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Processo n.º 834/2024
(Autos de recurso cível)

Data: 2/Abril/2025

Recorrente:
- A Limitada (ré)

Recorridos:
- B e C (autores)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
B e C (doravante designados por “autores” ou “recorridos”) intentaram acção contra a A Limitada (doravante designada por “ré” ou “recorrente”), pedindo a condenação desta a pagar àquela a quantia de HKD12.530.000,00, correspondente ao dobro da quantia que recebeu a título de sinal, bem como juros de mora.
Inconformada com o despacho que julgou improcedente a excepção peremptória, na qual a ré A Limitada afirmava que a falta de cumprimento da obrigação não procedia de culpa sua, mas sim da actuação dos Serviços da RAEM, recorreu aquela ré jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
     “1. Constitui objecto do presente recurso jurisdicional o despacho saneador, nos termos e ao abrigo do artigo 429º, nº 1 do CPC, que julgou improcedente a excepção peremptória através da qual a Ré se defende afirmando que a falta de cumprimento da obrigação não procede de culpa sua, mas da actuação de Serviços da RAEM;
     2. De acordo com o despacho recorrido, os factos que fundam tal excepção não produzem o efeito jurídico pretendido pela Ré, dado considerar que o contrato em discussão nos autos tem apenas efeitos inter partes, ordenando o prosseguimento dos autos para o conhecimento das demais questões;
     3. O despacho saneador recorrido padece da nulidade do artigo do artigo 571.º/l-b-d do CPC e de erro de julgamento por erro de interpretação e aplicação da norma do artigo 429.º/l-b do CPC e de violação do princípio do dispositivo e dos direitos à prova e à tutela judicial efectiva;
     4. O despacho recorrido explicita decisão tomada apenas com base em razões jurídicas, omitindo a factualidade invocada pela Recorrente na sua defesa por excepção;
     5. O despacho recorrido padece dos vícios decorrentes da falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão e de omissão de apreciação sobre questão que devia apreciar, previstos, respectivamente, nas alíneas b) e d) do nº 1 do artigo 571º do PC, pelo que o mesmo enferma da respectiva nulidade.
     6. O despacho saneador está ordenado ao cumprimento de duas finalidades: uma corresponde à sua função normal do despacho saneador; outra, a uma função eventual.
     7. A primeira visa a verificação da regularidade da instância, mediante o apuramento da ocorrência dos pressupostos processuais ou de uma excepção dilatória, e a apreciação de nulidades e a segunda tem por finalidade o conhecimento, total ou parcialmente, do mérito da causa, quando para tal, isto é, para dar resposta ao pedido ou à parte do pedido correspondente, não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo;
     8. A segunda finalidade referida cumpre-se nas seguintes situações: (1) inconcludência do pedido; (2) procedência ou improcedência de excepção peremptória; e (3) procedência ou improcedência do pedido;
     9. Com tal poder visa a lei evitar o retardamento da decisão de mérito quando ela é, com segurança, já possível na fase da condensação;
     10. O conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, com fundamento em excepções peremptórias, pode acontecer nas seguintes situações: (i) encontrarem-se já provados todos os factos em que se funda uma excepção peremptória, com força probatória plena, por confissão, admissão ou documento; (ii) serem inconcludentes os factos em que se funda a excepção peremptória (inconcludência da excepção peremptória) ou encontrarem-se já provados, com força probatória plena, factos contrários àqueles;
     11. Em ambas situações verifica-se o interesse que presidiu à outorga de tal poder ao Tribunal para conhecer do mérito da causa, dado não se justificar o prosseguimento da acção, uma vez que, com segurança, é já possível decidir na fase da condensação;
     12. Pela fundamentação do despacho recorrido constata-se que a situação apreciada foi subsumida na hipótese de inconcludência da excepção peremptória;
     13. Considerou-se que era inútil produzir prova sobre os factos alegados que fundam esta excepção, porque mesmo que os mesmos fossem considerados provados, daí nunca poderia decorrer o efeito pretendido pela Ré, isto é, o efeito de impedir ou extinguir o efeito jurídico dos factos constitutivos do direito invocado pelos Autores;
     14. O Tribunal recorrido invoca como fundamento de tal inconcludência o artigo 400.º/2 do CC e recorre à “teoria que nega a eficácia externa das obrigações, assente na concepção clássica da relatividade dos direitos de crédito, que apenas podem ser violados pelas partes, em contraposição com os direitos reais que são oponíveis erga omnes”;
     15. Contrariamente ao decidido pelo meritíssimo juiz a quo, não se verifica, nos presentes autos, uma situação de inconcludência de excepção peremptória;
     16. O Tribunal recorrido erra porque confunde a relevância da teoria que nega a eficácia externa das obrigações com a situação em causa nos presente autos, a elisão da presunção de culpa (artigo 788.º/1 do CC) que a lei faz recair sobre a Ré, isto é, a prova de que a falta de cumprimento do referido contrato não procede a culpa da Ré;
     17. Se a teoria que nega a eficácia externa das obrigações pode de facto justificar (não existe unanimidade na doutrina e na jurisprudência) a inexistência de um direito directo do credor (os Autores nos presentes autos) em face de terceiro (RAEM), tal como parece defender-se no despacho recorrido, a verdade é que a mesma nada pode, nem pretende, esclarecer sobre se terceiros podem ou não prejudicar ou tonar impossível o cumprimento de contrato, como o dos autos;
     18. Em geral, a responsabilidade do devedor pelo incumprimento definitivo, simples mora ou cumprimento defeituoso pode ser excluída sempre que tais situações derivem de facto do credor ou de facto não imputável nem a um nem a outro, sendo que esta última situação se verifica quando o incumprimento derive de facto de terceiro ou se trate de caso fortuito ou de força maior;
     19. Os direitos de crédito podem ser prejudicados por facto de terceiro, o que assume relevância em termos de permitir ao devedor poder alegar e provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua;
     20. Para este efeito, no caso dos autos, a RAEM é terceiro, podendo a sua actuação dificultar ou impossibilitar, tal como se sustenta no caso aqui em apreço, o cumprimento da obrigação por parte da Ré;
     21. A teoria que nega o efeito externo das obrigações foi aplicada no caso dos autos de forma desadequada;
     22. Ao aplicar tal teoria, numa situação em que a mesma não é cabível, considerando inconcludentes os factos que fundam a excepção peremptória alegada, ficou o despacho recorrido a padecer do referido erro de julgamento;
     Sem conceder,
     23. Mesmo que, por hipótese remota, se pudesse entender que tal teoria é aplicável ao caso dos autos, o Tribunal recorrido não poderia tornar a decisão que tomou;
     24. Tal teoria, como se realça no despacho recorrido, admite excepções na sua aplicação e o despacho recorrido não demonstra de forma cabal que as mesmas se não verificam, ficando-se por meras afirmações conclusivas como, tais como, “Analisando globalmente o teor das alegações da Ré, as mesmas não constituem a situação referida ...” e “o facto alegado pela Ré não é suficiente para mostrar que a Assistente tenha manifestamente violado o requisito da boa-fé, ou que tenha intenção de prejudicar os Autores ...”;
     25. O estado do processo não permitia apreciar tais factos, dado os mesmos carecerem de mais provas, o que impunha que o Tribunal procedesse à selecção de toda a matéria de facto relevante integrante da causa de pedir e das excepções, com vista a permitir um julgamento seguro das questões em causa;
     26. Sem o estabelecimento dos factos pertinentes e com as afirmações conclusivas referidas não se podia garantir a existência de “uma muito razoável margem de segurança quanto à solução a proferir”, tal como a doutrina exige;
     27. O despacho recorrido, na aplicação da teoria referida, dá por adquirido que o contrato dos autos tem a natureza de “contrato-promessa”, não apreciando a questão que a Recorrente suscita sobre a natureza de tal contrato;
     28. Os Autores sustentam que o contrato em discussão nos autos é um típico contrato-promessa; a Ré defende que é um contrato atípico, aparentado com a compra e venda de um bem futuro, produto de uma determinada conjuntura que se viveu durante vários anos em Macau até à publicação da Lei nº 7/2013, durante o qual foi celebrado o contrato aqui em causa, que na língua chinesa se denomina um contrato “Mai Lau fá”;
     29. O Tribunal recorrido não poderia aplicar a referida teoria, que pressupõe a existência de direitos de crédito emergentes de um “contrato-promessa”, sem primeiro ter tomado posição expressa sobre tal questão;
     30. Não existe unanimidade na doutrina na adesão à teoria que nega eficácia externas das obrigações, assente na clássica concepção da relatividade dos direitos de crédito, havendo AA que defendem a teoria oposta, a teoria da eficácia externa das obrigações, que defende que, nos direitos de crédito, haveria que descortinar, além de um lado interno - relativo ao vínculo credor/devedor -, também um lado externo, em que estaria em causa a projecção do crédito em relação a terceiros, que deveriam respeitá-lo, como os demais direitos;
     31. De acordo com tal teoria, o terceiro que, com conhecimento, lese o direito de crédito poderá ser responsabilizado perante o credor, por aplicação das regras da responsabilidade civil.
     32. Estando perante uma questão controvertida e baseando-se a decisão na solução de uma questão de direito controvertida, o Tribunal recorrido deveria ter ponderado o risco de o ganho em economia processual que a decisão antecipada representava vir a ser anulado e excedido pela perda resultante de eventual revogação da decisão em recurso;
     33. As vantagens com a apreciação de tal excepção, desde logo no saneador, revelavam-se claramente diminutas face às graves desvantagens decorrentes de uma decisão de provimento de um recurso cuja interposição seria mais do que expectável;
     34. O Tribunal recorrido, com a decisão tomada, revela claramente não ter feito tal ponderação;
     35. Também pelas razões acabadas de apontar o despacho recorrido padece do referido vício de erro de julgamento;
     36. Não sendo aplicável ao caso a referida teoria ou, sendo a mesma aplicável, o estado do processo não permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação da excepção peremptória aqui em causa;
     37. Resulta do artigo 5º do CPC, que consagra o princípio do dispositivo, que é às partes que cabe a formação da matéria de facto da causa, através da alegação dos factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções peremptórias;
     38. Nos termos das regras de prova plasmadas nos artigos 335º, 337º, 343º e 788º do Código Civil, no caso vertente cabe ao autor provar os factos constitutivos do direito invocado e à Recorrente os factos impeditivos, modificativos e extintivos desse direito;
     39. No entanto, tal actividade probatória pressupõe que a matéria de facto relevante para a decisão da causa seja previamente seleccionada pelo tribunal segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito;
     40. Assim, um dos pressupostos da aplicação do artigo 429.º, n.º 1, alínea b), do CPC é o de não existirem outras soluções plausíveis a carecer de instrução;
     41. Ora, delimitando o litígio, os Autores afirmam que a Ré, ora Recorrente, incumpriu um contrato por impossibilidade superveniente que lhe é imputável e que os deve indemnizar pelos danos decorrentes da impossibilidade de cumprimento; a Recorrente afirma que a existir tal impossibilidade, a mesma lhe não é imputável, mas a um terceiro, e que isso interfere na obrigação de indemnizar que os Autores lhe atribuem.
     42. A solução de direito é completamente diferente numa e noutra situação;
     43. Se existir tal impossibilidade do cumprimento da obrigação e a mesma for imputável à Ré, esta responde por incumprimento culposo, nos termos do artigo 790º do Código Civil;
     44. No entanto, se essa impossibilidade não for imputável à Ré, esta apenas responde nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa, conforme o estipula o artigo 784º/1 do mesmo Código;
     45. Se os factos que constituem a excepção não forem incluídos na seleção da matéria de facto, fica a Recorrente impedida de provar a sua defesa e fica o Tribunal impedido de aferir da solução de direito plasmada no nº 1 do artigo 784º do Código Civil;
     46. Do mesmo modo, não se poderia estabelecer ou afastar o alegado direito de regresso da Recorrente sobre a Interveniente;
     47. Quanto ao facto de a Intervenção ser acessória e não principal, precisamente por ser acessória é que não estava em causa a condenação da RAEM nos presentes autos, mas antes o apuramento da sua responsabilidade através da factualidade que fosse provada;
     48. O que se discute é a eficácia dos factos praticados pela RAEM, enquanto factos jurídicos stricto sensu e não enquanto negócios jurídicos;
     49. É a eficácia jurídica da actuação do terceiro que está em causa e não a eficácia jurídica de qualquer contrato que esse terceiro celebrou com a Recorrente;
     50. A Recorrente deu cumprimento à segunda parte do artigo 5º do CPC, alegando os factos necessários ao preenchimento da sua defesa e juntando dezenas de documentos em suporte dos factos novos, impeditivos do direito que se arrogam os autores, documentos esses que, aliás, constam dos autos;
     51. Pelo que, é pertinente apurar tais factos e sem tal apuramento não estão reunidos os pressupostos necessários ao conhecimento do mérito da acção na fase do saneador;
     52. A decisão recorrida ignorou as várias soluções plausíveis de direito, que lhe impunham a fixação dos factos pertinentes excepcionados eventualmente já provados, e não procedeu, quanto aos controvertidos, à elaboração do “questionário” em base instrutória que, novamente, respeitasse as várias soluções plausíveis da questão de direito (cfr. art. 430º, n.º 1, do CPC)”;
     53. Deveria, assim, o Mmo. Juiz a quo aplicar o artigo 430.º, n.º 1, do CPC, em vez de aplicar o artigo 429.º, n.º 1, alínea b), do mesmo Código;
     54. Não o tendo feito, além de incorrer em nulidade, incorreu em erro de julgamento;
     55. A douta decisão recorrida oblitera a defesa da Recorrente com base na imputabilidade da impossibilidade definitiva do cumprimento a terceiro, denegando à Recorrente a justiça a que tem direito;
     56. O despacho recorrido viola, nomeadamente, as normas dos artigos 1º, 5º, 429º, nº 1, al. b), 430º, nº 1, 562º, nºs. 2 e 3, e 571º, nº 1, als. b) e d), todos do CPC, bem como os artigos 343º, 400.º/2, 784º e 788º do Código Civil.
     Nestes termos e nos mais de direito aplicável, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente Recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, anulada a douta decisão recorrida com as demais consequências legais, assim se fazendo, serenamente, Justiça.”
     
Durante a fase de instrução, a ré solicitou, entre outras diligências, a realização de certas informações que não foi autorizada pelo Tribunal a quo.
Inconformada, recorreu a ré jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
     “1. Com base nos n.os 2, 3, 7 e 8 do Despacho do Chefe do Executivo n.º 89/19, de 30 de Maio, os Autores nos presentes autos reúnem todos os requisitos necessários a candidatarem-se com sucesso à aquisição de uma fracção autónoma no mesmo terreno, com a mesma área e pelo mesmo preço da fracção que adquiriu à Recorrente;
     2. E, nos termos do n.º 1 do mesmo Despacho, apenas dispõem desta possibilidade porque são compradores de uma fracção autónoma à Ré a ser construída no terreno supra mencionado;
     3. A diligência de prova requerida pela Recorrente consistiu no pedido de notificação aos Autores para informarem se se candidataram a uma habitação para troca, ao abrigo da legislação supra citada e, em caso afirmativo, se tal candidatura foi aceite e sob que condições, devendo juntar aos autos toda a documentação pertinente que tiver na sua posse;
     4. Tal diligência de prova foi indeferida pelo Mmo. Juiz a quo com o fundamento de que é irrelevante para a boa decisão da causa;
     5. No entanto, se os Autores têm a possibilidade de, afinal, cerca de 10 anos mais tarde, pagarem por uma fracção autónoma a construir no mesmo terreno, com a mesma área e tipologia e preço de uma fracção das fracções que haviam acordado com a Recorrente em 2011, sem dúvida que se o valor dessa fracção aumentar quando a receberem, os Autores verão os seus alegados prejuízos colmatados ou diminuídos;
     6. A verificarem-se estes factos, pode configurar-se uma situação de enriquecimento sem causa e de abuso de direito, conforme se prevê nos artigos 467.º e 326.º do Código Civil;
     7. O que é seguro é que a diligência de prova requerida está directamente ligada ao quantum indemnizatório a ser fixado em caso de procedência total ou parcial da acção, concretamente, no caso de ser proferida decisão com base na equidade;
     8. Existe a possibilidade, oficiosamente ou a requerimento das partes, de uma das soluções plausíveis de direito ser a da fixação de uma indemnização com base na equidade, mediante a aplicação do artigo 801.º do CC;
     9. Para o Tribunal poder proferir um tal juízo, na posse de todos os factos que para esse efeito possam ser relevantes, é sem dúvida pertinente apurar os factos que decorrerão da diligência probatória requerida pela Ré e que acima se descreveu;
     10. Ainda que existam dúvidas sobre a pertinência de tal diligência probatória, é entendimento pacífico nas instâncias que deve o juiz deferir uma tal diligência (v.g., Acórdãos do TSI, de 12/03/2020, proc. n.º 637/2019, do TUI, de 25/07/2012, proc. n.º 46/2012);
     11. Nos termos dos artigos 6.º, 8.º, 442.º, 455.º e 456.º do CPC, quer o tribunal, quer as partes, devem cooperar no sentido da justa composição do litígio;
     12. Acresce que os presentes autos serão julgados por outro juiz, a quem cabe proferir a decisão final;
     13. O juiz que elaborar e proferir a sentença pode, eventualmente, considerar que tal factualidade é relevante, o que constitui mais uma razão para o deferimento da diligência probatória requerida;
     14. O despacho recorrido violou, nomeadamente, as normas dos artigos 6.º/3, 8.º, 442.º e 455.º/2, todos do CPC.
     Nestes termos e nos mais de Direito aplicável, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente Recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, revogada a douta decisão recorrida, com as demais consequências legais, assim se fazendo, serenamente, Justiça.”

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente.
Inconformada, interpôs a ré recurso jurisdicional para este TSI, tendo formulado as seguintes conclusões alegatórias:
     “1. Constitui objecto do presente Recurso a, aliás, douta sentença do Tribunal Judicial de Base, que julgou parcialmente procedente a presente acção e condenou a Recorrente no pagamento de uma indemnização à Recorrida, no montante global de HKD$4.416.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal de 9,75% ao ano, a contar desde a data da citação da Recorrente e até integral pagamento.
     2. Não se logrou provar em julgamento que a vontade real das partes contratantes foi a da antecipação do cumprimento da obrigação a cargo do comprador, o que obviou à ilisão tout-court da presunção legal de que beneficia o “promitente-comprador”, derivada do artigo 435º do Código Civil (CC), mas, salvo melhor opinião, se a ilisão não ocorreu por esta via, ocorre pela via da operação jurídica de qualificação do contrato.
     3. A qualificação do contrato passa pela interpretação das suas cláusulas, tendo em conta as regras contidas nos artigos 228º (sentido normal da declaração), 229º (casos duvidosos) e 230º (negócios formais) do CC.
     4. A respeito da letra dos contratos, refira-se que as partes podem usar terminologia jurídica e fazer qualificações, mas esse aspecto não é vinculativo para o intérprete-aplicador.
     5. In casu, embora as partes intitulem o contrato como “contrato-promessa”, trata-se de uma tradução imprecisa de “Mai Lou Fa” (買樓花), em língua chinesa, cujo significado seria mais correctamente traduzido para “contrato de compra e venda em projecto”.
     6. Expressões como “o preço” ou a “venda” abundam na letra do contrato (vg. Cláusulas 2, 3, 4, 6, 8, 9, 10 e 26), apontando para uma compra e venda imediata de um bem futuro, carente apenas da sua redução a escritura pública.
     7. A expressão e conceito de “sinal” não aparece uma única vez no clausulado.
     8. Oralmente, em cantonense : “sinal” e “depósito” pronunciam-se ambos “Teng Kam”, todavia, tratando-se de diferentes conceitos, a escrita é naturalmente diferente: “sinal” escreve-se com os caracteres “定金” e “depósito” escreve-se com os caracteres “訂金”.
     9. Na versão original, em chinês, da cláusula 5ª dos contratos em apreço, os caracteres são “訂金”, significando “depósito”.
     10. As partes, ao optarem e acordarem numa redacção que excluiu propositadamente a utilização da expressão “訂” referente ao conceito de “sinal” (com o sentido de penalização), em prol da expressão “訂金”, correspondente ao conceito de “depósito” (que não tem sentido penalizador), estão a manifestar a sua vontade em afastar a qualificação de sinal aos pagamentos efectuados por conta do contrato em causa.
     11. Como refere Menezes Cordeiro no Parecer Jurídico ora junto, essas prestações devem ser qualificadas como “reserva” e não como “sinal” (vd. págs. 67 e 68 do Parecer).
     12. Por seu turno, a cláusula 22ª do mesmo contrato afasta, tacitamente, a possibilidade de a Recorrente poder fazer obras nas próprias fracções.
     13. O que, salvo melhor opinião, significa que os poderes da Recorrente se, circunscrevem à estrutura e à concepção estética do edifício e que, quanto às fracções autónomas transaccionadas, os adquirentes são livres de as decorar e apetrechar conforme lhes aprouver, desde que não interfiram com a estrutura e estética do edifício.
     14. A cláusula 22ª não indicia que as partes celebraram uma promessa de compra e venda em vez de uma compra e venda de um bem futuro.
     15. A previsão da cláusula 9ª dos contratos em apreço, tem por fim, por um lado, possibilitar à Recorrente conhecer o novo titular da obrigação de pagamento das prestações acordadas com o cedente até à entrega e ocupação da fracção transmitida e, por outro lado, fiscalizar, a legalidade da transmissão, nomeadamente, evitando a transferência da mesma fracção a diferentes terceiros.
     16. Do mesmo modo, qualquer cessão, para produzir efeitos, implica a autorização do Cedido, nos termos do artigo 418º do CC, derivando desta obrigatoriedade a circunstância de a mesma estar prevista na cláusula 9ª.
     17. In casu, futuramente, com a entrega da fracção após construída, a Recorrente fica totalmente desligada das razões que estavam na base de tal cláusula, pelo que desaparece a sua aplicabilidade.
     18. A necessidade de se celebrar no futuro uma escritura pública de compra e venda é, nos termos do artigo 866º do CC, uma formalidade absolutamente essencial.
     19. Assim, sendo ou não contrato-promessa, os contratos em causa teriam sempre que ser formalizados através da celebração de um segundo contrato, nomeadamente da referida escritura.
     20. Pelo que, ressalvado diverso entendimento, também não é por via da cláusula 9ª dos contratos em apreço que se pode qualificá-los como contratos-promessa.
     21. Já as suas cláusulas 10ª a 12ª são previsões que raramente ou nunca são reguladas no contrato-promessa, mas sim no contrato de compra e venda.
     22. As obrigações da Recorrente previstas nos contratos em causa incluem a obrigação de construir e de entregar a fracção autónoma objecto desse contrato, sendo que a obrigação de entregar a coisa é um efeito essencial da compra e venda e não do contrato-promessa (al. b) do artigo 869º do CC).
     23. Os textos preliminares e circundantes conectados com os contratos em questão, designadamente, os documentos de fls. 68 e 71 e os recibos de pagamento, onde se escreveu sempre a palavra “preço” (價金), também apontam, no caso vertente, para uma perspectivação dos contraentes outra que não a do contrato-promessa.
     24. Relativamente ao elemento histórico subjacente aos contratos em causa, há a destacar que o contrato foi celebrado antes da publicação da Lei nº 7/2013, que foi elaborada em resposta a um vazio legal que disciplinasse estes casos, o que permite vincar a sua especificidade em relação às figuras existentes a esse tempo na ordem jurídica de Macau, incluindo a figura do contrato-promessa tipificada no Código Civil.
     25. Como afirma João Vicente Monteiro na sua mais recente obra, Código do Registo Predial de Macau Anotado, pág. 299, “Estes ‘contratos-promessa’ têm sido tradicionalmente utilizados para formalizar verdadeiros contratos de compra e venda sobre as fracções autónomas em construção”.
     26. Daí que os contratos ora em discussão possuem em anexo a planta de cada fracção respectivamente adquirida, escolhidas, em projecto, pelos Recorridos.
     27. O negócio jurídico é um instrumento usado pelas partes para prosseguir certos fins, sendo um poderoso factor de modelação das diversas cláusulas.
     28. In casu, o fim do negócio tido em vista pelas partes era o de, para a Autora, obter a propriedade de um imóvel a ser construído e entregue pela Ré no futuro e, para esta, o de, em contrapartida, receber um determinado preço acordado entre as partes.
     29. Com efeito, por este contrato, um imóvel a ser construído fica reservado a favor de uma das partes a qual, por ele, paga uma certa quantia.
     30. Se o beneficiário desistir perde essa quantia a favor da outra parte; quando não, o contrato mantém-se. Em contrapartida, o vendedor deixa de poder dispor da fracção autónoma reservada, não podendo celebrar nenhum outro contrato com terceiros que tenha por objecto essa fracção autónoma. É este o fim do negócio tido em mente pelas partes.
     31. O que se revela mais plausível e consentâneo com a aplicação das regras plasmadas entre os artigos 228º e 230º do CC é que se trata de um contrato de reserva ou de um contrato de compra e venda de um bem futuro.
     32. Subsidiariamente, mesmo que se entenda que os contratos em discussão nos presentes autos se tratam de contratos-promessa típicos, a verdade é que, por todo o exposto em sede de alegação do presente Recurso quanto à interpretação das declarações negociais, as quantias que a Recorrente recebeu configuram um cumprimento antecipado tendo em vista a satisfação de obrigação futura.
     33. A indemnização a cargo da Recorrente e a favor dos Recorridos deve, existindo, ser calculada, crêmos nós, com base nas regras do instituto do enriquecimento sem causa.
     34. Aplicando-se ao caso subjudice as regras do enriquecimento sem causa, o valor total da indemnização cifra-se em HKD$6.265.000,00, equivalentes a MOP$6.411.750,00, acrescido dos respectivos juros calculados pela forma sentenciada.
     35. Ressalvado diverso entendimento, a douta decisão recorrida incorre na violação dos artigos 228º, 229º, 230º, 435º, 436º, 467º e 473º/1 do Código civil.
     Nestes termos e nos mais de direito aplicável, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente Recurso ser julgado procedente com as legais consequências, assim se fazendo, serenamente, Justiça.”

Ao recurso responderam os autores pugnando pela negação de provimento ao recurso.
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Feito o julgamento, a primeira instância deu como provada a seguinte factualidade:
A R. é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto o fomento predial e a construção e reparação de edifícios – cfr. documento a fls. 35 a 39.
Em 16 de Março de 2011, a R., como promitente-vendedora, e o A. marido, como promitente-comprador, celebraram quatro contratos-promessa de compra e venda (樓宇買賣預約合約), mediante os quais a R. prometeu vender, e o A. marido prometeu comprar, quatro fracções autónomas para habitação de um edifício a construir, denominado “D”, sito Macau, na Zona da Areia Preta, s/n, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 22380-V e aí inscrito sob o número 2534, do Livro F17M, a favor da R., a saber:
a) Fracção autónoma designada pela letra “A16”, correspondente ao 16.º andar “A”;
b) Fracção autónoma designada pela letra “B16”, correspondente ao 16.º andar “B”;
c) Fracção autónoma designada pela letra “G16”, correspondente ao 16.º andar “G”;
d) Fracção autónoma designada pela letra “H16”, correspondente ao 16.º andar “H”
– cfr. documentos a fls. 40 a 54, cujo teor aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
As fracções autónomas referidas em B seriam transaccionadas, respectivamente, pelos preços de HKD4.950.000,00 (quatro milhões novecentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong), HKD4.260.000,00 (quatro milhões duzentos e sessenta mil dólares de Hong Kong), HKD4.090.000,00 (quatro milhões e noventa mil dólares de Hong Kong) e HKD4.600.000,00 (quatro milhões e seiscentos mil dólares de Hong Kong), tudo perfazendo o valor global de HKD17.900.000,00 (dezassete milhões e novecentos mil dólares de Hong Kong) – cfr. documentos a 40 a 54.
Os AA. pagaram à R., no dia da assinatura dos contratos referidos em B., o valor global de HKD6.265.000,00 (seis milhões duzentos e sessenta e cinco mil dólares de Hong Kong), o qual correspondia aos seguintes:
a) A quantia de HKD1.732.500,00 quanto à fracção “A16”;
b) A quantia de HKD1.491.000,00 quanto à fracção “B16”;
c) A quantia de HKD1.431.500,00 quanto à fracção G-16;
d) A quantia de HKD1.610.000,00 quanto à fracção H-16;
– cfr. documentos a fls. 40 a 54.
Os contratos referidos em B foram inscritos na Conservatória do Registo Predial em 20/05/2014, sob os n.ºs 278404G; 278406G, 278407G e 278408G, respectivamente – cfr. documento a fls. 55 a 73.
O lote de terreno (“P”) onde se localizaria o prédio, e do qual seriam parte integrante as fracções referidos em B, foi concessionado à R. (concessão por arrendamento) por contrato aprovado pelo Despacho n.º 160/SATOP/90, publicado no Boletim Oficial de Macau, Suplemento ao n.º 52, de 26 de Dezembro de 1990 – cfr. documento a fls. 74 a 80 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
Nos termos do Despacho n.º 160/SATOP/90, a R. comprometeu-se perante o Governo da RAEM, nos termos da “Cláusula quinta – prazo de aproveitamento” da minuta do contrato, a cumprir o seguinte:
“1. O aproveitamento do TERRENO bem como de todas as obras referidas na cláusula terceira, deverá operar-se no prazo global de 60 meses contados a partir da data da publicação no Boletim Oficial do despacho que autoriza o presente CONTRATO.
2. Dentro do prazo global, estipulado no número anterior, o SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a concluir:
2.1. Todas as obras respeitantes ao aterro no prazo de 18 meses.
2.2. A via marginal assinalada pela letra B na planta 2.2. com o n.º 3333/90 de DSCC até ao final do primeiro semestre de 1992.
2.3. Todas as restantes obras de infra-estruturas referidas na cláusula terceira, - incluindo o terminal marítimo – no prazo de 30 meses.
2.4. Os edifícios destinados à instalação da unidade têxtil, no prazo de 30 meses.
3. Após a concessão pelo PRIMEIRO OUTORGANTE das áreas mencionadas no número 3 da cláusula primeira, o SEGUNDO OUTORGANTE disporá de um prazo adicional de 12 meses relativamente do lote V. No que diz respeito ao lote Pb o prazo global para o respectivo aproveitamento será de trinta meses contados a partir da publicação do despacho que autoriza o presente contrato, conforme referido no ponto 2.4. da primeira cláusula.
4. O SEGUNDO OUTORGANTE deverá elaborar e apresentar no prazo de 90 dias, para aprovação do PRIMEIRO OUTORGANTE, um programa de execução de trabalhos detalhado que tenha em conta quer o prazo global quer os prazos parciais estipulados nos números anteriores desta cláusula.
5. Sem prejuízo do estipulado nos números anteriores, o SEGUNDO OUTORGANTE deverá, relativamente à apresentação dos projectos, observar os seguintes prazos:
a) Noventa dias, contados da data da publicação do despacho mencionado no número anterior, para a elaboração e apresentação do anteprojecto de obra (projecto de arquitectura);
b) Noventa dias, contados da data da notificação da aprovação do anteprojecto de obra, para a elaboração e apresentação do projecto de obra (projecto de fundações, estruturas, águas, esgotos, electricidade e instalações especiais);
c) Quarenta e cinco dias, contados da data da notificação da aprovação do projecto de obra, para o início das obras.
6. Para efeitos do cumprimento dos prazos referidos no número anterior, os projectos só se consideração efectivamente apresentados quando completa e devidamente instruídos com todos os elementos.
7. Para efeitos da contagem do prazo referidos no número um desta cláusula, entender-se-á que, para a apreciação de cada um dos projectos referidos no número dois, os serviços competentes observarão um prazo de sessenta dias.
8. Caso os serviços competentes não se pronunciem no prazo fixado no número anterior, o SEGUNDO OUTORGANTE poderá dar início à obra projectada trinta dias após comunicação por escrito à Direcção dos Serviços de Solos e Obras Públicas e Transporte, sujeitando, todavia, o projecto a tudo o que se encontra disposto no Regulamento Geral da Construção Urbana ou em quaisquer outras disposições aplicáveis e ficando sujeito a todas as penalidades previstas naquele Regulamento Geral da Construção Urbana, com excepção da estabelecida para a falta de licença. Todavia, a falta de resolução, relativamente ao anteprojecto de obra, não dispensa o SEGUNDO OUTORGANTE da apresentação do respectivo projecto de obra.”
Pese embora as condições acordadas com o concedente, a concessionária, aqui a R., ainda antes de iniciado o aproveitamento solicitou por duas vezes a alteração da finalidade do referido lote de terreno.
A primeira alteração de finalidade requerida pela Ré concessionária ao concedente visou a mudança de uma unidade fabril de fiação e tecelagem para uma outra de têxteis para roupa de casa e vestuário, o que foi autorizado pelo Despacho n.º 123/SATOP/99, publicado no Boletim Oficial de Macau, n.º 50, II Série, de 17 de Dezembro de 1999 – cfr. documento a fls. 81 a 82.
Posteriormente, a R. requereu uma segunda alteração de finalidade, de indústria para comércio e habitação, que viria a ser autorizada pelo Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 19/2006, publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau, n.º 9, II Série, de 1 de Março de 2006 – cfr. documento a fls. 83 a 88.
O prazo de arrendamento expirou em 25 de Dezembro de 2015, em virtude desse prazo de vinte e cinco anos ser contado a partir da data da publicação do Despacho n.º 160/SATOP/90, que titulava a concessão, ou seja, 26 de Dezembro de 1990.
O aproveitamento do lote “P” encontrava-se apenas parcialmente realizado.
O prazo de aproveitamento do terreno foi fixado em 96 meses a contar da data da publicação do Despacho n.º 19/2006, ou seja, 1 de Março de 2006.
A R. requereu a prorrogação do prazo de aproveitamento, em 04/06/2014 – cfr. documento a fls. 939 a 940.
Na sequência do requerimento da R., a Comissão de Terras reuniu-se em 26/06/2014 e emitiu parecer no seguinte sentido:
“Relativamente à carta apresentada pela concessionária em 4 de Junho de 2014, esta Comissão realizou uma nova reunião e após o estudo e análise do processo, considerou que caso se emitisse parecer favorável à prorrogação do prazo de aproveitamento do terreno, mesmo sabendo da impossibilidade da concessionária concluir o aproveitamento do terreno dentro do prazo de arrendamento, criar-se-ia evidentemente na mesma a expectativa de que talvez ainda pudesse continuar a aproveitar o terreno depois do termo do prazo de arrendamento. Por outro lado, a concessão provisória não poderá ser convertida em definitiva porquanto o aproveitamento do terreno não poderá ficar concluído antes do termo do prazo de arrendamento, impondo-se nessa altura declarar a caducidade da concessão. Para além disso, a Administração não pode comprometer-se a conceder novamente o terreno originário, uma vez que nos termos da Lei n.º 10/2013 (Lei de terras), a nova concessão deve ser efectuada através de concurso público. Para além disso, estima-se que mesmo que o prazo de aproveitamento seja prorrogado, a concessionária só possa concluir parte das obras de fundação, podendo, no entanto, isto criar indirectamente condições favoráveis à concessionária para que esta se aproveite do facto como fundamento para lograr ficar com a concessão do terreno.”
O Secretário para as Obras Públicas emitiu parecer em 10/07/2014, nos termos do qual referiu o seguinte:
“Analisado o parecer da Comissão de Terras e ponderando (…) a carta da concessionária (…), concordo, em princípio, com (…) prorrogar o prazo de aproveitamento até 25 de Dezembro de 2015 e aplicar a multa no montante de MOP$180,000.00, pressupondo que a Sociedade concessionária aceite previamente por escrito as seguintes condições, para garantir interesses públicos:
1. Se não for completado o aproveitamento antes da prescrição de arrendamento, mesmo estando preenchidos os requisitos previstos no art.º 5.º da Lei n.º 7/2013 (Regime jurídico da promessa de transmissão de edifícios em construção), a Sociedade concessionária não vai pedir autorização prévia para fazer negócios jurídicos de promessa de transmissão ou oneração de edifícios em construção no lote P, nem vai realizar esses negócios jurídicos, excepto a eventual obtenção legal de nova concessão desse terreno;
2. Se não mais lhe for concedido o terreno, a Sociedade concessionária não pode pedir à RAEM qualquer indemnização ou compensação.”
Em 29/07/2014 foi enviado à R. um ofício assinado pela Directora Substituta da DSSOPT em que se dizia o seguinte:
“2. Como o atraso do aproveitamento do terreno é imputável à vossa empresa, e tendo em conta que esta não é a primeira vez que a vossa empresa requer prorrogar o aproveitamento de terreno, e visto que já concordou aceitar a forma de punição para o atraso prevista no contrato; para o efeito, nos termos do Despacho proferido pelo Chefe do Executivo aos 15 de Julho de 2014, autoriza-se prorrogar o prazo de aproveitamento do terreno até 25 de Dezembro de 2015, e aplica-se a multa no valor de MOP$180000,00 (cento e oitenta mil patacas). Mas para garantir os interesses públicos, a empresa concessionária obriga-se previamente a prometer por escrito aceitar as seguintes condições:
2.1. Antes de o prazo de concessão por arrendamento do terreno caducar, se o aproveitamento do terreno ainda não for concluído, mesmo se está de acordo com os requisitos dispostos no artigo 5.º da Lei n.º 7/2013, Regime jurídico da promessa de transmissão de edifícios em construção, a concessionária não vai pedir autorização prévia para efectuar os actos jurídicos da promessa de transmissão do edifício em construção no Lote “P” ou da promessa de oneração, nem vai praticar esses actos jurídicos, excepto se o terreno for concedido de novo nos termos legais;
2.2. Se no futuro o terreno não for concedido nos termos legais, a empresa concessionária não pode reclamar qualquer indemnização ou compensação à RAEM.”
Em 04/08/2014, a R. comunicou ao Director dos Serviços das Obras Públicas e Transportes que aceitar as seguintes condições:
“2.1. Antes de o prazo de concessão por arrendamento do terreno caducar, se o aproveitamento do terreno ainda não for concluído, mesmo se está de acordo com os requisitos dispostos no artigo 5.º da Lei n.º 7/2013, Regime jurídico da promessa de transmissão de edifícios em construção, a concessionária não vai pedir autorização prévia para efectuar os actos jurídicos da promessa de transmissão do edifício em construção no Lote “P” ou da promessa de oneração, nem vai praticar esses actos jurídicos, excepto se o terreno for concedido de novo nos termos legais;
2.2. Se no futuro o terreno não for concedido nos termos legais, a empresa concessionária não pode reclamar qualquer indemnização ou compensação à RAEM.”
Em 13 de Março de 2015, a R. requereu ao Chefe do Executivo da RAEM a prorrogação dos prazos de concessão e de aproveitamento do terreno concessionado, designado por lote «P», sito nos aterros da Areia Preta, onde seria construído o edifício D.
Por despacho de 30 de Novembro de 2015, o Chefe do Executivo indeferiu o requerimento da R., referido em S., em que esta solicitava a prorrogação dos prazos de concessão e de aproveitamento do terreno concessionado para construção da edificação onde se integrariam as fracções prometidas vender.
Em 26 de Janeiro de 2016, por Despacho do Senhor Chefe do Executivo, a que foi dada publicidade pelo Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 6/2016, publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau, n.º 4, II Série, 4.º Suplemento, de 29 de Janeiro de 2016, foi declarada a caducidade da concessão do terreno – cfr. documento a fls. 89 a 90 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
A R. interpôs recurso contencioso do despacho do Chefe do Executivo de 26 de Janeiro de 2016, que declarou a caducidade da concessão por arrendamento do terreno, tendo essa impugnação corrido termos junto do Tribunal de Segunda Instância sob o n.º 179/2016.
Por acórdão de 19 de Outubro de 2017, proferido nos autos do Proc. n.º 179/2016 acima referido, o TSI julgou improcedente o recurso contencioso interposto pela R., tendo sido confirmado o acto impugnado.
Deste acórdão interpôs a R. recurso para o Tribunal de Última Instância, que correu os seus termos sob o n.º 7/2018, o qual negou provimento ao recurso por acórdão de 23 de Maio de 2018.
Por carta registada com aviso de recepção, datada de 30 de Maio de 2019, foi a R. interpelada para, face à impossibilidade definitiva de cumprimento da promessa de venda das fracções autónomas que os AA. se haviam comprometido a adquirir, em virtude da declarada e irreversível caducidade da concessão, proceder ao pagamento ao promitente-adquirente, nos termos legais, e no prazo de quinze dias, do valor de HKD 12.530.000,00 (doze milhões quinhentos e trinta mil dólares de Hong Kong), correspondente ao dobro dos sinais pagos pelos AA. à R., quantia que deveria ser acrescida dos respectivos juros de mora, a contar da data do trânsito em julgado da decisão do Tribunal de Última Instância, que confirmou a decisão de declaração da caducidade proferida pelo Senhor Chefe do Executivo – cfr. documento a fls. 91 a 95.
A carta interpelatória enviada pelos AA. à R., referida em Q., foi recebida pela destinatária em 3 de Junho de 2019 – cfr. documento a fls. 96.
No dia 16/03/2011 a R. celebrou por escrito com o A. marido os quatro acordos intitulados de contrato-promessa de compra e venda (樓宇買賣預約合同) incidentes sobre as referidas fracções autónomas “A16”, “B16”, “G16” e “H16”. No referido dia 16/3/2011 o projecto onde seriam construídas as referidas fracções autónomas já tinha sido aprovado pela entidade pública competente com indicação que não seria emitida licença de construção sem que fosse apresentado e aprovado relatório de estudo de impacto ambiental. O mencionado relatório foi apresentado e aprovado após parecer favorável da DSPA de 29/08/2013. (Q 1.º)
O edifício “D”, que a R. projectava construir e onde se integrariam, após conclusão, as fracções autónomas referidas em B não mais poderá ser construído no terreno concessionado nos termos em que havia sido projectado e acordado. (Q 2.º)
Nos contratos referidos em B. e nos recibos de pagamento escreveu-se a palavra “preço”. (Q 3.º)
*
Comecemos pela análise dos recursos interlocutórios.
A recorrente entende que o Tribunal não deveria ter apreciado a excepção peremptória no saneador, sustentando que a questão deveria ser resolvida apenas na sentença final.
Entretanto, essa posição não procede.
Conforme disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 429.º do CPC, o juiz pode conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permita, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do pedido ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
Assim, se, até à fase do saneador, não há necessidade de mais prova, o Tribunal deve apreciar as questões suscitadas. Caso contrário, ao determinar o prosseguimento dos autos, estaria a praticar actos inúteis.
Essa situação de desnecessidade na produção de mais prova inclui também os casos em que os factos que fundamentam a excepção peremptória são inconcludentes.1
De facto, se o Tribunal considera que, mesmo que todos os factos alegados pelas partes sejam provados, algum pedido ou excepção peremptória não é viável, não há impedimento para que se decida já no despacho saneador, sob pena de incorrer em actos inúteis.
No caso em apreço, o juiz a quo apreciou a excepção peremptória invocada pela ré, conforme os seguintes termos transcritos:
“根據《民事訴訟法典》第429條第1款b項規定,只要訴訟程序之狀況容許無需更多證據已可全部或部分審理所提出之一個或數個請求,又或任何永久抗辯,法庭即可立即審理案件之實體問體。
本案中,被告在答辯狀中提出永久抗辯,使用大量篇幅陳述與被告和輔助人之間的批給土地關係有關的事實,認為涉案預約買賣合同之履行不能應歸責於輔助人的一系列行為,而不應歸責於被告本身。
根據《民法典》第788條第1條規定,在合同範疇,就債務之不履行,須由債務人證明非因其過錯造成;換言之,屬於過錯推定的情況。據此,結合《民法典》第337條第1款的規定,應由債務人承擔非因其過錯造成債務不履行之舉證責任。
因此,本案中,應由被告陳述和證明非因其過錯造成涉案預約買賣合同的不履行。
然而,除應有的尊重外,法庭認為,即使被告所陳述的事實全部獲得證實(在答辯狀中“預約買賣合同之履行不能應歸責於輔助人”永久抗辯中的事寶,在此視為完全轉錄),被告的理由亦明顯不能成立;或者說,被告所提出者明顯不是對有關法律問題可予接受之解決方法。
根據《民法典》第400條第2 款規定,僅在法律特別規定之情況及條件下,合同方對第三人產生效力。
在此可以參見葡萄牙最高法院2012年5月29日在第3987/07.9TBAVR.C1.S1號合議庭裁判中的司法見解:
“I - É tradicional e prevalente, na doutrina portuguesa, a teoria que nega a eficácia externa das obrigações, assente na concepção clássica da relatividade dos direitos de crédito, que apenas podem ser violados pelas partes, em contraposição com os direitos reais que são oponíveis erga omnes.
II - Só nos casos em que ocorra abuso do direito de terceiro se deve admitir a eficácia externa das obrigações.
III - Assim, só em casos particularmente escandalosos - quando o terceiro tenha tido intenção ou pelo menos consciência de lesar os credores da pessoa directamente ofendida ou da pessoa com quem contrata - é que poderá ser justificado quebrar a rigidez da doutrina tradicional e admitir a eficácia externa das obrigações.”
首先,原告和被告之間的預約買賣合同不具物權效力,原告也從未取得相關單位的所有權,因而不能主張擁有任何形式的物權,原告所擁有的只不過是因預約買賣合同而產生的單純債權。這樣,基於債權的相對性,它只會在合同的雙方當事人之間(即原告和被告之間)產生效力,不會延伸到合同以外的第三人(包括輔助人)。原告的債權亦只會被作為債務人的被告侵犯,不會像具有對外效力的物權一樣,可能被任何人侵犯。
只有當出現法律明文規定的特殊情況,又或者當第三人知道債權人和債務人之間的特殊關係,但仍作出特別具譴責性的行為,尤其是當出現其濫用權利的情況時,第三人才可能因為侵犯合同當事人的債權而須對其承擔責任。
綜觀被告陳述的內容,都不屬於上述條文及司法見解提及的極少數的第三人因侵犯合同債權而須承擔責任的情況。
原告和被告之間的預約買賣合同屬於一個法律關係,而被告獲輔助人批給土地又是另一個法律關係。面對原告聲稱遭到侵犯的債權,輔助人正是處於第三人的法律地位。有關土地批給合同屬於行政合同,合同外的第三人只有在合同當事人基於違法的合同條款損害其權益時,才能提起合同有效性之訴,又或者當合同中訂有保障其利益的條款時,才能提起執行合同之訴。然而,從輔助人與被告訂立的土地批給合同中,並不能衍生出原告等預約買受人的任何權利,原告或被告都沒有提出存在任何輔助人須對原告承擔責任的合同條款。這樣,根據債權之相對性理論,立即可以排除輔助人對原告的責任。
除此之外,輔助人也不存在對原告的過錯。即使被告陳述的有關事實全部獲得證實,也只可能是輔助人在執行土地批給合同的過程中對被告的過錯,不代表輔助人的行為對原告等預約買受人存有過錯,也不能因此推斷或證明被告在預約買賣合同的法律關係中就不存在過錯。不應將兩個法律關係中的過錯問題混為一談。
最後,更不存在濫用權利的情況。即使輔助人知道原告與被告之間的預約買賣合同以及其行為有可能侵害到原告的債權,但根據被告所陳述的事實,不足以顯示輔助人明顯違背善意原則的要求,或具備傷害原告的意圖;也不存在對善良風俗的違反,因為輔助人只不過是行使其在土地批给合同中作為批給人的權利以及法律賦予的職能,況且宣告土地失效的行為屬於被法律限定的行為,其合法性不容置疑;也不存在輔助人的行為明顯超越權利之社會或經濟目的所產生之限制的情況,因為看不到輔助人在行使其權利的過程中偏離了其職能。
綜合以上理由,就本案預約買賣合同,輔助人不對原告承擔任何責任。
實際上,被告正因為清楚知道輔助人不對原告承擔任何責任(故輔助人缺乏以主當事人身分參加訴訟之正當性),才選擇根據《民事訴訟法典》第272條的規定誘發輔助人以輔助方式參加本案,而不是誘發其作為主當事人一同參加訴訟。
倘若被告提出上述所謂抗辯的目的僅為證明非因其過錯造成預約買賣合同的不履行,那麼,如上所述,土地批給合同中的過錯和預約買賣合同的過錯屬於兩個不同的問題,不應將兩者混為一談。即使被告陳述的有關事實全部獲得證實,也只可能是輔助人在執行土地批給合同的過程中對被告的過錯,不能因此推斷或證明被告在預約買賣合同的法律關係中就不存在過錯。
綜上所述,裁定被告提出的預約買賣合同之履行不能應歸責於輔助人之抗辯理由不成立。
作出通知。”

A nosso ver, nenhuma censura merece a decisão recorrida. De facto, essa questão já foi objecto de apreciação por este TSI, que consolidou o entendimento de que a RAEM não é responsável pelo incumprimento do contrato-promessa celebrado entre autores e ré, salvo no caso de abuso de direito, o que não é o caso.
A título exemplificativo, cita-se o Acórdão deste TSI, no Processo n.º 22/2024, no qual se decidiu o seguinte:
“事實上,本院在涉及“D”事件的案件中已多次強調(見中級法院在卷宗編號1142/2019、1145/2019、1150/2019及1192/2019內作出的裁判),澳門特別行政區僅和土地承批人,即本案之被告,建立了法律關係;一切因應承批土地所作出的行為,均是針對土地承批人/被告而作出。因此,即使假設該等行為損害了土地承批人/被告的權益,例如無法如期利用土地而導致其需向預約買受人作出賠償,也只能是土地承批人/被告在履行其賠償義務後再向澳門特別行政區追討賠償,而非預約買受人可直接向澳門特別行政區追討因土地承批人/被告違反與其簽定的預約買賣合同的賠償責任。
如被訴批示所言,只有在澳門特別行政區濫用權利,行為特別惡劣的情況下其才需負上相關賠償責任,然而本案並不存在該等情況。”
Isto posto, improcede o recurso nesta parte.
*
A ré, posteriormente, solicitou que se ordenasse aos autores que declarassem se haviam requerido a atribuição de uma fracção autónoma com a mesma área e tipologia da fracção que alegaram ter adquirido à ré. Contudo, essa diligência probatória foi indeferida pelo juiz a quo.
É a seguinte decisão do juiz a quo:
“Quanto às informações solicitadas pela Ré sobre habitação para troca, cabe em primeiro lugar dizer que a instrução tem por objeto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devem considerar-se contravertidos ou necessitados de prova (artigo 433º do CPC).
Uma vez que as informações solicitadas pela Ré não são relacionadas com a matéria quesitada na base instrutória, podemos concluir que as mesmas não devem ser objecto de instrução e não são relevantes para a decisão de matéria de facto.
A Ré alega que o apuramento da matéria em causa é pertinente na eventualidade de uma decisão com recurso à equidade por aplicação do artigo 801º do CC.
Segundo o artigo 801º/1 do CC, a pedido do devedor, a pena convencional pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quanto for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário.
In casu, a Ré não formulou o pedido de redução equitativa de indemnização para troca, os prejuízos alegados pelos Autores podem resultar total ou parcialmente colmatados, Contudo, para que essa matéria possa ser avaliada, é necessário que a matéria em causa (os Autores foram atribuídos uma fracção autónoma com a mesma área e tipologia da fracção que alegam ter adquirido à Ré ao abrigo do regime de habitação para troca) seja quesitada na base instrutória. Como essa matéria não foi alegada nos articulados da Ré e não foi quesitada na base instrutória, entendemos que não há lugar a produção de prova sobre essa matéria.
Pelas razões expostas, por não se tratarem de informações relevantes e pertinentes para a decisão de causa, indefere-se o pedido de solicitação de informações sobre a habitação para troca.”

Sem necessidade de delongas considerações, julgamos correcta a decisão recorrida, não assistindo razão à ré recorrente, uma vez que a referida diligência probatória visava demonstrar que os autores adquiriram uma fracção autónoma com a mesma área e tipologia da fracção que afirmaram ter adquirido à ré. Contudo, como essa matéria não foi quesitada, muito menos alegada, andou bem o juiz a quo ao indeferir a diligência por não ser pertinente.
Toda a defesa deve ser deduzida na contestação (artigo 409.º do CPC), sendo que a instrução tem por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa (artigo 433.º do CPC).
No caso presente, a diligência probatória requerida pela ré não se relaciona com a matéria controvertida, pelo que não merece reparo a decisão do juiz a quo.
Improcede, assim, o recurso quanto a esta parte.
*
No que diz respeito ao mérito da causa, a primeira instância julgou parcialmente procedente a acção movida pelos autores, resultando na declaração de resolução do contrato celebrado entre as partes e na condenação da ré ao pagamento do dobro do sinal, acrescido de juros à taxa legal a partir da interpelação.
Está em causa a seguinte decisão:
“…
a) – Interposta questão – efeitos da impossibilidade da prestação do devedor em relação à 2ª autora, não contratante, mas cônjuge do contratante credor.
A segunda autora não celebrou qualquer contrato com a ré, mas é casada em regime de comunhão de adquiridos com o 1º autor, o qual celebrou com a ré os contratos cujo incumprimento por impossibilidade da prestação da ré aqui se discute.
Tem a autora consorte o direito de resolver o contrato onde não é parte e o direito de ser ressarcida dos danos que sofreu em consequência do incumprimento do referido contrato?
Não tem.
Em caso de impossibilidade da prestação do devedor por causa que lhe seja imputável cabe apenas do credor daquela prestação o direito de resolver o contrato bilateral, assim como só o mesmo credor tem o direito de ser restituído no caso de ter realizado alguma prestação (art. 790º, nº 2 do CC). No mesmo caso de impossibilidade superveniente da prestação por causa imputável ao devedor, este responde apenas perante o seu credor e apenas pelos danos por este sofridos (art. 790º, nº 1 e art. 787º do CC). Ora, só o 1º autor era credor da prestação que se tornou impossível, pelo que a segunda autora, não sendo credora de tal prestação não vê nascer na sua esfera jurídica o direito de resolver o contrato celebrado por terceiros nem o direito de ser indemnizada pelos danos que lhe causou o incumprimento.
Situações há em que os contratos podem ter eficácia de protecção de terceiros e que estes, no caso de sofrerem danos decorrentes do incumprimento, poderão ter direito de ser ressarcidos tendo a correspectiva responsabilidade um título que se pode aproximar da responsabilidade contratual. Pode pensar-se, por exemplo no caso de um bombeiro que em serviço sofre queimaduras por defeito do seu equipamento de combate a incêndios que foi contratualmente fornecido à sua corporação com defeito de fabrico. Não é, porém, o caso dos autos, onde não se vislumbra qualquer eficácia de protecção de terceiros nos contratos celebrados pela ré.
Também a relação conjugal existente entre os autores não faz da segunda autora credora da ré em relação à indemnização por incumprimento contratual. Com efeito, o regime de bens do casamento poderá fazer com que a indemnização recebida por um dos cônjuges seja um bem comum do casal, mas só o cônjuge contratante é credor da obrigação de indemnização por incumprimento, ainda que, caso a receba, tenha de a fazer ingressar no património conjugal comum.
A segunda autora não tem qualquer direito de indemnização contra a ré em consequência da impossibilidade da prestação acordada entre o primeiro autor e a ré.
Improcede, pois, a pretensão da segunda autora.
b) Da impossibilidade da prestação.
Se a prestação acordada é originariamente impossível, a obrigação não nasce porque o contrato é nulo e, por isso, não gera a obrigação de prestar nem o dever de cumprir.
Se a prestação acordada é originariamente possível, mas deixa de o ser, a obrigação extingue-se, não pode ser cumprida e o devedor deixa de ter o dever de a prestar.
Se a impossibilidade superveniente ocorre por razões imputáveis a terceiro, fica o devedor exonerado perante o credor. Mas se este credor cumpriu perante o devedor a sua eventual contraprestação, então o credor tem direito a que lhe seja restituído o que prestou. É esta a tese da ré, escorada no art. 784º do CC e que já foi rejeitada no despacho saneador.
A tese dos autores é outra: que a prestação se tornou impossível por causa imputável ao devedor (a ré). Foi esta a tese acolhida no despacho saneador e que aqui já não é discutível, tendo aquele despacho invocado, entre o mais, a presunção de culpa do devedor estabelecida no art. 788º do CC e tendo relegado para este momento a apreciação das consequências.
Resta, pois, nesta sede apurar as consequências da impossibilidade superveniente da prestação quando essa impossibilidade ocorre por causa imputável ao devedor.
Em rigor, esta situação de impossibilidade imputável da prestação não é conceitualmente incumprimento, mas é considerada como incumprimento definitivo no art. 790º, nº 1 do CC. Por isso, atrás se disse em sede de enunciação das questões a decidir que há que apurar as consequências do incumprimento definitivo do contrato.
Em primeiro lugar, perante a impossibilidade superveniente imputável ao devedor, a acordada obrigação de prestar extingue-se e o devedor já não tem o dever de cumprir aquilo que acordou cumprir. Mas nasce eventualmente na esfera jurídica do devedor outra obrigação, a obrigação de indemnizar o credor no caso de este ter sofrido danos decorrentes da extinção da obrigação, e nasce na esfera do credor outro direito, o direito a resolver o contrato que já não pode ser cumprido na parte do devedor (art. 790º do CC).
É, como se disse, a questão que cabe aqui apreciar e decidir: consequências do incumprimento definitivo do contrato.
c) - Da resolução contratual.
No que respeita ao direito à resolução do contrato e às suas consequências de restituição retroactiva do que foi prestado, não se vê como negar. É a lei evidente (arts. 790º, nº 2, 426º a 428º e 282º do CC) e nem as partes questionam.
Procede, pois, esta pretensão do autor e devem ser declarados resolvidos os contratos, como peticionado.
d) – Da qualificação do contrato.
Como antes se referiu, os autores entendem que o contrato em discussão nos presentes autos deve ser qualificado como contrato-promessa, ao passo que a ré entende agora nas suas doutas alegações de Direito que deve ser qualificado como contrato atípico de reserva ou como contrato de compra e venda de coisa futura.
A qualificação jurídica que as partes fazem dos factos a que cabe aplicar o Direito não vincula o tribunal (art. 567º do CPC).
A qualificação dos contratos pertence à lei e não às partes. É uma operação muito relevante, pois vai determinar o regime jurídico aplicável à relação contratual. No caso dos autos está em causa a aplicabilidade ou a inaplicabilidade da presunção legal de que é sinal toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente vendedor em cumprimento do contrato-promessa de compra e venda (art. 435º do CC).
Pois bem, a qualificação do contrato tem essencialmente por base a vontade negocial das partes plasmada no clausulado concretamente acordado relativamente às prestações a que se pretenderam vincular. É feita por comparação ou subsunção, tendo em conta os elementos do concreto contrato a qualificar e os elementos dos diversos tipos contratuais, podendo concluir-se que o contrato concreto se reconduz a um tipo, a nenhum ou a mais que um, sendo neste caso um contrato misto ou uma união de contratos.
A nosso ver, deve atender-se de forma mais relevante às prestações características acordadas pelos contraentes, quer para qualificar o contrato, quer para se lhe determinar o regime quando se conclua que o contrato celebrado se trata de um contrato misto por agregar elementos de mais do que um tipo contratual .
Faltando no contrato celebrado um elemento essencial de um contrato tipificado na lei, o acordo das parte não pode qualificar-se segundo tal tipo contratual.
Pois bem, então afinal a operação de qualificação do contrato redunda em duas operações: saber que prestação característica quiseram as partes e, depois, subsumi-la à prestação característica de um tipo contratual, de mais que um ou de nenhum.
Vejamos então nos factos provados se, nas prestações concretamente acordadas pelas partes que ali constam, o seu acordo pode ou não ser qualificado como contrato-promessa.
A prestação característica do contrato-promessa é a celebração de outro contrato, o contrato prometido. As partes comprometem-se a celebrar outro contrato (art. 404º do CC).
Nos factos provados avulta a referência conclusiva à expressão “contrato-promessa”, “promitente-comprador” e “promitente-vendedor” (ponto 2.). No entanto esta referência não é decisiva, pois que a qualificação do contrato é questão de direito e não de facto. Porém, o referido ponto 2. dos factos provados remete para os documentos de fls. 40 a 54, precisamente o texto dos acordos em análise. Desse texto constam expressões cujo significado aponta quer no sentido de as partes acordarem celebrar no futuro novo contrato (de compra e venda), quer no sentido de acordarem apenas formalizar no futuro um acordo já concluído. Com efeito, ora denominam o contrato de “contrato-promessa de compra e venda” e falam em prometer vender, “prometer comprar e “prometida venda” e denominam-se “promitente-vendedor” e “promitente-comprador”; ora falam em recuperação e revenda da fracção pela ré e alienação da fração pelo promitente-comprador antes da celebração da escritura pública de compra e venda (cláusulas 5ª e 9º).
Pois bem, nesta situação em que se desconhece a vontade real das partes e estas a exteriorizaram por escrito em termos moldáveis, como referido, a declaração das vontades negociais vale com o sentido que lhe atribuiria o normal declaratário colocado na posição do real declaratário (art. 228º do CC).
Ora, parece-nos decisivo o teor das cláusulas 9º a 22ª para saber o sentido que o normal declaratário atribuiria ao teor da declaração que as partes plasmaram no documento a que se reporta o ponto 2. dos factos provados: - se lhe atribuiria o sentido de estar já concluído o acordo definitivo ou se lhe atribuiria o sentido de ainda haver algo para acordar no futuro.
Na referida cláusula 22ª refere-se que a ré pode fazer alterações de construção sem que a outra parte contratual possa recusar a transacção, o que aponta no sentido de haver ainda acordo a fazer no futuro que as partes denominaram transacção e que não podia ser recusado com determinado fundamento.
A cláusula 9ª aponta também para que as partes quisessem ainda novo contrato. Com efeito, estabeleceram condições onerosas para a cessão da posição contratual. Ora, se as partes já considerassem a propriedade da fracção na esfera jurídica do “comprador”, porque considerariam que este não era dono integral e não podia transferir para terceiro sem o consentimento da ré e sem a remunerar?
Este “mecanismo” de cessão da posição contratual aponta no sentido de que, no entendimento das partes contratantes, a ré não se desligou da prestação característica do contrato-promessa que é celebrar outro contrato e que, por isso, receberá comissão para celebrar esse novo e futuro contrato com terceiro, não se tratando apenas de uma modificação subjectiva do mesmo contrato. Se na vontade real dos contraentes a ré já nada tivesse a ver com a fracção autónoma em causa nem com a prestação característica do contrato promessa, a comissão que recebeu (ou tem direito a receber) por consentir na cessão da posição contratual seria incompreensível na economia do contrato. De facto, as partes não estabeleceram a necessidade de consentimento e de pagamento de comissão para as vendas posteriores à celebração da escritura pública de compra e venda, o que aponta para que, no espírito dos contraentes, a situação negocial é diferente antes e depois da escritura, porque a fracção está em esferas jurídicas diferentes nesses dois momentos.
Se as partes considerassem que celebraram um contrato de compra e venda de bem futuro não era necessário regular a cessão da posição contratual que regularam. O comprador de bem futuro pode vender a coisa como pode o comprador de bem já existente. O proprietário que adquiriu por contrato não transmite a sua posição contratual quando vende. Não transmite um crédito, mas transmite um direito real, ainda que futuro, ainda que suspenso. Se as partes sentissem que a fracção autónoma já pertencia ao autor em termos de direito real futuro, não colocariam qualquer entrave a que o autor vendesse, também como bem futuro. A justificação que a ré dá (conhecer a quem deveria entregar a fracção e evitar actividades fraudulentas em relação a terceiros) não basta na perspectiva do normal declaratário para o pesado e caro/lucrativo mecanismo contratual estabelecido no caso de o autor já se sentir proprietário, apesar de terem suspensa a aquisição do direito de propriedade. Até porque a ré estava totalmente garantida face à falta de pagamento, pois faria suas as quantias que já lhe haviam sido pagas (cláusula 5ª do contrato em análise).
Se a ré vendeu bem futuro, como defende, o autor também poderia fazer o mesmo e vender o seu bem futuro sem necessidade de “autorização” onerosa da ré. A ré também não pediu autorização a ninguém para vender um bem futuro de que seria proprietária quando o construísse. Porque necessitava o autor de “autorização” se era tão proprietário futuro como a ré? É esta falta de explicação para a desconsideração da qualidade jurídica real do autor face a bens futuros que tem de levar o declaratário normal a concluir que, afinal, a ré e o autor consideraram que este apenas tinha direito de crédito e poderia ceder a posição contratual do contrato gerador desse direito de crédito, mas não podia vender bens futuros porque estes bens eram alheios, porque eram da ré. Ao regularem a cessão da posição contratual, as partes deixam entender que consideraram que a posição do autor que podia ser cedida era uma posição creditícia e não uma posição real, ainda que correspondente ao que pode designar-se na linguagem comum por “pequeno proprietário”. Isto é, as partes contraentes deixaram entender que o autor tinha um direito de crédito, um direito ao cumprimento de uma promessa de contratar, e não um direito real, ainda que futuro e em suspensão. Ao regularem a cessão de um crédito (posição contratual) as partes deixam entender ao declaratário normal que consideravam que o autor não tinha ainda um direito real sobre coisa futura. Deixam entender que o autor não pode transmitir a coisa futura (o seu direito real sobre ela), mas apenas pode transmitir a promessa da ré (um direito sobre a ré e não um direito sobre a coisa futura).
É esta engrenagem negocial aliada à denominação que as partes deram ao contrato que celebraram que deve levar o “normal declaratário” a considerar que a prestação característica que a ré assumiu foi celebrar um contrato no futuro com o promitente originário ou com aquele a quem fosse cedida a posição contratual de promitrente-comprador.
Em conclusão, dir-se-á que o sentido com que deve valer juridicamente a declaração negocial quanto às prestações acordadas só é reconduzível ao tipo contratual de contrato-promessa.
e) – Da indemnização por incumprimento definitivo do contrato-promessa.
i - Da existência de obrigação de indemnizar.
Estando decidido no despacho saneador que houve incumprimento culposo da ré, rectius, impossibilidade da prestação por causa imputável à ré, basta que haja danos na esfera jurídica do autor com nexo de causalidade com o referido incumprimento para que surja na esfera jurídica da ré a obrigação de indemnizar (arts. 787º, 790º e 557º do CC).
Tendo-se provado (ponto 4. dos factos provados) que os autores pagaram à ré para receberem dela um imóvel e que nada receberam é forçoso concluir que o autor sofreu danos decorrentes do incumprimento da ré, pois que pagou para adquirir e nada adquiriu.
Assim, não são necessárias outras considerações para se concluir que existe na esfera jurídica da ré a obrigação de indemnizar o autor, sendo a controvérsia essencialmente respeitante ao valor da indemnização. E esta conclusão é afirmada sem necessidade de discussão sobre a existência de sinal penitencial, aquele sinal acordado pelas partes como “preço do arrependimento”, o qual torna lícita a desvinculação unilateral do normal dever de cumprimento do contrato.
ii - Do montante da indemnização.
É nesta questão que é maior a divergência entre as partes.
Os autores alegam que foi prestado sinal no montante de HKD6.265.000,00 e pretendem receber o dobro do referido sinal. Já a ré diz que não foi prestado qualquer sinal, mas que aquela quantia foi paga a título de preço apenas, a qual deve ser devolvida em singelo.
O princípio geral é que devem ser indemnizados todos os prejuízos efectivamente sofridos pelo credor em consequência do incumprimento do devedor (arts. 787º - “prejuízo que causa ao credor”, 556º - “reconstituir a situação que existiria” e 557º - “danos que o lesado … não teria se não fosse a lesão” - do CC.).
No entanto, se for constituído sinal é o valor deste que delimita o valor da indemnização, o valor que terá a obrigação de indemnizar originada pelo incumprimento culposo. É o que dispõe o art. 436º do CC.
ii.1 – Da existência de convenção de sinal.
Há, pois, antes de mais, que apurar se foi acordado sinal no caso em apreço.
O sinal é um elemento eventual do conteúdo do negócio jurídico. Numa certa perspectiva, é, em essência, uma estipulação contratual, uma cláusula negocial.
Seja qual for a qualificação que lhe seja dada, o sinal é sempre também uma convenção das pastes contratantes. Depende, pois, da existência de vontades negociais concordantes.
Para se concluir se foi ou não estipulado sinal é necessário interpretar as declarações negociais das partes contratantes.
Se o autor pretende ser indemnizado segundo o regime do sinal, cabe-lhe, nos termos do art. 335º, nº 1 do CC, alegar e provar, entre o mais, os factos demonstrativos de ter sido estipulada a existência de sinal.
Porém, no caso do contrato-promessa de compra e venda, como ocorre na situação sub judice, a parte que se quiser prevalecer da existência de sinal beneficia da presunção legal inserta no art. 441º do CC que diz que se presume “que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço”.
Ora, quem tem a seu favor uma presunção legal, está dispensado de provar o facto a que ela conduz, sendo a parte contrária que tem de provar o facto contrário ao facto presumido (art. 343º, nºs 1 e 2 do CC). No caso dos autos, provou-se que o promitente-comprador entregou à ré, promitente-vendedora, determinada quantia em dinheiro no âmbito do contrato promessa que ambos celebraram. Provou-se o facto base da presunção, pelo que está presumido que as partes quiseram atribuir carácter de sinal. Cabe, pois à ré, interessada em ilidir a presunção, a alegação e a prova do facto contrário ao facto presumido, isto é, cabe-lhe provar que as partes acordaram que a quantia entregue não tinha carácter de sinal. A ré não conseguiu fazer a prova dessa vontade negocial contrária à presunção legal (resposta negativa dada ao quesito 4º da base instrutória). Tem a ré de ver esta questão decidida em sentido contrário à sua pretensão. Com efeito, a ré logrou apenas provar que o contrato que celebrou refere a palavra preço (ponto 29. dos factos provados), não constituindo tal facto “prova do contrário” do facto presumido. Isto é, não é prova de que as partes não quiseram atribuir carácter de sinal.
Mas dir-se-á ainda que do contrato-promessa sub judice consta que as partes quiseram que as quantias pagas pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor sejam consideradas sinal. Com efeito, na cláusula 5ª do contrato referido em c) dos factos provados diz-se que a falta de pagamento das prestações do preço acordado implica a perda da quantia já paga. Trata-se do regime supletivo do sinal, pelo que parece clara a vontade das partes no sentido de terem pretendido constituir sinal.
Mas, em caso de dúvida sobre o sentido que atribuiria o “declaratário normal”, deve, para se apurar o sentido com que a vontade declarada das partes deve valer, ponderar-se a medida em que o princípio do equilíbrio das prestações intervém na fixação do valor da vontade negocial declarada quando se desconhece a vontade real.
Se é certo que não é determinante para qualificar o acordo das partes o facto de as partes terem denominado como contrato-promessa aquele acordo que celebraram, é igualmente certo que não é determinante para fixar o sentido com que deve valer a declaração negocial o facto de terem denominado de depósito a quantia monetária entregue pelos autores à ré em cumprimento do acordo que celebraram.
Se a vontade real dos contraentes é conhecida pelo declaratário, é ela que deve vincular os declarantes (nº 2 do art. 228º do CC). Se essa vontade real não é conhecida, é a vontade declarada que vai determinar quais os vínculos contratuais que as partes devem cumprir. Para saber em que sentido a vontade declarada vincula é necessário interpretá-la, ou seja, avaliá-la intelectivamente para lhe apreender o sentido vinculador.
Há, pois, que atender ao princípio do equilíbrio das prestações, o qual diz que, em caso de dúvida, o sentido da declaração é o mais equilibrado nos negócios onerosos, como é o dos autos.
Ora, se em caso de incumprimento dos autores a ré é indemnizada em “6.265.000”, qual será a vontade negocial que deve valer em caso de incumprimento da ré? Deve pagar apenas se se enriqueceu e só na medida do seu enriquecimento? Ou deve também ter uma pena e pagar o mesmo que o autor ou outra quantia, mas uma pena? Parece que o princípio do equilíbrio das prestações impõe que, em caso de dúvida, se conclua que as partes estabeleceram penas para ambas e que quiseram que a quantia entregue pelos autores fosse a medida da pena de ambas em caso de incumprimento definitivo.
As partes não estipularam que em caso de incumprimento do autor a ré podia recorrer à acção de execução específica, nem à acção de condenação, nem à resolução do contrato com restituição do que foi prestado e indemnização dos danos efectivos. Estipularam o regime do sinal segundo o qual, em caso de incumprimento daquele que o prestou, aquele que o recebeu fica com ele para si sem direito a outra indemnização excepto se sofrer danos manifestamente superiores.
Na dúvida, o princípio do equilíbrio das prestações “manda” que se atribua valor à declaração negocial das partes no sentido de ter sido estipulado sinal.
Assim, mesmo que não se qualifique o contrato como contrato-promessa, há-de a quantia entregue ser qualificada de sinal de acordo com o sentido com que deve valer juridicamente a declaração negocial das partes.
Portanto, mesmo sem a presunção legal referida, sempre a vontade das partes deve ser interpretada no sentido de terem convencionado sinal.
Conclui-se, pois, que foi acordado sinal no caso em apreço.
“Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele o direito de exigir o dobro do que houver prestado” (art. 436º, nº 2 do CC).
Está demonstrado que a ré não cumpriu definitivamente a sua promessa de venda. Como se disse, as partes não disputam actualmente esta questão e é evidente na factualidade provada que a prestação prometida pela ré deve considerar-se impossível actualmente. Com efeito, sem que ocorram circunstâncias de todo imprevisíveis presentemente, a ré, apesar de ser uma sociedade comercial e poder existir durante muito tempo, não tem possibilidade de construir ou adquirir a fracção autónoma prometida vender.
Está também demonstrado que a ré recebeu o sinal.
Foi já decidido no despacho saneador que a causa do incumprimento não é imputável a terceiro e que é imputável à ré a título de culpa, ainda que presumida. E também já atrás foi decidido que o incumprimento culposo da ré confere ao autor o direito de resolver o contrato-promessa em que ingressou por cessão da posição contratual.
Deve, pois a ré restituir o que recebeu para cumprir a promessa de venda que não cumpriu, uma vez que, como efeito da resolução do contrato, sempre terá que devolver o que lhe foi prestado (arts. 282º e 427º do CC).
Mas terá ainda a ré de pagar ao autor um montante igual ao do sinal que recebeu. Com efeito, contrariamente ao regime estabelecido no anterior Código Civil (art. 812º), o tribunal só pode fixar outro valor indemnizatório segundo juízos de equidade se lhe for requerido (art. 801º do actual CC), o que a ré não fez.
f) Do pedido subsidiário.
Em consequência do que fica dito, está prejudicada a apreciação do pedido subsidiário que pressupõe que se considere improcedente a pretensão de restituição do sinal em dobro.
g) - Da mora na obrigação de indemnizar.
a. O início da mora.
Os autores pediram a condenação da ré em indemnização moratória. Para o caso de a ré ser condenada a pagar o sinal em dobro, pediram que a indemnização moratória se consubstanciasse no pagamento de juros de mora contados à taxa legal para as obrigações de natureza comercial (11,75%), desde o trânsito em julgado da decisão da impugnação do despacho de caducidade da concessão do terreno onde a ré iria construir as fracções autónomas prometidas vender ao autor, ou da interpelação da ré, até integral pagamento.
A indemnização moratória pressupõe a mora do devedor e esta só ocorre quanto às obrigações puras e líquidas, como é a da ré, no momento da interpelação (art. 794º, nºs 1 do CC).
A citação tem valor de interpelação (art. 794º, nº 1 do CC e art. 565º, nº 3 do CPC).
A mora não ocorreu, pois com o trânsito em julgado da decisão da impugnação do despacho de caducidade da concessão do terreno onde a ré iria construir as fracções autónomas prometidas vender ao autor.
Provou-se que a ré foi interpelada para pagar o sinal em dobro por carta que recebeu em 03/06/2019 (pontos 25. e 26. dos factos provados), pelo que a mora em relação ao cumprimento da sua obrigação de indemnizar da ré se iniciou na referida data.
b. A taxa de juro moratório.
Nos termos do art. 569º, nº 2 do Código Comercial só em relação aos créditos de natureza comercial acresce a sobretaxa de 2% sobre os juros legais, não sendo aplicável ao crédito do autor nem às obrigações de que sejam titulares passivos os comerciantes ou as empresas comerciais se o titular activo não for comerciante. Com efeito, nada na factualidade permite concluir que os contratos celebrados pelo autor consistissem em actos de comércio.
A indemnização moratória deve corresponder aos juros legais contados desde a data da interpelação. A indemnização moratória relativa às obrigações pecuniárias corresponde aos juros legais a contar do dia da constituição em mora, salvo excepões aqui inaplicáveis (art. 795º do CC).
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V – DECISÃO.
Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a ré a pagar ao primeiro autor B a quantia de HKD12.530.000,00 (doze milhões, quinhentos e trinta mil dólares de Hong Kong), acrescida de juros contados à taxa legal dos juros civis desde 04/06/2019 até integral pagamento.
Custas a cargo de autores e ré na proporção do respectivo decaimento.
Registe e notifique.”

Louvamos a acertada, perspicaz e justiciosa decisão que antecede, na qual foi abordada de forma minuciosa e fundamentada a qualificação jurídica do acordo celebrado entre as partes, a imputabilidade do incumprimento do contrato à recorrente, bem como o valor da indemnização.
Em nossa opinião, concordamos plenamente com a decisão recorrida, considerando que ela oferece a melhor solução para o caso. Assim, à luz da fundamentação jurídica ali exposta, cuja explanação sufragamos inteiramente, remetemos aos seus precisos termos, conforme disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC e, em consequência, negamos provimento ao recurso.
É importante destacar que, nos recentes acórdãos deste TSI, proferidos no âmbito dos Processos n.º 292/2024, 205/2024, 739/2024, 720/2024 e 813/2024, foram abordadas questões semelhantes, decididas no mesmo sentido.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, o Colectivo de Juízes deste TSI decide negar provimento aos recursos interlocutórios e ao recurso final interpostos pela ré A Limitada e, em consequência, confirmando as decisões recorridas.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
***
RAEM, aos 2 de Abril de 2025
Tong Hio Fong
(Relator)
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(1°Juiz Adjunto)
Fong Man Chong
(2°Juiz Adjunto)

1 José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, Coimbra Editora, 2000, pág. 160
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Recurso Cível 834/2024 Página 9