Processo n.º 72/2025
(Autos de recurso cível)
Data: 30/Abril/2025
Recorrente:
- Sociedade de Importação e Exportação (A) Limitada (ré)
Recorridos:
- (B) e (C) (autores)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
(B) e Si Cheng Won (doravante designados por “autores” ou “recorridos”) intentaram acção contra a Sociedade de Importação e Exportação (A) Limitada (doravante designada por “ré” ou “recorrente”), pedindo a condenação desta a pagar àqueles a quantia de HKD5.325.516,00, correspondente ao dobro do valor recebido a título de sinal, bem como a quantia de MOP3.780.622,46, acrescido do valor de imposto do selo de MOP224.979,00, a título de danos excedentes, acrescida de juros de mora.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente.
Inconformada, interpôs a ré recurso jurisdicional para este TSI, tendo formulado as seguintes conclusões alegatórias:
“1. Constitui objecto do presente Recurso a, aliás, douta sentença do Tribunal Judicial de Base, que julgou parcialmente procedente a presente acção e condenou a Recorrente no pagamento de uma indemnização aos Recorridos, no montante global de MOP4.342.640,00.
2. Ocorreu uma impossibilidade jurídica superveniente e definitiva do cumprimento do contrato em discussão nos presentes autos mas tal impossibilidade não é imputável à Recorrente.
3. Com efeito, ficou provada praticamente toda a matéria alegada pela Recorrente susceptível de estabelecer que não conseguiu aproveitar o terreno dentro do prazo contratado e, assim, dar cumprimento ao contrato em apreço, por razões imputáveis aos Serviços da RAEM.
4. Uma tal actuação da DSSOPT e da DSPA era imprevisível.
5. Desde logo, não era previsível que a DSSOPT permanecesse inerte e sem emitir qualquer decisão relativamente ao plano de consulta e ao projecto parcial de arquitectura, apresentados pela Recorrente em Abril e Maio de 2008.
6. Não era previsível que após a apresentação do projecto global de arquitectura em Outubro de 2009, a DSSOPT emitisse uma Planta de Alinhamento Oficial em Fevereiro de 2010, donde constava um novo condicionamento urbanístico atinente à observância de uma distância mínima entre cada torre que inviabilizaria o objecto apresentado e que não estava previsto na lei, nem tinha sido anteriormente exigido em Macau.
7. Não era previsível que após a aprovação do projecto de arquitectura do empreendimento “X”, comunicada à Recorrente em 07/01/2011, a DSSOPT fizesse depender a emissão da licença de construção, da apresentação e aprovação de um Relatório ambiental pela DSPA.
8. Essa falta de previsibilidade resulta da circunstância de nunca tal exigência ter ocorrido anteriormente a nenhum promotor imobiliário.
9. E ainda da circunstância de, ao tempo, não existir norma legal ou regulamentar aprovada e em vigor que exigisse esse Relatório Ambiental ou que sugerisse, sequer, que conteúdo pudesse vir a ter de conter.
10. Muito menos era de esperar que, como se provou, a DSSOPT e a DSPA demorassem quase 3 anos a aprovar esse Relatório num procedimento moroso e ao sabor dos improvisos desses serviços.
11. Não se pode pretender que uma Administração Pública que está sujeita ao princípio da legalidade (artigo 3º do CPA), ao princípio da protecção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos residentes (artigo 4º do CPA), ao princípio da justiça e da imparcialidade (artigo 7º do CPA) e aos princípios da boa fé e da colaboração (artigos 8º e 9º do CPA) deve entender-se genericamente como uma pessoa que actua de forma a violar os seus deveres contratuais com os sujeitos com que se relaciona. E que a Recorrente deveria assim ter presumido vir a suceder.
12. Os Serviços da Administração foram apresentando sucessivas e novas condições ao longo de quase 3 anos, à medida que as anteriores iam sendo cumpridas pela Recorrente, o que era manifestamente imprevisível, mesmo para um bom pai de família.
13. D’outro passo, a actuação da RAEM sempre seria inultrapassável.
14. Efectivamente, os serviços da RAEM não emitiriam a licença de construção sem que fosse apresentado o Estudo Ambiental, rectius, sem que fossem apresentadas todas as versões do Estudo Ambiental que foi exigindo ao longo de cerca de 3 anos.
15. A única forma de a Recorrente procurar ultrapassar estas exigências era a de avançar para a via contenciosa, através do recurso contencioso de anulação destinado a anular os actos administrativos praticados pelos serviços da RAEM, por vício de violação de lei.
16. Bem se vê que a DSSOPT e a DSPA não actuaram como parte do contrato de concessão mas sim como Administração Pública, como puissance publique, sob as mesmas vestes com que actuam relativamente a qualquer privado.
17. Ou seja, em resumo, ao contrário do que se sugere na douta sentença recorrida, afigura-se que se está, efectivamente, em sede de “facto do príncipe”.
18. Quanto ao risco, compreende-se, por exemplo, que a crise económica, a retracção do mercado financeiro, taxas de juros, salários, etc., possam ser considerados riscos com que os promotores imobiliários devem contar e assumir, mas não já, a situação dos autos que provocou uma provada paralisação de cerca de 5 anos do prazo de aproveitamento do terreno.
19. Por outro lado, os Recorridos sabiam necessariamente que o contrato em discussão estava umbilicalmente ligado ao cumprimento do contrato de concessão do terreno e que, naturalmente, as vicissitudes deste se repercutiam necessariamente naquele.
20. As datas dos termos das concessões são públicas, constando do Registo Predial.
21. Um dos princípios fundamentais do Registo Predial é o Princípio da Publicidade consagrado no artigo 1º do Código do Registo Predial de Macau e dele decorre que a ninguém é lícito invocar o desconhecimento da situação jurídica de qualquer imóvel, quando constante de registo público, que é de livre acesso.
22. Os Recorridos também sabiam perfeitamente que a fracção transacionada ia ser construída no futuro, ou seja, que tinham adquirido um bem que não existia à data do contrato que celebraram.
23. E a Recorrente não faltou a deveres de informação que fossem devidos, nem prestou informação falsa ou sonegou informação que, de acordo com ditames de boa fé, estivesse vinculada a transmitir.
24. Pelo que em boa verdade não foi a Recorrente que trouxe os Recorridos para a esfera de risco do contrato em causa. Foram eles que quiseram nela entrar.
25. Quanto à qualificação do contrato, o que se revela mais plausível e consentâneo com a aplicação das regras plasmadas entre os artigos 228º e 230º do CC é que se trata de um contrato de reserva ou de um contrato de compra e venda de um bem futuro.
26. A respeito da letra do contrato, refira-se que as partes podem usar terminologia jurídica e fazer qualificações, mas esse aspecto não é vinculativo para o intérprete-aplicador.
27. Relativamente à redacção do contrato em apreço, logo na sua cláusula 5ª, as partes acordaram numa redacção que excluiu propositadamente a utilização da expressão “訂” referente ao conceito de “sinal” (com o sentido de penalização), em prol da expressão “訂金”, correspondente ao conceito de “depósito” (que não tem sentido penalizador).
28. Deste modo, as partes estão a manifestar a sua vontade em afastar a qualificação de sinal aos pagamentos efectuados por conta do contrato em causa.
29. A cláusula 22ª não indicia que as partes celebraram uma promessa de compra e venda em vez de uma compra e venda de um bem futuro ou um contrato de reserva.
30. Em contrário do que se considerou na douta sentença recorrida, a previsão da cláusula 9ª de um consentimento para a cessão também não permite reconduzir o contrato base a um contrato-promessa.
31. É esta a solução preconizada no artigo 418º do CC pela simples razão de que em contratos com prestações recíprocas, como é o caso, a Recorrente tem o dever de entregar o imóvel objecto do contrato, mas o adquirente tem o dever de pagar um preço e, no caso vertente, de pagar o preço em prestações distintas e sucessivas.
32. Quanto à circunstância de poder eventualmente inferir-se de alguns dos segmentos do clausulado a necessidade de celebração de um segundo contrato, é, nos termos do artigo 866º do Código Civil (CC), uma formalidade absolutamente essencial, quer para o contrato-promessa, quer para o contrato de reserva, quer para o contrato de compra e venda imediata de um bem futuro.
33. Por seu turno, as suas cláusulas 10ª a 12ª são previsões que raramente ou nunca são reguladas no contrato-promessa, mas sim no contrato de compra e venda.
34. Também os textos preliminares e circundantes constantes dos autos conectados com o contrato em questão apontam para outra qualificação que não a do contrato-promessa.
35. Designadamente, saliente-se que os recibos de pagamento mencionam tratar-se da liquidação de um preço e, nunca, de um sinal, e que o contrato contém uma planta da fracção adquirida em anexo, típico de uma compra de imóvel em projecto.
36. Relativamente ao elemento histórico subjacente ao contrato em causa, há a destacar que o contrato foi celebrado antes da publicação da Lei nº 7/2013, que foi elaborada em resposta a um vazio legal que disciplinasse estes casos, o que permite vincar a sua especificidade em relação às figuras existentes a esse tempo na ordem jurídica de Macau, incluindo a figura do contrato-promessa tipificada no Código Civil.
37. Como afirma João Vicente Monteiro na sua mais recente obra, Código do Registo Predial de Macau Anotado, pág. 299, “Estes ‘contratos-promessa’ têm sido tradicionalmente utilizados para formalizar verdadeiros contratos de compra e venda sobre as fracções autónomas sem construção”.
38. Relativamente ao elemento teleológico, o fim do negócio tido em mente pelas partes é o seguinte: para a parte compradora, um imóvel a ser construído fica reservado contra o pagamento de uma certa quantia, por inteiro ou dividida em prestações; para a parte vendedora é receber do adquirente um determinado preço pela fracção autónoma que vai construír e lhe vai entregar.
39. Se o beneficiário desistir perde essa quantia a favor da outra parte; quando não, o contrato mantém-se. Em contrapartida, o vendedor deixa de poder dispor da fracção autónoma não podendo celebrar nenhum outro contrato com terceiros que tenha por objecto essa fracção autónoma.
40. Assim, pela interpretação do clausulado, pelos textos conectados com o contrato, pelo elemento histórico e pelo elemento teleológico, afigura-se que o contrato em discussão não é um típico contrato-promessa mas um contrato de reserva ou um contrato de compra e venda imediata de um bem futuro, tal como defende Menezes Cordeiro no douto Parecer Jurídico ora junto.
41. Subsidiariamente, mesmo que se entenda que o contrato em discussão nos presentes autos se trata de um contrato-promessa típico, a verdade é que as quantias que a Recorrente recebeu enquanto pagamentos de uma parte do preço da fracção a construir que foi vendida, configura um cumprimento antecipado do contrato prometido tendo em vista a satisfação de obrigação futura, previsto no artigo 434º do Código Civil, como o comprovam os recibos de pagamento de fls. 31 a 34 dos autos.
42. Relativamente à indemnização a arbitrar, uma vez que a impossibilidade superveniente não é imputável à Recorrente, tem aplicação o disposto no artigo 779º/1 do CC: “A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor.”
43. As consequências são as do artigo 784º/1 do CC: o interessado na aquisição fica desobrigado da contraprestação e pode exigir a restituição do valor que entregou ao alienante, em singelo, nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa, conforme o estipulado nos artigos 467º e 473º/1 do CC.
44. Deste modo, salvo melhor opinião, na perspectiva da Recorrente, o quantum final da indemnização a arbitrar cifra-se em HKD2.662.758,00 e respectivos juros de mora.
45. Subsidiariamente a Recorrente pediu que a indemnização fosse arbitrada com base na equidade, tendo a douta sentença recorrida considerado ser essa solução jurídica adequada e arbitrado uma indemnização a esse título no valor de MO$1.600.000,00.
46. Na eventualidade de ser proferida uma decisão com base em tal solução, afigura-se que uma decisão mais justa seria a de fixar este quantum indemnizatório no montante correspondente a metade do valor a restituir, ou seja, HKD$1.331.379,00 (2.662.758,00/2).
47. Ressalvado diverso entendimento, a douta decisão recorrida incorre na violação dos artigos 228º, 229º, 230º, 434º, 435º, 436º 467º, 473º/1, 779º/1, 784º/1, 795º e 801º do Código Civil.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente Recurso ser julgado procedente, com as legais consequências, assim se fazendo, serenamente, Justiça.”
Ao recurso responderam os autores pugnando pela negação de provimento ao recurso.
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
Feito o julgamento, a primeira instância deu como provada a seguinte factualidade:
1. A Ré é uma sociedade constituída em Macau, que tem por objecto a exploração do comércio de importação e exportação, no exercício da actividade de agente comercial e de transportes, na indústria de vestuário, fiação, tecelagem e malhas, tinturaria e impressão, no fabrico de bordados, e ainda na actividade de fomento predial e na construção e reparação de edifícios.
2. No exercício da sua actividade comercial, a Ré, na qualidade de concessionária por arrendamento do Lote P, s/n, sito em Macau, na zona da Areia Preta, promoveu a construção de um empreendimento residencial constituído por 18 torres, a que daria o nome de “X”.
3. No dia 7 de Dezembro de 2012, os Autores celebraram com a Ré um contrato-promessa de compra e venda, pelo qual prometeram comprar, e a Ré prometeu vender, a futura fracção autónoma D48, 48.º andar D, do Bloco 13, do Lote P, s/n, destinada a habitação, do prédio a construir em Macau, na zona da Areia Preta, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ....
4. O preço acordado foi de HKD8.875.860,00, a pagar em seis momentos:
• HKD887.586,00 pagos na data da celebração do contrato; e
• HKD443.793,00 a pagar até ao dia 03.06.2013;
• HKD443.793,00 a pagar até o dia 03.12.2013;
• HKD443.793,00 a pagar até o dia 03.06.2014;
• HKD443.793,00 a pagar até o dia 03.12.2014;
• HKD6.213.102,00 a pagar no prazo de 7 dias a contar da data da emissão de licença de utilização pela DSSOPT.
5. A Ré comprometeu-se, na cláusula 10.ª do contrato-promessa, a entregar a fracção autónoma no prazo de 1200 dias úteis de sol aos promitentes-compradores, o que exclui os Domingos, feriados e dias de chuva, contados a partir da conclusão das obras de cobertura do 1.º piso; caso o prazo não fosse cumprido, a Ré pagaria aos Autores juros de mora, calculados à taxa de juros das contas-poupança praticada pelos bancos.
6. Os Autores pagaram à Ré HKD2.662.758,00 conforme segue:
• HKD887.586,00 no dia 07.12.2012, data da assinatura do contrato-promessa;
• HKD443.793,00 no dia 03.06.2013;
• HKD443.793,00 no dia 03.12.2013;
• HKD443.793,00 no dia 03.06.2014;
• HKD443.793,00 no dia 03.12.2014.
7. Em 27 de Dezembro de 2012, os Autores pagaram o imposto do selo que foi liquidado por conta da aquisição da fracção D48, no valor de MOP224.979,00.
8. A fracção D48, prometida comprar pelos Autores, integra-se no empreendimento designado “X”, que vem sofrendo as vicissitudes que a imprensa repetidamente tem divulgado e que tem ocupado os tribunais da RAEM.
9. Por Despacho n.º 160/SATOP/90, publicado no 2.º Suplemento ao n.º 52 do Boletim Oficial, de 26 de Dezembro de 1990, alterado pelo Despacho nº 107/SATOP/91, publicado no BO, nº 26, de 1/07/1991, foi concedido à Ré o terreno, a resgatar ao mar, com a área de 60,782m2, constituído por 3 lotes com a designação de Lote “O”, para fins habitacionais, Lote “S” para fins habitacionais e Lote “Pa” para fins industriais.
10. De acordo com a cláusula 2.ª, n.º 1, dos termos da concessão fixados naquele despacho, o prazo de concessão foi fixado em 25 anos, contados a partir da outorga da escritura pública do contrato.
11. Por Despacho n.º 123/SATOP/93, publicado na II Série do Boletim Oficial n.º 35, de 1 de Setembro de 1993, e nos termos que já tinham sido previstos no Despacho n.º 160/SATOP/90, foi à Ré concedida a parcela de terreno designada por “Pb” destinada a ser anexada à parcela “Pa”, constituindo um lote único com a área global de 67.536m2 e destinava-se a viabilizar o projecto de instalação de um “complexo industrial”.
12. Através desta revisão o prazo global de aproveitamento do terreno foi prorrogado até 26 de Dezembro de 2000.
13. As parcelas “Pa” e “Pb” foram anexadas e o respectivo terreno passou a estar descrito sob o n.º ... do Livro …, com a designação de Lote “P”.
14. O “complexo industrial” foi construído no lote “P” e entrou em funcionamento, tendo as entidades competentes emitido as respectivas licenças.
15. O lote O foi aproveitado com a construção de um edifício em regime de propriedade horizontal, constituído por um pódio com 3 pisos sobre o qual assentam 6 torres com 29 pisos cada, afecto às finalidades de habitação, comércio, estacionamento e jardim.
16. Com vista a aferir da viabilidade da alteração da finalidade e aproveitamento, a Ré apresentou em 10/09/2004 um Estudo Prévio junto da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) (T-4803), seguido de um estudo prévio complementar apresentado junto da mesma entidade em 15/12/2004 (T-6451).
17. Por Despacho n.º 19/2006, do Secretário para os Transportes e Obras Públicas publicado no Boletim Oficial da RAEM n.º 9, II Série, de 1 de Março de 2006, foi “parcialmente revista, nos termos e condições do contrato em anexo, a concessão, por arrendamento, do terreno com a área global de 91.273m2, constituído por 3 lotes designado por “O”, “P” e “S”, situado nos Novos Aterros da Areia Preta (NATAP)” - a seguir abreviadamente “revisão de 2006”.
18. Esclareceu-se, no ponto n.º 4 dos termos e condições do contrato integrantes do Anexo ao despacho que: “…a concessionária pretende alterar a finalidade do lote “P” de indústria para comércio e habitação, alegando prejuízos financeiros com a fábrica de têxtil aí instalada, devido à abolição das quotas de exportação dos produtos têxteis, o que levou à perda gradual de competitividade desta indústria de Macau, agravada, no caso concreto, pela suspensão do funcionamento da fábrica no período nocturno, para não prejudicar a tranquilidade dos residentes das imediações, e invocando ainda razões que se prendem com o futuro desenvolvimento daquela zona da cidade e a crescente procura de habitação”.
19. Nos termos do n.º 5 dos termos e condições do contrato que constam do Anexo ao Despacho n.º 19/2006, constituía condição para a revisão do contrato o facto de, no âmbito da análise anteriormente efectuada ao estudo prévio, se ter verificado que o mesmo era passível de aprovação.
20. Pelo referido Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 19/2006, publicado no Boletim Oficial da RAEM, nº 9, II Série, de 1 de Março de 2006, tendo em conta o Estudo Prévio de 2005 e as PAOs de 2004 e 2005, foi acordada a alteração de finalidade e o reaproveitamento do lote “P”, com a construção de um edifício, em regime de propriedade horizontal, constituído por um pódio com 5 pisos, sobre o qual assentam 18 torres com 47 pisos cada uma, afectado às seguintes finalidades e áreas brutas de construção (cfr. a redacção conferida à cláusula 3.ª, n.º 2.3, do contrato de concessão de arrendamento pelo n.º 3 do artigo 1.º dos termos e condições do contrato constantes do Anexo ao Despacho n.º 19/2006): - Habitação: 599.730m2 - Comércio: 100.000m2 - Estacionamento: 116.400m2 - Área livre: 50.600m2.
21. Por força desta revisão, o terreno do contrato de concessão passou a ser de 105.437m2, constituído pelos lotes O, P, S e V, este com a área de 13.699 m2.
22. O prazo de aproveitamento foi acordado em 96 meses contados a partir da data da publicação no Boletim Oficial do despacho que titulasse a referida revisão (cfr. artigo 2.º do Anexo ao Despacho n.º 19/2006).
23. Após sucessivos pareceres e exigências da DSPA e consequentes apresentações de estudos de impacto ambiental por parte da Ré, foi o projecto definitivamente aprovado em 29/08/2013.
24. Em 24/10/2013 a Ré requereu junto da DSSOPT a emissão de licença para as obras de fundações, que foi emitida em 2/01/2014.
25. Em 15/01/2014 e 30/01/2014, a Ré apresentou o pedido de prorrogação do prazo de aproveitamento, fundamentando esse requerimento com o facto de, por razões que não lhe são imputáveis, não ter podido até então proceder ao aproveitamento contratado.
26. Em 29/07/2014 foi enviado à Ré um ofício assinado pela Directora Substituta da DSTOPT, informando-a que era autorizada a prorrogação do prazo de aproveitamento do terreno até 25 de Dezembro de 2015 e aplicando a multa no valor de MOP180.000,00, devendo ainda a Ré assumir os compromissos constantes dos pontos 1. e 2. do parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas datado de 10/07/2014, sendo o seguinte o teor do ofício:
“1. Nos termos da cláusula n.º 2 do contrato de concessão de terreno revisto pelo Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 19/2006, o prazo de aproveitamento do terreno já ficou caduco aos 28 de Fevereiro de 2014; no entanto, nos termos do art.º 2.º do Despacho n.º 160/SATOP/90, o prazo de arrendamento do terreno vai acabar aos 25 de Dezembro de 2015.
2. Como o atraso do aproveitamento do terreno é imputável à vossa empresa, e tendo em conta que esta não é a primeira vez que a vossa empresa requer prorrogar o aproveitamento de terreno, e visto que já concordou aceitar a forma de punição para o atraso prevista no contrato; para o efeito, nos termos do Despacho proferido pelo Chefe do Executivo aos 15 de Julho de 2014, autoriza-se prorrogar o prazo de aproveitamento do terreno até 25 de Dezembro de 2015, e aplica-se a multa no valor de MOP$180.000,00 (cento e oitenta mil patacas). Mas para garantir os interesses públicos, a empresa concessionária obriga-se previamente a prometer por escrito aceitar as seguintes condições:
2.1. Antes de o prazo de concessão por arrendamento do terreno caducar, se o aproveitamento do terreno ainda não for concluído, mesmo se está de acordo com os requisitos dispostos no artigo 5.º da Lei n.º 7/2013, Regime jurídico da promessa de transmissão de edifícios em construção, a concessionária não vai pedir autorização prévia para efectuar os actos jurídicos da promessa de transmissão do edifício em construção no Lote “P” ou da promessa de oneração, nem vai praticar esses actos jurídicos, excepto se o terreno for concedido de novo nos termos legais;
2.2. Se no futuro o terreno não for concedido nos termos legais, a empresa concessionária não pode reclamar qualquer indemnização ou compensação à RAEM.
3. Nestes termos, avisa-se a vossa empresa para entregar a promessa escrita acima mencionada, para ser transferida à Comissão de Terras para acompanhar, a fim de emitir a guia do pagamento da multa.”
27. A Ré concordou em pagar a multa de MOP180.000,00.
28. Em 4/08/2014, a Ré comunicou ao Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que aceitava os referidos dois compromissos.
29. Em 27/11/2015, a Ré apresentou ao Chefe do Executivo o pedido de prorrogação dos prazos de aproveitamento e de concessão por período não inferior a 60 meses, contados a partir de 26/12/2015.
30. Em 30/11/2015, o Chefe do Executivo concordou com os pareceres que lhe foram colocados à consideração, cujo sentido era de indeferir o pedido de prorrogação com fundamento em que, impedindo a Lei n.º 10/2013 a renovação de concessões provisórias, não podia ser autorizada a prorrogação do prazo de aproveitamento.
31. Em 10/9/2004, a Ré apresentou um Estudo Prévio junto da DSSOPT (T-4803), seguido de um estudo prévio complementar, apresentado em 15/12/2004 (T-6451), os quais serviam fundamentalmente para o cálculo do prémio do contrato em função das áreas brutas de construção do empreendimento proposto. (Q 1.º)
32. O referido estudo prévio foi aprovado pela DSSOPT, em 21/1/2005, por Ofício com o nº 747/DURDEP/2005. (Q 2.º)
33. A DSSOPT emitiu três Plantas de Alinhamento Oficiais (PAOs), uma em 23/12/2004 (cfr. Doc. n.º 4), outra em 23/2/2005 (cfr. Doc. n.º 5) e uma terceira, em 11/5/2007. (Q 3.º)
34. Nenhum destes documentos se previa quer a necessidade de um afastamento mínimo de 1/6 da altura do prédio mais alto entre as diversas torres a construir no terreno, quer a de um limite máximo de 50 metros para a extensão das fachadas das torres. (Q 4.º)
35. Também em lado nenhum se previa a apresentação e aprovação de relatórios de avaliação de impacto ambiental e de circulação do ar. (Q 5.º)
36. Em 29/4/2008, a Ré apresentou o Plano de Consulta “Master Layout Plan”, relativo à proposta de localização das torres (T-3040). (Q 6.º)
37. Em 6/5/2008, a Ré apresentou o projecto inicial de arquitectura (T-3163). (Q 7.º)
38. Este projecto, aliás, nunca chegou a ser analisado pela DSSOPT, porquanto o mesmo foi absorvido pelo projecto que contemplava todo o empreendimento, incluindo áreas comerciais, apresentado para aprovação em 22/10/2009. (Q 8.º)
39. A ré solicitou em 14/08/2009 a emissão de uma nova PAO. (Q 9.º)
40. Uma vez que a DSSOPT, ultrapassado o prazo contratual de 60 dias, não emitira a Planta solicitada, preocupada com o escoar do prazo de 96 meses de aproveitamento, a R. não aguardou pela nova Planta e submeteu o projecto global de arquitectura, para efeitos de aprovação, em 22/10/2009 (T-7191/2009). (Q 10.º)
41. O projecto inicial de arquitectura de 2008 e o projecto global de arquitectura de 2009 mantinham as mesmas soluções arquitectónicas já previstas nos Estudos Prévios de 2004. E o “estudo prévio de 2004” previa a construção de 18 torres com 46 andares cada assentes em pódio de 6 pisos, o contrato de concessão revisto previa a construção de 18 torres com 47 andares assentes num pódio de 5 pisos, o “projecto inicial de arquitectura de 2008” continha 4 torres de um conjunto de 16 com 43 andares assentes em pódio de 2 pisos de cave e mas três pisos acima do nível do solo e o projecto global de 2009 continha 18 torres com 52 pisos mas com localização diferente da indicada no “estudo prévio de 2004”. (Q 11.º)
42. Finalmente, em 23/2/2010, a DSSOPT emitiu nova PAO. (Q 12.º)
43. Em 7/1/2011, a DSSOPT aprovou o projecto de arquitectura que tinha sido apresentado pela Ré, em 22/10/2009 (Ofício nº 318/DURDEP/2011). (Q 13.º)
44. O projecto aprovado pela DSSOPT em 07/01/2011 não contemplava a sugestão de afastamento entre torres mencionada no nº 6 do referido Ofício nº 4427/DURDEP/2010, de 09/04/2010. (Q 14.º)
45. A DSSOPT prescindiu da sugestão de afastamento entre torres mencionada no nº 6 do referido Ofício nº 4427/DURDEP/2010, de 09/04/2010. (Q 15.º)
46. O projecto então aprovado contemplava as soluções anteriormente preconizadas nos Estudos Prévios de 10/09/2004 e 15/12/2004, das PAO’s de 23/12/2004 e de 23/12/2005, do projecto de arquitectura de 2009, e do contrato de concessão revisto. (Q 16.º)
47. A decisão de aprovação do projecto de arquitectura sujeitou a emissão de licença de obras à condição de (a) a Ré apresentar um relatório de avaliação do impacto ambiental que poderia ser causado pela nova construção a implementar no Lote “P” e (b) de tal relatório vir ser aprovado pelo serviço administrativo competente da Região – a Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental (“DSPA”). (Q 17.º)
48. Em 11/5/2011, a Ré apresentou o exigido relatório de impacto ambiental (1.º relatório) (T-5205/2011). (Q 18.º)
49. Sucessivamente a R. apresentou seis vezes relatórios de Avaliação do Impacto Ambiental, contemplando as novas exigências manifestadas pelos serviços públicos na referida reunião de 26/07/2013. (Q 19.º)
50. Estavam, sim, em causa exigências novas que apenas iam sendo formuladas à medida que o tempo passava e após a análise dos anteriores elementos entregues pela (A). (Q 20.º)
51. Em 15/10/2013 ocorreu a aprovação final do Estudo de Avaliação do Impacto Ambiental e de Circulação do Ar, atento o parecer da DSPA de 29/08/2013, sujeita apenas a condições de pormenor, designadamente resultantes dos pareceres da CEM (17/06/2011), IACM (17/06/2011), Corpo de Bombeiros (01/06/2011) e DSAT (13/07/2011). (Q 21.º)
52. O projecto da R. (apresentado em 22/10/2009 e parcialmente alterado em 03/06/2010 para atender a certos requisitos impostos pela DSSOPT), com a aprovação da DSSOPT de 07/01/2011, sujeitando, porém, a emissão da licença de obra à aprovação do Estudo de Impacto Ambiental do empreendimento projectado, não sofreu quaisquer alterações de relevo. (Q 22.º)
53. Aprovado o projecto de obra, a Ré, em 24/10/2013, requereu a licença para as obras de fundações (T-11874/2013). (Q 23.º)
54. No entanto, a DSSOPT só, em 2/1/2014, é que emitiu tal licença e com validade apenas até 28/2/2014, i.é, inferior a dois meses. (Q 24.º)
55. A Ré deu de imediato início aos respectivos trabalhos. (Q 25.º)
56. Tendo apresentado também logo, em 15/1/2014, pedido de prorrogação do prazo de aproveitamento. (Q 26.º)
57. Mas só cerca de seis meses e meio depois foi o pedido de prorrogação do prazo de aproveitamento autorizado, em 29/7/2014, através do ofício nº 572/954.06/DSODEP/2014. (Q 27.º)
58. O teor do acordo celebrado entre os autores e a ré que consta do documento de fls. 27 a 29. (Q 28.º)
59. O empreendimento “X” não foi nem será concluído pela ré. (Q 30.º)
60. Na mesma zona onde se localiza o Lote P e onde se localizaria a fracção D48, se tivesse vindo a ser construída, em edifícios com características semelhantes, o metro quadrado é transacionado a preços que excedem, em médias, os HKD108.926.00. (Q 31.º)
61. A área da fracção D48 prometida vender pela ré era de 94,1600m2. (Q 32.º)
62. Na primeira quinzena de Setembro de 2018, o metro quadrado no edifício (Y) foi transacionado, em média, por MOP166.370,00. (Q 33.º)
63. O edifício (Y) é um empreendimento promovido por empresas e sociedades do mesmo grupo empresarial da ré, sito na Rua Central da Areia Preta, construído em lote próximo do Lote P, com um nível de qualidade e acabamentos semelhante ao que estava projectado para o “X”. (Q 34.º)
64. O autor candidatou-se à aquisição de uma fracção autónoma ao abrigo da Lei nº 8/2019, de 12 de Abril, por via do Despacho do Chefe do Executivo 89/2019, de 30 de Maio. (Q 35.º)
65. Tal requerimento foi deferido. (Q 36.º)
66. Tal fracção é de tipologia, área e preço equivalentes a uma das fracções que constitui o objecto do contrato em causa nos presentes autos e irá ser construída no terreno concessionado à ré que vem mencionado na alínea B) dos Factos Assentes. (Q 37.º)
67. O autor apenas poderá receber do Governo tal fracção nas condições descritas porque celebrou com a ré o contrato referido na alínea C) relativamente a, pelo menos, uma fracção autónoma a construir no mesmo terreno. (Q 38.º)
68. O valor de mercado dessa fracção é superior ao valor inicialmente pago pelo autor à ré por fracção idêntica. (Q 39.º)
69. A Ré confiou que lhe seria prorrogado o prazo de aproveitamento ou dada uma nova concessão do mesmo terreno para data posterior a 24/12/2015 porque os serviços da RAEM criaram tais expectativas, nomeadamente: (Q 40.º)
i. Ao emitirem licença de obras para a fundação em 2/1/2014, um mês antes do terreno do prazo de aproveitamento;
ii. Ao Prorrogarem o prazo de aproveitamento em 29/7/2014 até 25/12/2015, sabendo que tal não seria possível;
iii. Já anteriormente haviam concessionado novamente o mesmo terreno ao mesmo concessionário em casos em que o terreno concessionado não tinha sido aproveitado no dentro do respectivo prazo.
*
A primeira instância julgou parcialmente procedente a acção movida pelos autores, resultando na declaração de resolução do contrato celebrado entre as partes outorgantes, na condenação da ré à restituição do dinheiro que recebeu e ao pagamento da indemnização fixada por equidade, tudo acrescido de juros à taxa legal.
Está em causa a seguinte decisão:
“1 – Da impossibilidade superveniente da prestação.
Neste momento da discussão já não são necessárias especiais considerações para concluir que a prestação da ré se tornou impossível. Seja qual for a prestação devida: celebrar o contrato prometido de compra e venda de uma fracção autónoma de prédio urbano ou apenas construir e entregar a referida fracção. Com efeito, por um lado, a ré já não questiona nas suas alegações de Direito a referida impossibilidade como questionou na contestação. Acresce que, não tendo a ré meios jurídicos conhecidos nos autos que lhe permitam construir a mencionada fracção, não se vê como negar as características relevantes da impossibilidade superveniente da prestação: objectiva, absoluta e definitiva. Com efeito, sem que ocorram circunstâncias de todo imprevisíveis presentemente, a ré, apesar de ser uma sociedade comercial e poder existir durante muito tempo, não tem possibilidade jurídica de construir ou adquirir a fracção autónoma em causa. Trata-se de uma impossibilidade jurídica da prestação, não de uma impossibilidade física ou naturalística, pois a construção da mencionada fracção está acessível à ré pelos conhecimentos técnicos existentes, mas não lhe está permitida por causa da sua situação jurídica actual e previsível num futuro ponderável. Na verdade, resulta dos autos que a ré não tem qualquer direito sobre o terreno onde se iria situar a planeada construção.
Conclui-se assim que se tornou impossível após a celebração do contrato a prestação que a ré acordou com os autores.
Resta, pois, apurar as consequências da impossibilidade da prestação.
1.1 – Dos efeitos da impossibilidade da prestação.
1.1.1 – Em geral.
Se a prestação acordada é originariamente impossível, a obrigação não nasce porque o contrato é nulo e, por isso, não gera a obrigação de prestar nem o dever de cumprir (art. 395º, nº 1 do CC).
Se a prestação acordada é originariamente possível (aquando da celebração do respectivo negócio jurídico), mas posteriormente deixa de o ser, a obrigação extingue-se, não pode ser cumprida e o devedor deixa de ter o dever de a prestar (arts. 779º e 790º do CC).
Se a impossibilidade superveniente ocorre por razões não imputáveis ao devedor, mas imputáveis a terceiro, ao credor ou a ninguém (caso fortuito ou de força maior), fica o devedor exonerado perante o credor. Se, porém, o credor cumpriu perante o devedor a sua eventual contraprestação e a causa da impossibilidade não imputável ao devedor também não lhe é imputável a si, credor, então este, credor, tem direito a que lhe seja restituído o que prestou, mas segundo as regras do enriquecimento sem causa. É esta a tese da ré, escorada no art. 784º do CC. Com efeito, entende que a impossibilidade da prestação não lhe é imputável a si nem ao credor, mas a terceiro, a RAEM.
Se a prestação se tornou impossível por causa imputável ao devedor, a obrigação extingue-se, não pode ser cumprida e o devedor deixa de ter o dever de a prestar, como se disse atrás. Porém, o devedor poderá ver nascer na sua esfera jurídica outra obrigação, a obrigação de indemnizar o credor pelos prejuízos sofridos em consequência da mencionada impossibilidade superveniente, devendo o devedor indemnizar o credor como se faltasse culposamente ao cumprimento devido (art. 790º, nº 1 do CC).
Para apurar os efeitos da impossibilidade da prestação torna-se, pois, necessário decidir se a causa da impossibilidade da prestação é imputável à ré devedora ou à RAEM, terceiro em relação à prestação.
Vejamos.
1.1.2 – Da imputação da causa da impossibilidade da prestação.
Este tribunal já decidiu esta questão em diversos litígios semelhantes ao que se discute nos presentes autos e não encontrou ainda razões para decidir de modo diferente. As partes, designadamente os seus ilustres mandatários conhecem a fundamentação da referida decisão deste tribunal, razão por que não advém redução das garantias processuais das partes se aqui não se reproduzir exaustivamente aquela fundamentação.
Em síntese:
A imputação é a atribuição a uma pessoa dos efeitos jurídicos de um facto. No caso presente está em causa a atribuição à ré do dever de indemnizar os autores (efeito jurídico) por ter ocorrido a impossibilidade da prestação (facto jurídico).
A causa da impossibilidade jurídica da prestação da ré foi o facto de não ter construído a facção acordada com os autores no prazo de que a ré dispunha nos termos do contrato de concessão, o que causou a caducidade da concessão e a impossibilidade jurídica de construir e entregar.
A imputação à ré da causa da impossibilidade da sua prestação depende da sua culpa em relação a essa causa.
A culpa é um juízo de censura dirigido a uma pessoa por ter tido um comportamento diverso daquele que deveria ter tido, ou seja, por ter tido um comportamento ilícito ou contrário ao Direito em vez de ter tido um comportamento lícito. In casu está em causa um ilícito contratual, o incumprimento de uma obrigação contraída por via contratual.
Este juízo de culpa pressupõe capacidade de motivação e liberdade de decisão do agente (que não se questiona em relação à ré) e, em matéria de responsabilidade civil , estrutura-se numa comparação entre o comportamento que o agente teve e aquele que, no seu lugar, teria um bom pai de família, o qual é uma pessoa que, entre o mais, se esforça por não cair em situações que o impeçam de honrar aquilo a que se comprometeu por via contratual e que, para isso, designadamente, pondera bem as possibilidades de cumprir antes de se comprometer e não se compromete quando há um não desprezível grau de probabilidade de não conseguir cumprir.
A ré, quando se comprometeu com os autores a cumprir (07/12/2012), dispunha de pouco mais de um ano até ao fim do prazo de aproveitamento da concessão (28/2/2014) e de pouco mais de três anos até ao fim do prazo da concessão (25/12/2015), sendo notório que se trata de tempo insuficiente, pois que a ré se comprometeu a construir em “1200 dias úteis de sol, contados a partir da conclusão do primeiro piso para habitação das obras de superestrutura”, necessitava de três a quatro anos para construir (art. 127º da contestação da ré) e ainda não tinha licença de obras para iniciar a construção por esta licença depender da aprovação administrativa de estudos de impacto ambiental que a ré tinha apresentado à autoridade competente em 11 de Maio de 2011 e que não estavam ainda aprovados na data em que a ré celebrou o contrato com os autores (7 de Dezembro de 2012). Além disso, a ré necessitava da cooperação dos serviços públicos da RAEM, que vinham cooperando com atraso não desprezível em relação aos prazos legais e contratuais, não relevando aqui as razões desse atraso, quer respeitem a acumulação imprevisível de serviço, que respeitem a falhas de organização ou outras falhas.
Neste contexto, um bom pai de família, no lugar da ré, não se vincularia a construir e entregar como a ré se vinculou ou, então, obtinha a adesão da sua contraparte contratual à possibilidade de sobrevir a impossibilidade de cumprir, incrementando ao contrato alguma álea em vez de se comprometer firmemente como se comprometeu. A ré distanciou-se claramente do comportamento que no seu lugar teria um bom pai de família. A ré é juridicamente censurável em termos de culpa por ter ocorrido a impossibilidade da sua prestação.
Este tribunal só pode decidir por razões jurídicas. Se, por mero exemplo, a actuação da ré foi meritória, justificada ou compreensível em termos gestão empresarial não cabe aqui avaliar nem releva em sede de juízo de culpa cível em matéria de responsabilidade civil. O risco empresarial não é o risco jurídico. Este tem a ver com os direitos e os deveres jurídicos, nomeadamente de quem celebra contratos e, designadamente, do âmbito da autonomia privada e do dever de agir de boa fé. Aquele outro risco é aqui alheio.
Em conclusão, a causa da impossibilidade da prestação é, crê-se que sem sombra de dúvida, juridicamente imputável à ré a título de culpa.
2 – Da resolução contratual.
No que respeita ao direito à resolução do contrato e às suas consequências de restituição retroactiva do que foi prestado, não se vê como negar. É a lei evidente (arts. 790º, nº 2, 426º a 428º e 282º do CC) e nem as partes questionam.
Procede, pois, esta pretensão dos autores e deve ser declarado resolvido o contrato, como peticionado.
3 – Da indemnização dos danos decorrentes da impossibilidade superveniente da prestação por causa imputável ao devedor.
3.1 Da existência de obrigação de indemnizar.
Estando decidido que houve incumprimento culposo da ré, rectius, impossibilidade da prestação por causa imputável à ré, basta que haja danos na esfera jurídica dos autores com nexo de causalidade com o referido incumprimento para que surja na esfera jurídica da ré a obrigação de indemnizar (arts. 787º, 790º e 557º do CC).
Tendo-se provado que os autores pagaram à ré para receber dela um imóvel e que nada receberam é forçoso concluir que os autores sofreram danos decorrentes do incumprimento da ré, pois que pagaram para adquirir e nada adquiriram.
Assim, não são necessárias outras considerações para se concluir que existe na esfera jurídica da ré a obrigação de indemnizar os autores, sendo a controvérsia essencialmente respeitante ao valor da indemnização.
3.2 Do montante da indemnização
Os autores pretendem ser indemnizados pelo dano que efectivamente sofreram e que dizem ser superior a sinal prestado.
Por seu lado, a ré entende que a sua culpa, caso se conclusa que existe, é diminuta e, havendo lugar a indemnização, esta deve ser fixada, por razões de equidade, em montante inferior ao “sinal” prestado.
O princípio geral em matéria de responsabilidade civil é que devem ser indemnizados todos os prejuízos efectivamente sofridos pelo credor em consequência do incumprimento do devedor (arts. 787º - “prejuízo que causa ao credor”, 556º - “reconstituir a situação que existiria” e 557º - “danos que o lesado … não teria se não fosse a lesão” - do CC.).
No entanto, se for constituído sinal é o valor deste que, em princípio, determina o valor da indemnização, o valor que terá a obrigação de indemnizar originada pelo incumprimento culposo. É o que dispõe o art. 436º do CC.
É, pois, necessário apurar se foi constituído sinal, entendendo os autores que foram e a ré que não foi.
3.2.1 Da existência de sinal
Da qualificação do contrato.
Como antes se referiu, os autores entendem que o contrato em discussão nos presentes autos deve ser qualificado como contrato-promessa, ao passo que a ré entende nas suas alegações de Direito que deve ser qualificado como contrato de compra e venda de bem futuro.
A qualificação jurídica que as partes fazem dos factos a que cabe aplicar o Direito não vincula o tribunal (art. 567º do CPC).
A qualificação dos contratos pertence à lei e não às partes. É uma operação muito relevante, pois vai determinar o regime jurídico aplicável à relação contratual. No caso dos autos está em causa a aplicabilidade ou a inaplicabilidade da presunção legal de que é sinal toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente vendedor em cumprimento do contrato-promessa de compra e venda (art. 435º do CC).
Pois bem, a qualificação do contrato tem essencialmente por base a vontade negocial das partes plasmada no clausulado concretamente acordado relativamente às prestações a que se pretenderam vincular. É feita por comparação ou subsunção, tendo em conta os elementos do concreto contrato a qualificar e os elementos dos diversos tipos contratuais, podendo concluir-se que o contrato concreto se reconduz a um tipo, a nenhum ou a mais que um, sendo neste caso um contrato misto ou uma união de contratos.
A nosso ver, deve atender-se de forma mais relevante às prestações características acordadas pelos contraentes, quer para qualificar o contrato, quer para se lhe determinar o regime quando se conclua que o contrato celebrado se trata de um contrato misto por agregar elementos de mais do que um tipo contratual.
Faltando no contrato celebrado um elemento essencial de um contrato tipificado na lei, o acordo das partes não pode qualificar-se segundo tal tipo contratual.
Pois bem, então afinal a operação de qualificação do contrato redunda em duas operações: saber que prestação característica quiseram as partes e, depois, subsumi-la à prestação característica de um tipo contratual, de mais que um ou de nenhum.
A prestação característica do contrato-promessa é a celebração de outro contrato, o contrato prometido. As partes comprometem-se a celebrar outro contrato (art. 404º do CC).
Este tribunal também já decidiu esta questão em diversos litígios semelhantes ao que se discute nos presentes autos, conhecendo as partes, designadamente os seus ilustres mandatários, a fundamentação da referida decisão, razão por que, não se tendo encontrado ainda razões para alterar o sentido da decisão, também não advém redução das garantias processuais das partes se aqui não se reproduzir exaustivamente aquela fundamentação.
A razão decisiva para o tribunal concluir que a vontade das partes não foi de mera reserva ou encomenda de um bem futuro é que os autores foram pagando prestações do preço e não apenas uma comissão de reserva. Crê-se que é incontornável que um declaratário normal não considera que a vontade das partes foi de mera reserva de lugar para aquisição em face do facto de terem sido colocadas perante a escolha de pagar todo o preço ou apenas uma parte e perante o pagamento de várias e sucessivas “comissões de reserva”. Reserva, terá havido no pagamento dos primeiros HKD200.000,00, mas com a formalização do contrato em discussão e com os pagamentos seguintes, nenhum declaratário normal considerará que as partes se quiseram manter em situação de mera reserva.
A razão decisiva para o tribunal concluir que a vontade das partes não foi de compra e venda de um bem futuro, contrato que seria formalmente inválido, é que no contrato que celebraram não consideraram os autores como titular de um direito real, oponível erga omnes, mas consideraram-no na situação de alguém que necessitava do consentimento da ré e de lhe pagar para exercer o direito que adquiriu por via contratual, se esse exercício passasse pela transmissão para terceiros.
Crê-se também que é incontornável que um declaratário normal não considera que a vontade das partes foi de tornar os autores donos ou proprietários, mas de torná-los meros titulares de um direito a ultimar uma qualquer relação contratual com a ré, o que é, precisamente a prestação característica do contrato-promessa.
Em conclusão, dir-se-á que o sentido com que deve valer juridicamente a declaração negocial quanto às prestações acordadas só é reconduzível ao tipo contratual de contrato-promessa.
Da convenção de sinal.
O sinal é um elemento eventual do conteúdo do negócio jurídico. Numa certa perspectiva, é, em essência, uma estipulação contratual, uma cláusula negocial.
Seja qual for a qualificação que lhe seja dada, o sinal é sempre também uma convenção das pastes contratantes. Depende, pois, da existência de vontades negociais concordantes.
Para se concluir se foi ou não estipulado sinal é necessário interpretar as declarações negociais das partes contratantes.
Se os autores pretendem ser indemnizados segundo o regime do sinal, cabe-lhes, nos termos do art. 335º, nº 1 do CC, alegar e provar, entre o mais, os factos demonstrativos de ter sido estipulada a existência de sinal.
Porém, no caso do contrato-promessa de compra e venda, como ocorre na situação sub judice, a parte que se quiser prevalecer da existência de sinal beneficia da presunção legal inserta no art. 441º do CC que diz que se presume “que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço”.
Ora, quem tem a seu favor uma presunção legal, está dispensado de provar o facto a que ela conduz, sendo a parte contrária que tem de provar o facto contrário ao facto presumido (art. 343º, nºs 1 e 2 do CC). No caso dos autos, provou-se que os autores entregaram à ré, promitente-vendedora, determinada quantia em dinheiro no âmbito do contrato promessa que celebraram. Provou-se o facto base da presunção, pelo que está presumido que as partes quiseram atribuir carácter de sinal. Cabe, pois à ré, interessada em ilidir a presunção, a alegação e a prova do facto contrário ao facto presumido, isto é, cabe-lhe provar que as partes acordaram que a quantia entregue não tinha carácter de sinal. A ré não conseguiu fazer a prova dessa vontade negocial contrária à presunção legal (resposta dada aos quesitos 28º e 29º da base instrutória). Tem a ré de ver esta questão decidida em sentido contrário à sua pretensão.
Mas dir-se-á ainda que do contrato-promessa sub judice resulta que as partes quiseram que as quantias pagas pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor sejam consideradas sinal. Com efeito, na cláusula 5ª do contrato referido em c) dos factos provados diz-se que a falta de pagamento das prestações do preço acordado implica a perda da quantia já paga. Trata-se do regime supletivo do sinal, pelo que parece clara a vontade das partes no sentido de terem pretendido constituir sinal.
Mas, em caso de dúvida sobre o sentido que atribuiria o “declaratário normal”, deve, para se apurar o sentido com que a vontade declarada das partes deve valer, ponderar-se a medida em que o princípio do equilíbrio das prestações intervém na fixação do valor da vontade negocial declarada quando se desconhece a vontade real.
Se é certo que não é determinante para qualificar o acordo das partes o facto de as partes terem denominado como contrato-promessa aquele acordo que celebraram, é igualmente certo que não é determinante para fixar o sentido com que deve valer a declaração negocial o facto de terem denominado de depósito a quantia monetária entregue pelos autores à ré em cumprimento do acordo que celebraram.
Se a vontade real dos contraentes é conhecida pelo declaratário, é ela que deve vincular os declarantes (nº 2 do art. 228º do CC). Se essa vontade real não é conhecida, é a vontade declarada que vai determinar quais os vínculos contratuais que as partes devem cumprir. Para saber em que sentido a vontade declarada vincula é necessário interpretá-la, ou seja, avaliá-la intelectivamente para lhe apreender o sentido vinculador.
Há, pois, que atender ao princípio do equilíbrio das prestações, o qual diz que, em caso de dúvida, o sentido da declaração é o mais equilibrado nos negócios onerosos, como é o dos autos.
Ora, se em caso de incumprimento dos autores a ré é indemnizada em “X”, qual será a vontade negocial que deve valer em caso de incumprimento da ré? Deve pagar apenas se se enriqueceu e só na medida do seu enriquecimento? Ou deve também ter uma pena e pagar o mesmo que os autores ou outra quantia, mas uma pena? Parece que o princípio do equilíbrio das prestações impõe que, em caso de dúvida, se conclua que as partes estabeleceram penas para ambas e que quiseram que a quantia entregue pelos autores fosse a medida da pena de ambas em caso de incumprimento definitivo.
As partes não estipularam que em caso de incumprimento dos autores a ré podia recorrer à acção de execução específica, nem à acção de condenação, nem à resolução do contrato com restituição do que foi prestado e indemnização dos danos efectivos. Estipularam o regime do sinal segundo o qual, em caso de incumprimento daquele que o prestou, aquele que o recebeu fica com ele para si sem direito a outra indemnização excepto se sofrer danos manifestamente superiores.
Na dúvida, o princípio do equilíbrio das prestações “manda” que se atribua valor à declaração negocial das partes no sentido de ter sido estipulado sinal.
Assim, mesmo que não se qualifique o contrato como contrato-promessa, há-de a quantia entregue ser qualificada de sinal de acordo com o sentido com que deve valer juridicamente a declaração negocial das partes.
Portanto, mesmo sem a presunção legal referida, sempre a vontade das partes deve ser interpretada no sentido de terem convencionado sinal.
Conclui-se, pois, que foi acordado sinal no caso em apreço.
O montante da indemnização predeterminado pelo valor do sinal, a sua ampliação para o valor do dano efectivo que excede o valor do sinal ou a sua redução por juízos de equidade.
“Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele o direito de exigir o dobro do que houver prestado” (art. 436º, nº 2 do CC).
Está demonstrado que a ré não cumpriu definitivamente a sua promessa de venda.
Está também demonstrado que a ré recebeu sinal.
Foi já decidido atrás que a causa do incumprimento não é imputável a terceiro e que é imputável à ré a título de culpa. E também já atrás foi decidido que o incumprimento culposo da ré confere aos autores o direito de resolver o contrato-promessa.
Deve, pois a ré restituir o que recebeu para cumprir a promessa de venda que não cumpriu, uma vez que, como efeito da resolução do contrato, sempre terá que devolver o que lhe foi prestado (arts. 282º e 427º do CC). Mas terá ainda de pagar aos aurores um montante igual ao do sinal que recebeu, um montante superior ou um montante inferior?
Vejamos.
Dispõe o nº 4 do art. 436º do CC que “na ausência de estipulação em contrário, e salvo o direito a indemnização pelo dano excedente quando este for consideravelmente superior, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste.
E dispõe o art. 801º, nº 1 do CC, aplicável por força do disposto no nº 5 do art. 436º do mesmo CC, que “a pedido do devedor, a pena convencional pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente…”.
Portanto, o valor da indemnização por incumprimento do contrato, rectius, por impossibilidade culposa da prestação, deve, em princípio, corresponder ao valor do sinal prestado. Porém, o referido valor da indemnização pode ser:
- Aumentado para o valor do dano efectivamente sofrido pelo credor se este dano for consideravelmente superior ao valor do sinal;
- Reduzido para montante equitativo não inferior ao valor do dano efectivo se a penalização resultante do sinal for manifestamente excessiva em relação ao mesmo dano efectivo.
O ónus da prova.
O legislador ao permitir às partes fixarem por convenção as consequências do incumprimento acabou por criar uma distribuição do ónus da prova em que só tem que provar o dano relevante o contraente que pretende que a indemnização por incumprimento se fixe em valor diferente do predeterminado. Assim, o credor que pretende que o valor da indemnização seja superior ao predeterminado tem de provar que sofreu um dano consideravelmente superior ao sinal. Por sua vez, o devedor que pretende que a indemnização seja de valor inferior ao predeterminado tem que demonstrar que a pena é manifestamente excessiva para ressarcir o dano do lesado e para sancionar a culpa do lesante.
No presente caso, cabe aos autores alegar e provar os factos de onde se possa concluir que o seu dano efectivo é superior ao valor do sinal e cabe à ré alegar e provar os factos de onde se possa concluir que o valor do sinal é manifestamente excessivo para ressarcir o dano efectivo dos autores e para sancionar a culpa pelo incumprimento.
Os autores alegaram que tiveram despesas com o pagamento de imposto do selo e que a fracção prometida viu o seu valor aumentar no mercado em relação ao preço prometido, pelo que, não tendo recebido essa fracção, não puderam beneficiar do aumento do seu valor no mercado imobiliário. Por sua vez, a ré limitou-se a dizer que a sua culpa é reduzida, sem nada dizer quanto ao dano efectivo dos autores (arts. 205º a 210º da contestação).
Durante a audiência de julgamento, o tribunal decidiu aditar à base instrutória factos sobre a possibilidade de aquisição pelos autores de uma fracção idêntica à prometida por preço também idêntico ao prometido e por causa de não terem recebido a fracção prometida. Tais factos lograram provar-se e têm aqui de ser considerados para a decisão.
Do ressarcimento do dano excedente.
Já se disse que é regra geral do instituto jurídico da responsabilidade civil que devem ser indemnizados todos os danos efectivamente ocorridos com nexo de causalidade com o facto lesivo. Também já se disse que, tendo sido prestado sinal, a indemnização por incumprimento só deve exceder o valor do sinal se os danos efectivos com nexo causal com o facto lesivo (incumprimento) forem consideravelmente superiores ao valor do sinal.
Cabe agora dizer que só se pode aqui atender aos danos efectivos alegados e que os autores alegaram dois: despesas com pagamento do imposto do selo e perda do aumento do valor de mercado da fracção que deveriam receber da ré e não receberam.
O dano de perda do aumento do valor de mercado.
Os autores não lograram provar este dano. Com efeito, provou-se que o valor de mercado da fracção prometida cuja aquisição se frustrou seria agora maior do que o preço que acordaram pagar para a adquirir. Isso é, inegavelmente um dano para os autores. Porém, provou-se também que, por causa de se ter frustrado a aquisição prometida, os autores irão receber uma fracção idêntica por preço idêntico. Ora, quando os autores receberem a “fracção substituta” terão o mesmo valor de mercado que teriam se tivessem recebido a “fracção substituída”, uma vez que se trata de um bem duradouro que não se desvaloriza visivelmente em tempo curto.
Não está, pois, demonstrado o dano da privação do aumento do valor de mercado. Outros danos não alegados não podem ser considerados pelo tribunal.
O dano de despesas com imposto do selo.
Este dano foi alegado e provado como tendo o valor de MOP224.979,00. Ora, como se disse, só é indemnizável se, em conjunto com os demais danos efectivos, excederem consideravelmente o valor do sinal. O sinal prestado foi de HKD2.662.758,00. Assim, não se conhecendo outros danos, é evidente que este “dano do selo”, porque inferior ao valor do sinal, não é autonomamente ressarcível e já está englobado na indemnização predeterminada pelo valor do sinal.
Acresce que é facto de conhecimento oficioso por resultar de inúmeros processos semelhantes ao presente que pendem nos tribunais da RAEM e é facto quase notório que a RAEM se disponibilizou para restituir o imposto do selo pago pelos autores e por outras pessoas que pagaram esse imposto em situação semelhante. Esse facto pode aqui ser conhecido e os seus efeitos podem ser considerados para fundamentar a decisão, mesmo sem ter sido alegado e sem ter sido submetido a julgamento (arts. 5º, nº 2, 434º e 562º do CPC).
Os efeitos de tal facto são de quebra do nexo causal entre o dano e o incumprimento. Ou de estabelecimento de um novo nexo causal mais adequado entre esse facto e o dano. Um nexo causal mais adequado do que aquele que se estabelecera entre o incumprimento e o dano.
Depois da disponibilização da RAEM para devolver o imposto do selo e presumindo-se que os autores tiveram conhecimento dessa disponibilização pública e quase notória, se o dano ainda persiste, então os autores tiveram e, eventualmente ainda têm, o domínio do processo causal desse dano, só eles o podendo evitar (depois de ocorrido, mas antes de consolidado) reclamando da RAEM a devolução que esta está disposta a fazer. Esta quebra do nexo causal torna este dano não indemnizável. A celebração do contrato-promessa de compra e venda, enquanto acto tributário, deu lugar ao pagamento do imposto do selo e o “incumprimento do acto tributário” fez do pagamento do imposto um dano que hoje ocorre na esfera jurídica dos autores. Há um processo causal entre o incumprimento e o “dano do selo”. Porém, os autores têm ou tiveram o poder de evitar o dano, só eles o podendo evitar. Este monopólio posterior do domínio do processo causal impede que se conclua que o dano hoje verificado ainda mantenha nexo de causalidade adequada com o incumprimento. O incumprimento contratual ia a caminho de causar definitivamente o dano que hoje se verifica, mas intrometeu-se no processo causal um acto ou uma omissão dos autores que faz com que juridicamente assumam para si o processo causal do dano de hoje, que é o dano que releva nos termos do disposto no nº 5 do art. 560º do CC. Os autores tiveram em determinado momento o domínio exclusivo do processo causal do dano, pelo que, se não o impediram, sibi imputet. Tal domínio do processo causal quebra o nexo causal que se havia estabelecido entre o incumprimento e o dano e estabelece novo processo causal entre a omissão dos autores e o mesmo dano. Assim, o “dano do imposto do selo” tem hoje um nexo causal, em termos de causalidade adequada, não com o incumprimento da ré, mas com a omissão dos autores de não reclamarem a devolução junto da RAEM. A omissão dos autores relegou o incumprimento da ré da categoria de causa adequada do dano para a categoria de mera condição “sine qua non”. Com efeito, os autores, provavelmente, não teriam o dano se tivessem reclamado o reembolso e é esta probabilidade que eleva a omissão dos réus a causa adequada do “dano do selo” e degrada o incumprimento para “conditio sine qua non”.
Assim, o dano decorrente do pagamento do imposto do selo não é indemnizável por já não manter nexo causal suficiente ou adequado com o incumprimento da ré e só os danos com nexo causal adequado com o facto danoso são indemnizáveis (art. 557º do CC).
Da redução equitativa da indemnização determinada pelo valor do sinal prestado.
A redução equitativa da indemnização requer a certeza de que a indemnização determinada pelo valor do sinal é manifestamente excessiva em relação ao dano efectivo.
O valor do sinal é HKD2.662.758,00.
E qual é o dano efectivo dos autores que decorre do incumprimento da ré?
Em sede de ponderação da equidade já os poderes de cognição e de ponderação do tribunal são mais latos que quando tem de decidir por recurso a “critérios de legalidade estrita”, usando a expressão do art. 1208º do CPC. O tribunal já não está tão limitado pela alegação das partes em matéria de facto, mas não pode considerar factos que não foram submetidos a julgamento, embora os possa ponderar em termos de probabilidade e oportunidade na busca da solução mais conveniente às particularidades do caso.
Os autores estão privados há vários anos do direito de propriedade que pretendiam ter sobre a fracção prometida e estão privados do dinheiro que pagaram à ré para adquirir tal fracção. Estão privados das inerentes faculdades de usar, fruir e dispor. Não se sabe ao certo por quanto tempo ainda irão continuar privados até receberem a “fracção sucedânea”. Ao mesmo tempo, os autores não estão privados da parte do preço acordado que ainda não pagaram. Não tiveram de fazer o esforço financeiro que teriam feito se tivessem adquirido a fracção que a ré prometeu (HKD6.213.102,00 = 8.875.860 – 2.662.758,00). Também os autores não estiveram sujeitos aos “riscos” dos proprietários de imóveis, desde o dever de pagar impostos, à possibilidade de frustração na fruição, às despesas para fruição, à possibilidade de ocorrência de danos, ao envelhecimento do imóvel, etc.
A jurisprudência do Venerando TSI tem-se mostrado mais sensível a ponderar o interesse contratual negativo do que o interesse contratual positivo com vista à avaliação equitativa do dano na situação em que se encontram os autores. Tem recorrido à taxa de juro anual de 3.5%, contada sobre o montante pago pelos promitentes fiéis durante os anos de privação do imóvel prometido pela ré.
Afigura-se claro que a redução equitativa não é a redução da indemnização determinada pelo valor do sinal até ao montante do dano efectivo. A redução tem de respeitar ainda a função sancionatória do sinal. A redução equitativa não deve ser para montante inferior ao do dano efectivo e deve ainda considerar, além do dano efectivo, com equilíbrio em relação ao grau de culpa do promitente incumpridor, a função punitiva do sinal. Busca-se uma consequência equitativa para o incumprimento, que indemnize o dano efectivo e que reconduza a pena convencionada ao justo reflexo da culpa do inadimplente, reduzindo o excesso da pena convencionada para que espelhe a culpa sem imagem desfocada.
Os autores apenas prometeram comprar uma fracção, o que não indicia que se tratava de um investimento com o seu inerente risco. A culpa da ré é leve e o seu incumprimento único deixando terminar o prazo que dispunha para edificar originou-lhe várias obrigações de indemnizar, o que pode repercutir-se numa pena global excessivamente severa para um incumprimento único com culpa leve.
Não há razões para duvidar que se a fracção prometida tivesse sido entregue aos autores no tempo acordado (cerca de 2016), os autores não teriam conseguido com a sua fruição um valor aproximado ao valor do sinal prestado (HKD2.662.758,00).
Também não há razões para duvidar que se não tivessem pago o sinal e, em vez disso, o tivessem fruído em fruição lícita comum não teriam conseguido um resultado líquido aproximado ao valor do sinal.
Tudo visto e ponderado, afigura-se respeitador da equidade fixar a indemnização a cargo da ré em MOP1.600.000,00 (um milhão e seiscentas mil Patacas).
4 Da mora na obrigação de indemnizar e na obrigação de restituir em consequência de resolução contratual.
Os autores pediram a condenação da ré no pagamento de juros de mora à taxa legal, contados sobre a quantia em que a ré for condenada, desde a data da citação até integral pagamento. Nas suas alegações de Direito já os autores de pronunciaram no sentido de a mora quanto à parte da obrigação de indemnizar fixada por referência ao “dano excedente” só ocorrer com a presente decisão.
A indemnização moratória pressupõe a mora do devedor e esta só ocorre com a interpelação do devedor no que respeita às obrigações puras e líquidas que não provenham de facto ilícito e com a liquidação quanto às obrigações ilíquidas cuja falta de liquidez não seja imputável ao devedor (art. 794º, nºs 1, 3 e 4 do CC).
A citação tem valor de interpelação (art. 794º, nº 1 do CC e art. 565º, nº 3 do CPC).
A indemnização moratória relativa às obrigações pecuniárias corresponde aos juros legais a contar do dia da constituição em mora, salvo excepções aqui inaplicáveis (art. 795º do CC).
A mora ocorreu, pois, com a citação relativamente à obrigação de restituir por resolução contratual.
Diferente é a situação em que o montante da obrigação é liquidado após juízo equitativo. Este juízo é, por natureza, actualizado à data em que é feito, devendo ponderar todas as circunstâncias relevantes e nada justificando indemnização moratória anterior, a qual já deve ser ponderada no juízo de equidade que fixa o valor da obrigação e a torna líquida. Por outro lado, a obrigação fixada segundo juízos de equidade é, por natureza ilíquida, pois que a sua liquidação depende de juízo inexistente antes da liquidação.
A mora quanto à obrigação de indemnizar fixada por seguindo juízos de equidade ocorre apenas aquando da fixação/liquidação.
Embora estejamos em sede de responsabilidade contratual ou por acto ilícito contratual consubstanciado no incumprimento culposo, a mora deve começar na data da decisão que liquida pela primeira vez o valor da indemnização que venha a tornar-se definitivo, seja por não ser impugnada por via de recurso, seja porque o recurso não mereceu procedência, seja por outra razão. Esta solução está em consonância com a jurisprudência do Venerando TUI sobre a mora na obrigação de indemnizar por responsabilidade extracontratual por acto ilícito, (Acórdão para fixação de jurisprudência de 02/03/2011, proferido no processo nº 69/2010, acessível em www.court.com.mo).
O momento da decisão como início da mora é também o mais coerente com a fixação da indemnização por juízos de equidade, pois que a ponderação feita quanto ao valor adequado da indemnização deve contar com todos os factores relevantes que sejam ponderáveis no momento da decisão de acordo com as regras substantivas e processuais aplicáveis e, por isso, já deve ter em consideração o tempo decorrido entre a ocorrência do dano e o seu ressarcimento, seja a dilação imputável ao devedor ou seja imputável ao credor
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V – DECISÃO.
Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, declara-se resolvido o contrato existente entre as partes e condena-se a ré a pagar aos autores:
- A quantia de MOP1.600.000,00 (um milhão e seiscentas mil Patacas), acrescida de juros contados à taxa legal desde a data da presente decisão até integral pagamento;
- A quantia de HKD2.662.758,00 (dois milhões, seiscentos e sessenta e dois mil e setecentos e cinquenta e oito dólares de Hong Kong), acrescida de juros contados à taxa legal desde a data da citação da ré até integral pagamento.
Custas a cargo dos autores e da ré na proporção do respectivo decaimento.
Registe e notifique.”
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Louvamos a acertada, perspicaz e justiciosa decisão que antecede, na qual foi abordada de forma minuciosa e fundamentada a qualificação jurídica do acordo celebrado entre as partes, a imputabilidade do incumprimento do contrato à recorrente, bem como o valor da indemnização. Concordamos plenamente com a decisão recorrida, considerando que esta oferece a melhor solução para o caso em apreço.
De facto, conforme referido na sentença recorrida, na fixação do valor indemnizatório, por equidade, foram ponderadas pelo tribunal recorrido as seguintes circunstâncias relevantes: os autores estão privados há vários anos do direito de propriedade que pretendiam ter sobre a fracção prometida e do dinheiro que pagaram à ré para a aquisição dessa fracção. Estão privados das inerentes faculdades de usar, fruir e dispor, sem saber ao certo por quanto tempo ainda permanecerão nessa situação até receberem a fracção sucedânea. Ao mesmo tempo, os autores não estão privados da parte do preço acordado que ainda não pagaram, pois não tiveram de fazer o esforço financeiro que teriam feito se tivessem adquirido a fracção que a ré prometeu (HKD6.213.100,00 = 8.875.860,00 – 2.662.758,00). Além disso, os autores não estiveram sujeitos aos riscos dos proprietários de imóveis, incluindo o dever de pagar impostos, a possibilidade de frustração na fruição, as despesas para fruição, a possibilidade de ocorrência de danos e o envelhecimento do imóvel. Os autores apenas prometeram comprar uma fracção, o que não indicia ser um investimento com o objectivo de obter lucros. A culpa da ré é leve e o seu incumprimento único deixando terminar o prazo que dispunha para edificar, gerou várias obrigações de indemnização, o que poderá resultar numa penalização global excessivamente severa para um incumprimento único com culpa leve.
Face às circunstâncias descritas, nomeadamente os prejuízos sofridos pelos autores, os benefícios que estes obtiveram, o baixo nível de riscos assumidos e a culpa leve da ré, entendemos que o valor arbitrado pelo tribunal recorrido, no montante de MOP1.600.000,00, não se revela manifestamente desproporcional ou inadequado, antes procura equilibrar os interesses das partes e assegurar a justiça no cumprimento das obrigações contratuais.
Assim, à luz da fundamentação jurídica acima exposta, a qual subscrevemos inteiramente e remetemos aos seus precisos termos, conforme disposto no artigo 631.º, n.º 5 do CPC, negamos provimento ao recurso.
É importante destacar que, no recente acórdão deste TSI, proferido no âmbito do Processo n.º 928/2024, foram abordadas questões semelhantes, decididas no mesmo sentido.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, o Colectivo de Juízes deste TSI decide negar provimento ao recurso interposto pela ré Sociedade de Importação e Exportação (A) Limitada e, em consequência, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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RAEM, aos 30 de Abril de 2025
Tong Hio Fong
(Relator)
Rui Pereira Ribeiro
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Recurso Cível 72/2025 Página 9