de a caducidade da concessão ter sido declarada é que a Recorrente reagiu, o que retira qualquer laivo de credibilidade às suas queixas sobre ilegalidades cometidas pela Administração.
42. Os atrasos e contratempos nos processos de licenciamento são vulgares e conhecidos de todos, sobretudo dos promotores imobiliários, ainda para mais experientes, como é o caso da Recorrente, sendo de esperar que tudo tivesse feito para precaver tais atrasos e contratempos com a necessária diligência.
43. Conforme se lê em decisão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, processo 628/09.3YFLSB, proferida em 12 de Janeiro de 2010, ora citado a título de jurisprudência comparada:
"Quem se assume como promitente-vendedor de fracção a construir, recebendo do promitente-comprador um sinal, terá de prever toda uma série de diligências de natureza burocrática e eventuais obstáculos administrativos e, em relação a eles, precaver-se atempadamente.
Salvo melhor opinião, não lograram as RR, face aos factos provados, afastar a presunção de culpa que sobre elas impendia, não resultando demonstrada, designadamente a ocorrência de acto de terceiro que não fosse previsível ou de caso fortuito ou de força maior".
44. O mesmo Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 7 de Novembro de 2006, processo 06A2018, ora citado a título de jurisprudência comparada, entende que:
"Mas para ilidirem a presunção do nº 1 do artigo 799º teriam de demonstrar que agiram com toda a diligencia, que se socorreram de todos os meios legais, que forneceram todos os elementos permissivos de contrariar o projecto da autarquia que, enfim, tudo fizeram para que o objecto do contrato promessa não se tornasse impossível.
Esta é, aliás, a posição que mais se coaduna com a dogmática da culpa presumida e que, em coerência com os princípios da probidade negocial, permite que, os mais ousados, possam outorgar contratos promessa de bens pendentes de alvará de loteamento sem que nunca fiquem sujeitos à sanção do nº 2 do artigo 442º do Código Civil, bastando-lhes alegar o facto de terceiro, leia-se Câmara Municipal",
45. Em conclusão, para que a conduta da Administração pudesse configurar uma causa de força maior, como a Recorrente pretende, teria de se tratar de um evento revestido da trilogia imprevisibilidade-inevitabilidade-irresistibilidade (v. JOSÉ CARLOS BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 2011, pág.167), algo que, conforme demonstrado, não sucede no caso em apreço.
IV. Do Risco
46. No que para estes autos interessa, importa reter que, em 7 de Janeiro de 2011, a DSSOPT notificou a Recorrente da aprovação do seu projecto de arquitectura (resposta aos Quesitos n.º 2, 3, 4 e 5), ainda que de forma condicionada, porquanto a emissão de licença de construção dependeria da necessária apresentação e aprovação de relatório de circulação de ar e relatório de impacto ambiental (idem).
47. Deverá sublinhar-se ainda que a Recorrente celebrou com os Recorridos oito contratos-promessa de compra e venda em 11 de Março de 2011, antes mesmo de ter apresentado qualquer relatório do estudo de impacto ambiental (o que veio a acontecer apenas em 11/05/2011), e muito antes da aprovação final do Estudo de Avaliação do Impacto Ambiental e de Circulação do Ar, o que veio apenas a acontecer em 15 de Outubro de 2013 (resposta aos quesitos 2, 3 4 e 5). Ou seja, a Recorrente contrata a promessa de venda de oito fracções autónomas aos Recorridos sem ter o projecto aprovado sem condições e sem ter, sequer, licença de construção.
48. Das alegações de recurso resulta que a Recorrente tem um muito sui generis entendimento do que seja a conduta esperada de um bom pai de família. Apesar de afirmar que a exigência de estudos de impacto ambiental fora alegadamente inédita, e com isso reconhecer que nenhuma experiência tinha na matéria, nem podia colher de casos semelhantes ocorridos com outros promotores, a Recorrente declara que nunca lhe ocorreu poder daí advir uma situação de impossibilidade de incumprimento. Não se entende a lógica (ou a falta dela).
49. Caso os estudos de impacto ambiental fossem comuns e a Recorrente tivesse deles experiência prévia, que apontasse para que a situação pudesse estar resolvida a curto prazo, já poderia fazer algum sentido a convicção da Recorrente de que conseguiria ultrapassar essa etapa com facilidade. Mas não era esse o caso, a Recorrente não possuía referências ou termos de comparação que lhe pudessem criar a expectativa de que poderia cumprir com as condições impostas pela DSSOPT e assim obter a almejada licença de construção.
50. De qualquer forma, recorde-se uma vez mais que o estudo de impacto ambiental não foi uma surpresa que tivesse apanhado a Recorrente desprevenida depois de ter contratado com os Recorridos. Pelo contrário, essa exigência já tinha sido fixada antes de contratar a venda de oito fracções autónomas aos Recorridos.
51. Nestas circunstâncias, o que recomenda a prudência? Actuar com extrema cautela, pois que pisamos terreno desconhecido, proceder com a máxima diligência, uma vez que não se sabe qual vai ser o desfecho deste exercício. Exactamente o contrário do que a Recorrente fez, ao começar de imediato a celebrar contratos-promessa de compra e venda e a receber pagamentos dos promitentes compradores, envolvendo-os assim também a eles nessa viagem sem destino seguro. Tudo aquilo que um bom pai de família não faria.
52. A aconselhar extrema prudência estava ainda o facto, correctamente identificado na Sentença ("comportamento demorado na prática de actos que a ré necessitava para poder construir"), de a Recorrente se queixar de constantes atrasos por parte da Administração, mesmo antes da aprovação condicionada do projecto de arquitectura. Esses atrasos, ou o que assim fosse entendido por parte da Recorrente, deveriam ter-lhe recomendado acrescidas cautelas na forma como lidava com a situação, pois que tais atrasos poderiam repetir-se e eram aparentemente a norma na sua relação com a Administração.
53. Qualquer promotor imobiliário minimamente versado no ofício sabe que os processos de aprovação de projectos e de licenciamento não são tramitados nos curtos prazos que a lei indicativamente fixa, sobretudo quando se trata de um empreendimento imobiliário com 18 torres.
54. Pois bem, o argumento esgrimido pela Recorrente, de que nenhum empreendedor imobiliário de Macau, normalmente diligente, poderia contar com as exigências da DSPA relativamente aos relatórios de impacto ambiental apenas faria sentido se a Recorrente tivesse sido confrontada com a exigência desses relatórios depois de celebrado os Contratos com os Recorridos. Sendo certo que a DSPA foi acrescentando questões a abordar naqueles relatórios, o procedimento já tinha sido iniciado antes da celebração dos Contratos e a Recorrente não estava devidamente preparada para lhe dar resposta, porque nenhuma experiência tinha na matéria.
55. Ao celebrar os Contratos com os Recorridos nestas condições, ciente de que o prazo de aproveitamento iria expirar daí a menos de 3 anos e que a concessão caducava em 25 de Dezembro de 2015, a Recorrente optou por fazer recair sobre os Recorridos o risco de não conseguir concluir o aproveitamento no prazo respectivo ou, mesmo, no prazo da concessão.
56. A Recorrente optou voluntariamente por celebrar contratos-promessa de compra e venda sem se assegurar previamente de que estavam reunidas as condições para os poder cumprir, numa conduta que, no mínimo apenas se poderá qualificar de gravemente negligente. Correu o risco de não conseguir cumprir e fez os Recorridos partilharem desse risco.
57. A Recorrente sabia - ou devia saber, atendendo à sua posição de grande promotora imobiliária - que tinha de completar o empreendimento XX no máximo até 25 de Dezembro de 2015 e que tinha de tomar todas as diligências necessárias para o conseguir. Mas não o fez. Conforme resulta claro da convicção que criou, contava com uma prorrogação do contrato de concessão ou com uma nova concessão e só isso justifica a recusa de acolher a recomendação da DSSOPT sobre o afastamento das torres e a forma morosa e ineficiente como lidou coma necessidade de apresentar relatórios de impacto ambiental.
58. Nada nos autos permite inverter a presunção de culpa da Recorrente. Antes pelo contrário, reforça a convicção de que agiu com culpa. E culpa grave, indesculpável.
59. Dizer que não foi a Recorrente que atraiu os Recorridos para a esfera de risco do contrato seria motivo de chacota, não fosse a seriedade do assunto em apreço.
60. A Recorrente, promotora imobiliária de renome na RAEM, com experiência e "obra feita", que coloca no mercado milhares de fracções, através da promessa da sua venda, sendo a única interlocutora nas negociações com a Administração, e bem assim no procedimento administrativo atinente à construção do empreendimento imobiliário, pretende as sacar aos Recorridos o risco do negócio? Quando estes, antes, aquando e mesmo depois da celebração dos Contratos, em boa-fé, nunca foram avisados ou alertados pela Recorrente sobre o risco sério, grave e presente, que pairava sob os negócios sub judice? Não se compreende tal linha argumentativa por parte da Recorrente, ainda para mais quando esta era a única parte dos Contratos que tinha, efectivamente, o dominus da informação acerca do risco eminente dos mesmos e nada fez no sentido de alertar os Recorridos para o efeito.
61. Em jeito de conclusão, reconhecendo a superior capacidade de síntese do douto Tribunal a quo, cite-se o teor da Sentença, a qual descreve na perfeição a situação criada pela Recorrente, da qual se extraiem as devidas consequências legais:
"A ré, em 11 de Março de 2011, não devia ter contratado como contratou se se pautasse pelo padrão do empresário bom pai de família, o qual pode ser arrojado e confiante como a ré foi, mas também pondera e duvida e não envolve terceiros no seu risco empresarial sem os esclarecer do seu arrojo, como a ré não esclareceu. Nem transforma as expectativas em certezas como a ré fez em texto contratual.
A ré, face à escassez de tempo e face ao relacionamento que vinha mantendo com a RAEM (que tinha tentado que o projecto de arquitectura fosse alterado e que a tinha avisado da necessidade de estudos aprovados de impacto ambiental), se tivesse expectativas, tinha também a possibilidade de ter dúvidas sobre a possibilidade de construir, dúvidas que não teve.
A impossibilidade de prestação é-lhe imputável a título de culpa".
62. Estabelecido que ficou o incumprimento culposo da Recorrente, sendo-lhe imputável a impossibilidade da prestação assumida com os Recorridos, terá a mesma de os indemnizar pelo danos que surgirão na sua esfera jurídica, nos termos do disposto nos artigos 787.º, 790.º e 557.º do Código Civil, entre outros.
V. Da Obrigação de Indemnizar e do Dano
63. A análise operada nesta sede por parte do Tribunal a quo (mais concretamente no ponto “3 - Da indemnização dos danos decorrentes da impossibilidade superveniente da prestação por causa imputável ao devedor" da Sentença, constante de páginas 18 a 33 da mesma), não ofereceu reparo aos Recorridos, tendo-se os mesmos conformado com o seu teor, aderindo à argumentação e conclusões aí vertidas, dando-se por integralmente reproduzida, remetendo-se respeitosamente V. Exas. para o seu teor, sob pena de repetições desnecessárias.
64. No entanto, em face das concretas alegações da Recorrente, não poderão os Recorridos deixar de tecer alguns comentários contra as mesmas.
65. Estabelecido que ficou o incumprimento culposo dos Contratos ora em apreço por parte da Recorrente, os Recorridos afastam, de uma penada, a argumentação da Recorrente no sentido de aplicar ao presente caso as normas ínsitas no n.º 1 do artigo 779.º e no n.º 1 do artigo 784.º do Código Civil, com a consequente pretensão de restituir apenas o valor a si entregue pelos Recorridos, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, ex vi dos artigos 467.º e 473.º do Código Civil, uma vez que tal normativo é inaplicável ao presente caso.
66. De facto, dada a natureza jurídica dos Contratos em questão, bem como a imputabilidade do seu incumprimento culposo à Recorrente, deverá esta ser chamada a indemnizar os Recorridos pelos danos causados na sua esfera jurídica, os quais apresentam um nexo causal inquestionável face ao referido incumprimento contratual, os quais pagaram avultadas quantias à Recorrente, enquanto promitentes-fiéis, sem qualquer sinalagma da contraparte.
67. A Recorrente vem ainda (subsidiariamente) alegar que:
a) Quanto ao Contrato referente à fracção autónoma "H29", a Recorrente aceita a restituição em singelo da quantia que os Recorridos pagaram à Recorrente, mas discordam do montante indemnizatório arbitrado em acréscimo, maxime pelo facto de o momento a ser tomado em consideração para o cálculo do dano equitativo é o ano de 2018 e não 2011 (porquanto apenas em 2018 transitou em julgado o Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância que declarou a caducidade do terreno ora em apreço);
b) Quanto aos Contratos referentes às fracções autónomas "A29" a "G29", não deverão ser aplicadas in casu as regras relativas à indemnização do dano excedente, ou seja, que deverá ser de desaplicar a norma ínsita no n.º 4 do artigo 436.º do Código Civil.
68. Uma vez mais, nenhuma razão assiste à Recorrente.
69. A compensação atribuída pelo douto Tribunal a quo quanto à fracção autónoma "H29" seguiu jurisprudência firmada por este próprio Venerando Tribunal ad quem, conforme resulta do teor dos Acórdãos proferidos em sede dos Processos n.º 22/2024 e 220/2024.
70. De nada poderá servir a alegação proferida pela Recorrente de que "(...) os Recorridos fizeram os pagamentos totalizando HKD1.473.000,00 em 2011, mas contrataram voluntariamente com a Recorrente em como tal quantia ficaria imobilizada, sem que tenham acordado qualquer compensação para esse efeito, o que afasta uma tal obrigação por parte da Recorrente".
71. Ora, ao contrário do que parece fazer crer a Recorrente, nos presentes autos não se discute o (in)cumprimento de um contrato de depósito, conforme previsto nos artigos 1111.º e seguintes do Código Civil. Discute-se, isso sim, é o incumprimento de oito contratos-promessa de compra e venda relativas a fracções autónomas por motivo imputável ao devedor - a Recorrente.
72. Assim sendo, o momento relevante para operar os cálculos sugeridos pelo Tribunal a quo deverá ser, exactamente, o momento em que os únicos promitentes-fiéis, os promitentes-compradores, ora Recorridos, entregaram a citada quantia à Recorrente, pois foi nessa mesma data que os mesmos se viram impossibilitados de usar tal quantia para quaisquer outros investimentos ou despesas, devendo ser compensados nos termos determinados em sede de Sentença.
73. Por seu turno, no que se refere à indemnização atribuída pelo Tribunal a quo no que respeita às fracções autónomas "A29" a "G29", nenhuma mácula lhe pode ser apontada, muito menos com os argumentos aduzidos pela Recorrente.
74. O Tribunal a quo deu (e bem!) aplicação à norma ínsita no n.º 4 do artigo 436.º do Código Civil, o qual determina que: “na ausência de estipulação em contrário, e salvo o direito a indemnização pelo dano excedente quando este for consideravelmente superior, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste".
75. Denota-se a preferência dada pelo legislador da R.A.E.M. ao dano efectivo sofrido, quando colocado perante a determinação de indemnização em caso de dano efectivo superior ao sinal, algo que bem se compreende dada a função punitiva cumprida pelo instituto, não se pretendendo que a indemnização cumpra apenas uma função ressarcitória.
76. No caso concreto, provado ficou que o dano excedente sofrido pelos Recorridos é consideravelmente superior, indemnização essa que foi oportunamente peticionada pelos Recorridos (resposta aos Quesitos n.º 1 e 7).
77. A Recorrente, em boa verdade, não consegue atacar a aplicação das normas trazidas à colação pelo Tribunal a quo, limitando-se a argumentar que sempre quis cumprir os contratos e que a aplicação das regras ínsitas no n.º 4 do artigo 436.º do Código Civil iria contrariar a intenção do legislador.
78. O que se denota é que a Recorrente tenta, a todo o custo, eximir-se à responsabilidade que tem no caso ora em apreço, bem como ao dever de indemnizar os Recorridos decorrente da correcta e boa aplicação da lei, conforme aquela operada pelo Tribunal a quo.
79. Conforme oportunamente aduzido, a Recorrente bem sabia, desde o momento em que escolheu contratar com os Recorridos, que corria o risco sério, grave e presente de não conseguir cumprir os Contratos, omitindo tal facto aos Recorridos e avançando, contrariamente ao critério do bonus pater familiae, para a celebração de milhares de contratos-promessa de compra e venda das fracções a construir.
80. Note-se o curioso de vir a Recorrente (infundadamente) alegar que “a circunstância de os Recorridos haverem adquirido 8 fracções constitui um forte indício de intuitos especulativos", sem nunca ter cuidado de demonstrar ou provar tal conclusão - fica a dúvida de como classificaria a Recorrente os milhares de negócios por si celebrados relativamente às fracções autónomas do XX, tendo em conta a concreta factualidade subjacente aos mesmos...
81. Os Recorridos investiram as suas poupanças nos Contratos ora em apreço, fazendo fé na palavra, reputação e experiência da Recorrente, nunca contando que sobre os mesmos pairassem riscos desmesurados e desconhecidos (dos Recorridos, não da Recorrente), que tiveram o desfecho por todos conhecido.
82. Por fim, ao contrário do alegado pela Recorrente, todos os elementos contantes dos autos, nomeadamente a matéria constante dos Factos Assentes B), C) e D), apontam no sentido de que os Recorridos se manteriam como promitentes-fiéis, sendo totalmente descabida a teorização ensaiada pela Recorrente no sentido de apenas dever ser considerada uma perda de valor correspondente a 30% do valor das fracções ora em apreço.
*
Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
* * *
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* * *
III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
1. A ré foi concessionária de um terreno onde, para fins comerciais, pretendia construir um imóvel constituído por várias fracções autónomas.
2. Por acordos escritos em 11 de Março de 2011 que se mostram junto a fls. 41 a 72 dos autos e cujo teor aqui se dá por reproduzido, a ré prometeu vender aos autores oito fracções autónomas do imóvel que pretendia construir.
3. Tais fracções seriam denominadas por “A29”, “B29”, “C29”, “D29”, “E29”, “F29”, “G29” e “H29” e os preços de venda acordados foram respectivamente, de HKD5.275.000,00, 4.850.000,00, 4.835.000,00 5.155.000,00, 4.620.000,00, 4.240.000,00, 4.260.000,00 e 4.910.000,00.
4. Os autores pagaram à ré, entre 19/04/2010 e 17/01/2011, por conta dos acordos referidos em 2. que viriam depois a celebrar, a quantia total de HKD11.443.500,00.
5. Presentemente a ré já não é concessionária do referido terreno.
6. A concessão terminou porque foi declarada a sua caducidade com fundamento no facto de a ré não ter procedido ao aproveitamento do terreno concessionado respectivo prazo de arrendamento de 25 anos que terminou em 25 de Dezembro de 2015.
7. Os autores já declararam à ré que consideravam resolvidos os contratos referidos em 2. por considerarem existir impossibilidade definitiva do seu cumprimento por culpa da ré.
8. O valor das fracções autónomas que a ré prometeu vender aos autores era na data da entrada da petição inicial em juízo (05/11/2018), de MOP: (Q 1.º)
* A29 – 15.046.479,00;
* B29 – 12.943.864,00;
* C29 – 12.998.285,00;
* D29 – 13.991.049,00;
* E29 – 13.991.049,00;
* F29 – 12.998.285,00;
* G29 – 12.943.864,00 e
* H29 – 15.046.479,00
E o valor das mesmas fracções autónomas era na segunda metade do mês de Janeiro de 2024 de MOP:
* A29 – 9.938.408,20;
* B29 – 8.549.601,70;
* C29 – 8.585.547,30;
* D29 – 9.241.281,80;
* E29 – 9.241.281,80;
* F29 – 8.585.547,30;
* G29 – 8.549.601,70 e
* H29 – 9.938.408,20.
9. Entre o então Território de Macau e a ré foi acordada no ano de 1990 a concessão por arrendamento de um terreno denominado “Lote P” para ser desenvolvido pela ré para fins industriais;
- Acordaram também que o então Território de Macau apreciaria no prazo de 60 dias os projectos que lhe fossem apresentados pela ré;
- Não acordaram qualquer limite para a extensão de fachadas dos edifícios a construir nem qualquer limite mínimo de afastamento entre eles;
- Acordaram que a ré respeitaria os padrões internacionais em matéria ambiental e não acordaram que a ré deveria fazer estudos de impacto ambiental dos edifícios que iria construir nem que devia apresentar relatórios desses estudos;
- Posteriormente, em 2006, a RAEM e a ré acordaram alterar o referido acordo de concessão para a ré desenvolver no terreno um empreendimento para fins de habitação e comércio construindo um edifício com determinadas áreas brutas de construção, o qual se configuraria num pódio de cinco pisos no qual assentariam em 18 torres de 47 pisos cada uma;
- Acordaram que o prazo para desenvolver o terreno com a referida construção era de 96 meses, iniciava em 1 de Março de 2006 e terminava em 28 de Fevereiro de 2014;
- Acordaram que a concessão terminava em 25/12/2015;
- Mas, assim como em 1990, também não acordaram qualquer limite para a extensão das fachadas das torres a construir nem qualquer limite mínimo de afastamento entre elas;
- Com vista a acordarem alterar o acordo de 1990, em 2004 e 2005, a ré requereu à DSSOPT a emissão de duas Plantas de Alinhamento Oficial, que foram emitidas sem referência a qualquer condicionamento urbanístico relativo a extensão de fachadas e a afastamento entre torres;
- Também com vista a acordarem alterar o acordo de 1990, em 2004 e 2005, a ré apresentou à DSSOPT um estudo prévio que num dos seus elementos componentes junto a fls. 245 constava o desenho, em planta, das torres a construir, algumas das quais distavam das mais próximas não mais de três metros;
- Em 06/05/2008 a ré apresentou à DSSOPT para apreciação um projecto de arquitectura com vista ao desenvolvimento do terreno concessionado;
- A DSSOPT não se pronunciou sobre este projecto;
- Em 22/10/2009 a ré apresentou à DSSOPT outro projecto de arquitectura com vista ao desenvolvimento do terreno concessionado, o qual projectava as respectivas 18 torres com fachadas de extensão não superior a 50 metros e nem todas com distanciamento entre si igual ou superior a 1/6 da altura da torre mais alta;
- A DSSOPT apreciou este projecto e enviou à ré em 9/4/2010 um ofício e uma PAO exigindo alterações técnicas e sugerindo que a extensão das fachadas das torres não excedesse 50 metros e que as torres tivessem um afastamento entre elas não inferior a 1/6 da altura da mais alta;
- A ré respondeu em 3/6/2010, alterando o projecto de arquitectura acolhendo as referidas exigências técnicas feitas pela DSSOP, mas não acolhendo nem aceitando acolher a sugestão de afastamento mínimo entre as torres;
- A DSSOPT aprovou o projecto sem o sugerido afastamento entre torres e em 7/1/2011 notificou a ré dessa aprovação e notificou-a ainda para apresentar o relatório de estudo de impacto ambiental que teria a construção do edifício em matéria de fluxo de ar, efeito biombo, ilhas de calor e expansão de poluentes e referindo à ré que não lhe seria emitida licença de obras sem que o referido relatório fosse apresentado e aprovado;
- Em 11/5/2011, a ré apresentou à DSSOPT um relatório do estudo de impacto ambiental requerido;
- Posteriormente, a DSSOPT em coordenação com a DSPA exigiu à ré a apresentação de outros relatórios de estudos de impacto ambiental incidentes sobre outros aspectos ambientais diferentes daqueles que havia mencionado e a ré apresentou-os até que, em 15/10/2013, foi aprovado o último relatório apresentado;
Em 24/10/2013, a ré requereu à DSSOPT a emissão de licença de obras que foi emitida em 2/1/2014.
- Se a DSSOPT tivesse dado resposta em 60 dias apreciando o projecto parcial de arquitectura apresentado pela ré em 06/05/2008, a que não respondeu;
- Se a DSSOPT tivesse respondido em 60 dias apreciando o projecto global de arquitectura apresentado pela ré em 22/10/2009, a que respondeu em 9/4/2010;
- Se a DSSOPT tivesse respondido em 60 dias apreciando a alteração apresentada ao referido projecto global em 3/6/2010, a que respondeu em 7/1/2011 e
- Se a DSSOPT, quando em 7/1/2011 exigiu pela primeira vez a realização de estudos de impacto ambiental, tivesse exigido à ré todos os estudos da mesma natureza que lhe exigiu mais tarde.
A R. tinha concluído o empreendimento “XX” dentro dos prazos de aproveitamento e de concessão. (Q 2.º a 5.ºs)
10. Na mesma zona onde se localiza o Lote P e onde se localizaria as fracções A29, B29, C29, D29, E29, F29, G29 e H29, se tivesse vindo a ser construída, em edifícios com características semelhantes, o metro quadrado foi transacionado na segunda metade do mês de Janeiro do corrente ano de 2024 ao preço médio de MOP108.926.00. (Q 7.º)
11. O edifício XX é um empreendimento promovido por empresas e sociedades do mesmo grupo empresarial da ré, sito na Rua XX, construído em lote próximo do Lote XX, com um nível de qualidade e acabamentos semelhante ao que estava projectado para o “XX”. (Q 8.º)
12. A Ré confiou que lhe seria prorrogado o prazo de aproveitamento ou dada uma nova concessão do mesmo terreno para data posterior a 24/12/2015 porque os serviços da RAEM criaram tais expectativas, nomeadamente:
a. Ao emitirem licença de obras para as fundação em 02/1/2014, um mês antes do terreno do prazo de aproveitamento;
b. Ao Prorrogarem o prazo de aproveitamento em 29/7/2014 até 25/12/2015, sabendo que tal não seria possível;
c. Já anteriormente haviam concessionado novamente o mesmo terreno ao mesmo concessionário em casos em que o terreno concessionado não tinha sido aproveitado no dentro do respectivo prazo. (Q 9.º)
13. Os autores candidataram-se à aquisição de uma fracção autónoma ao abrigo da Lei nº 8/2019, de 12 de Abril, por via do Despacho do Chefe do Executivo 89/2019, de 30 de Maio. (Q 10.º)
14. Tal requerimento foi deferido. (Q 11.º)
15. Tal fracção autónoma é de tipologia, área e preço equivalentes à fracção T6-H29 que constitui o objecto de um dos contratos em causa nos presentes autos e irá ser construída no terreno concessionado à ré. (Q 12.º)
16. Os autores apenas poderão receber do Governo tal fracção nas condições descritas porque celebraram com a ré o acordo referido em 2. dos factos assentes relativo a, pelo menos, uma fracção autónoma a construir no mesmo terreno. (Q 13.º)
17. O valor de mercado dessa fracção é superior ao valor inicialmente pago pelo autor à ré por fracção idêntica. (Q 14.º)
* * *
IV – FUNDAMENTAÇÃO
Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
I – RELATÓRIO.
B, C e D, todos com outros elementos de identificação nos autos, intentaram a presente acção declarativa que segue termos sob a forma ordinária de processo comum contra A Limitada (A有限公司), registada na CRCBM sob o n.º XX(SO);
Alegando que, como promitente-compradores, celebraram com a ré, como promitente-vendedora, oito contratos-promessa de compra e venda relativamente a oitos fracções autónomas de um prédio urbano que a ré iria construir num terreno concessionado pela RAEM; e alegando ainda que já cessou por caducidade a concessão sem que a ré tivesse construído, incumprindo e já não podendo cumprir a promessa por razões que lhe são imputáveis,
Pediram os autores que:
1. Sejam declarados resolvidos os referidos contratos-promessa;
2. Seja a ré condenada a pagar-lhes a quantia de HKD22.887.000,00, correspondente ao dobro da quantia que recebeu a título de sinal;
3. Seja a ré condenada a pagar-lhes a quantia de MOP60.199.238,60, a título de dano excedente, sem prejuízo de uma avaliação posterior superior, antes do encerramento da discussão da causa;
4. Juros à taxa legal desde a citação da ré até integral pagamento.
Contestou a Ré, aceitando a existência dos contratos invocados pelos autores mas rejeitando que já não possam ser cumpridos, alegando que intentou uma acção judicial contra a RAEM na qual pretende conseguir um novo contrato de concessão por arrendamento do mesmo terreno onde pretendia construir o empreendimento imobiliário de que faziam parte as fracções autónomas contratadas, as quais, em caso de procedência da referida acção judicial, poderão ser entregues aos autores1.
Ainda em contestação, disse a ré que, caso improceda a referida acção que intentou contra a RAEM e caso não possa efectivamente construir o seu empreendimento imobiliário nem possa cumprir a sua obrigação para com os autores, essa impossibilidade não lhe deve ser imputada a si porquanto deve ser imputada à RAEM, a qual, durante o decurso do respectivo procedimento administrativo para aprovação do projecto de arquitectura e para emissão da licença de obras, fez exigências de alteração do projecto de arquitectura que não podia ter feito, fez indevidamente exigências de realização de estudos do impacto ambiental do mesmo projecto e, além disso, não cumpriu os prazos estabelecidos no contrato de concessão e demorou demasiado a apreciar os pedidos da ré para prorrogação do prazo de aproveitamento da concessão, o que levou a que a ré não pudesse iniciar a construção mais cedo e não tivesse conseguido concluí-la antes de caducar a referida concessão.
Para o caso de se concluir que ocorre impossibilidade da prestação e que esta é imputável à ré, veio esta, também na contestação, defender que os autores não têm direito a indemnização calculada pelo valor do sinal prestado, porquanto foi acordado que as quantias pagas não constituiam sinal.
Também na contestação que apresentou, disse a ré que, caso se conclua pela impossibilidade imputável e pela existência de sinal, deve a indemnização determinada pelo valor deste ser reduzida segundo juízos de equidade.
Ainda requereu a ré contestante a intervenção acessória da RAEM invocando como fundamento que, caso seja condenada a indemnizar os autores, terá direito de regresso contra a RAEM para esta lhe reembolsar o montante da condenação.
Na réplica que apresentaram, os autores impugnaram todas as teses das contestação da ré, quer quanto à afirmação da prestação da ré como ainda possível, à imputabilidade a terceiro da causa da impossibilidade da prestação, à inexistência de sinal e à intervenção da equidade na fixação do montante da indemnização.
A ré ainda apresentou articulado de tréplica pormenorizando pontos da sua contestação.
Foi admitida a intervenção acessória da RAEM, a qual contestou e foi objecto de resposta pelas partes principais. Porém, a ré veio depois comunicar aos autos que desistiu da acção de indemnização que movera contra a RAEM e, por isso, foi proferido despacho a fls. 1281 a declarar extinta a instância relativamente à RAEM por inutilidade superveniente da lide.
Foi proferido despacho saneador a fls. 1110 a 1112, o qual não admitiu a tréplica apresentada pela ré e seleccionou a matéria de facto relevante para a decisão.
Procedeu-se a julgamento, foi decidida a matéria de facto contravertida e foram apresentadas doutas alegações de Direito pelos autores e pela ré. De tais alegações sobressai que os autores consideram que a relação contratual em litígio consubstancia oito contratos-promessa (incumpridos por impossibilidade superveniente da lide por causa imputável à ré) e retiram do respectivo regime jurídico a solução de Direito do presente pleito defendendo a procedência da acção e sobressai ainda que a ré considera que se trata de contratos atípicos com elementos de proximidade com contratos típicos como o contrato-promessa e o contrato de compra e venda de bens futuros e só para efeitos de análise admite que possa ser qualificada de contrato-promessa. Nas alegações de Direito dos autores refere-se ainda que a indemnização moratória deve consistir no pagamento de juros legais a contar da citação quanto ao valor correspondente ao sinal em dobro e a contar da sentença quanto ao valor do chamado “dano excedente”. Já nas alegações da ré se defende que os juros de mora devem contar-se da data da sentença relativamente a toda a quantia indemnizatória.
*
II – SANEAMENTO.
A instância mantém-se válida e regular, como decidido no despacho saneador e nada obsta ao conhecimento do mérito.
*
III – QUESTÕES A DECIDIR.
Tendo em conta o relatório que antecede, designadamente:
- Que a principal pretensão dos autores é serem indemnizados/restituídos em consequência dos danos que sofreram por a ré não ter cumprido, por impossibilidade superveniente, a prestação a que se vinculou por contrato;
- O facto de os autores e rés estarem de acordo que entre existe a relação contratual invocada pelos autores;
- O facto de neste momento processual autores e ré estarem também de acordo que a prestação contratual a cargo da ré se tornou impossível depois da celebração dos respectivos contratos;
- O facto de a essência da principal divergência entre as partes ser a imputabilidade à ré ou a terceiro da causa da impossibilidade superveniente da prestação da ré e a existência ou inexistência de sinal;
As principais questões a decidir gravitam à volta de:
1- Ocorrência de impossibilidade superveniente da prestação contratual devida pela ré aos autores e imputação à ré ou a terceiro da causa dessa impossibilidade.
1.1 - Caso se conclua que a causa da impossibilidade superveniente da prestação a cargo da ré deve ser imputada a terceiro, importa apurar as consequências jurídicas de tal imputação, designadamente:
1.1.1 - Quanto à extinção da obrigação da ré decorrente dos contratos;
1.1.2 Quanto a eventual criação na esfera jurídica da ré de uma outra obrigação de restituir aos autores o que deles recebeu;
1.2 - Caso se conclua que a causa da impossibilidade superveniente da prestação a cargo da ré deve ser imputada à própria ré, importa então apurar as consequências da referida impossibilidade superveniente da prestação decorrente de causa imputável à ré, designadamente:
1.2.1 – Direito dos autores de resolver o contrato;
1.2.2 - Obrigação da ré indemnizar os autores.
1.2.2.1 - Caso se conclua que a ré tem obrigação de indemnizar os autores, caberá apurar o montante da indemnização e a ocorrência de mora no cumprimento desta obrigação de indemnizar, para isso é necessário averiguar se foi acordado e prestado sinal;
1.2.2.1.1 - Caso se conclua pela existência de sinal, caberá ainda decidir se a indemnização deve ser calculada com base no “regime-regra” do sinal ou se deve ser ampliada para englobar o dano que excede o valor do sinal ou se deve ser reduzida segundo juízos de equidade para montante inferior ao valor do sinal prestado.
1.2.2.1.2 Caso se conclua pela inexistência de sinal, caberá determinar qual o valor da indemnização na ausência de sinal.
1.2.2.1.3 – Caso se conclua pela ocorrência de mora no cumprimento da obrigação de indemnizar é ainda necessário apurar as consequências desta a nível indemnizatório, designadamente quanto ao início da mora.
*
IV – FUNDAMENTAÇÃO.
A) – Motivação de facto.
Estão provados os seguintes factos:
(...)
B) – Motivação de Direito.
1. – Da impossibilidade superveniente da prestação.
Neste momento da discussão já não são necessárias especiais considerações para concluir que a prestação da ré se tornou impossível. Seja qual for a prestação devida: celebrar os contratos prometidos de compra e venda de fracções autónomas de prédio urbano ou apenas construir e entregar as referidas fracções. Com efeito, por um lado, a ré já não questiona nas suas alegações de Direito a referida impossibilidade como questionou na contestação dizendo que mantinha pendente uma acção judicial que lhe poderia proporcionar a faculdade de construir aquela fracção. Por outro lado, a ré veio aos autos informar que já terminou por desistência a referida acção judicial que movera contra a RAEM na qual pretendia recuperar a possibilidade jurídica de construir a fracção a entregar à 1ª autora. Acresce que, não tendo a ré meios jurídicos conhecidos nos autos que lhe permitam construir a mencionada fracção, não se vê como negar as características relevantes da impossibilidade superveniente da prestação: ojectiva, absoluta e definitiva2. Com efeito, sem que ocorram circunstâncias de todo imprevisíveis presentemente, a ré, apesar de ser uma sociedade comercial e poder existir durante muito tempo, não tem possibilidade jurídica de construir ou adquirir as fracções autónomas em causa3. Trata-se de uma impossibilidade jurídica da prestação, não de uma impossibilidade física ou naturalística, pois a construção das mencionadas fracções está acessível à ré pelos conhecimentos técnicos existentes, mas não lhe está permitida por causa da sua situação jurídica actual e previsível num futuro ponderável4. Na verdade, resulta dos autos que a ré não tem qualquer direito sobre o terreno onde se iria situar a planeada construção.
Conclui-se assim que se tornou impossível após a celebração dos contratos a prestação que a ré acordou com os autores.
Resta, pois, apurar as consequências da impossibilidade da prestação.
1.1. – Dos efeitos da impossibilidade da prestação.
1.1.1. – Em geral.
Se a prestação acordada é originariamente impossível, a obrigação não nasce porque o contrato é nulo e, por isso, não gera a obrigação de prestar nem o dever de cumprir (art. 395º, nº 1 do CC).
Se a prestação acordada é originariamente possível (aquando da celebração do respectivo negócio jurídico), mas posteriormente deixa de o ser, a obrigação extingue-se, não pode ser cumprida e o devedor deixa de ter o dever de a prestar (arts. 779º e 790º do CC).
Se a impossibilidade superveniente ocorre por razões não imputáveis ao devedor, mas imputáveis a terceiro, ao credor ou a ninguém (caso fortuito ou de força maior), fica o devedor exonerado perante o credor. Se, porém, o credor cumpriu perante o devedor a sua eventual contraprestação e a causa da impossibilidade não imputável ao devedor também não lhe é imputável a si, credor, então este, credor, tem direito a que lhe seja restituído o que prestou, mas segundo as regras do enriquecimento sem causa. É esta a tese da ré, escorada no art. 784º do CC. Com efeito, entende que a impossibilidade da prestação não lhe é imputável a si nem ao credor, mas a terceiro, a RAEM.
Se a prestação se tornou impossível por causa imputável ao devedor, a obrigação extingue-se, não pode ser cumprida e o devedor deixa de ter o dever de a prestar, como se disse atrás. Porém, o devedor poderá ver nascer na sua esfera jurídica outra obrigação, a obrigação de indemnizar o credor pelos prejuízos sofridos em consequência da mencionada impossibilidade superveniente, devendo o devedor indemnizar o credor como se faltasse culposamente ao cumprimento devido (art. 790º, nº 1 do CC).
Para apurar os efeitos da impossibilidade da prestação torna-se, pois, necessário decidir se a causa da impossibilidade da prestação é imputável à ré devedora ou à RAEM, terceiro em relação à prestação.
Vejamos.
1.1.2. – Da imputação da causa da impossibilidade da prestação.
Este tribunal já decidiu várias vezes esta questão em casos semelhantes ao presente e concluiu que:
- A causa da impossibilidade da prestação devida pela ré foi o facto de a mesma ré não ter construído as fracções acordadas no prazo de aproveitamento da concessão, vindo assim a causar a caducidade desta concessão e a impossibilidade jurídica de cumprir;
- A imputação da causa da impossibilidade da prestação a uma esfera jurídica é um juízo fundado na culpa do respectivo titular;
- A culpa é um juízo de censura dirigido a um agente pelo seu facto, o qual praticou quando juridicamente deveria ter praticado outro diferente, pressupõe a capacidade do agente para se motivar correctamente e assenta num desvio da actuação praticada em relação àquela actuação que, no lugar do agente, teria um bom pai de família;
- A culpa pela causa da impossibilidade da prestação (in casu por não ter havido construção no prazo de concessão ocorrendo impossibilidade jurídica de construir e cumprir) pode aferir-se no momento em que a prestação é criada por negócio jurídico e tal culpa pode afirmar-se no momento em que ocorre a impossibilidade no caso de o bom pai de família, em face da concreta probabilidade que se lhe depare no momento da contracção do dever de cumprir de ocorrência de futura impossibilidade da prestação, não se vincular da forma como se vinculou o agente concreto.
- A ré contratou com os autores em 11 de Março de 2011 quando o prazo que tinha para construir terminava em 28 de Fevereiro de 2014, prazo que, como a própria autora alega, não era suficiente para concluir a construção, nem era de esperar que fosse porque a RAEM vinha tendo comportamento demorado na prática dos actos de que a ré necessitava para poder construir e exigia à ré que apresentasse um relatório de impacto ambiental que fosse aprovado pela própria RAEM para que a ré obtivesse licença para executar as obras de construção que lhe permitiria cumprir perante os autores;
- Na altura em que contratou e posteriormente, a ré tinha expectativas que lhe fosse permitido construir mesmo depois de terminado o prazo de aproveitamento e de concessão que causou a caducidade e a impossibilidade de construir e cumprir;
- Nestas circunstâncias, um bom pai de família colocado na situação da ré não prometeria, com firmeza e certeza, a prestação que a ré prometeu sem esclarecer os autores do risco de as suas expectativas não se concretizarem e de, nesse caso, não conseguir construir, o que, por presunção legal, se presume que a ré não fez;
- Assim, a causa da impossibilidade da prestação ocorreu porque a ré se desviou da actuação que teria um bom pai de família no seu lugar, o qual seria mais prudente e não faria das expectativas certezas nem se vincularia prometendo com a firmeza com que a ré prometeu, sendo a impossibilidade da prestação imputável à ré a título de culpa.
A ré entende que o seu comportamento deveria ser objecto de um juízo de culpa mais tolerante e que não devia ser censurada porque entende também que qualquer empresário no seu lugar contrataria como a ré contratou.
Porém, o tribunal continua a entender que os referidos considerandos são de manter, pelo que, sendo conhecida das partes através dos seus ilustres mandatários a demais análise feita pelo tribunal nos casos anteriores, é aqui dispensável repetir.
A ré, em 11 de Março de 2011, não devia ter contratado como contratou se se pautasse pelo padrão do empresário bom pai de família, o qual pode ser arrojado e confiante como a ré foi, mas também pondera e duvida e não envolve terceiros no seu risco empresarial sem os esclarecer do seu arrojo, como a ré não esclareceu. Nem transforma as expectativas em certezas com a ré fez em texto contratual.
A ré, face à escassez de tempo e face ao relacionamento que vinha mantendo com a RAEM (que tinha tentado que o projecto de arquitectura fosse alterado e que a tinha avisado da necessidade de estudos aprovados de impacto ambiental), se tivesse expectativas, tinha também a possibilidade de ter dúvidas sobre a possibilidade de construir, dúvidas que não teve.
A impossibilidade da prestação é-lhe imputável a título de culpa.
2. – Da resolução contratual.
No que respeita ao direito à resolução do contrato e às suas consequências de restituição retroactiva do que foi prestado, não se vê como negar. É a lei evidente (arts. 790º, nº 2, 426º a 428º e 282º do CC) e nem as partes questionam.
Procede, pois, esta pretensão dos autores e deve ser declarado resolvido o contrato, como peticionado.
3. – Da indemnização dos danos decorrentes da impossibilidade superveniente da prestação por causa imputável ao devedor.
3.1. Da existência de obrigação de indemnizar.
Estando decidido que houve incumprimento culposo da ré, rectius, impossibilidade da prestação por causa imputável à ré, basta que haja danos na esfera jurídica dos autores com nexo de causalidade com o referido incumprimento para que surja na esfera jurídica da ré a obrigação de indemnizar (arts. 787º, 790º e 557º do CC).
Tendo-se provado que os autores pagaram à ré para receber dela imóveis e que nada receberam, é forçoso concluir que os autores sofreram danos decorrentes do incumprimento da ré, pois que pagaram para adquirir e nada adquiriram.
Assim, não são necessárias outras considerações para se concluir que existe na esfera jurídica da ré a obrigação de indemnizar os autores, sendo a controvérsia essencialmente respeitante ao valor da indemnização.
3.2. Do montante da indemnização
Os autores pretendem ser indemnizados pelo dano que efectivamente sofreram e que dizem ser superior a sinal prestado.
Por seu lado, a ré entende que a sua culpa, caso se conclua que existe, é diminuta e, havendo lugar a indemnização, esta deve ser fixada, por razões de equidade, em montante inferior ao “sinal” prestado.
O princípio geral em matéria de responsabilidade civil é que devem ser indemnizados todos os prejuízos efectivamente sofridos pelo credor em consequência do incumprimento do devedor (arts. 787º - “prejuízo que causa ao credor”, 556º - “reconstituir a situação que existiria” e 557º - “danos que o lesado … não teria se não fosse a lesão” - do CC.).
No entanto, se for constituído sinal é o valor deste que, em princípio, determina o valor da indemnização, o valor que terá a obrigação de indemnizar originada pelo incumprimento culposo. É o que dispõe o art. 436º do CC.
É, pois, necessário apurar se foi constituído sinal, entendendo os autores que foi e a ré que não foi.
3.2.1. Da existência de sinal
Da qualificação do contrato.
Também esta questão já foi diversas vezes apreciada por este tribunal com conhecimento das partes, razão por que também se dispensa a análise e se opta pela síntese, por ser mais conveniente para as partes, não lhes reduzindo qualquer garantia processual.
É a prestação característica acordada pelas partes que determina a qualificação do acordo que celebraram e é a qualificação desse contrato que determina o respectivo regime jurídico que há-de determinar a solução dos diferendos contratuais.
A prestação acordada que vincula as partes apura-se através da interpretação do contrato.
A prestação característica do contrato-promessa é a celebração de outro contrato, o contrato prometido. As partes comprometem-se a celebrar outro contrato (art. 404º do CC).
No contrato celebrado erntre os autores e a ré as partes comprometeram-se a celebrar no futuro contratos de compra e venda, o que se conclui da interpretação dos contratos, quer pelo título que as partes lhe deram, quer pelas cláusulas de que o dotaram.
São de qualificar como contratos-promessa os contratos em apreço nos autos.
Da convenção de sinal.
O sinal é um elemento eventual do conteúdo do negócio jurídico5. Numa certa perspectiva, é, em essência, uma estipulação contratual, uma cláusula negocial.
Seja qual for a qualificação que lhe seja dada, o sinal é sempre também uma convenção das pastes contratantes. Depende, pois, da existência de vontades negociais concordantes.
Para se concluir se foi ou não estipulado sinal é necessário interpretar as declarações negociais das partes contratantes6.
Se os autores pretendem ser indemnizados segundo o regime do sinal, cabe-lhes, nos termos do art. 335º, nº 1 do CC, alegar e provar, entre o mais, os factos demonstrativos de ter sido estipulada a existência de sinal.
Porém, no caso do contrato-promessa de compra e venda, como ocorre na situação sub judice, a parte que se quiser prevalecer da existência de sinal beneficia da presunção legal inserta no art. 441º do CC que diz que se presume “que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço”.
Ora, quem tem a seu favor uma presunção legal, está dispensado de provar o facto a que ela conduz, sendo a parte contrária que tem de provar o facto contrário ao facto presumido (art. 343º, nºs 1 e 2 do CC). No caso dos autos, provou-se que os autores entregaram à ré, promitente-vendedora, determinada quantia em dinheiro no âmbito dos contrato-promessa que ambas celebraram. Provou-se o facto base da presunção, pelo que está presumido que as partes quiseram atribuir carácter de sinal. Cabe, pois à ré, interessada em ilidir a presunção, a alegação e a prova do facto contrário ao facto presumido, isto é, cabe-lhe provar que as partes acordaram que a quantia entregue não tinha carácter de sinal. A ré não conseguiu fazer a prova dessa vontade negocial contrária à presunção legal (resposta negativa dada ao quesito 6º da base instrutória).
Conclui-se, pois, por presunção legal, que foi acordado sinal no caso em apreço.
O montante da indemnização predeterminado pelo valor do sinal, a sua ampliação para o valor do dano efectivo que excede o valor do sinal ou a sua redução por juízos de equidade.
“Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele o direito de exigir o dobro do que houver prestado” (art. 436º, nº 2 do CC).
Está demonstrado que a ré não cumpriu definitivamente a sua promessa de venda.
Está também demonstrado que a ré recebeu sinal.
Foi já decidido atrás que a causa do incumprimento não é imputável a terceiro e que é imputável à ré a título de culpa. E também já atrás foi decidido que o incumprimento culposo da ré confere aos autores o direito de resolver o contrato-promessa.
Deve, pois a ré restituir o que recebeu para cumprir a promessa de venda que não cumpriu, uma vez que, como efeito da resolução do contrato, sempre terá que devolver o que lhe foi prestado (arts. 282º e 427º do CC)7. Mas terá ainda de pagar aos aurores um montante igual ao do sinal que recebeu, um montante superior ou um montante inferior?
Vejamos.
Dispõe o nº 4 do art. 436º do CC que “na ausência de estipulação em contrário, e salvo o direito a indemnização pelo dano excedente quando este for consideravelmente superior, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste.
E dispõe o art. 801º, nº 1 do CC, aplicável por força do disposto no nº 5 do art. 436º do mesmo CC, que “a pedido do devedor, a pena convencional pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente…”.
Portanto, o valor da indemnização por incumprimento do contrato, rectius, por impossibilidade culposa da prestação, deve, em princípio, corresponder ao valor do sinal prestado. Porém, o referido valor da indemnização pode ser:
- Aumentado para o valor do dano efectivamente sofrido pelo credor se este dano for consideravelmente superior ao valor do sinal8;
- Reduzido para montante equitativo não inferior ao valor do dano efectivo se a penalização resultante do sinal for manifestamente excessiva em relação ao mesmo dano efectivo9.
O ónus da prova.
O legislador ao permitir às partes fixarem por convenção as consequências do incumprimento acabou por criar uma distribuição do ónus da prova em que só tem que provar o dano relevante o contraente que pretende que a indemnização por incumprimento se fixe em valor diferente do predeterminado. Assim, o credor que pretende que o valor da indemnização seja superior ao predeterminado tem de provar que sofreu um dano consideravelmente superior ao sinal. Por sua vez, o devedor que pretende que a indemnização seja de valor inferior ao predeterminado tem que demonstrar que a pena é manifestamente excessiva em relação ao dano.
No presente caso, cabe à ré alegar e provar os factos de onde se possa concluir que o valor do sinal é manifestamente excessivo para ressarcir o dano efectivo dos autores e para sancionar a culpa pelo incumprimento.
Da redução equitativa da indemnização determinada pelo valor do sinal prestado.
“A pedido do devedor, a pena convencional pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente…” (art. 801º, nº 1 do CC).
Este normativo rege directamente a cláusula penal, a pena convencionada pelas partes para sancionar o incumprimento. É aplicável ao sinal com as necessárias adaptações10, sendo que o sinal, mesmo sendo confirmatório, também funciona, ainda que supletivamente, como pena aplicável ao incumprimento11.
O legislador, perante um dano efectivo superior ao sinal, preferiu o dano efectivo, mas perante um dano efectivo inferior ao sinal já não escolheu o dano efectivo, mas a redução equitativa do valor determinado pelo sinal. Claramente, pretende-se que a indemnização ainda tenha função punitiva, conatural à cláusula penal e supletiva do sinal confirmatório e pretende-se também que a indemnização não se fique meramente pela função ressarcitória que é a essência da obrigação de indemnizar que tem por fonte a responsabilidade civil. O limite equitativo não deve, pois, ser inferior ao dano efectivo e deve ainda deixar que o sinal cumpra a sua função punitiva, embora não com a severidade castigadora pretendida pelas partes ou resultante da norma supletivamente estabelecida pelo legislador.
Vejamos então.
A equidade serve de critério para decidir se a indemnização deve ser reduzida e, em caso de se concluir que há lugar à redução, serve ainda de medida dessa redução.
Cabe, pois, aferir se a pena convencional determinada pelo sinal é manifestamente excessiva em relação aos danos efectivos que os autores sofreram. O dano efectivo é o limite mínimo da redução equitativa, como ficou dito.
Como se disse atrás, o devedor que pretende que a indemnização seja de valor inferior ao predeterminado pelo valor do sinal tem que demonstrar que a pena é manifestamente excessiva em relação ao dano.
No presente caso, cabe à ré alegar e provar os factos de onde se possa concluir que o valor do sinal é manifestamente excessivo para ressarcir o dano efectivo dos autores e para sancionar a culpa pelo incumprimento.
No que tange ao dano efectivo, a ré disse que os autores, devido à impossibilidade da prestação da ré irão adquirir uma fracção autónoma semelhante à que iriam adquirir da ré como acordado e pelo preço que foi acordado pagar à ré.
Provou-se que os autores se candidataram com sucesso à aquisição de tal fracção e que esta é semelhante à “H29” acordada ente os autores e a ré.
Está também provado por falta de impugnação que os autores pagaram à ré a título de sinal relativo à promessa de venda da fracção “H29” a quantia de HKD1.473.000,00.
Perante esta situação já se pode concluir que só poderá haver lugar à redução equitativa em relação à indemnização que seja devida aos autores pelo incumprimento da ré em relação ao contrato que tinha por objecto a fracção autónoma “H29”. Na verdade, em relação aos demais contractos não receberão os autores qualquer fracção para troca, pelo que nenhuma razão relativa ao dano efectivo foi invocada para justificar a redução equitativa.
Assim, apenas há que ponderar se, por razões de equidade, deve haver redução do valor da indemnização relativamente ao incumprimento do contrato relativo à fracção “H29”. Quanto aos contratos relativos às demais fracções há apenas que ponderar se a indemnização deve ser superior ao valor do sinal e correspondente ao dano efectivo.
Redução equitativa quanto à indemnização por incumprimento da prestação da ré relativa à frcção “H29”.
A redução equitativa da indemnização requer a certeza de que a indemnização determinada pelo valor do sinal é manifestamente excessiva em relação ao dano efectivo.
Os autores tinham o direito de a adquirir a frcção “H29” pagando à ré a parte do preço ainda não paga (HKD3.437.000,00) e terão de pagar pela aquisição da habitação para troca HKD4.910.000,00, pelo que terão um prejuízo de HKD1.473.000,00 (4.910.000,00 - HKD3.437.000,00), que é exactamente o valor do sinal, o qual também deve ser devolvido pela ré. Se a ré devolver o sinal antes de os autores pagarem o preço da “fracção para troca”, estes já não terão o referido prejuízo.
O prejuízo dos autores será, então, o correspondente à privação da disponibilidade da fração entre a data em que a ré deveria entregar e a data em que os autores a irão receber da sociedade comercial F. O interesse contratual positivo. Uma situação semelhante à mora e não ao incumprimento definitivo, pois que os autores irão adquirir uma fracção como pretendiam, mas mais tarde do que acordaram.
O Venerando Tribunal de Segunda Instância já apreciou caso semelhante ao presente, embora os ali autores tivessem feito o seu pagamento no ano de 2015, e considerou que o dano equitativo corresponde à aplicação de uma taxa anual de 3,5% durante 8 anos sobre o valor efectivamente pago pelos autores12. Perspectivou, pois o dano como interesse contratual negativo. Não o que os autores deixaram de auferir através do que despenderam, mas o que tiveram de despender em vão, sem nada auferir.
Seguindo o entendimento do Venerando TSI, no caso presente seria de considerar o período de 12 anos, pois que os autores pagaram à ré no ano de 2011.
Aplicando a doutrina do referido douto acórdão, temos que o sinal pago foi de HKD1.473.000,00, pelo que o valor da indemnização equitativa deve ser de HKD618.660,00 (1.473.000,00 x 3,5% x 12).
Este tribunal também já decidiu em diversos casos a questão da redução equitativa do valor da indemnização determinada pelo valor do sinal. Sendo essa decisão e a respectiva fundamentação conhecidas das partes através dos seus ilustres mandatários, é aqui dispensável o repetir.
Assim, aderindo à referida doutrina do TSI e caso não se verifique o “dano excedente” alegado pelos autores, será de fixar em HKD618.660,00 o valor da indemnização a cargo da ré em consequência da impossibilidade superveniente da sua prestação devida no âmbito do contrato que celebrou com os autores relativo à fração “H29”.
Da indemnização por “dano excedente”.
O dano que os autores pretendem ver ressarcido consiste na privação do aumento que se deu no valor de mercado das fracções, entre o preço que acordaram pagar e o valor de mercado que hoje os autores teriam se tivessem recebido as fracções pretendidas em cumprimento do acordado.
Vejamos se tal dano ocorreu na esfera jurídica dos autores e, em caso afirmativo, se os autores têm direito a que seja ressarcido.
Quanto à fracção “H29”.
Pois bem, se, como se viu, os autores vão receber uma fracção equivalente à fracção “H29” não terão, quando a receberem, qualquer dano em relação à diferença de valor. Terão o valor que teriam se recebessem a fracção “H29”, ou um valor semelhante. Outro dano que não seja a privação da diferença de valor de mercado não pode o tribunal considerar por falta de pedido e de discussão contraditória.
Improcede, pois a pretenção de indemnização superior ao valor do sinal relativamente à fracção “H29”, pois que pressupõe que o dano efectivo seja consideravelmente superior ao valor do sianal prestado (art. 436º, nº 3 do CC), o que não está provado, mesmo que seja admissível que a fracção que os autores venham a receber não tenha exactamente o valor que teria a fracção contratada “H29”. É necessária a demonstração de uma diferença consideravelmente superior ao valor do sianal prestado, o que não está demonstrado.
Portanto, quanto a esta fracção a indemnização não deve corresponder ao alegado dano efectivo nem ao valor do sinal prestado por haver razão para redução por equidade e por não se provar o dano alegado de privação do aumento ocorrido no valor de mercado nem o tribunal poder atender a dano não peticionado, como seja a privação da fracção por vários anos.
Têm, pois, os autores direito a receber, por via da resolução contratual, HKD.1.473.000,00 a título de restituição da quantia que a ré recebeu e têm direito a receber HKD618.660,00 a título de indemnização por incumprimento resultante da impossibilidade superveniente da prestação por causa imputável à ré devedora.
Quanto às fracções “A29 a G29”.
O sinal prestado no âmbito dos contratos relativos às fracções “A29 a G29” foi de HKD9.970.500,00.
O autor acordou com a ré que o preço das sete referidas fracções seria, no conjunto, HKD33.235.000,00.
Provou-se que no momento conhecido mais próximo do encerramento da discussão em primeira instância as referidas fracções teriam em conjunto o valor de HKD60.865.310.50 (MOP62.691.269,80).
O aumento do valor de mercado das sete fracções foi, pois, de HKD27.630.310,50 (HKD60.865.310.50 – HKD33.235.000,00).
Por não terem recebido da ré as sete fracções acordadas, os autores estão privados deste aumento de valor – HKD27.630.310,50. É este o seu dano efectivo que alegaram, não podendo o tribunal conhecer de outro por não lhe ter sido colocado para apreciação (arts. 563º, nº 3 do CPC).
A diferença entre o valor do sinal prestado e o aumento do valor de mercado das fracções é de HKD17.659.810,50 (HKD27.630.310,50 - HKD9.970.500,00).
Afigura-se inquestionável que o dano efectivo que os autores alegaram e provaram é consideravelmente superior ao valor do sinal prestado. A diferença “salta aos olhos”13, pelo que procede a pretensão dos autores de serem indemnizados pelo “dano excedente”, que equivale a dano efectivo, como se disse, em vez de serem indemnizados pelo valor do sinal prestado.
Assim, relativamente às fracções “A29 a G29” têm os autrores direito a receber, por via da resolução contratual, HKD9.970.500,00 a título de restituição da quantia que a ré recebeu e têm direito a receber HKD27.630.310.50 a título de indemnização por incumprimento resultante da impossibilidade superveniente da prestação por causa imputável à ré devedora, indemnização esta que não corresponde ao valor do sinal, mas ao valor do dano efectivo alegado e provado, o qual é consideravelmente superior ao valor do sinal prestado que serve supletivamente de predeterminação da indemnização por incumprimento.
4. Da mora na obrigação de indemnizar e na obrigação de restituir em consequência de resolução contratual.
Os autores pediram a condenação da ré no pagamento de juros de mora à taxa legal, contados sobre a quantia em que a ré for condenada, desde a data da citação até integral pagamento. Nas suas alegações de Direito já os autores de pronunciaram no sentido de a mora quanto à parte da obrigação de indemnizar fixada por referência ao “dano excedente” só ocorrer com a presente decisão.
A indemnização moratória pressupõe a mora do devedor e esta só ocorre com a interpelação do devedor no que respeita às obrigações puras e líquidas que não provenham de facto ilícito e com a liquidação quanto às obrigações ilíquidas cuja falta de liquidez não seja imputável ao devedor (art. 794º, nºs 1, 3 e 4 do CC).
A citação tem valor de interpelação (art. 794º, nº 1 do CC e art. 565º, nº 3 do CPC).
A indemnização moratória relativa às obrigações pecuniárias corresponde aos juros legais a contar do dia da constituição em mora, salvo excepões aqui inaplicáveis (art. 795º do CC).
A mora ocorreu, pois, com a citação relativamente à obrigação de restituir por resolução contratual14 e à obrigação de indemnizar fixada por referência ao dano efectivo correspondente à privação do aumento do valor de mercado das fracçãoes prometidas vender. Não pode perturbar esta conclusão o facto de o cálculo do dano a indemnizar ser feito por referência a momento posterior à citação/interpelação. É que esse cálculo também podia ser feito no momento da citação e só não foi porque a ré não cumpriu aí a sua obrigação de indemnizar, pelo que a mora e a sanção moratória se justificam plenamente a partir do acto da citação. A obrigação não era então ilíquida por não depender da fixação de qualquer aspecto que não fosse fixo na altura, o aumento de valor de mercado. A questão só se poderia colocar em relação a eventual aumento do dano (valor de mercado) entre a data da citação/interpelação e a data da sentença, pois que na citação seria pedido valor inferior ao posteriormente pedido e fixado na sentença e se a ré tivesse pago com a interpelação não poderia ter pago o valor fixado na sentença. Não foi isso que ocorreu. Se o dano líquido diminuir após a citação, a mora contada apenas de data posterior à interpelação redunda em “benefício para o infractor”. No caso presente a mora e as suas consequências assentam bem ao momento da interpelação, pois que o montante do dano não era ilíquido, por ser o valor de mercado e este não depender, para ser quantificado, de qualquer acto de terceiro em relação à ré, como seria se necessitasse de um juízo equitativo de terceiro.
Diferente é a situação em que o montante da obrigação é liquidado após juízo equitativo. Este juízo é, por natureza, actualizado à data em que é feito, devendo ponderar todas as circunstâncias relevantes e nada justificando indemnização moratória anterior, a qual já deve ser ponderada no juízo de equidade que fixa o valor da obrigação e a torna líquida. Por outro lado, a obrigação fixada segundo juízos de equidade é, por natureza ilíquida, pois que a sua liquidação depende de juízo inexistente antes da liquidação.
A mora quanto à obrigação de indemnizar fixada por seguindo juízos de equidade ocorre apenas aquando da fixação/liquidação.
Embora estejamos em sede de responsabilidade contratual ou por acto ilícito contratual consubstanciado no incumprimento culposo, a mora deve começar na data da decisão que liquida pela primeira vez o valor da indemnização que venha a tornar-se definitivo, seja por não ser impugnada por via de recurso, seja porque o recurso não mereceu procedência, seja por outra razão. Esta solução está em consonância com a jurisprudência do Venerando TUI sobre a mora na obrigação de indemnizar por responsabilidade extracontratual por acto ilícito, (Acórdão para fixação de jurisprudência de 02/03/2011, proferido no processo nº 69/2010, acessível em www.court.com.mo).
O momento da decisão como início da mora é também o mais coerente com a fixação da indemnização por juízos de equidade, pois que a ponderação feita quanto ao valor adequado da indemnização deve contar com todos os factores relevantes que sejam ponderáveis no momento da decisão de acordo com as regras substantivas e processuais aplicáveis e, por isso, já deve ter em consideração o tempo decorrido entre a ocorrência do dano e o seu ressarcimento, seja a dilação imputável ao devedor ou seja imputável ao credor.
*
V – DECISÃO.
Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, declaram-se resolvidos os contratos existentes entre as partes e condena-se a ré a pagar aos autores:
- A quantia de HKD618.660,00 (seiscentos e dezoito mil, seiscentos e sessenta dólares de Hong Kong), acrescida de juros contados à taxa legal desde a data da presente decisão até integral pagamento;
- A quantia de HKD39.073.810,50 (trinta e nove milhões, setenta e três mil, oitocentos e dez dólares de Hong Kong e cinquenta cêntimos), acrescida de juros contados à taxa legal desde a data da citação da ré até integral pagamento.
Custas a cargo dos autores e da ré na proporção do respectivo decaimento.
Registe e notifique.
*
Quid Juris?
Ora, este TSI já se pronunciou sobre a mesma matéria em vários processos, sendo certo que cada um tem as suas particularidades resultantes de situações de facto diversas.
No processo nº 292/2024, cujo acórdão foi proferido em 19/01/2025, tecimos as seguintes considerações:
“(…)
1) – Nos exercício das funções jurisidicionais, é do conhecimento deste TSI que são basicamente as seguintes situações que dão origem aos litígios em que se discutem as mesmas matérias:
a) – O promitente-comprador mantém a sua posição contratual até à data em que foi proposta acção contra a Ré, sem que tivesse transmitido a sua posição contratual para terceiro;
b) – O promitente-comprador chegou a ceder a sua posição de promitente-comprador para um terceiro, por um preço superior ao fixado no primeiro contrato-promessa, e é este terceiro, actual titular da posição do contrato-promessa que veio a propor a acção contra a Ré, pedindo que esta lhe pagasse o sinal dobro à luz do preço mais alto (ou seja, existe diferença ao nível do preço, o preço fixado no primeiro contrato-promessa e o preço mais alto posteriormente fixado no segundo (ou posteriores) contrato-promessa;
c) – O promitente-comprador chegou a celebrar vários contratos-promessa com a Ré, prometendo adquirir várias fracções autónomas (depois, chegou a transmitir alguns contratos-promessa para terceiros e mantém alguns para si próprio).
2) – Todas as hipóteses acima apontadas trazem várias questões para discutir, uma delas consiste em saber se é legítimo e justo que o promitente-comprador venha a receber o sinal em dobro independentemente das particularidades do caso em discussão.
3) – No caso, não é supérfluo realçar que o caso em análise tem a sua particularidade, já que, ao contrário daquilo que se verifica em situações normais, em que a promitente-vendedor não quer cumprir de livre vontade e por iniciativa própria o acordado. No caso não foi isto que sucedeu, a Ré quis cumprir, só que por decisão do Governo da RAEM, a Ré não pude cumprir. Ou seja, a sua “culpa”(se podemos utilizar esta palavra) não é acentuada nem “indesculpável”, o que deve relevar para ponderar e fixar as sanções contratuais!
(…)”.
Aqui, merece igualmente destacar um outro ponto: o raciocínio do Tribunal a quo aponta, parece-nos, para a ideia de que toda a culpa de incumprimento se concentra na parte da Ré/Recorrente, mas tal como se refere anteriormente por nós, não é líquida esta argumentação, já que a Ré fazia e tentava fazer tudo para que pudesse cumprir os compromissos assumidos perante o Governo da RAEM, apesar que o resultado final não vir a ser “satisfatório” a todos os níveis. Mas os comportamentos assumidos pela Ré demonstram que não existe “dolo” de incumprimento por parte dela, quanto muito, negligência ou utilizando uma linguagem diferente, um “risco de investimento” que a Ré há-de assumir, daí a sua quota-parte de responsabilidade, circunstâncias estas que devem ser valoradas na fixação das indemnizações que cabem no caso em análise. Aliás, o Tribunal recorrido na fundamentação da decisão dos factos afirmou: “A convicção do tribunal formou-se na análise crítica da globalidade da prova testemunhal e documental produzida, ponderada nos termos antes referidos e que podem ser explicitados sinteticamente como segue.
É uma evidência que a ré tinha vontade firme de concluir o empreendimento “XX”, o que resulta da consideração dos esforços e dispêndios que fez, incontestáveis e incontestados nos autos, incluindo por via judicial.”
*
Conforme o quadro factual fixado pelo Tribunal recorrido, existem vários factos que são claros para demonstrar que a Ré não actuou com “dolo” no cumprimento dos acordos quer perante o Governo enquanto concedente quer perante as partes dos contratos-promessa, a saber:
“(…)
- A DSSOPT aprovou o projecto sem o sugerido afastamento entre torres e em 7/1/2011 notificou a ré dessa aprovação e notificou-a ainda para apresentar o relatório de estudo de impacto ambiental que teria a construção do edifício em matéria de fluxo de ar, efeito biombo, ilhas de calor e expansão de poluentes e referindo à ré que não lhe seria emitida licença de obras sem que o referido relatório fosse apresentado e aprovado;
- Em 11/5/2011, a ré apresentou à DSSOPT um relatório do estudo de impacto ambiental requerido;
- Posteriormente, a DSSOPT em coordenação com a DSPA exigiu à ré a apresentação de outros relatórios de estudos de impacto ambiental incidentes sobre outros aspectos ambientais diferentes daqueles que havia mencionado e a ré apresentou-os até que, em 15/10/2013, foi aprovado o último relatório apresentado;
Em 24/10/2013, a ré requereu à DSSOPT a emissão de licença de obras que foi emitida em 2/1/2014.
- Se a DSSOPT tivesse dado resposta em 60 dias apreciando o projecto parcial de arquitectura apresentado pela ré em 06/05/2008, a que não respondeu;
- Se a DSSOPT tivesse respondido em 60 dias apreciando o projecto global de arquitectura apresentado pela ré em 22/10/2009, a que respondeu em 9/4/2010;
- Se a DSSOPT tivesse respondido em 60 dias apreciando a alteração apresentada ao referido projecto global em 3/6/2010, a que respondeu em 7/1/2011 e
- Se a DSSOPT, quando em 7/1/2011 exigiu pela primeira vez a realização de estudos de impacto ambiental, tivesse exigido à ré todos os estudos da mesma natureza que lhe exigiu mais tarde.
“(…)”
18. A Ré confiou que lhe seria prorrogado o prazo de aproveitamento ou dada uma nova concessão do mesmo terreno para data posterior a 24/12/2015 porque os serviços da RAEM criaram tais expectativas, nomeadamente:
d. Ao emitirem licença de obras para as fundação em 02/1/2014, um mês antes do terreno do prazo de aproveitamento;
e. Ao Prorrogarem o prazo de aproveitamento em 29/7/2014 até 25/12/2015, sabendo que tal não seria possível;
f. Já anteriormente haviam concessionado novamente o mesmo terreno ao mesmo concessionário em casos em que o terreno concessionado não tinha sido aproveitado no dentro do respectivo prazo. (Q 9.º)
(…)”.
Tudo isto demonstra claramente que a Ré não actuou com dolo para desrespeitar as obrigações decorrentes dos contratos-promessa, pelo contrário, os factos assentes acima transcritos podem constituir alteração superveniente das circunstâncias nos termos do artigo 431º do CCM, já que se tratam de factos imprevisíveis e que ocorreram posteriormente ao momento da celebração dos acordos em análise.
*
A particularidade do caso em análise consiste no facto de os Autores terem celebrado 8 contratos-promessa incidentes sobre 8 fracções autónomas identificadas nos autos.
Relativamente à fracção autónoma “H29”, em matéria de responsabilidade contratual e atendendo aos pedidos dos Autores, temos de separar “as questões” em discussão, já que eles pediram o dano cessante, e existe “habitação de troca” (“置換房”), matéria indexada às situações em que os promitentes-compradores celebraram contrato-promessa para adquisição de fracções autónomas dos Edifícios “XX”, e, no caso, em troca, os Autores chegaram a adquirir uma fracção autónoma em “compensação”, factores que devem entrar em conta de ponderação tal como fez o Tribunal a quo ao julgar este processo.
Com as devidas adaptações, o disposto no artigo 784º/2 do CCM pode ser chamado para fundamentar a decisão em análise, já que tal normativo dispõe:
(Contratos bilaterais)
1. Quando no contrato bilateral uma das prestações se torne impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa.
2. Se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao credor, não fica este desobrigado da contraprestação; mas, se o devedor tiver algum benefício com a exoneração, o valor do benefício é descontado na contraprestação.
Neste ponto, a restituição do sinal não representa uma injustiça flagrante ou ofende o sentido de justiça material, é de aceitar como correcta a solução legalmente consagrada: restituição do sinal em dobro por quem não cumpre o acordo celebrado nos termos do disposto no artigo 801º do CCM.
Nesta parte da decisão, é de reconhecer que o Tribunal a quo procedeu a uma análise exaustiva e proferiu uma decisão que segue praticamente a posição defendida por este TSI noutros processos semelhantes, motivo pelo qual esta parte não merece censura, assim é de manter a decisão recorrida, neste ponto (Cfr. artigo 631º/5 do CPC).
*
Relativamente às demais 7 fracções autónomas “A29” a “G29”, o Tribunal recorrido argumentou nos seguintes termos:
“(…)
Quanto às fracções “A29 a G29”.
O sinal prestado no âmbito dos contratos relativos às fracções “A29 a G29” foi de HKD9.970.500,00.
O autor acordou com a ré que o preço das sete referidas fracções seria, no conjunto, HKD33.235.000,00.
Provou-se que no momento conhecido mais próximo do encerramento da discussão em primeira instância as referidas fracções teriam em conjunto o valor de HKD60.865.310.50 (MOP62.691.269,80).
O aumento do valor de mercado das sete fracções foi, pois, de HKD27.630.310,50 (HKD60.865.310.50 – HKD33.235.000,00).
Por não terem recebido da ré as sete fracções acordadas, os autores estão privados deste aumento de valor – HKD27.630.310,50. É este o seu dano efectivo que alegaram, não podendo o tribunal conhecer de outro por não lhe ter sido colocado para apreciação (arts. 563º, nº 3 do CPC).
A diferença entre o valor do sinal prestado e o aumento do valor de mercado das fracções é de HKD17.659.810,50 (HKD27.630.310,50 - HKD9.970.500,00).
Afigura-se inquestionável que o dano efectivo que os autores alegaram e provaram é consideravelmente superior ao valor do sinal prestado. A diferença “salta aos olhos”15, pelo que procede a pretensão dos autores de serem indemnizados pelo “dano excedente”, que equivale a dano efectivo, como se disse, em vez de serem indemnizados pelo valor do sinal prestado.
Assim, relativamente às fracções “A29 a G29” têm os autrores direito a receber, por via da resolução contratual, HKD9.970.500,00 a título de restituição da quantia que a ré recebeu e têm direito a receber HKD27.630.310.50 a título de indemnização por incumprimento resultante da impossibilidade superveniente da prestação por causa imputável à ré devedora, indemnização esta que não corresponde ao valor do sinal, mas ao valor do dano efectivo alegado e provado, o qual é consideravelmente superior ao valor do sinal prestado que serve supletivamente de predeterminação da indemnização por incumprimento.
(…)
*
V – DECISÃO.
Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, declaram-se resolvidos os contratos existentes entre as partes e condena-se a ré a pagar aos autores:
- A quantia de HKD618.660,00 (seiscentos e dezoito mil, seiscentos e sessenta dólares de Hong Kong), acrescida de juros contados à taxa legal desde a data da presente decisão até integral pagamento;
- A quantia de HKD39.073.810,50 (trinta e nove milhões, setenta e três mil, oitocentos e dez dólares de Hong Kong e cinquenta cêntimos), acrescida de juros contados à taxa legal desde a data da citação da ré até integral pagamento.
Custas a cargo dos autores e da ré na proporção do respectivo decaimento.
Registe e notifique.
Ora, nesta parte, merece destacar os seguintes aspectos:
1) – A “novidade” do arresto consiste no facto de o Tribunal a quo recorrer à estimativa dos preços das 8 fracções autónomas do mercado imobiliário, avaliada em tempo próximo da discussão da audiência de julgamento, que teve lugar em Fevereiro de 2024 (fls. 1778 a 1800 dos autos), chegou-se à conclusão de que os Autores sofreriam de dano calculado na seguinte forma: o preço (estimado) do mercado das fracções autónomas em causa – (menos) os preços fixados nos respectivos contratos-promessa, com esta fórmula se fixa a indemnização do chamado dano excedente sofrido!
2) – Ora, salvo o merecido respeito, não é de acolher este raciocínio, visto que:
a) – A estimativa é apenas um valor previsível e e tem o valor que tem, mas não pode ser entendido como um valor que corresponde ao dano efectivamente sofrido pelos Autores, já que tais “bens futuros” (pespectivados no momento da celebração dos contratos-promessa) nunca entraram no “mercado” para circulação, tal como se alega e prova por abundantes documentos juntos aos autos. Situação diferente será aquela em que o bem já está construído e está na mão do vendedor, este pode sempre vendê-lo posteriormente. Mas não é esta situação que estamos a apreciar!
b) – Será que os Autores conseguiram vender efectivamente por aqueles “preços” (previsíveis) as fracções autónomas? Não há provas sobre este ponto.
Frise-se ainda aqui, quanto a este ponto, o que o Tribunal recorrido fez foi recorrer às regras publicadas pela DSC e Estatítsticas. O Tribunal a quo argumentou: “fundamentação: - documento de fls. 41, 45, 49, 53, 57, 61, 65, 85 a 108, 1128 a 1130 e 1771 a 1776; - Multiplicação das áreas das fracções pelos valores indicados no documentos da Direcção dos Serviços de Estatística cujo endereço electrónico consta do art. 85º da petição inicial; - O momento a considerar é o mais próximo possível do encerramento da discussão em primeira instância (art. 566º do CPC); - A prova testemunhal que depôs sobre a questão foi unânime no sentido de o empreendimento “XX” ser de qualidade e valor de mercado semelhante ao que se esperava que tivesse o “XX”; - Os documentos da Direcção dos Serviços de Estatística referem os valores considerados provados. Foi nos termos descritos que se formou a convicção do tribunal.”
Ou seja, nem se quer foi feita alguma avaliação por instituições idóneas ou por bancos sobre os preços dos imóveis naquela zona da cidade, ou seja, concretamente sobre as fracções autónomas dos edifícios em causa. Nestes termos, se fossem provas periciais (sujeitas à livre apreciação do julgador nos termos fixados pelos artigos 382º e 383º do CCM), teriam ainda mais valor do que a “prova” produzidas perante o Tribunal recorrido. Ou, outras provas mais possíveis e credíveis é recorrer aos preços de transacções registados na DSF, mas igualmente não foi lançada mão deste mecanismo. Eis a chamada apreciação crítica das provas. Se vingasse a tese dos Autores neste ponto, quase se poderia afirmar que eles ficassem dispensados de produzir provas, pois quase seria automática a indemnização por danos excedentes, mas não é esta filosofia que presidiu à legislação reguladora desta matéria. Tal como se refere num acórdão do TUI, uma coisa é o preço do mercado, outro é o dano efectivamente sofrido pelas partes (cfr. proc. nº 58/2019). Entendemos que os preços das fracções autónomas dos edifícios ao lado não podem directamente ser usados como preços de venda das fracções do edifício em causa, muito menos os prejuízos sofridos pelos Autores, já que os preços do mercado são condicionados por um conjunto de factores (ex. localização, andar mais alto ou mais baixo, vistas panorâmicas, momento de colocar no mercado para venda …etc), até, o preço das fracções autónomas do mesmo andar pode variar-se em função de vários factores.
c) – Um outro facto mais importante que não foi considerado pelo Tribunal a quo é o seguinte: o preço total para adquirir tais 8 fracções é HK$3,8145,000.00 conforme o estipulado pelas partes, mas os Autores pagaram apenas HK$11,443,500.00 (conforme o que consta dos contratos-promessa de compra e venda de fls. 41 a fls.76 dos autos). E os preços do mercado aumentaram e baixaram conforme o que consta das respostas do quesito 18º dos Factos Assentes – o valor global das 7 fracções autónomas era HK$94,912,875.00 (apresentado com a PI em 05/11/2018 e esse valor passou a ser HK$62,691,269.80 – valor avaliado em Janeiro de 2024 (Estes valores foram estimados pelo Tribunal Recorrido, para nós, a situação é apreciada à luz do critério fixado pelo artigo 437º do CPC).
É de ver que tais valores estimados variaram-se. Nesta óptica, não se tratando duma prova com valor legal fixo, não se pode fixar a respectiva indemnização na suposição de que os Autores pagaram a totalidade dos preços das 8 fracções autónomas (custos) e assim com a resolução dos contratos passariam a poder adquirir tais “lucros”! Neste ponto, a matéria alegada pelos Autores constam do artigo 74º a 101º da PI em que foram feitos apenas os cálculos respectivos.
d) - Mais, não há provas de que os Autores já preparam todas as quantias suficientes para pagar o remanescente dos preços. No caso de se recorrerem aos empréstimos bancários, teriam de suportar custos: juros, despesas administrativas…etc.
e) - Por isso, não se deve aceitar as estimativas como danos efectivos sofridos pelos Autores. A avaliação feita neste ponto têm o seu valor que têm, mas há-de ponderar outras circunstâncias concretas rodeadas do caso concreto, nomeadamente no momento em que rebentou o caso de “XX” (“XX事件”) (não se sabia se os edifícios iriam ser construídos ou não a tempo e no caso negativo quem será responsável?) as pessoas ainda estavam dispostas para adquirir tais fracções autónomas pelos preços do mercado? Não é supérfluo frisar que em 2015 foi declarada a caducidade da concessão do terreno em causa, e em 2018 foi proposta a respectiva acção, e, durante tal prazo, existiam ambiguidade e confusões em vários aspectos: não se sabia como é que seria resolvida a situação que tocava à posição de vários primitentes-compradores; o caso de “XX” (“XX事件”) já se tornou um “caso de impacto social”; pergunta-se, as pessoas ainda estavam dispostas a adquirir fracções autónomas, cuja “existência física” estava eivada de dúvidas? Estes factos são factos do conhecimento público e como tal podem ser objecto de reflexões por parte do Tribunal ao abrigo do disposto no artigo 434º do CPC.
*
3) - Agora, relativamente ao dano excedente, quando não pode ser calculado ao certo, à luz da doutrina dominante, e no caso da sua impossibilidade, recorre-se ao juízo de equidade.
A propósito deste ponto, escreveu-se:
“De harmonia com a lei substantiva, sempre que não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (art.º 566.º, n.º 3, do Código Civil). Considerada a possibilidade processual de uma condenação ilíquida, coloca-se o problema da articulação de uma e outra norma (artº 609.º, n.º 2, do CPC). A articulação deve ser feita do modo seguinte: se ainda for possível fixar no incidente de liquidação a quantidade da condenação, aplica-se a norma processual da condenação genérica; no caso inverso, o dano será equitativamente julgado5. Equidade – como justiça do caso concreto – que, porém, sob pena de um julgamento puramente arbitrário ou atrabiliário, não prescinde de um suporte de facto, por mínimo ou reduzido que seja6, nem serve para alijar por inteiro, o não cumprimento, seja pelo credor da obrigação de indemnização quantitativamente indeterminada do ónus da prova do valor do dano a que está indiscutivelmente adstrito, seja pelo devedor de igual ónus que o vulnera no tocante a qualquer facto extintivo daquela mesma obrigação (art.º 342.º, n.ºs 1 e 2, e 346.º, n.º 1, in fine, do Código Civil, e 414.º do CPC).”16
4) – Pergunta-se, como é que se deve resolver este tipo de questões? A propósito desta matéria, citemos aqui a posição dominante vigente em Portugal, em nome do Direito Comparado (Cfr. ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 9/10/2012) sobre a matéria em discussão (uma situação semelhante):
“Acontece porém que nos situamos no âmbito da resolução do contrato. O autor optou pela resolução do contrato.
A resolução do contrato “consiste na destruição da relação contratual, validamente constituída, operada por um acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado” [14].
Entre as partes e na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade do negócio jurídico, nos termos do art.º 433º do Código Civil. Por isso tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes.
Ao pretender indemnização por lucros cessantes, o A. está a pedir a reparação do interesse contratual positivo, ou seja, o ressarcimento do prejuízo que não sofreria se a cessão de exploração tivesse sido inteiramente cumprida pela R. O que resultaria para o credor do cumprimento curial do contrato, abrangendo, portanto, não só o equivalente da prestação, mas também a cobertura pecuniária (a reparação) dos prejuízos restantes provenientes da inexecução, "de modo a colocar-se o credor na situação em que estaria se a obrigação tivesse sido cumprida".
Como é sabido, “a nulidade impede a produção de efeitos e a anulação faz cessar a produção de efeitos jurídicos” [15].
Em caso de resolução contratual, a posição clássica e largamente dominante, é a de que a tutela se resume ao interesse contratual negativo, ou seja, ao prejuízo que o credor não teria se o contrato não tivesse sido celebrado [16]. Tal entendimento tem sido seguido maioritariamente na jurisprudência. [17]
Com base nesta doutrina, não é aceitável a compatibilidade de cumulação entre a resolução do contrato e a indemnização correspondente ao (interesse contratual positivo, sobretudo com fundamento nos argumentos retirados do efeito retroactivo da resolução e da incoerência da posição do credor, ao pretender, depois de ter optado por extinguir o contrato pela solução, basear-se nele para obter uma indemnização, correspondente ao interesse no seu cumprimento.
Por isso e conclui no citado acórdão de 24.1.2012 que, “por regra, a indemnização fundada no não cumprimento definitivo, que se cumula com a resolução, respeita apenas ao chamado interesse contratual negativo ou de confiança, visando colocar o credor prejudicado na situação em que estaria se não tivesse sido celebrado o contrato, e não naquela em que se acharia se o contrato tivesse sido cumprido”.
Nada no caso justifica que nos afastemos da regra geral em razão dos interesses em discussão, o que se justifica apenas em casos excepcionais, como também tem sido entendido na jurisprudência. [18]
Por conseguinte, improcede o pedido de indemnização do A. relativo a lucros cessantes.”
O raciocínio vale, mutantis mudantis, para o caso dos autos, sendo certo que o artigo 436º do CCM (que tem uma redacção diferente da do CC de 1966 vigente em Portugal), consagra:
(Sinal)
1. Quando haja sinal, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida, ou restituída quando a imputação não for possível.
2. Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele o direito de exigir o dobro do que houver prestado.
3. A parte que não tenha dado causa ao incumprimento poderá, em alternativa, requerer a execução específica do contrato, quando esse poder lhe seja atribuído nos termos gerais.
4. Na ausência de estipulação em contrário, e salvo o direito a indemnização pelo dano excedente quando este for consideravelmente superior, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste.
5. É igualmente aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 801.º
Depois, o artigo 801º do CCM manda:
(Redução equitativa da pena)
1. A pedido do devedor, a pena convencional pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário.
2. É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida.
A propósito dos nº 4 e 5 do artigo 436º do CCM, anotou-se:
“15. No estudo global que se faça do problema, chega-se à conclusão que o nº 4 vem reforçar a ideia transversal consagrada no Código a respeito da natureza confirmatória do sinal (o próprio Menezes Leitão acaba por admitir que o nº 4 não tem natureza penitencial, em ob. cit., pág. 246). Ou seja, para lá da perda do sinal pelo tradens ou da devolução em dobro do sinal pelo accipiens, ainda pode haver lugar, salvo estipulação em contrário, a indemnização pelo dano excedente. Foi uma opção do legislador de Macau, que podia ter aproveitado a ocasião para ser mais generosa. Com efeito, não passou da criação dessa possibilidade indemnizatória pelo dano excedente, sem a estender a outra qualquer indemnização (nomeadamente, por danos não patrimoniais), tendo em conta que na parte final do nº 4 afirmou expressamente a impossibilidade de alargamento da extensão indemnizatória (habitualmente, alguns autores defendem que, sem limitação, pode haver a indemnização por perdas e danos no caso de sinal confirmatório).
Pior é, apesar de tudo, a situação do parente próximo preceito português, pois nele se preceitua que "Na ausência de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste, ou do aumento do valor da coisa ou do direito à data do não cumprimento".
De qualquer maneira, há mesmo aí quem sustente que, para além dessa indemnização pelo não cumprimento, possa haver uma ou mais indemnizações fundadas noutras causas, como, por exemplo, nos casos de terem sido feitas benfeitorias na coisa (Ana Prata, Código ... cit., pág. 568).
16. O nº 5 manda aplicar, com as necessárias adaptações, o disposto no art. 801º. Não é bem claro o propósio da disposição legal: se apenas se aplica aos casos em que os contraentes estabelecem no contrato uma indemnização para o caso de incumprimento por arrependimento (arras ou sinal penitencial), ou se também aplicação no caso de sinal confirmatório-penal.
E se a resposta for no sentido de apenas cobrir a segunda hipótese de sinal confirmatório, ainda fica por saber se a redução por equidade (art. 801º) abrange somente as situações em que há dano excedente (nº 4), calculando-se aí a indemnização segundo critérios equitativos, ou se também atinge o dobro do sinal por incumprimento do accipiens.
Por um lado, poderia parecer que a melhor solução seria, efectivamente, a que permite a aplicação do regime de redução no caso de incumprimento de contrato em que o sinal tem a função de arra confirmatória. Na verdade, se o sinal tiver o sentido penitencial, isso se deve ao facto de as partes, de livre vontade e por consenso, terem estabelecido os próprios limites indemnizatórios, não fazendo sentido que o tribunal os possa baixar apenas porque o devedor lho tenha pedido.
Por outro lado, é de crer que a redução também não possa incidir sobre o dobro do sinal, porque isso seria contrariar a solução da lei (nº 2).
Nesta óptica, pareceria ficar assim a remissão para o art. 801º circunscrita às situações em tiver que haver indemnização pelo dano excedente. Este dano pode ser, realmente, elevado, se tivermos em conta as diferenças de preços em mercados (por exemplo, imobiliários) que frequentemente se pautam por regras pouco saudáveis de especulação. Tendo em conta que o dano pode ser realmente avultado, a intervenção do juiz pode eventualmente justificar-se, se bem que a redução também pode funcionar como um prémio ao devedor.
Não temos, enfim, a certeza sobre o alcance da norma.
Mas, se fizermos a conjugação dos artigos 436º, 801º (e o ambiemte da sua sistematização) e 820º, nº 2, (neste caso, para o contrato-promessa) talvez seja possível, afinal de contas, considerar que a remissão apenas faça sentido nos casos em que as partes contratantes tenham estipulado, por penitência, uma indemnização com caracter de pena no contrato para a hipótese de não cumprimento por arrependimento. A jurisprudência dirá o que for de justiça sobre o assunto. (Cfr. Código Civil de Macau, Anotado e Comentado, João Gil de Oliveira e José Cândido de Pinho, CFJJ, 2020, Vol. VI, pág. 506 e 507).
Efectivamente pode existir alguma dúvida na interpretação e aplicação das normas em causa.
Mas não é pela primeira vez que este TSI é chamado para se pronunciar sobre o conceito de danos ou prejuízos excedentes, o mesmo conceito encontra-se consagrado no artigo 1027º do CCM em matéria locatária que dispõe:
(Indemnização pelo atraso na restituição da coisa)
1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro; à mora do locatário não é aplicável a sanção prevista no artigo 333.º
3. Fica salvo o direito do locador à indemnização dos prejuízos excedentes, se os houver.
A propósito deste conceito, ficou consagrado o seguinte entendimento no Proc. nº 646/2017, com o acórdão proferido em 26/07/2018:
“I - A Ré deve pagar a quantia equivalente ao dobro da renda que se praticava, como justa indemnização específica pela não restituição do imóvel, embora de natureza contratual, por continuar a usar a coisa, em prejuízo das locadoras, correspondente à renda que estava a ser praticada e que se traduz no valor de uso do imóvel.
II – Em relação à indemnização pelos prejuízos excedentes, uma vez verificados, a título de lucros cessantes, ela tem por fundamento o efectivo prejuízo causado, que pode já não se medir pelo valor da renda, não obstante ser o mesmo o respectivo facto gerador, mesmo que o montante dos danos causados às locadoras seja inferior ou equivalente ao quantitativo da renda, hipótese em que ao credor basta a indemnização contemplada pelo artigo 1027º/2 do CC.
III - A solução correcta só poderá ser conseguida mediante interpretação sistemática, lógica e teleológica da norma do artigo 1027º/3 do CCM. Não resta dúvida que, quer a sanção prevista no nº 2, quer no nº 3 do artigo citado, visa “forçar” o inquilino a devolver o locado ao senhorio com o mais cedo possível, sob pena de estar sujeito a sanções pesadas até que o locado seja devolvido a quem de direito.
IV - Por esta via, a leitura mais consentânea com a ratio legis da norma do artigo 1027º/3 do CCM é a de que a indemnização da mora entra em linha de consideração para efeitos da fixação da indemnização por prejuízo excedente, sob pena de se duplamente “sancionar” o inquilino!”
Não há razões bastantes para não seguirmos o entendimento acima referido, já que está em causa uma matéria de natureza idêntica: para além de pagar o dobro, pode pedir-se indemnização por danos excedentes, mas estes têm de estar devidamente demonstrados e comprovados, não bastam alegações abstractas ou provas indirectas.
No que respeita aos critérios da valoração probatória, nunca é demais sublinhar que se trata de um raciocínio problemático, argumentativamente fundado no húmus da razão prática, a desenvolver mediante análise crítica dos dados de facto veiculados pela actividade instrutória, em regra, por via de inferências indutivas ou analógicas pautadas pelas regras da experiência colhidas da normalidade social, que não pelo mero convencimento íntimo do julgador, não podendo a intuição deixar de passar pelo crivo de uma razoabilidade persuasiva e susceptível de objectivação, o que não exclui, de todo, a interferência de factores de índole intuitiva, compreensíveis ainda que porventura inexprimíveis. Ponto é que a motivação se norteie pelo princípio da completude racional, de forma a esconjurar o arbítrio17.
É, pois, nessa linha que se deve aferir a razoabilidade dos juízos de prova especificamente impugnados, mediante a análise crítica do material probatório constante dos autos, incluindo as gravações ou transcrições dos depoimentos, tendo em conta o respectivo teor, o seu nicho contextual histórico-narrativo, bem como as razões de ciência e a credibilidade dos testemunhos. Só assim se poderá satisfazer o critério da prudente convicção do julgador na apreciação da prova livre, em conformidade com o disposto, designadamente no artigo 390º do CCM, em conjugação com o artigo 558º do CPC, com vista a obter uma decisão que se possa ter por justa e legítima.
Voltando ao caso em análise, sublinhe-se aqui, é de verificar que a norma do nº 4 do artigo 436º é mais exigente do que a norma do artigo 1027º (que regula a matéria de locação), pois aquela norma fala de “dano consideravelmente superior’! O que exige provas mais rígidas e persuasivas!
*
Aqui, é de recordar-se que no processo nº 220/2024 fica consignado o seguinte entendimento:
“從上述轉錄的內容可見,原審法院已詳細論證了第一被告的不履行責任,我們認同有關見解,故基於訴訟經濟原則及根據《民事訴訟法典》第631條第5款之規定,引用上述見解和依據,裁定這部分的上訴理由不成立。
事實上,本院在涉及“XX”事件的案件中已多次強調(見中級法院在卷宗編號1142/2019、1145/2019、1150/2019及1192/2019內作出的裁判),澳門特別行政區僅和土地承批人,即本案之第一被告,建立了法律關係;一切因應承批土地所作出的行為,均是針對土地承批人/第一被告而作出。因此,即使假設該等行為損害了土地承批人/第一被告的權益,例如無法如期利用土地而導致其需向預約買受人作出賠償,也只能是土地承批人/第一被告在履行其賠償義務後再向澳門特別行政區追討賠償,而非預約買受人可直接向澳門特別行政區追討因土地承批人/第一被告違反與其簽定的預約買賣合同的賠償責任。
只有在澳門特別行政區濫用權利,行為特別惡劣的情況下其才需負上相關賠償責任,然而本案並不存在該等情況。
4. 就賠償金額方面:
第一被告認為基於合同不履行非其責任,故只應按不當得利規則(《民法典》第784條第1款之規定)作出返還。
此外,亦認為即使假設其在相關的合同不履行存有過錯,雙倍的定金賠償是明顯過高,應根據衡平原則作出縮減。
我們在前述部分已認定第一被告需對合同的不履行負上責任,故不能適用《民法典》第784條第1款之規定,按不當得利規則作出返還。
就賠償金額方面,根據《民法典》第3條的規定,法院在下列任一情況下可按衡平原則處理案件:
a) 法律規定容許者;
b) 當事人有合意,且有關之法律關係非為不可處分者;
c) 當事人按適用於仲裁條款之規定,預先約定採用衡平原則者。
《民法典》第436條第5款明確容許經適當配合後適用第801條之規定,即容許法院當認為賠償金額過高時按衡平原則減少違約賠償金額。
為此,我們需考慮原告們的實際損失是多少,即其共付出了多少金錢以取得相關的合同地位來決定是否適用衡平原則作出縮減。
在本個案中,原告們向原預約買受人支付了港幣2,356,000.00元(900,000+1,456,000)以取得相關的預約買受人合同地位。
倘按平均年利率3.5%計算8年(2012-2019年)的利息,可獲得港幣659,680.00元的利息,即共有港幣3,015,680.00元。
原告們可獲得雙倍定金的賠償是港幣2,292,000.00元(1,146,000 x 2),並不高於前述的金額。
由此可見,原審法院不以衡平原則對賠償金額作出縮減是正確的,應予以維持。”
5) – Voltando ao caso dos autos, uma leitura possível: ao contrário que se pretende defender, temos por certo que as quantias pagas pelos Autores à Ré a título de sinal, se fossem depositadas nas instituições bancárias, certamente eles receberão juros, facto este que temos por certo que os Autores deixaram de poder os receber, razão pela qual a Ré deve indemnizá-los por esta via.
Assim, aplicando-se os dados concretos ao raciocínio acima exposto, o resultado poderá ser (valor pago vezes a taxa de juros bancaria (por média) vezes o tempo durado):
(1) – HK$11,443,500.00 (valor efectivamente pago) X 3.5% X 8 (anos) = HK$3,204,180.00;
(2) - Ou alternativamente, uma outra leitura possível: utilizando o raciocínio do Tribunal a quo, admitindo-se que o preço dos 7 imóveis em causa do mercado passaria ser HK$27,630,310,50, mas os Autores só pagaram HK$11,443,500.00, o que corresponde a 1/3 das quantias totais, nesta lógica e nesta razão, os Autores só teriam direito a receber 1/3 do preços fixado à luz do preço do mercado, conforme o calculo feito pelo Tribunal a quo, ou seja, HK$27,630,310.50/3 = HK$9,210,103.50. Nestes termos, os Autores nunca podem receber o valor arbitrado pelo Tribunal recorrido neste ponto, sob pena de se violar flagrantemente o sentido da justiça do caso concreto, para além de se dar a ideia de que se estimule a “especulação imobiliária”! O que viola o princípio da boa fé em matéria de cumprimento de obrigações contratuais.
Cabe sublinhar-se aqui, que o acima exposto não significa que o valor indemnizatório não pode ir além do valor do sinal entregue, pode, tudo depende das provas concretamente produzidas pelas partes, sobre quem recai o ónus de prova.
Nesta lógica, as soluções acima indicadas não ultrapassam o valor de sinal em singelo, portanto no valor de HK$11,443,500.00, por isso não há danos excedentes, porque a restituição do sinal em dobro já cobriu a indemnização do dano sofrido pelos Autores. O mesmo raciocínio é seguido na aplicação da norma do artigo 1027º do CCM que disciplina a matéria de locação imóvel nos termos acima citados.
6) - É de sublinhar que o julgamento segundo a equidade é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar o problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas, que se distingue do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição. Portanto, a equidade não remete, de modo algum, para o simples entendimento pessoal do juiz ou para a sua íntima convicção, afastando-se decisivamente do puro arbítrio judicial, não estando igualmente em causa, na decisão segundo o critério não normativo da equidade, uma apreciação intuitiva puramente individual, mas antes racional e objectivável. A racionalidade e a objectivação dessa apreciação pressupõe a aquisição da indispensável base de facto (Cfr. António Menezes Cordeiro, “A decisão segundo a equidade”, in o Direito, Ano 122, 1990, Abril-Junho, pág. 272, e Manuel Carneiro da Frada, “A equidade (ou justiça com coração): a propósito da decisão arbitral segundo a equidade, in Revista da Ordem dos Advogados, 2012, Ano 72, Vol. I, pág. 143, e os Acs. do STJ de 31.01.2012 (875/05) e 07.10.2010 (3515/03). Ou seja, no caso, deve existir factos assentes no sentido de que os Autores tivessem a possibilidade de vender, pelo menos, pelos valores por ele alegados e comprovados (ex. mediante contratos-promessa de compra e venda celebrados) a uma terceira pessoa concreta, o que não se encontra devidamente demonstrado por factualidade assente.
7) - Pelo que, tal como se refere anteriormente, o preço do mercado não deve ser aceite tal e qual indicado pelos Autores, já que uma coisa é provar que um bem podia ter um determinado valor no mercado, outra é provar que o seu dono conseguiu vender tal bem por um preço desejado, tal como se refere no acórdão do TUI datado de 19/06/2019 (Proc. nº 58/2019), razão pela qual não é de aceitar a solução indicado no nº (2), sob pena de se ofender a justiça do caso concreto.
8) - Quantos aos juros moratórios, caindo a questão da indemnização por danos excedentes, não se justifica apreciar a questão do momento a partir do qual se inicia calcular os juros em causa, mantendo-se neste ponto, na parte aplicável, a argumentação tecida pelo Tribunal a quo com adaptações, nomeadamente no que se refere ao início de pagamento de juros a partir da citação.
Fica prejudicado o conhecimento das demais questões.
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9) - Pelo exposto, este TSI passa a decidir nos seguintes termos:
Condenar a Ré à restituir aos Autores a quantia de HK$22,887,000.00 (11443500 X 2), a título de restituição do sinal em dobro, acrescida de juros moratórios calculados, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Quanto ao pedido de dano excedente, uma vez que este não ficou devidamente demonstrado e comprovado, é de o julgar improcedente.
Quanto ao demais, mantém-se o decidido pelo Tribunal a quo.
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Síntese conclusiva:
I - A qualificação jurídica que as partes fazem dos factos a que cabe aplicar o Direito não vincula o tribunal (art. 567º do CPC), qualificação esta que determina o regime jurídico aplicável à relação contratual. No caso dos autos está em causa a aplicabilidade ou a inaplicabilidade da presunção legal de que é sinal toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente vendedor em cumprimento do contrato-promessa de compra e venda (art. 435º do CCM).
II - A qualificação do contrato tem essencialmente por base a vontade negocial das partes plasmada no clausulado concretamente acordado relativamente às prestações a que se pretenderam vincular. É feita por comparação ou subsunção, tendo em conta os elementos do concreto contrato a qualificar e os elementos dos diversos tipos contratuais.
III - A prestação característica do contrato-promessa é a celebração de outro contrato, o contrato prometido. As partes comprometem-se a celebrar outro contrato (art. 404º do CCM). Nos factos provados faz-se referência conclusiva à expressão “promessa de venda”. No entanto esta referência não é decisiva, pois que a qualificação do contrato é questão de direito e não de facto. Numa situação em que, tal como se detecta no caso dos autos, se desconhece a vontade real das partes e estas a exteriorizaram por escrito em termos moldáveis (porque se usam expressões diversas, tais como “contrato-promessa de compra e venda” “prometer comprar e “prometida venda”, “promitente-vendedor” e “promitente-comprador”), a declaração das vontades negociais vale com o sentido que lhe atribuiria o normal declaratário colocado na posição do real declaratário (art. 228º do CCM).
IV – O sinal é um elemento eventual do conteúdo do negócio jurídico, sendo nesta perspectiva, em essência, uma estipulação contratual, uma cláusula negocial. Seja qual for a qualificação que lhe seja dada, o sinal é sempre também uma convenção das pastes contratantes. Depende, pois, da existência de vontades negociais concordantes. Para se concluir se foi ou não estipulado sinal é necessário interpretar as declarações negociais das partes contratantes.
V - No caso do contrato-promessa de compra e venda, como ocorre na situação sub judice, a parte que se quiser prevalecer da existência de sinal beneficia da presunção legal inserta no art. 441º do CCM que diz que se presume “que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço”. Ora, quem tem a seu favor uma presunção legal, está dispensado de provar o facto a que ela conduz, sendo a parte contrária que tem de provar o facto contrário ao facto presumido (art. 343º, nºs 1 e 2 do CCM).
VI - O artigo 801º/-1 do CCM manda que “a pedido do devedor, a pena convencional pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente…”, normativo este que rege directamente a cláusula penal, a pena convencionada pelas partes para sancionar o incumprimento. É aplicável ao sinal com as necessárias adaptações, sendo que o sinal, mesmo sendo confirmatório, também funciona, ainda que supletivamente, como pena aplicável ao incumprimento.
VII - É de sublinhar que o julgamento segundo a equidade é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar o problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas. A equidade não remete, de modo algum, para o simples entendimento pessoal do juiz ou para a sua íntima convicção, afastando-se decisivamente do puro arbítrio judicial, não estando igualmente em causa, na decisão segundo o critério não normativo da equidade, uma apreciação intuitiva puramente individual, mas antes racional e objectivável. A racionalidade e a objectivação dessa apreciação pressupõe a aquisição da indispensável base de facto.
VIII - Por regra, a indemnização fundada no não cumprimento definitivo, que se cumula com a resolução, respeita apenas ao chamado interesse contratual negativo ou de confiança, visando colocar o credor prejudicado na situação em que estaria se não tivesse sido celebrado o contrato, e não naquela em que se acharia se o contrato tivesse sido cumprido.
IX - É de julgar improcedente a pretensão de indemnização superior ao valor do sinal relativamente à fracção “H29”, pois que pressupõe que o dano efectivo seja consideravelmente superior ao valor do sianal prestado (art. 436º, nº 3 do CC), o que não está provado, mesmo que seja admissível que a fracção que os autores venham a receber não tenha exactamente o valor que teria a fracção contratada “H29”. É necessária a demonstração de uma diferença consideravelmente superior ao valor do sianal prestado, o que não está demonstrado.
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Tudo visto e analisado, resta decidir.
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V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em conceder provimento parcial ao recurso, passando a sentenciar da seguinte forma:
1) - Condenar a Ré à restituir aos Autores a quantia HK$11,443,500.00 X 2, a título de restituição do sinal em dobro, acrescida de juros calculados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
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2) – Julga-se improcedente o pedido de indemnização pelos danos excedente formulados pelos Autores.
3) - Quanto ao demais, mantém-se o decidido na sentença recorrida.
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Custas pelas Partes na proporção de decaimento.
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Registe e Notifique.
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RAEM, 13 de Março de 2025.
Fong Man Chong
(Relator)
Tong Hio Fong
(1o Juiz-Adjunto)
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(2o Juiz-Adjunto)
1 Nas suas alegações sobre solução jurídica da causa já a ré não questiona a impossibilidade do cumprimento da sua prestação contratual. Talvez por já ter desistido do pedido na acção que intentara contra a RAEM.
2 Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume II, 11ª edição, pgs. 117.
3 “… o não cumprimento definitivo, que é o resultado de uma impossibilidade definitiva de cumprir, não tem de derivar de uma impossibilidade absoluta de cumprir, no sentido de não poder em caso algum desaparecer. … A impossibilidade da prestação considera-se definitiva não apenas quando toda a probabilidade da sua remoção está excluída, mas também quando ela só pode ser removida mediante circunstâncias especiais que não são de esperar de antemão. … Isto é o mesmo que dizer que também é definitiva a impossibilidade que só possa cessar por um facto extraordinário com que não seja legítimo contar” - Vaz Serra, RLJ, Ano 100º (1967 – 1968), p. 254.
4 Meneses Cordeiro, Tratado de Direito Civil, volume IX, 2ª edição, p. 324.
5 Um elemento natural ou típico do conteúdo do contrato-promessa para Manuel Trigo, Lições de Direito das Obrigações, p. 144. Um acto jurídico real quoad constitutionem, podendo constituir uma cláusula acessória de um negócio jurídico para Nuno Manuel Pinto Oliveira, Ensaio Sobre o Sinal, págs. 10 e 11.
6 Acórdão do Venerando TSI de 04/04/2019, proferido no processo nº 327/2017, Relator: Dr. Fong Man Chong, acessível em www.court.gov.mo e João Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 11ª edição, p. 94.
7 Os autores terão dois títulos para o mesmo direito (receber a quantia que pagaram): a restituição em consequência da resolução contratual e a devolução do sinal. É, portanto, infrutífero escolher um dos títulos. Porém, sempre se dirá que a resolução de apresenta com precedência lógica sobre o sinal.
8 “…a indemnização pelo dano excedente constituiria a indemnização pelo dano efectivo …” - Professor Manuel Trigo, Uma Mudança de Paradigma: A Indemnização pelo Dano Excedente, em Especial nos Casos de Perda do Sinal ou de Pagamento do Dobro Deste e a Jurisprudência Recente (estudo em homenagem a João Calvão da Silva), Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, Ano XXV, nº 49, 2021, p. 151.
9 Assim, também Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, 1990, p. 730. E, do mesmo autor, “A Cláusula Penal no Ordenamento Jurídico de Macau”, Um Diálogo Consistente, Olhares Recentes Sobre Temas do Direito Português e de Macau, 2016, Vol. I, Edição da Fundação Rui Cunha, pgs. 38 e 39 – “Ora, qual será o critério que deve pautar a actuação do juiz, quer para decidir se pode reduzir a pena, quer para determinar, simultaneamente, em caso afirmativo, a medida dessa redução?
Naturalmente que a diferença entre o valor do prejuízo efectivo e o montante da pena é, desde logo, o primeiro factor, de cariz objectivo, a considerar”.
10 Art. 436º, nº 5 do CC: “É igualmente aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 801.º”
11 Nuno Manuel Pinto Oliveira, Ensaio Sobre o Sinal, fala em sinal confirmatório-penitencial.
12 Acórdão do Venerando TSI nº 22/2024, de 9/5/2024, ainda inédito e inacessível on-line, ao que se julga.
13 Professor Manuel Trigo, Uma Mudança de Paradigma…, p. 123, fazendo referência a António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização.
14 Consta dos factos provados que os autores declararam à ré que consideravam resolvido o contrato, mas não consta daqueles factos que interpelaram aí para restituir nem para indemnizar, pelo que não pode atender-se a qualquer interpelação anterior à que ocorreu com a citação.
15 Professor Manuel Trigo, Uma Mudança de Paradigma…, p. 123, fazendo referência a António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização.
16 Ac do STJ, Proc. 3292/20.5TBLRA/C1.S1., de 11/02/2025.
17 Sobre o princípio da completude da motivação da decisão judicial ditado, pela necessidade da justificação cabal das razões em que se funda, com função legitimadora do poder judicial, vide acórdão do STJ, de 17-01-2012, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Gabriel Catarino, no processo n.º 1876/06.3TBGDM.P1 .S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj
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2024-813-sinal-adquisição-várias-fracções 43