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Processo nº 54/2024
(Autos de recurso civil e laboral)

Data: 19 de Março de 2025

ASSUNTO:
- Impugnação dos créditos reclamados
- Ónus da prova

SUMÁRIO:
- Nos termos do nº 3 do artº 759º do CPC, a impugnação dos créditos reclamados “pode ter por fundamentos qualquer das causas que extinguem ou modificam a obrigação ou que impedem a sua constituição; mas se o crédito estiver reconhecido por sentença ou decisão arbitral, a impugnação só pode basear-se em algum dos fundamentos mencionados nos artigos 697º ou 698º, na parte que forem aplicáveis”.
- O impugnante tem sempre o ónus da prova dos mesmos face ao disposto do nº 2 do artº 335º do C.C., nos termos do qual “A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.
O Relator,
Ho Wai Neng


Processo nº 54/2024
(Autos de recurso civil e laboral)

Data: 19 de Março de 2025
Recorrente: A (Credora)
Recorridos: MINISTÉRIO PÚBLICO (Credor)
B (Credor)
C (Executado)
D (Executado)
E (Exequente)

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – RELATÓRIO
Nos autos de execução movida pelo Exequente E contra os Executados C e D, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, tendo o crédito da Credora/Recorrente A sido graduado em último lugar.
Inconformada, interpôs aquela Recorrente recurso para Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Em 11/1/2024¸ o TSI negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Inconformada, a Recorrente interpôs o recurso para este Tribunal de Última Instância (TUI), alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
1. A Recorrente apresentou impugnações contra as quantias reclamadas pelos Recorridos E e B, impugnando expressamente todos os factos em que assentam os seus alegados direitos.
2. Deu, assim, cabal cumprimento ao seu ónus de impugnação em sede de impugnação de créditos.
3. A Recorrente impugnou vários documentos juntos pelo Recorrido E com o requerimento executivo, que constituem simples reproduções mecanográficas.
4. Invocação também a Recorrente a existência de negócio simulado por parte do Executado e dos Recorridos B e E.
5. Finalmente, a Recorrente alegou estarem em causa mútuos para jogo, como tal nulos.
6. O Acórdão Recorrido negou provimento ao recurso, com fundamento em que as dívidas do executado encontram-se tituladas por documentos autênticos que incorporam declarações confessórias, com força probatória plena, por força do disposto no artigo 351.º, n.º 2, do CC.
7. Em consequência, ainda no entender do Acórdão Recorrido, competia à Recorrente fazer a prova do contrário, o que não foi alcançado.
8. O Acórdão Recorrido confirmou, assim, ainda que por motivos diversos, a decisão proferida pelo TJB que decidiu as reclamações, indeferindo-as, no despacho saneador-sentença, com base no facto de a Recorrente não ter arguido a falsidade daqueles documentos autênticos.
9. O valor conferido pelo Acórdão Recorrido às declarações confessórias é errado, uma vez que o regime estabelecido no n.º 2 do artigo 351.º do CC apenas vale nas relações estabelecidas entre as partes.
10. Porém, a força probatória plena que à declaração confessória se reconhece não pode afectar os direitos de terceiros, que não são partes na declaração confessória.
11. No confronto de terceiros, cujos direitos são abalados pelo teor de declaração confessória, constante de escritura pública em que intervieram credor e devedor, não pode invocar-se o valor de prova plena de tal confissão extrajudicial.
12. Em reclamação de créditos baseada em confissão extrajudicial de dívida, sendo o reclamante/impugnante terceiro face a tal confissão, cabe ao exequente/reclamante impugnado o ónus da alegação e prova da existência do crédito reclamado, por aplicação do disposto no artigo 336.º, n.º 1, do CC.
13. Não competindo à Recorrente o ónus da prova do contrário, por se não aplicar o artigo 340.º do CC.
14. Sendo a confissão de dívida apresentada e invocada, por via da reclamação de créditos, perante um terceiro, a mesma é apreciada livremente pelo tribunal, conforme resulta do disposto no artigo 351.º, n.º 4, do CC.
15. Impugnados nestes termos os créditos dos Recorridos E e B, necessário é seguir os termos do n.º 2 do artigo 761.º do CPC, que impõe que se sigam os termos do processo ordinário de declaração posteriores aos articulados, para permitir aos Recorridos que façam prova dos seus créditos e à Recorrente que faça prova das excepções que invocou.
16. Isto porque os factos dados como provados, que se reportam, no que para esta questão releva, exclusivamente a declarações prestadas pelo Executado, não são suficientes para que se dêem como verificados os créditos dos Recorridos B e E.
17. O Acórdão Recorrido, na senda da sentença do TJB, viola o princípio do inquisitório (artigo 6.º, n.º 3 do CPC), do contraditório (artigo 3.º, n.º 3 do CPC), do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 1.º, n.º 2 do CPC), do direito à prova, por insuficiência de prova para a boa decisão e errada valoração da prova documental, por violação dos artigos 340.º, 351.º, n.º 4, 365.º, n.º 1, 366.º e 452.º do CC e ainda, por violação do disposto no artigo 429.º, n.º 1, al. b) (ex vi do artigo 761.º, n.º 2), ambos do CPC.
18. Existe ainda omissão de pronúncia, a qual gera a nulidade, por força do artigo 571.º, n.º 1, al. d) do CPC.
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O Credor B respondeu à motivação do recurso da Recorrente, nos termos constantes a fls. 431 a 434, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do mesmo.
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Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.
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II - FACTOS PROVADOS
Pela primeira instância foi dada como assente a factualidade nos termos constante a fls. 393 a 395 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
Entende a ora Recorrente que o TSI ao reconhecer a existência do créditos do Exequente E e o Credor B com fundamento na força probatória plena da confissão extracontratual do Executado C, cometeu um erro de julgamento, já que a confissão da dívida só vale nas relações entre as partes, não se vincula, portanto, o impugnante terceiro.
Por outro lado, defende que como impugnante terceiro, não tem o ónus de alegar e provar a inexistência dos créditos impugnados.
Adiantamos desde já que não lhe assiste razão.
É certo que ela é um terceiro tanto na relação entre o Exequente E e o Executado C, como entre o Credor B e o Executado C.
No entanto, não podemos esquecer que o que está em discussão é saber se os créditos do Exequente E e do Credor B existem ou não.
Ou seja, saber se o E e o B são ou não credores do Executado C.
Nesta conformidade, a confissão deste último constante das escrituras públicas tem força probatória plena para comprovar a existência das dívidas a favor do Exequente E e do Credor B.
Estabelece o nº 1 do artº 365º, nº 1 do C.C. que “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade, oficial público ou notário respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentados só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.
No caso em apreço, o notário atestou a declaração confessória do Devedor C, bem como a sua vontade de constituir hipoteca sobre as fracções autónomas em causa para garantir as dívidas por si contraídas.
É certo que as declarações de vontade do Devedor C possam não ser verdadeiras, ou até poder haver simulação das partes. Só que para efeitos da impugnação, não basta mera suspeição, é necessário justificar a razão da impugnação.
Pois, nos termos do nº 3 do artº 759º do CPC, a impugnação dos créditos reclamados “pode ter por fundamentos qualquer das causas que extinguem ou modificam a obrigação ou que impedem a sua constituição; mas se o crédito estiver reconhecido por sentença ou decisão arbitral, a impugnação só pode basear-se em algum dos fundamentos mencionados nos artigos 697º ou 698º, na parte que forem aplicáveis”. (o realçado e o sublinhado são nossos)
Ora, sendo factos extintivos, modificativos ou impedidos da constituição dos créditos, o impugnante tem sempre o ónus da prova dos mesmos face ao disposto do nº 2 do artº 335º do C.C., nos termos do qual “A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.
Aliás, não se deve esquecer que a acção executiva movida pelo Exequente E tem por base um título executivo exequível, pelo qual se determina o seu fim e os seus limites.
Por outro lado, a reclamação do crédito do Credor B também é feita, nos termos do nº 2 do artº 758º do CPC, por base um título exequível.
Para JOSÉ LEBBRE DE FREITA1, “o título extrajudicial ou judicial impróprio é um documento que constitui prova legal para fins executivos e que a declaração nele representada tem por objecto o facto constitutivo do direito de crédito ou é, ela própria, este mesmo facto”.
Ao nível da jurisprudência comparada, o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, por acórdão de 4/4/2024, proferido no Proc. nº 18679/21.8T8SNT-A.L1.S12, entendeu que:
I. O acertamento é o ponto de partida da acção executiva, pois a realização coactiva da prestação pressupõe a anterior definição dos elementos (subjectivos e objectivos) da relação jurídica de que ela é objecto. O título executivo contém esse acertamento; daí que se diga que constitui a base da execução, por ele se determinando «o fim e os limites da acção executiva», isto é, o tipo de acção e o seu objecto.
II. O reconhecimento de dívida e a promessa de cumprimento sem indicação da causa da constituição da obrigação, referidos no artº 458º do CC, têm como efeito a presunção da existência de uma relação fundamental (de uma fonte constitutiva de uma obrigação). Trata-se, assim, de um negócio jurídico com mera eficácia declarativa, limitada à inversão do ónus da prova.
III. Ou seja, ali, o credor fica dispensado de provar é a existência de relação fundamental, de causa para a dívida, uma vez que se presume que a dívida tem uma causa, é causal. Mas já não se presume qual seja essa causa em concreto e/ou a respectiva validade (motivo pelo qual, tendo presente o princípio da proibição dos negócios abstractos, se entende que o credor deve indicar a causa, não carecendo é de a provar).
IV. Porém, o artigo 458.º do Código Civil apenas se refere à situação em que alguém reconhece uma dívida sem indicar a relação que está na origem da dívida, já não às situações em que na declaração o devedor enuncia expressamente a causa da dívida reconhecida. E isso é assim porque se o devedor indica a causa da dívida reconhecida já não é necessário presumir a sua existência, pois a mesma resulta da própria declaração de dívida.
V. Neste último caso, estar-se-á perante um negócio celebrado com fim de pacificação, que não terá carácter apenas declaratório, mas também constitutivo, na medida em que a parte renuncia a discutir a verificação de pressupostos ou a oponibilidade de excepções ao vínculo obrigacional, que reconhece ter sido constituído por aquela via.
VI. Com efeito, se perante uma declaração unilateral onde não se indica nenhuma relação fundamental o credor fica dispensado de provar a existência de relação fundamental, de uma causa para a dívida, o mesmo deve acontecer, por maioria de razão, nos casos em que no documento se indica uma relação fundamental, caso em se deverá presumir não que a dívida tem uma causa, mas que a dívida tem a causa indicada.
VII. Face ao disposto no art. 457º do CC, a celebração deste negócio só pode ser admitida com base na liberdade contratual (art. 405º CC), constituindo neste caso um contrato análogo à transacção (art. 1248º CC), o qual por isso nem sequer deverá admitir que a parte faça prova da inexistência da obrigação.
VIII. Assim, se no requerimento executivo, a exequente indica que o seu crédito provém de um contrato de compra e venda de acções - contrato cuja existência tenta provar nos embargos – mas no título dado à execução, denominado “Confissão de dívida”, se menciona que esta promana de um empréstimo (sem alusão sequer a uma outra relação que porventura tivesse justificado esse empréstimo), esta divergência tem consequências decisivas sobre a viabilidade da execução: a exequente, tendo-se colocado fora (à margem) do declarado na "confissão" quanto à origem do crédito e à natureza da relação fundamental, não pode gozar da presunção do art. 458.º quanto à existência e prova dessa (outra) relação - ao que acresce que não pode ser feita prova de que afinal a relação subjacente não é aquela que é indicada no documento escrito com recurso a prova testemunhal.
IX. Nessas circunstâncias, a declaração confessória plasmada no título executivo faz prova plena do facto confessado (ex vi artigos 352.º, 358.º, n.º 2, 375.º, n.º 1, 371º, nº1 (se documento autêntico) e 376.º (se documento particular), do Código Civil). Prova plena essa que só pode ser revertida mediante a arguição e prova da falsidade do documento, ou através de meio de prova que demonstrasse não ser verdadeiro esse facto (artigo 347.º do CC).
Assim, com base nos títulos executivos juntos nos autos, pressupõe, à partida, a existência dos créditos, daí que é lógica e natural cabe ao impugnante alegar e provar os factos extintivos, modificativos ou impedidos da constituição dos mesmos, tal como o executado nos embargos à execução.
Face ao expendido, o recurso da ora Recorrente não deixará de se julgar improvido.
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IV – DECISÃO
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
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Custas pela Recorrente.
Registe e notifique.
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RAEM, aos 19 de Março de 2025.
Juízes : Ho Wai Neng
Song Man Lei
José Maria Dias Azedo





1 «A Acção Executiva – À luz do Código Revisto», Coimbra Editora, 3.ª edição, pag. 57.

2 in www.dgsi.pt.
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