Processo nº 17/2021(II)
(Autos de recurso civil e laboral)
(Incidente)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em sede dos presentes Autos de Recurso Civil e Laboral, e por Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 29.07.2024, deliberou-se “conceder provimento aos recursos dos (1ª e 2°) RR., (R.A.E.M. e I.A.M.), revogando-se o Acórdão recorrido com a consequente total improcedência da acção pela A. proposta e procedência dos pedidos reconvencionais deduzidos nos seus exactos termos consignados”; (cfr., fls. 3610 a 3687 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Notificada do assim decidido, e em tempo, apresentou a A. e recorrida, “A”, (“甲”), expediente com o qual veio arguir “nulidades” várias que imputou ao dito aresto, pedindo, também, “esclarecimentos” diversos; (cfr., fls. 3696 a 3743).
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Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre decidir.
Fundamentação
2. Entende a ora requerente que o aludido Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 29.07.2024 padece da nulidade – prevista no art. 571°, n.° 1, al. b) do C.P.C.M. – por nele não se ter especificado os fundamentos de direito que justificam “a decisão-fundamento de julgar concluída a expropriação foi operada pela Portaria n.° 195, publicada no Boletim Oficial de Macau n.° 38, de 21 de Setembro de 1918”; (cfr., fls. 3741 a 3742).
Por outro lado, entende a mesma arguente que os fundamentos do dito Acórdão se encontram em “oposição” com algumas das decisões nele subscritas, (padecendo, nessa medida, do vício identificado no art. 571°, n.° 1, al. c) do mesmo C.P.C.M.).
Mais entende que o aludido Acórdão padece também do vício previsto no art. 571°, n.° 1, al. b) do dito Código, por nele não se ter justificado de facto e de direito a decisão de declarar nula a “escritura pública de habilitação dos herdeiros de H”, imputando, ainda, o vício de “falta de fundamentação”, na medida em que, em sua opinião, o Acórdão em questão, não especifica, ou fundamenta, de que forma foi a área de 20.263m2 afecta ao “domínio público da R.A.E.M.”, apresentando, igualmente, vários “pedidos de esclarecimento”, que requer sejam atendidos ao abrigo da faculdade conferida pelo art. 572° do C.P.C.M..
Respondendo, entende o Ministério Público, em representação da 1ª R. – REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU, (R.A.E.M.) – que a reclamação carece de fundamento, devendo ser totalmente indeferida.
No mesmo sentido, o 2° R. – INSTITUTO PARA OS ASSUNTOS MUNICIPAIS, (I.A.M.) – entende que devem ser julgadas improcedentes as nulidades invocadas, assim como indeferidos os pedidos de esclarecimento apresentados.
Da análise e reflexão que sobre o decidido e ora alegado nos foi possível efectuar, somos de opinião que à recorrida, ora requerente, não assiste razão.
Eis o porque deste nosso entendimento.
2.1 Começando-se pelas imputadas “nulidades”, vejamos da alegada “nulidade invocada ao abrigo do art. 571°, n.° 1, al. b) do C.P.C.M.”.
Após uma extensa e prolongada excursão pelos antecedentes do presente processo – onde faz uma análise detalhada sobre as decisões tomadas nas diversas Instâncias, formulando, a título incidental, alguns pedidos de esclarecimento – identifica a ora requerente o que entende consubstanciar a sua invocada nulidade prevista no art. 571°, n.° 1, al. b) do C.P.C.M., por alegada “falta de fundamentação do Acórdão”, afirmando o que de seguida se transcreve:
“III. DA NULIDADE DO ACÓRDÃO EM APREÇO POR NÃO ESPECIFICAR OS FUNDAMENTOS DE DIREITO DA EXPROPRIAÇÃO OPERADA PELA PORTARIA N.° 195, PUBLICADA NO BOLETIM OFICIAL DE MACAU N.O 38, DE 21 DE SETEMBRO DE 1918
(…)
Fechando o parêntesis e prosseguindo, repita-se que a expropriação não foi fundamento nem premissa das decisões tomadas pelas duas Instâncias Recorridas - que decidiram que a A. era a proprietária do Terreno excepto das Partes do Terreno Ocupadas pela 1ª R. por as mesmas terem sido ocupadas, em 1994, com a construção das estradas de acesso à Ponte da Amizade, integrando, assim, o domínio público da RAEM -, que, por essa razão, conheceram da (alegada) “expropriação operada pela Portaria n.o 195” - salvo o devido respeito, mal -, lateralmente, e apenas no âmbito da decisão sobre a matéria de facto.
Ora, é inegável que o fundamento da decisão final contida no acórdão em apreço é a “expropriação operada pela Portaria no 195, publicada no Boletim Oficial de Macau n.o 38, de 21 de Setembro de 1918” e os efeitos que ali se entende - salvo o devido respeito, em manifesto erro de julgamento - aquela ter produzido.
Com efeito, e como já se viu, resulta expressamente do acórdão em apreço que o Venerando Tribunal de Última Instância julgou improcedente a acção de reivindicação da A. e procedentes os “pedidos reconvencionais” dos RR.”, por ter entendido, nos exactos termos da resposta dada ao quesito 18o da Base Instrutória em sede de decisão da matéria de facto, e apenas nestes, que o Terreno foi afecto ao domínio da RAEM por força da conclusão do processo expropriativo,
e que, consequentemente, todos os negócios jurídicos subsequentes que tiveram por objecto o Terreno, são nulos por falta de objecto ao abrigo do disposto no artigo 273º, n.o 1 do Código Civil.
Porém, o acórdão em apreço não dispensa uma linha sequer à especificação dos fundamentos de direito que justificaram a conclusão de que a “expropriação operada pela Portaria no 195” foi efectivamente concluída nos termos da lei aplicável, designadamente à luz da Carta de Lei de 23 de Julho de 1850 (doravante a “Carta de Lei”), bastando-se, para tanto, com a resposta dada ao quesito 18º da Base Instrutória.
Salvo o devido respeito, é incompreensível que tanto a A. como os RR. suscitem questões relacionadas com a aplicação do direito aos factos em matéria da “expropriação operada pela Portaria no 195”, e o acórdão em apreço não especifique, de todo, e em violação do dever de fundamentar a decisão previsto no artigo 108º do CPC, os fundamentos de direito da questão chave que serve de fundamento à decisão que tomou e que veio ditar uma solução distinta da julgada em dupla conformidade pelas duas doutas Instâncias Recorridas.
Mais. Ainda que nenhuma das partes tivesse suscitado nas suas alegações e contra alegações de recurso questões relacionadas com a aplicação do direito aos factos em matéria da “expropriação operada pela Portaria no 195”, sempre o acórdão em apreço teria de especificar os fundamentos de (facto e de) direito, sob pena de nulidade, o que consabidamente não fez.
Em face do que vem a A. arguir a nulidade do acórdão em apreço prevista na alínea b) do n.o 1 do artigo 571º do CPC, por este não especificar os fundamentos de direito que justificaram a decisão de julgar concluída a “expropriação operada pela Portaria no 195””; (cfr., fls. 3725 a 3728).
A esta alegação respondeu a 1ª R., (R.A.E.M.), nos termos seguintes:
“Na verdade, as instâncias reconheceram, ambas, que o terreno reivindicado foi expropriado e, por isso, partiram ambas do pressuposto de que a aquisição da Reclamante foi a non domino.
O Tribunal de Última Instância confirmou este entendimento. É dizer, confirmou que o terreno aqui em causa havia sido objecto de expropriação pelo então Governo da Província de Macau, antecessora da RAEM.
Não podia, aliás, estamos modestamente em crer, ser de outra forma, em especial face ao teor da resposta ao quesito 18.º da base instrutória [esse teor é o seguinte: «O Terreno foi afecto ao domínio da RAEM por força da conclusão do processo expropriativo aludido em h) a l)»].
É certo que a Reclamante insiste em que a dita resposta ao dito quesito 18.º da base instrutória não podia ser considerada por ser conclusiva e conter matéria de direito. A verdade, no entanto, é que, o Tribunal de Última Instância, bem, não acolheu este entendimento da Reclamante, como decorre, expressamente, de páginas 63 e 64 do douto acórdão reclamado. É claro, concedemos, que a Reclamante pode não estar convencida e continuar a discordar desta decisão do Tribunal de Última Instância. O ponto é que essa decisão, além de, substancialmente, ser de acerto indiscutível, é, do ponto de vista processual, insusceptível de impugnação.
Assim, estando assente em todas as instâncias que o terreno foi objecto de expropriação e adquirido, pois, por essa via de direito público, pela antecessora da RAEM, tudo estava em saber se a posição substantiva da Reclamante enquanto adquirente a non domino – ponto sobre o qual também todas as instâncias convergem – merecia ou não tutela por força das regras do registo predial e, em especial, da norma do artigo 284.º do Código Civil.
Ora, foi justamente neste ponto crucial que o Tribunal de Última Instância, repondo o bom direito, se afastou daquilo que tanto o TJB como o TSI haviam decidido, tendo concluído no sentido da improcedência da acção e da procedência da reconvenção deduzida pela RAEM.
Tudo isto resulta com clareza meridiana do douto acórdão reclamado pelo que, a nosso ver, e salvo o respeito que é devido, o pedido de esclarecimento deduzido pela Reclamante, neste ponto, carece, em absoluto, de qualquer fundamento.
II.
Além disso, o douto acórdão não sofre de nulidade por não especificar os fundamentos de direito da expropriação. Cremos, aliás, com o devido respeito, que a Reclamante incorre num evidente equívoco.
Com efeito, o Tribunal de Última Instância enunciou, abundantemente, os fundamentos da decisão que proferiu, ou seja, a decisão de que a RAEM adquiriu, por expropriação, o direito de propriedade sobre o terreno em causa. É isso, e apenas isso, que releva na perspectiva da aferição da existência/suficiência da fundamentação da decisão.
Contrariamente ao que a Reclamante sustenta, parece-nos que a expropriação importa apenas como como facto aquisitivo do direito de propriedade que constituiu a causa de pedir do pedido reconvencional. Daí que, ao invés do alegado pela Reclamante, não carecesse o Tribunal de Última Instância, no douto acórdão reclamado, fundamenta de direito essa expropriação”; (cfr., fls. 2753-v a 3754-v)
Por sua vez, teceu o 2° R. (I.A.M.) as seguintes considerações acerca da alegada nulidade:
“3. Com o devido respeito, o pedido formulado na al. a) deve ser indeferido, porquanto:
4. Segundo os factos assentes indicados no Despacho Saneador, está provado que "No Boletim Oficial de Macau nº 38 de 21.09.1918, o Governo da Província de Macau publicou a Portaria nº 195, com o teor constante do documento junto a fls. 259 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido" (Ponto i dos factos assentes, v.g. fls. 459v dos Autos e pág. 52 do Acórdão do TUI)
5. Após a audiência do julgamento, o TJB considerou provado o Quesito 18 da Base Instrutória, concretamente: "O Terreno foi afecto ao domínio da RAEM por força da conclusão do processo expropriativo aludido em h) a l)" (v.g. fls. 1887 dos Autos e pág. 53 do Acórdão do TUI).
6. É evidente que o TUI fez a sua análise jurídica a partir destes factos, pois está expressamente escrito no Acórdão do TUI o seguinte:
"Pois bem, recordando-se o que atrás se deixou transcrito do art. 6º e 103º da Lei Básica da R.A.E.M. - tendo-se também presente o estatuído no art. 1º da Lei n. º 12/92/M, que desenvolve o "Regime das Expropriações por Utilidade Pública", onde no seu n.º 2 se prescreve que "Os bens imóveis e direitos a eles inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública, mediante o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização", e provada estando a matéria de facto onde se diz que "O Terreno foi afecto ao domínio da RAEM por força da conclusão do processo expropriativo aludido em h) a l)"" (v.g. pág. 118 do Acórdão do TUI, sublinhado nosso)
7. Quanto ao efeito jurídico da expropriação supra referida, isto é uma questão de direito e, segundo o disposto do artigo 567.º do CPC, o TUI tem toda a liberdade na aplicação da lei.
8. Assim sendo, mesmo que as Partes, o TJB e o TSI tivessem os seus entendimentos jurídicos sobre os factos provados, o TUI é livre de aplicar o direito como entender que é mais adequado ao caso concreto.
9. No presente caso, o TUI transcreveu as posições do TJB e do TSI relativamente ao terceiro de boa-fé (v.g. pag. 126 e 127 do Acórdão do TUI).
10. A seguir, o TUI para mostrar a sua desconcordância sobre o que tinha sido decido pelo TSI indicou o seu entendimento sobre o terceiro e a aquisição tabular (pág. 128 a 1 34 do Acórdão do TUI) e sobre a expropriação (pág. 134 a 138 do Acórdão), nomeadamente, diz-se o TUI o seguinte:
"E, por sua vez, e como sabido já é, a "expropriação", como forma de "aquisição originária", implica, por um lado, a extinção definitiva do direito de propriedade existente, constituindo-se, (posteriormente), um "novo direito a favor da entidade expropriante", obtendo o expropriante uma posição "independente" sobre a coisa, não estando "sujeito, portanto a vê-la amanhã atingida por obrigações de terceiros, ou até extinta, por actuação de uma causa de invalidade ou de resolução. (...) As excepções que beneficiariam terceiros não são oponíveis"; (cfr., v.g., José de Oliveira Ascensão in, "Direito Civil - Reais", 5ª ed, pág. 403).
Basta aliás ver que a "expropriação" surge no art. 9º, n. º 4 do mesmo C.R.P. como uma "excepção ao princípio da legitimação", visto que é (totalmente) irrelevante se o proprietário do imóvel a ser expropriado é, ou não, verdadeiramente, aquele que consta da inscrição, pois que, como se viu, a expropriação irá extinguir todos os direitos reais existentes sobre o imóvel, (não estando em causa o que normalmente sucederia com uma "aquisição derivada")." (v.g. pag. 134 e 135 do Acórdão do TUI, sublinhado nosso)
11. Diz ainda o TUI que
"Com efeito, não se podem, pois, confundir duas coisas - bem - distintas: o facto de se poder registar uma "usucapião", ou "expropriação", não significa que tais factos só sejam oponíveis após o registo." (v.g. pag. 136 do Acórdão do TUI, sublinhado nosso)
12. A seguir, o TUI chega à conclusão seguinte:
"Em suma (e como cremos que bem se vê), para a "resolução" do problema (jurídico) dos autos, acaba por ser irrelevante a discussão doutrinária sobre o conceito - "restrito" ou "amplo" - de "terceiros" porquanto essa discussão apenas ocorre dentro de um quadro conflitual de "aquisições derivadas", o que não é, (manifestamente), o caso dos autos, pois que, uma "aquisição originária" como sucedeu com a ocorrida "expropriação", ao destruir todas as situações substantivas e/ou registrais, prevalece, sempre, ainda que não registada, sobre "aquisições derivadas", uma vez que na aquisição originária o registo é meramente "enunciativo" (v.g. pag. 138 do Acórdão do TUI, sublinhado nosso)
13. Assim sendo, ao contrário ao entendimento da Recorrida, o TUI especificou os seus fundamentos de direito para a decisão que tomou, alicerçando-a na expropriação operada pela Portaria n.º 195, pelo que não existe o vício previsto na alínea b), n.º 1 do artigo 571.º do CPC”; (cfr., fls. 3758 a 3760).
Vejamos.
Como cremos que se deixou exposto, entende a ora requerente que este Tribunal de Última Instância não fundamentou a sua decisão que reconheceu a aquisição originária do direito de propriedade sobre o terreno em questão por via da expropriação por parte do antecessor da R.A.E.M..
Ora, não cremos que assim seja.
Nos termos do art. 571° do C.P.C.M., (e sob a epígrafe de “Causas de nulidade da sentença”):
“1. É nula a sentença:
a) Quando não contenha a assinatura do juiz;
b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão;
d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
2. A omissão prevista na alínea a) do número anterior pode ser suprida oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, declarando o juiz no processo a data em que apôs a assinatura; a nulidade pode ser sempre arguida no tribunal que proferiu a sentença.
3. As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário; no caso contrário, o recurso pode ter como fundamento qualquer dessas nulidades”.
Pronunciando-se sobre o assim preceituado, nota Viriato Lima – in “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., C.J.F.F., 2018, pág. 567 a 568 – que:
“As nulidades da sentença - que não se confundem com as nulidades de processo, ou nulidades dos actos processuais, previstas nos artigos 139.° e seguintes - são unicamente as previstas no artigo 571.°, n.° 1.
Assim, enquanto em matéria de nulidade de actos processuais, em geral, vigora o princípio da atipicidade (artigo 147.°, n.° 1), para a nulidade das decisões judiciais vigora o princípio da tipicidade”, salientando, mais adiante, que “Importa esclarecer que a nulidade da alínea b) (quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão) só se verifica na ausência total de fundamentação.
Se a fundamentação é deficiente ou incompleta, não há nulidade. A sentença será então, ilegal ou injusta, podendo da mesma ser interposto recurso, nos termos gerais.
(…)”; (neste sentido, pode-se ainda ver os Acs. deste T.U.I. de 14.07.2004, Proc. n.° 21/2004 e de 16.01.2008, Proc. n.° 5/2007).
Sobre a mesma matéria, também o recente Acórdão do S.T.J. de 24.01.2024, Proc. n.° 2529/21, considerou que:
“Entre as causas de nulidades da sentença, enumeradas taxativamente no artigo 615.º, n.º 1, do CPC, não se incluem o “chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra Editora, 1985, pág. 686).
Na verdade, como se sabe, as nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa, como este Supremo Tribunal tem reiteradamente declarado (v.g. Ac. do STJ de 10.12.2020, proc. n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, 7.ª Secção)”.
E, relativamente, à pela ora requerente agora assacada “nulidade”, afirma igualmente esta Alta Instância que a mesma “só ocorre quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto e/ou de direito das decisões, não abrangendo as eventuais deficiências dessa fundamentação”.
Isto dito e visto, e ocupando-se agora do que pela requerente vem alegado, cabe consignar que a questão da “aquisição do terreno por expropriação” está “factualmente” assente nos presentes autos desde Julho de 2014, quando, nos termos do art. 556° do C.P.C.M., se julgaram – entre outros – os seguintes factos como “provados”:
“18.º
O terreno foi afecto ao domínio da RAEM por força da conclusão do processo expropriativo aludido em H) a M)?
Provado.
19.º
Sabendo que na sequência dos editais aludidos em L), nenhum interessado se apresentou a deduzir direitos sobre o Terreno?
Provado”, sendo de salientar que se consignou no Acórdão relativo à decisão sobre a matéria de facto e a título de sua fundamentação que: (…) tendo o terreno sido expropriado – como resulta das alíneas H) a L) e da resposta dada aos itens 18º e 19º –, tendo a posse do mesmo sido conferida à Fazenda Pública, uma vez que os registos de aquisição por sucessão só são feitos em 1997, sem prejuízo do terreno ter continuado inscrito no registo predial a favor do anterior dono e expropriado, as questões sobre a titularidade do mesmo só surgem quando se apresentam particulares a reivindicar o terreno por o terem adquirido a herdeiros daquele. Provando-se que o processo de expropriação se concluiu e que a posse do terreno a favor do território adveio daquele processo, terá forçosamente que se concluir o facto contrário, ou seja, ocupação com título e desconhecimento que o terreno estava no domínio privado”, tendo-se acrescentado ainda que: “[q]uanto aos itens 18º e 19º a convicção do tribunal resulta do traslado dos autos cíveis de expropriação com o n.º 1114/1919 o qual se consultou”; (cfr., fls. 1884 a 1892-v, notando-se que nas ditas “alíneas H) a L)”, estava igualmente assente que:
h) No Boletim Oficial de Macau nº 11, de 16 de Março de 1918, a Administração do Concelho da Taipa e Coloane, publicou um edital, com o teor constante do documento de fls. 258 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
i) No Boletim Oficial de Macau nº 38 de 21.09.1918, o Governo da Província de Macau publicou a Portaria nº 195, com o teor constante do documento junto a fls. 259 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
j) No Boletim Oficial nº 40, de 5 de Outubro de 1918, o Governo da Província de Macau publicou a Portaria nº 210, com o teor constante do documento junto a fls. 260 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
k) Em 10 e 17 de Janeiro de 1920 (Boletim Oficial de Macau nº 2 e 3, respectivamente) foram publicados Éditos, por ordem do Juízo de Direito da Comarca de Macau, citando quaisquer interessados que se julgassem com o direito a “um terreno com a área de 24.482m2, sito na ilha da Taipa, para dentro do prazo dos éditos virem deduzir os seus direitos sob pena de findo aquele prazo o mesmo terreno ser adjudicado livre e desembaraçado à Fazenda Nacional expropriante e a respectiva indemnização paga ao expropriado H dono do referido terreno”;
l) A Portaria 5.971 foi publicada no Boletim Oficial nº 7, de 16 de Fevereiro de 1957 com o teor constante do documento junto a fls. 173 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido”).
A ora requerente, bem sabendo que tais “questões de facto” não podiam ser impugnadas perante este Tribunal de Última Instância – em face do estatuído no art. 649° do C.P.C.M. – ainda assim tentou provocar o conhecimento (incidental) de tal matéria nos termos do art. 590°, n.° 2 do dito C.P.C.M., o que mereceu a seguinte pronúncia no Acórdão em questão:
“–– Da pela A. requerida “ampliação do recurso”.
Em sede da sua resposta ao recurso da 1ª R., (R.A.E.M.), pretende a A. que nos termos do art. 549°, n.° 2 do C.P.C.M., se dê como “não escrita” a resposta ao “quesito 18° da Base Instrutória”, considerando estar em causa matéria “conclusiva” e de “direito”; (cfr., concl. XLII e segs. da sua resposta ao recurso apresentado pela 1ª R., R.A.E.M.).
Não obstante o facto da A. ter requerido a “ampliação do âmbito do recurso” a título subsidiário na sua resposta às alegações de recurso apresentado pela 1ª R., por uma razão de ordem sistemática procede-se desde já à apreciação desta matéria, pois a questão em si apresenta-se relevante para a decisão da questão de direito em discussão nos autos.
Nesta conformidade, vejamos.
Pretende a A. que se dê como “não escrito”, (ou “não provado”), que o “processo expropriativo foi concluído”, e, como tal, que “não teria havido expropriação”.
Ora, dispõe o art. 590° do C.P.C.M. que:
“1. Se forem vários os fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
2. Pode ainda o recorrido, na respectiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnada pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.
3. Na falta dos elementos de facto indispensáveis à apreciação da questão suscitada, pode o tribunal de recurso mandar baixar os autos, a fim de se proceder ao julgamento no tribunal onde a decisão foi proferida”.
E, antes de mais, importa atentar no sentido alcance da faculdade concedida pelo transcrito n.° 2 do art. 590°.
Pois bem, como nota Lopes do Rego, tal norma surge na sequência da “substancial ampliação dos poderes de cognição da Relação quanto à matéria de facto, consequentes ao regime estabelecido no DL n.º 39/95, [que] ditou a necessidade de se facultar identicamente ao recorrido a ampliação do âmbito do recurso, de modo a poder este questionar a solução dada a certos pontos da matéria de facto.
Pode, na realidade, suceder que a acção (ou a defesa) tenha sido julgada procedente apesar de o tribunal não ter considerado provada toda a matéria de facto alegada pela “parte vencedora” – designadamente, porque entendeu que os factos provados eram, só por si, suficientes para alcançar o efeito jurídico pretendido por quem os havia alegado; ora, se a parte vencida impugnar perante a Relação tal entendimento da “fattispecie” normativa em que assentou a procedência da acção ou da defesa, teria necessariamente de se reconhecer à parte vencedora a possibilidade de – a título subsidiário – ampliar o âmbito do recurso interposto pela parte contrária, de modo a abarcar a decisão proferida sobre o segmento da matéria de facto que a 1.ª instância havia considerado “não provada”. Na verdade, se assim não fosse, ficaria tal parte, apesar de vencedora na 1.ª instância, indefesa perante um possível e eventual entendimento diverso da Relação, que se não bastasse – para alcançar o efeito jurídico pretendido – com a parcela da matéria de facto que o tribunal considerou provada”; (in “Comentários ao C.P.C.”, Vol. I, 2ª ed., 2004, pág. 575).
No mesmo sentido considera também Fernando Amâncio Ferreira que: “Pode, com efeito, acontecer que nem toda a matéria de facto alegada pela parte vencedora, em apoio da sua pretensão, tenha sido considerada como provada pelo tribunal de 1.ª instância, não obstante este ter entendido que a julgada como provada era suficiente à obtenção do efeito jurídico por aquela visado; ora, se o recorrente questionar esta suficiência, pode o recorrido, a título subsidiário, impugnar a decisão sobre o segmento da matéria de facto que o tribunal a quo considerou como não provado”; (in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9ª ed., pág. 164).
E, assim, (e como, em nossa opinião, se apresenta claro), evidente é que em causa não está um “facto pela A. alegado em apoio da sua pretensão” que tenha ficado “não provado”, mas, antes (e muito pelo contrário), “matéria alegada e provada pela 1ª R., R.A.E.M., enquanto fundamento da sua defesa e do seu pedido reconvencional”.
Com efeito, está assente nos autos que houve uma “expropriação a favor da 1ª R.”, sendo essa a (verdadeira) razão que levou as Instâncias recorridas a considerar que a acção proposta pela A., era, (somente), “parcialmente procedente”, não se tendo assim condenado a dita 1ª R. a reconhecer a A. como “proprietária do terreno” nem tão pouco a lhe “devolver o mesmo terreno”.
Esta “decisão”, na sequência da sua confirmação pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, e na falta de recurso – “independente” ou “subordinado” – da A., (como é a situação dos autos), transitou em julgado, consolidou-se na ordem jurídica, e tornou-se, assim, “definitiva”.
E, nesta conformidade, claro se nos mostra que não podia a A. recorrer ao aludido (mecanismo do) art. 590° para vir colocar em causa a “resposta positiva” dada a um facto que fundamentou a “improcedência parcial” da acção por si movida.
Com efeito, e como se apresenta igualmente evidente, não pode pois a A. recorrer agora ao dito art. 590°, n.° 2, quando, na verdade, o que realmente pretende, é atacar a convicção do Tribunal quanto a matéria de facto que fundamentou o trecho decisório que lhe foi desfavorável, pois que a parte simultaneamente vencedora e vencida, que não interpôs recurso independente ou subordinado, não pode, através da ampliação do âmbito do recurso, visar a alteração da decisão recorrida na parte em que ficou vencida.
Isto dito, outra nota se mostra de consignar.
É a seguinte.
De todo o modo, (e seja como for), não nos parece igualmente que a resposta dada ao “quesito 18°” da Base Instrutória – segundo o qual “O Terreno foi afecto ao domínio da R.A.E.M. por força da conclusão do processo expropriativo aludido em h) a l)” – consubstancie “matéria conclusiva” ou de “direito”.
Com efeito, embora se tenha utilizado termos com alguma “carga jurídica”, (como é o caso de “domínio”), o certo é que o Tribunal Judicial de Base considerou dois elementos (claramente) “factuais” e “objectivos” na resposta ao quesito em causa: por um lado, que o “processo expropriativo” aludido noutras alíneas tinha sido “concluído”, e, por outro, qual a “entidade expropriante”, sendo que, no caso, está perfeitamente claro que a expropriação levou a que o Terreno se integrasse no “domínio da 1ª R., R.A.E.M.”.
Não se vislumbra assim que a “matéria” em questão se apresente como uma “resposta conclusiva ou de direito”, (apesar da utilização de elementos com alguma carga jurídica), já que, o que rigorosamente em causa estava era simples: tão só saber se o processo de expropriação tinha sido “concluído” e quem tinha sido a “entidade expropriante”, pelo que (também por aí), inegável se mostra a improcedência desta questão”; (cfr., pág. 58 a 64 do aludido Ac.).
E, atento o que se deixou transcrito, (que, ainda que após nova reflexão, se nos mostra de manter na sua íntegra), pouco mais se julga de acrescentar.
Com efeito, e como é claro e sabido, ressalvadas notórias excepções, a este Tribunal de Última Instância é vedado proceder à “alteração da matéria de facto”; (cfr., o já referido art. 649° do C.P.C.M.).
E, como nos parece bastante evidente, o conhecimento da existência, ou não, de um “processo de expropriação”, não deixa de constituir uma “questão de facto”, (pois que, doutra forma, não se poderia valer a R.A.E.M. das suas consequências a nível de “direito”, as quais, naturalmente, se extraíram, como resulta de pág. 75 e segs. do aludido Acórdão, para onde, devido à sua extensão, agora se remete).
Seja como for, e em abono da verdade, sempre se mostra de acrescentar que resulta – cristalinamente – dos elementos constantes dos presentes autos que a única “questão” levantada pelo anterior proprietário em sede do “processo de expropriação” foi a relativa ao seu “valor indemnizatório”, tendo o Acórdão do então Tribunal da Relação de Goa decidido tal questão com trânsito em julgado em 22.07.1919; (cfr., o teor da certidão de fls. 733 e segs., numa altura em que já se encontrava depositado o montante da indemnização devida e em que já havia sido dada posse de facto do dito terreno à expropriante para começar os trabalhos de construção da então carreira de tiro, a quem o mesmo foi adjudicado; cfr., fls. 745).
Dest’arte, notando-se também que os presentes autos – de natureza civil – não serão certamente o “meio idóneo”, (e oportunamente adequado), para se tentar pôr em causa a validade de um “acto administrativo” – praticado há mais de um século atrás – visto se nos apresenta que dúvidas não parecem restar de que o fundamento de direito da decisão final adoptada pelo Tribunal de Última Instância é (perfeitamente) inteligível para a própria requerente, como, aliás, resulta claramente da seguinte passagem da sua arguição (que atrás também já se deixou transcrita):
“Ora, é inegável que o fundamento da decisão final contida no acórdão em apreço é a "expropriação operada pela Portaria nº 195, publicada no Boletim Oficial de Macau n.º 38, de 21 de Setembro de 1918" e os efeitos que ali se entende - salvo o devido respeito, em manifesto erro de julgamento - aquela ter produzido.
Com efeito, e como já se viu, resulta expressamente do acórdão em apreço que o Venerando Tribunal de Última Instância julgou improcedente a acção de reivindicação da A. e procedentes os "pedidos reconvencionais" dos RR.", por ter entendido, nos exactos termos da resposta dada ao quesito 18º da Base Instrutória em sede de decisão da matéria de facto, e apenas nestes, que o Terreno foi afecto ao domínio da RAEM por força da conclusão do processo expropriativo,
e que, consequentemente, todos os negócios jurídicos subsequentes que tiveram por objecto o Terreno, são nulos por falta de objecto ao abrigo do disposto no artigo 273º, n.º 1 do Código Civil.
(…)”; (cfr., fls. 3727).
Admite-se, obviamente, que a ora requerente possa discordar do por este Tribunal de Última Instância decidido.
Porém, adequado não parece que se considere que não está (perfeitamente) ciente dos “fundamentos de facto” e de “direito” que determinaram a procedência dos pedidos reconvencionais, salientando-se também que a dita discordância, não constitui – certamente – o vício que considera e alega existir.
Continuemos.
2.2 Da alegada “nulidade invocada nos termos do art. 571°, n.° 1, al. c) do C.P.C.M.”.
Diz também a ora requerente que existe uma “oposição entre os fundamentos do Acórdão e as decisões nele assumidas, o que integra a nulidade prevista no art. 571°, n.° 1, al. c) do C.P.C.M..
Alega, o que segue:
“IV. DA NULIDADE DO ACÓRDÃO POR OS FUNDAMENTOS ESTAREM EM OPOSIÇÃO COM A DECISÃO QUANTO À NATUREZA DO DIREITO DA 1ª R.
Venerando Juízes, o conteúdo da decisão proferida pelo acórdão em apreço é a seguinte:
“Dest’arte, e em conformidade com tudo o que no presente veredicto se apreciou e se deixou exposto, (e na parte que agora interessa), imperativo é concluir pela procedência dos recursos pelos referidos 1ª e 2º RR. trazidos a este Tribunal de Última Instância, revogando-se o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância, e, desta forma, improcedentes ficando todas as pretensões pela A. apresentadas, julgam-se procedentes todos os pedidos (em reconvenção) pelo aludidos RR. deduzidos, declarando-se, a 1ª R., (R.A.E.M.), proprietária do “prédio rústico” identificado nos autos (com a condenação da A. ao seu reconhecimento), assim como a nulidade dos referidos registos, ordenando-se o seu respectivo e competente cancelamento e rectificação.
Decisão
5. Nos termos e fundamentos que se deixaram expedidos, em conferência, acordam conceder provimento aos recursos dos (1º e 2º) RR., (R.A.E.M. e I.A.M.), revogando-se o Acórdão recorrido com a consequente total improcedência da acção pela A. proposta e procedência dos pedidos reconvencionais deduzidos nos seus exactos termos consignados.”
O teor dos “pedidos reconvencionais” dos RR. é o seguinte:
a) “Deve ser declarado que o prédio rústico sito na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número XXXX, a fls. 105, do liv. BXX, com a área de 24.482 m2, foi afecto ao domínio público da RAEM, por força da expropriação operada pela Portaria nº 195, publicada no Boletim Oficial de Macau nº 38, de 21 de Setembro de 1918;
b) Deve ser declarado que a habilitação dos herdeiros de H, titulada pela escritura de Habilitação outorgada em 22.01.1997, a fls. 77 do liv. XXXB, no 4º Cartório Notarial de Lisboa, é em acto nulo por violação das regras estabelecidas nos arts. 1971 e segts. do Código Civil;
c) Deve ser declarado que essa escritura é um título ineficaz e insusceptível de produzir os efeitos jurídicos pretendidos, tais como os de titular os registos de transmissão de propriedade efectuados em 1997;
d) Deve ser declarado que os registos efectuados em 1997 são nulos e, por esse facto, são igualmente nulos todos os que posteriormente foram feitos;
e) Deve a Autora ser condenada a reconhecê-lo;
Em consequência:
f) Devem ser ordenados os cancelamentos dos seguintes registos prediais de transmissão:
(i) Inscrição nº XXXXX (L GXXK, fls. 227), a favor de C (ou) C1, viúva;
(ii) Inscrição nº XXXXX (L GXXK, fls. 228), a favor de D, casado com E (ou) E1 (ou) E2 e de F, casado com G;
(iii) Inscrição nº XXXXX (L GXXK, fls. 199), a favor da B;
(iv) Inscrição nº XXXXXG a favor da ora Autora, A; e
(v) Inscrição nº XXXXXC a favor do [Banco(1)]” (realçados e sublinhados nossos)
Como se viu, o Venerando Tribunal de Última Instância julgou improcedente a acção de reivindicação da A. e procedentes os “pedidos reconvencionais” dos RR.”, por ter entendido que o Terreno foi afecto ao domínio da RAEM por força da conclusão do processo expropriativo, e que, consequentemente, todos os negócios jurídicos subsequentes que tiveram por objecto o Terreno, são nulos por falta de objecto ao abrigo do disposto no artigo 273º, n.o 1 do Código Civil.
Não obstante, ali “declara-se a 1ª R., (R.A.E.M.), proprietária do “prédio rústico” identificado nos autos”.
A A. não ignora que como na parte dispositiva, propriamente dita, do acórdão em apreço se consignou a “procedência dos pedidos reconvencionais deduzidos nos seus exactos termos consignados” (sublinhado nosso), não pode arguir a nulidade do acórdão em apreço com fundamento em condenação em objecto diverso do pedido, nos termos previstos na alínea e) in fine do n.o 1 do artigo 571º do Código de Processo Civil.
Porém, dúvidas não há, que no parágrafo que antecede a parte dispositiva do dito acórdão se declara expressamente que é “a 1ª R., (R.A.E.M.), proprietária do “prédio rústico” identificado nos autos”, declaração que está em manifesta contradição com a parte decisória do dito acórdão.
Com efeito, certamente estaremos todos de acordo que não é o mesmo efeito jurídico que se alcança quando se declara (i) que a 1ª R é (em 2024) proprietária do “prédio rústico” identificado nos autos, ou quando se declara (ii) que o Terreno foi afecto ao domínio público da RAEM em 1918 por força da expropriação.
Em face do que, vem a A. arguir a nulidade do acórdão em apreço prevista na alínea c) do n.o 1 do artigo 571º do Código de Processo Civil, por oposição dos fundamentos com a decisão quanto à natureza do direito que a 1ª Ré vê ali declarado a seu favor.
V. (i) DA NULIDADE DO ACÓRDÃO POR OS FUNDAMENTOS ESTAREM EM OPOSIÇÃO COM A DECISÃO DE QUE A HABILITAÇÃO DOS HERDEIROS DE H “É UM ACTO NULO POR VIOLAÇÃO DAS REGRAS ESTABELECIDAS NOS ARTS. 1971 E SEGTS. DO CÓDIGO CIVIL” E “É UM TÍTULO INEFICAZ E INSUSCEPTÍVEL DE PRODUZIR OS EFEITOS JURÍDICOS PRETENDIDOS” E (ii) DA NULIDADE POR FALTA DE ESPECIFICAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO QUE JUSTIFICAM ESTA DECISÃO
Venerando Juízes, as alíneas b) a e) dos “pedidos reconvencionais” deduzidos pelos RR. e julgados totalmente procedentes “nos seus exactos termos consignados”, têm o teor que, para facilidade de compreensão, novamente se transcreve:
b) “Deve ser declarado que a habilitação dos herdeiros de H, titulada pela escritura de Habilitação outorgada em 22.01.1997, a fls. 77 do liv. XXXB, no 4º Cartório Notarial de Lisboa, é em acto nulo por violação das regras estabelecidas nos arts. 1971 e segts. do Código Civil;
c) Deve ser declarado que essa escritura é um título ineficaz e insusceptível de produzir os efeitos jurídicos pretendidos, tais como os de titular os registos de transmissão de propriedade efectuados em 1997;
d) Deve ser declarado que os registos efectuados em 1997 são nulos e, por esse facto, são igualmente nulos todos os que posteriormente foram feitos;
e) Deve a Autora ser condenada a reconhecê-lo;” (realçados e sublinhados nossos).
Estes pedidos, agora decisões, que tinham como causa de pedir as (alegadas mas julgadas não provadas na decisão da matéria de facto) falsas declarações dos outorgantes daquela escritura de habilitação, estão em manifesta contradição com o fundamento do acórdão em apreço que ditou a nulidade daqueles negócios jurídicos subsequentes por falta de objecto e ao abrigo do disposto no artigo 273º, n.o 1 do Código Civil.
Mas não só. O acórdão em apreço não especifica qualquer fundamento de facto ou de direito para sustentar a decisão de declarar nula a escritura pública da habilitação dos herdeiros de H por violação das regras estabelecidas nos artigos 1971 e seguintes do Código Civil,
nulidade que foi arguida pelos RR. com fundamento em alegadas (mas julgadas não provadas na decisão da matéria de facto) declarações falsas dos outorgantes daquela escritura, sem que o notário que a lavrou, os seus outorgantes e demais intervenientes, bem como os interessados e beneficiários do registo de propriedade a que a mesma serviu de título, tenham sido, perdoe-se a expressão, tidos nem achados nos presentes autos, assim como também não o foi, certamente por não existir, qualquer alegado herdeiro dos habilitandos que se considerasse preterido pela referida habilitação.
Em face do que, vem a A. arguir (i) a nulidade do acórdão em apreço prevista na alínea c) do n.o 1 do artigo 571º do Código de Processo Civil, por oposição dos fundamentos com a decisão quanto à natureza da nulidade declarada (…)”; (cfr., fls. 3728 a 3734).
Respondendo, diz a 1a R., (R.A.E.M.), que:
“Em sentido divergente ao que é sufragado pela Reclamante, embora respeitando-o, os fundamentos do douto acórdão reclamado não estão, em nosso modesto entender, em oposição com a decisão quanto à natureza do direito da RAEM.
O Tribunal de Última Instância, com base na alegada e provada expropriação do terreno, facto aquisitivo originário do direito de propriedade invocado pela RAEM para substanciar a sua pretensão reconvencional, (fundamento), declarou que a RAEM é a proprietária desse terreno (decisão), julgando, assim, procedente, o pedido reconvencional deduzido.
O que acontece, se estamos a ver bem, é que a Reclamante insiste, indevidamente, num ponto que o douto acórdão recorrido, de forma inequívoca, ultrapassou: a afectação do terreno ao domínio público que foi sustentada pela RAEM na sua contestação-reconvenção tem como pressuposto incontornável a aquisição, neste caso originária, através da expropriação, da propriedade do terreno (dr. respectivas páginas 72 e 73). Por isso, demonstrada a aquisição do direito de propriedade em que assentava a reconvenção esta não podia deixar de proceder. Apesar de se tratar de uma asserção que, do ponto de vista jurídico, é insofismável, parece que a Reclamante se recusa a aceitá-la.
(…)
Do mesmo modo, também não se vislumbra razão que sustente a invocação da nulidade do acórdão reclamado resultante da oposição entre a decisão e os fundamentos no que tange à declaração da nulidade da habilitação de herdeiros de H (…).
De novo. Parece-nos, com todo o respeito, que a Reclamante insiste em perder-se nos caminhos do desinteressante acessório”; (cfr., fls. 3754-v e 3755-v)
E, sobre tal matéria, ofereceu o 2° R. (I.A.M.) a seguinte pronúncia:
“B) PEDIDO B: NULIDADE DO ACÓRDÃO DO TUI NOS TERMOS DA ALÍNEA C) IN FINE DO N.º 1 DO ARTIGO 571.º DO CPC, POR OPOSIÇÃO DOS FUNDAMENTOS COM A DECISÃO QUANTO À NATUREZA DO DIREITO QUE A 1 ª RÉ VÊ ALI DECLARADO A SEU FAVOR.
14. A Recorrida invoca a nulidade do Acórdão por oposição dos fundamentos, entendendo que "não é o mesmo efeito jurídico que se alcança quando se declara (i) que a 1ª R é (em 2024) proprietária do "prédio rústico" identificado nos autos, ou quando se declara (ii) que o Terreno foi afecto ao domínio público da RAEM em 1918 por força da expropriação" (v.g. fls. 3732 dos Autos)
15. Com o devido respeito, o pedido b) da Recorrida não deve proceder pelas seguintes razões:
16. Um terreno/prédio que em Macau pertença ao domínio público significa que a RAEM é a proprietária deste terreno/prédio, pelo que não há contradição ou oposição.
17. Ora, conforme o contexto do Acórdão, é claro que a qualidade da proprietária da RAEM (1.ª Ré) não está referenciada ao ano de 2024, pois o Acórdão do TUI indica que a "aquisição originária o registo é meramente "enunciativo””, e as transmissões após a expropriação tornam-se "nulos por absoluta "falta de objecto" nos termos do artigo 273.º do CCM" (v.g. pag. 138 a 139v do Acórdão do TUI)
18. Por isso, não há no Acórdão do TUI o vício previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 571.º do CPC.
C) PEDIDO C: NULIDADE DO ACÓRDÃO DO TUI NOS TERMOS DA ALÍNEA C) IN FINE DO N.º 1 DO ARTIGO 571.º DO CPC, POR OPOSIÇÃO DOS FUNDAMENTOS COM A DECISÃO QUANTO À NATUREZA DA NULIDADE DECLARADA.
19. A Recorrida considera que existe o vício da oposição dos fundamentos com a decisão, entendendo que "Estes pedidos, agora decisões, que tinham como causa de pedir as (alegadas mas julgadas não provadas na decisão da matéria de facto) falsas declarações dos outorgantes daquela escritura de habilitação, estão em manifesta contradição com o fundamento do acórdão em apreço que ditou a nulidade daqueles negócios jurídicos subsequentes por falta de objecto e ao abrigo do disposto no artigo 273º, n.º 1 do Código Civil." (v.g. fls. 3773 dos Autos)
20. Com o devido respeito, não tem razão, porque:
21. Deve salientar-se que está disposto no artigo 571.º do CPC: "O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 5.º."
22. Portanto, o TUI tem toda a liberdade na aplicação da lei, não se sujeita aos fundamentos jurídicos invocado pelas Partes.
23. Isto significa que mesmo que a Recorrente tenha pedido a nulidade por violação do artigo 1971.º e ss. do CC, o TUI pode declarar a nulidade por outro fundamento jurídico, por exemplo, por falta do objecto disposto no artigo 273.º do CC.
24. Até que a nulidade é uma questão que o tribunal pode oficiosamente conhecer nos termos do artigo 279.º do CC.
25. Assim sendo, não há no Acórdão do TUI o vício da oposição dos fundamentos com a decisão previsto na alínea c) in fine do n.º 1 do artigo 571.º do CPC”; (cfr., fls. 3761 a 3763).
Eis o que, aqui, e sobre o que pela ora requerente vem alegado se nos mostra de dizer.
Pois bem, na opinião da ora requerente, padece o Acórdão deste Tribunal de Última Instância da nulidade prevista no art. 571°, n.° 1, al. c) do C.P.C.M., visto que a procedência dos pedidos na exacta medida em que foram formulados nas reconvenções implica uma oposição com os fundamentos do próprio Acórdão.
Se bem ajuizamos, considera que o dito Acórdão entra em “contradição” na medida em que da sua fundamentação resulta que a 1ª R. seria “proprietária” do prédio rústico identificado nos autos, (ao invés do que na parte decisória se determina no sentido de que o terreno foi “afecto ao domínio público da R.A.E.M. por força da expropriação”).
Por outro lado, considera que da fundamentação do mesmo Acórdão resulta que os negócios jurídicos incidentes sobre o terreno subsequentes à expropriação são nulos por falta de objecto, (ao abrigo do disposto no art. 273°, n.° 1 do C.C.M.), e, na parte decisória, declara-se nula a escritura pública da habilitação dos herdeiros de H, por violação das regras estabelecidas nos art°s 1971° e segs. do mesmo C.C.M..
Ora, como se deixou adiantado, outra é a nossa opinião.
Como a propósito da agora assacada “nulidade” referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre:
“[E]ntre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se”; (in “C.P.C. Anotado”, Vol. II, 3ª ed., pág. 736 a 737).
Trata-se pois de um “… vício lógico na construção da sentença”, pois, querendo a lei processual que o juiz justifique a sentença, os fundamentos que este invoca para a sua decisão “… conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”; (cfr., v.g., Alberto dos Reis in, “C.P.C. Anotado”, Vol. V, pág. 141).
Não se trata, portanto, de um simples “erro material” mas de um “erro lógico-discursivo”, em que os fundamentos invocados pelo julgador conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, numa diferente direção.
E, atento o que se deixou exposto sobre o sentido e alcance da imputada “nulidade”, também aqui dúvidas parecem não haver quanto ao que de concreto se decidiu no aresto em questão, pois que aí se deixou claramente dito que:
“Dest’arte, e em conformidade com tudo o que no presente veredicto se apreciou e se deixou exposto, (e na parte que agora interessa), imperativo é concluir pela procedência dos recursos pelos referidos 1ª e 2º RR. trazidos a este Tribunal de Última Instância, revogando-se o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância, e, desta forma, improcedentes ficando todas as pretensões pela A. apresentadas, julgam-se procedentes todos os pedidos (em reconvenção) pelo aludidos RR. deduzidos, declarando-se, a 1ª R., (R.A.E.M.), proprietária do “prédio rústico” identificado nos autos (com a condenação da A. ao seu reconhecimento), assim como a nulidade dos referidos registos, ordenando-se o seu respectivo e competente cancelamento e rectificação”; (cfr., pág. 154 do aludido Ac.).
Ora, não se nega, (e obviamente, se reconhece), que a redacção de tal excerto do Acórdão impugnado podia – certamente – ser objecto de um “aprimoramento”.
Todavia – e não sendo os Tribunais, Academias ou Faculdades de Direito, e as suas decisões judiciais teses de doutoramento ou obras de arte – cremos nós que, do atrás transcrito trecho extraído da “síntese conclusiva” do Acórdão, (assim como da sua fundamentação), resulta, com (total) clareza, que as decisões que nele se proferiram e que dele se devem (naturalmente) extrair são as de que com o mesmo se:
- declarou que o prédio rústico sito na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° XXXX, a fls. 105, do livro BXX, com a área de 24.482 m2 pertence à R.A.E.M., por efeito da aquisição originária operada pela expropriação operada pela Portaria n.° 195, publicada no B.O. n.° 38, de 21.09.1918, condenando-se a A. a reconhecê-lo; e que se:
- declarou (igualmente) a nulidade de todas as subsequentes transmissões do terreno a non domino, por padecerem da nulidade prevista no art. 273° do C.C.M., determinando-se, em conformidade, o cancelamento dos seguintes registos:
a) Inscrição n.° XXXXX (L. GXXK, fls. 227), a favor de C ou C1;
b) Inscrição n.° XXXXX (L GXXK, fls. 228), a favor de D, casado com E ou E1 OU E2 e de F, casado com G;
c) Inscrição n.° XXXX (L GXXK, fls. 199) a favor de “B”;
d) Inscrição n.° XXXXX a favor da A.;
e) Inscrição n.° XXXXXC a favor do Interveniente principal.
E, nesta conformidade, evidente nos parece que não se incorreu em “nulidade” alguma, (não se tendo decidido em “quantidade superior” ou em “objecto diverso do pedido”), já que nenhum cabimento teria reconhecer que o terreno em questão faria parte do “património da R.A.E.M.”, e não lhe reconhecer o correspondente “direito de propriedade”, (independentemente de se entender que foi integrado no domínio público ou privado, o que será necessariamente uma questão secundária face à que primacialmente se discute nos presentes autos, pois que qualquer das soluções possíveis que se possam equacionar para o enquadramento dos pedidos reconvencionais não provocam a mais pequena influência no inelutável desfecho da improcedência dos pedidos reivindicativos da A., porque, notoriamente, não ficou demonstrado o “seu direito de propriedade”, salientando-se, por outro lado, e como se deixou consignado na fundamentação do Acórdão sob apreço, que as nulidades do art. 273° do C.C.M. são de “conhecimento oficioso”).
2.3 Das demais “nulidades invocadas ao abrigo do art. 571°, n.° 1, al. b) do C.P.C.M.”.
Invoca ainda a requerente a existência de outras nulidades por “falta de fundamentação” do Acórdão, nos termos do art. 571°, n.° 1, al. b) do C.P.C.M..
Entende, por um lado, que o Acórdão padece de nulidade por “não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão de declarar nula a escritura pública da habilitação dos herdeiros de H por violação das regras estabelecidas nos artigos 1971 e seguintes do Código Civil”; (cfr., fls. 3734).
Por outro lado, entende que o Acórdão em questão padece do mesmo vício, na medida em que teria decretado que a totalidade do terreno em questão teria sido afecto ao domínio público da R.A.E.M., alegando o que se passa a transcrever:
“VI. DA NULIDADE DO ACÓRDÃO POR NÃO ESPECIFICAR OS FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO QUE JUSTIFICAM A DECISÃO DE QUE O TERRENO FOI AFECTO AO DOMÍNIO PÚBLICO DA RAEM
A A. não desconhece que as Partes do Terreno Ocupadas pela 1ª R., com a área de 4,235m2, foram afectas ao domínio público da RAEM por terem sido utilizadas com a construção das estradas de acesso à Ponte da Amizade, conforme dispõe a alínea a) do n.o 3 do artigo 193º do Código Civil, com o que se conformou.
Porém, na decisão sobre a matéria de facto foi julgado não provado o quesito 20º com o seguinte teor:
“A Portaria 5.971 aludida em M) veio incorporar na zona militar da Carreira de Tiro da Ilha da Taipa o Terreno em causa nestes autos?”
Nos termos da alínea e) do n.o 3 do artigo 193º do Código Civil, são bens do domínio público “Os terrenos e outros bens, como tais classificados em legislação especial”.
A decisão da matéria de facto e o acórdão em apreço são totalmente omissos na enunciação de factos e de legislação especial que permita classificar a Parte do Terreno Ocupada pelo 2º R., com a área de 20,263 m2, como bem do domínio público.
Não obstante essa notória falta de fundamentos de facto e de direito, veio o acórdão em apreço julgar os pedidos reconvencionais dos RR. totalmente procedentes “nos seus exactos termos consignados”, e, consequentemente, que a totalidade do Terreno, “com a área de 24.482 m2, foi afecto ao domínio público da RAEM”.
Em face do que vem a A. arguir a nulidade do acórdão em apreço prevista na alínea b) do n.o 1 do artigo 571º do CPC, por este não especificar os fundamentos de direito que justificaram a decisão de julgar que a Parte do Terreno Ocupada pelo 2º R., com a área de 20,263 m2 “foi afecta ao domínio público da RAEM”.”; (cfr., fls. 3734 a 3735).
Em resposta, e em representação da R.A.E.M., defende o Ministério Público que:
“Do mesmo modo, também não se vislumbra razão que sustente a invocação da nulidade do acórdão reclamado resultante da oposição entre a decisão e os fundamentos no que tange à declaração da nulidade da habilitação de herdeiros de H e da falta de especificação dos fundamentos da decisão nem, claro está, a invocada nulidade do acórdão reclamado por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão de que o terreno foi afecto ao domínio público da RAEM.
De novo. Parece-nos, com todo o respeito, que a Reclamante insiste em perder-se nos caminhos do desinteressante acessório”; (cfr., fls. 3755 a 3755-v).
Também o I.A.M. entende não se verificarem as alegadas nulidades, alegando nos termos que a seguir se transcrevem:
“D) PEDIDO D: NULIDADE DO ACÓRDÃO DO TUI NOS TERMOS DA ALÍNEA B) DO N.º 1 DO ARTIGO 571.º DO CPC, POR NÃO ESPECIFICAR OS FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO QUE JUSTIFICARAM A DECISÃO DE DECLARAR NULA A ESCRITURA PÚBLICA DA HABILITAÇÃO DOS HERDEIROS DE H POR VIOLAÇÃO DAS REGRAS ESTABELECIDAS NOS ARTIGOS 1971 E SEGUINTES DO CODIGO CIVIL.
26. Este vício arguido pela Recorrida também não deve proceder.
27. Como já se disse acima, o TUI tem toda a liberdade na aplicação da lei, não se sujeitando ao fundamento jurídico invocado pelas Partes, pelo que o TUI pode declarar a nulidade (que é de conhecimento oficioso) com base em fundamento jurídico diferente do fundamento jurídico invocado pelas Partes.
28. Neste caso, o TUI considerou o facto da expropriação (Ponto I dos Factos Assentes e o Quesito 18.º da Base Instrutória), entendendo que os actos jurídicos sucessivos são nulos "por uma autêntica "falta de objecto" (cfr. art. 273, n.º1 do C.C.M.)." (v.g. pág. 137 do Acórdão do TUI)
29. O TUI indica expressamente o seu fundamento quanto à habilitação dos herdeiros de H, concretamente:
"No caso, e como vimos, os "actos jurídicos (sucessivos)" praticados desde os supostos herdeiros de H até à A., tiveram por objecto a transmissão de um direito real - já - "extinto" e "inexistente", pois que se tratava de um direito que iá havia sido "suprimido do mundo jurídico".
E, assim, mostra-se-nos, pois, constituir também uma clara situação de "falta de objecto"; (cfr. art. 273, n.º1 do C.C.M.).
(…)
Nestes termos, Os (alegados) "herdeiros" de H, não sucederam em qualquer posição jurídica titulada por H - não está em causa uma transmissão de direito ou de posição jurídica viciada apenas por ilegitimidade, já que o "direito de propriedade" em causa iá tinha sido extinto pela "expropriação" e, muito menos, obtiveram qualquer "registo aquisitivo"." (v.g. pag. 137 a 139 do Acórdão do TUI, sublinhado nosso)
30. Assim sendo, não corresponde à verdade que o TUI tenha omitido qualquer fundamentação quanto aos factos e ao direito sobre a escritura pública da habilitação dos herdeiros de H.
E) PEDIDO D: NULIDADE DO ACÓRDÃO DO TUI NOS TERMOS DA ALÍNEA B) DO N.º 1 DO ARTIGO 571.º DO CPC, POR NÃO ESPECIFICAR OS FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO QUE JUSTIFICARAM A DECISÃO A PARTE DO TERRENO OCUPADA PELO 2.º R., COM A ÁREA DE 20,263M2 "FOI AFECTADA AO DOMÍNIO PÚBLICO DA RAEM"
31. Quanto ao Pedido D, também deve ser declarado improcedente, porquanto:
32. Salvo melhor opinião, os fundamentos de facto e de direito que o terreno o ocupado pela 2.ª Ré (ora Recorrente) pertence ao domínio público da RAEM encontram-se no Ponto I dos Factos Assentes, Ponto l8 da Base Instrutório e extraem-se do efeito jurídico da expropriação.
33. De facto, o Acórdão do TUI indica expressamente os seus fundamentos de facto e de direito, concretamente:
"Pois bem, recordando-se o que atrás se deixou transcrito do art. 6º e 103º da Lei Básica da R.A.E.M. - tendo-se também presente o estatuído no art. 1 º da Lei n.º 12/92/M, que desenvolve o "Regime das Expropriações por Utilidade Pública", onde no seu n. º 2 se prescreve que "Os bens imóveis e direitos a eles inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública, mediante o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização", e provada estando a matéria de facto onde se diz que "O Terreno foi afecto ao domínio da RAEM por força da conclusão do processo expropriativo aludido em h) a l)"" (v.g. pág. 118 do Acórdão do TUI, sublinhado nosso)
34. O Acórdão do TUI também explica claramente o efeito jurídico da expropriação:
"E, por sua vez, e como sabido já é, a "expropriação", como forma de "aquisição originária", implica, por um lado, a extinção definitiva do direito de propriedade existente, constituindo-se, (posteriormente), um "novo direito a favor da entidade expropriante", obtendo o expropriante uma posição "independente" sobre a coisa, não estando "sujeito portanto a vê-la amanhã atingida por obrigações de terceiros, ou até extinta, por actuação de uma causa de invalidade ou de resolução. (...) As excepções que beneficiariam terceiros não são oponíveis"; (cfr., v.g., José de Oliveira Ascensão in, "Direito Civil - Reais", 5ª ed, pág. 403, sublinhado nosso).
35. Pelo exposto, não há no Acórdão do TUI o vício da oposição dos fundamentos com a decisão previsto na alínea b) do n.º l do artigo 571.º do CPC”; (cfr., fls. 3763 a 3766).
Ora, sem perder de vista o que atrás se deixou exposto sobre o alcance e sentido da imputada “nulidade”, cremos que sem esforço se colhe do que se deixou exposto, que as decisões que foram proferidas no Acórdão em apreço não se identificam com as que a reclamante invoca para arguir as suas consideradas “nulidades por falta de fundamentação”.
De facto, com o dito Acórdão decidiu-se – apenas, mas de forma expressa e clara – reconhecer a R.A.E.M. como legítima proprietária do terreno em questão, declarando-se, consequentemente, a nulidade de todos os registos posteriores à aquisição originária do terreno, após a sua expropriação por utilidade pública, (por efeito do art. 273° do C.C.M.), nada mais valendo a pena aqui acrescentar porque absolutamente “inútil”, (e, então, “ilícito” – cfr., art. 87° do C.P.C.M.).
2.4 Aqui chegados, e não se vislumbrando nenhuma das pela ora requerente assacadas “nulidades”, passemos para os “pedidos de esclarecimento”.
Pois bem, ao longo da sua – ampla e dilatada – exposição, formula a ora requerente uma série de “questões”, e apelidando-as, (ou melhor, “sob a capa”) de (supostos) “pedidos de esclarecimento”, requerer que se venha “esclarecer o acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância que decidiu os presentes autos, relativamente às questões supra enunciadas”; (cfr., fls. 3743, pedido f).
Ora, cabe aqui consignar que não se alcança o (verdadeiro) motivo da “pretensão” apresentada.
Como este Tribunal de Última Instância já teve oportunidade de esclarecer:
“A “aclaração” de uma decisão apenas se justifica quando a mesma padeça de “obscuridade” ou seja “ininteligível”, o que se verifica quando aquela apresente aspectos de significação inextrincável, em termos de não ser possível apurar qual o seu sentido e o que se quis efectivamente dizer ou se mostre “ambígua” e passível de se lhe atribuir, total ou parcialmente, dois (ou mais) sentidos .
Não se pode confundir uma “discordância” (em relação ao decidido) com uma (eventual) “obscuridade”, a fim de, “camufladamente”, se viabilizar um revisitar e uma repetida colocação de questões (anteriormente) já decididas, e que são, (como no caso sucede), irrecorríveis, tentando-se, desta forma, (como que) criar um “novo grau de recurso””; (cfr., v.g., o Ac. de 28.01.2022, Proc. n.° 144/2021-I).
In casu, a ora requerente não revela o mínimo esforço para tentar desvelar uma “obscuridade” ou “ambiguidade”, antes se limitando a elencar um conjunto de “interpretações” ou “conclusões” que a própria extrai do Acórdão, e a manifestar a sua “discordância” perante as mesmas, reflectida nas mais variadas “questões” que utiliza – como “arma de arremesso” – para se insurgir contra a decisão proferida que, no caso, e em face do que provado ficou, (tão só) não foi ao encontro da solução que pretendia.
E, assim, cabe recordar as sábias (e concisas) palavras do saudoso Prof. Alberto dos Reis que, sobre a matéria, considerava o que segue:
“Se a sentença contiver alguma obscuridade ou ambiguidade, pode pedir-se a sua aclaração. A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual é o pensamento do juiz.
Já se tem feito uso do pedido de aclaração, não para se esclarecer obscuridade ou ambiguidade realmente existente, mas para se obter, por via oblíqua, a modificação do julgado. A título ou a pretexto de esclarecimento o que, na verdade, se visa é a alteração da sentença. Os tribunais têm reagido, e bem, contra tais tentativas, votando-as ao malogro”; (in “C.P.C. Anotado”, Vol. V, 3ª ed., 1952, pág. 151 e 152).
E, em nossa opinião, manifesto é que nenhum dos “pedidos de esclarecimento” apresentados merece a atenção e pronúncia desta Instância, pois que, de forma evidente, afasta-se – inadmissivelmente – da sua previsão legal, extravasando-a, (e tornando, como se referiu, irreconhecível o seu escopo).
Nesta conformidade, e apreciadas que se nos apresentam estar todas as questões colocadas, resta decidir como segue.
Decisão
3. Nos termos e fundamentos que se deixaram expostos, em conferência, acordam indeferir os pedidos deduzidos.
Custas pela recorrida, ora requerente.
Notifique.
Macau, aos 12 de Março de 2025
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Song Man Lei
Choi Mou Pan
Proc. 17/2021-II Pág. 10
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