Processo nº 268/2025
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 22 de Maio de 2025
ASSUNTO:
- Nulidade
- Omissão de pronúncia
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 268/2025
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 22 de Maio de 2025
Recorrente: A
Recorrida: Associação de Beneficiência B
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
veio instaurar acção de Procedimento Cautelar de Suspensão de Deliberações Sociais contra
Associação de Beneficiência B, também com os demais sinais dos autos,
Pedindo que seja julgado procedente, por provada, e em consequência ser decretada a suspensão da deliberação social tomada em 22 de Novembro de 2023 pela Assembleia Geral de associados da Associação de Beneficência B, e bem assim da deliberação que decidiu a alteração do artigo segundo dos estatutos da associação, por se mostrarem as mesmas feridas dos vícios de nulidade e anulabilidade, com as demais consequência da lei.
Citada a Requerida para querendo contestar veio esta deduzir oposição, defendendo-se por excepção.
A Requerente respondeu pugnando pela improcedência das invocadas excepção da caducidade e da ilegitimidade activa da Requerente.
Por despacho de fls. 358 foi a Requerente notificada para apresentar prova documental sobre a sua qualidade de associado da Requerente.
A Requerente respondeu nos termos do requerimento de fls. 370 a 390, juntando documentos e requerendo a notificação da Requerida para juntar o livro de actas da Direcção da Requerida que comprove as deliberações sobre a admissão de todos os membros da associação.
A Requerida respondeu a este requerimento nos termos de fls. 391 a 393.
Proferido despacho saneador veio a ser julgada procedente a excepção dilatória da falta de legitimidade singular activa e absolveu-se a Requerida da instância.
Não se conformando com a decisão proferida veio a Requerente e agora Recorrente interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
I. Vem o presente Recurso interposto da decisão de fls. 394 que julgou procedente a excepção de falta de legitimidade absolvendo-se a Requerida da instância com base na falta de legitimidade activa da Requerente;
II. Vem a decisão recorrida defender que, cabendo à Requerente o ónus de alegar e provar a sua qualidade de associado da Requerida, não poderá esta exigir que seja a Requerida a fazer prova desse facto ao lançar mão do meio de prova previsto no art. 455º do CPC - documento em poder da parte contrária.
III. A ora Requerente não se conforma com esta decisão e está em crer que a mesma padece do vício de nulidade, de erro na apreciação da prova e erro na aplicação do direito.
IV. A norma vertida no art. 455º do CPC impõe um controlo judicial sobre a idoneidade do documento para a prova de factos de que o requerente tem o ónus da prova, ou que possam infirmar a prova de factos de que o detentor do documento tem o ónus.
V. Verificados os requisitos legalmente exigidos pela norma, designadamente, a verificação da relevância probatória de tais documentos para a factualidade alegada com interesse para a decisão da causa, não haverá fundamento para recusa da prova requerida.
VI. Assim, ou o Tribunal a quo entendia que o documento solicitado pela Requerente não era relevante para a decisão da causa, e indeferia o requerido, ou, ao invés, entendia que era importante para a decisão da causa, e ordenava a notificação da Requerida para juntar.
VII. A norma impõe assim um juízo fundamentado sobre a (in)admissibilidade da prova requerida, porém, o Douto Tribunal a quo nada decidiu.
VIII. O Douto Tribunal a quo apenas veio a tomar posição quanto ao dito requerimento na decisão em crise alegando tão só que, incumbindo à Requerente o ónus da prova do facto, não poderia estar a impor à Requerida a prova desse facto.
IX. Tendo a Requerente recorrido ao mecanismo previsto no art. 455º do CPC, solicitando documento em poder da parte contrária, cabia ao Tribunal tomar posição em relação ao referido requerimento, fundamentando a sua decisão tal como prescreve o art. 455º, nº 2 do CPC.
X. In casu, há uma clara omissão de uma formalidade que se mostra essencial para a boa decisão da causa, e cuja irregularidade tem influência séria na decisão.
XI. Tal irregularidade enferma a decisão recorrida do vício de nulidade, nos termos do disposto no art. 147º, nº 1 do CPC, o que ora se invoca.
XII. O Tribunal a quo não proferiu qualquer decisão sobre o deferimento ou indeferimento da prova requerida pela Requerente, nem fundamentou a razão pela qual tal meio de prova não pode ser produzido, isto é, não elaborou na fundamentação sobre a relevância do requerimento para a boa decisão da causa.
XIII. Salvo o devido respeito, a decisão recorrida enferma do vício de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 571º, nº 1, al. d) do CPC, e que ora se invoca para todos os efeitos.
XIV. No que à instrução do processo diz respeito, a lei processual impõe-se às partes um dever de cooperação e colaboração na descoberta de verdade, e cuja violação acarreta as consequências previstas no art. 442º do CPC.
XV. O meio de prova do art. 455º do CPC - Documento em poder da parte contrária - é um corolário desse mesmo princípio da cooperação, e que vem expressamente consagrado no art. 8º do CPC.
XVI. E o princípio da cooperação mais não é do que corolário do dever de boa-fé processual que o legislador também consagrou expressamente no art. 9º do CPC.
XVII. Vir dizer que é à Requerente que incumbe alegar e provar que é associada da Requerida e que, como tal, não pode impor essa prova à Requerida, é fazer uma errónea interpretação da lei, quer no que respeita às regras do ónus da prova, quer ao direito ao acesso aos meios probatórios que a lei processual disponibiliza às partes.
XVIII. Tal interpretação esvazia de conteúdo os citados arts. 8º e 455º do CPC, e que preveem os deveres de cooperação e os, mecanismos que, nesse âmbito, se facultam às partes em matéria de direito probatório formal.
XIX. As normas sobre a distribuição do ónus da prova constituem normas de decisão, pois se destinam, em primeira linha, a possibilitar a decisão no caso de falta de prova.
XX. O art. 455º do CPC tem precisamente em vista a prova de factos desfavoráveis ao detentor do documento que, por isso, é notificado, a requerimento da parte contrária para o apresentar.
XXI. O art. 455º do CPC visa primordialmente permitir à parte onerada com a prova de um facto a obtenção de determinado documento de que saiba encontrar-se em poder da parte contrária, para através do mesmo dar cumprimento ao ónus da prova que sobre ele incide.
XXII. O mecanismo previsto neste preceito poderá ser utilizado tanto por quem tem o ónus da prova de determinado facto, como por quem pretenda infirmar a prova de factos cujo ónus recai sobre o detentor do documento.
XXIII. E esta argumentação é totalmente transponível para o dever de cooperação para a descoberta da verdade previsto no art. 442º, nº 2, onde está prevista a inversão do ónus da prova.
XXIV. Salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, pois, coarta o acesso da Requerente à prova, invocando, como argumento, as regras da distribuição do ónus da prova, o que não faz qualquer sentido e não tem fundamento na lei e que constituiu uma clara violação do direito à prova pois impediu a Requerente de fazer prova de um facto essencial para a decisão da causa, e que determinaria a sua legitimidade.
XXV. A decisão recorrida ofende, não só o princípio da cooperação consagrado no art. 8º e 455º do CPC, e o direito à prova, mas também o próprio princípio do inquisitório, consagrado no art. 6º do CPC.
XXVI. Impunha-se, in casu, um dever (ou um poder-dever, melhor dito) do Mmo. Juiz a quo ordenar a diligência requerida, notificando a Requerida para vir juntar os Livros de Actas da Direcção que comprovassem as deliberações que admitiram a Requerente e todos os seus associados como associada da Requerida.
XXVII. Tratando-se de Livros de Actas da Direcção da Associação Requerida, não há outra forma de obter essa prova documental se não através da colaboração da Requerida.
XXVIII. No âmbito do princípio do inquisitório, a atividade do julgador pode sobrepor-se ao ónus probandi das partes, pelo que essa inquisitoriedade pode até suprir a falta ou insuficiência do ónus da prova.
XXIX. O próprio Tribunal a quo reconhece que, a deliberação de admissão da Requerente como associada da Requerida, a existir, só poderá ser providenciada pela Direcção da Requerida, e desse modo, teria que reconhecer que, ao recorrer ao mecanismo do art. 455º do CPC, a Requerente não está a impor que a prova da sua qualidade de associada seja feita pela Requerente, nem está sequer a pretender inverter o ónus da prova, mas apenas a pretender que a deliberação de admissão da Requerente como associada da Requerida, que se encontra em poder da Requerida e à qual a Requerente não pode ter acesso, possa ser usado para prova do facto que a Requerente alega.
XXX. Em face do facto que importava ver comprovado, é legítima a pretensão da Requerente em que a Requerida viesse juntar aos autos os Livros de Actas da Direcção, face ao dever de cooperação processual que recai sobre as partes.
XXXI. Se não é permitido à Requerida fazer uso do meio probatório do art. 455º do CPC, está-se a negar o acesso aos tribunais, o que constitui uma violação do princípio da tutela judicial efectiva.
XXXII. A decisão recorrida está também a beneficiar uma das partes em detrimento de outra, o que configura uma desigualdade de armas evidente.
XXXIII. A proceder o entendimento do Douto Tribunal a quo, bastará a uma qualquer associação que pretenda pôr em causa a qualidade de um seu associado, em sede judicial, vir impugnar essa sua qualidade, “escondendo” por detrás deste argumento a deliberação da sua admissão, não dando qualquer chance à associada de pedir para que venha essa associação juntar aos autos a respectiva deliberação.
XXXIV. Tal não seria concebível, à luz da lei, e constituiria da mesma forma uma violação do princípio da igualdade consagrado no art. 4º do CPC.
Sem conceder,
XXXV. O Douto Tribunal fez uma apreciação errada da prova produzida no que diz respeito à qualidade da Requerente como membro da associação Requerida, limitando essa prova à (in)existência de uma acta da deliberação da Direcção da Associação Requerida;
XXXVI. As providências cautelares têm como objectivo a garantia do efeito útil da acção, prevenindo a ocorrência ou a continuação de danos ou antecipando efeitos que as medidas definitivas buscam, por forma a evitar o periculum in mora, ou o fundado receio de ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável do direito que se pretende acautelar com a delonga da acção;
XXXVII. Quanto ao fumus boni iuris, isto é, a probabilidade séria da existência do direito, mostra-se suficiente a prova sumária ou um simples juízo de verosimilhança da existência desse direito ameaçado, considerando a natureza provisória da medida cautelar e a sua instrumentalidade em relação à acção principal;
XXXVIII. O Douto Despacho recorrido delimitou ilegalmente a prova da qualidade de membro da associação à existência (ou não) de acta da deliberação da Direcção da Associação Requerida, decidindo que, na falta da prova dessa acta, não se considera provada a qualidade de membro da associação da Requerente;
XXXIX. Se no âmbito da Associação Requerida, nunca houve qualquer acta de deliberação da Direcção de admissão de qualquer dos seus associados, o Douto Tribunal a quo não estava em condições de, nesta fase do processo, dar como não provada qualidade da Requerente como membro da Associação;
XL. Além disso, faltava ainda a produção de prova relativamente ao facto, alegado pela Requerente, de que esta participa activamente nas actividades diárias e na gestão diária da Associação Requerida, e que participou nas Assembleias Gerais da Requerida e, mais importante do que isso, que já fez parte dos órgãos sociais da Requerida, factos que foram alegados pela Requerente e devidamente comprovados por prova documental.
XLI. Participando a Requerente nas Assembleias Gerais e exercendo cargos nos órgãos sociais da Requerida, fazendo-o na qualidade de membro dessa Associação, então seria possível concluir que seria verosímil que a Requerente fosse associada da Requerida, e como tal, goza de toda a legitimidade para intentar a presente providencia cautelar.
XLII. E essa prova poderia ser feita, designadamente, através de prova documental (cfr. documentos juntos pela Requerente), e em sede de inquirição de testemunhas que pudessem comprovar esses factos.
XLIII. Salvo o devido respeito, o entendimento do Douto Tribunal a quo é manifestamente infundado, e ofende a lei e os Estatutos da Associação Requerida.
XLIV. Resulta da Lei e dos Estatutos da Requerida que apenas os associados da Requerida podem participar nas Assembleias Gerais e ser eleitos como membros dos Órgãos Sociais.
XLV. Desde logo, e no que à participação da Assembleia Geral diz respeito, a mesma está reservada aos seus associados, como se poderá concluir, por exemplo, dos artigos 162.º, 163.º, 164.º, 165.º e 168.º do Código Civil.
XLVI. Tal resulta também de diversas disposições dos Estatutos da Requerida, como sejam, o Artigo Oitavo, nº 1, Artigo Nono e Artigo Vigésimo Primeiro.
XLVII. Resulta da Lei e dos Estatutos da Requerida que só os seus associados podem participar nas Assembleias Gerais, não estando sequer aventada a possibilidade de tais reuniões permitirem a presença de quem não é associado.
XLVIII. Assim, tendo a Requerente apresentado prova documental bastante que demonstra que participou em diversas Assembleias Gerais da Requerida, nelas tendo exercido os seus direitos enquanto associada da Requerida, nomeadamente, tendo exercido o seu direito de voto, não podiam restar quaisquer dúvidas ao Tribunal a quo que a Requerente é associada da Associação da Requerida.
XLIX. E quanto à composição dos restantes órgãos sociais, a mesma está igualmente reservada aos seus associados, como resulta, a título de exemplo, dos Artigo Décimo Primeiro, nº 2, e Artigo Décimo Sétimo dos Estatutos da Requerida.
L. Da mesma forma, tendo a Requerente apresentado prova documental bastante que demonstra que foi eleita como Presidente do Conselho Fiscal e Vice-Presidente da Assembleia Geral, também não podiam restar quaisquer dúvidas ao Tribunal a quo que a Requerente é associada da Associação da Requerida.
LI. A Requerente veio na sua resposta abalar de forma séria a veracidade e autenticidade da alegada Lista dos Associados da Associação, alegando factos inequívocos de que a lista dos associados que foi junta pela Requerida não corresponde de forma alguma ao elenco dos mesmos da Requerida;
LII. O Tribunal a quo não deveria desmerecer outros meios de prova que pudessem atestar a qualidade da Requerente como membro da associação, sob pena de estar a cometer graves injustiças, principalmente quando há factos alegados que tornam verosímil essa qualidade da Requerente, designadamente, que desde a fundação da Associação em 1998, a Requerente participa activamente nas activadades diárias da Associação, de que participava nas Assembleias Gerais da Requerida e de que foi eleita para os órgãos sociais da Requerida.
LIII. A falta de acta pode ser suprida através do recurso a quaisquer elementos de prova legalmente admissíveis, incluindo a prova testemunhal.
LIV. Tendo sido requerida a notificação da Requerida para juntar os Livros de Actas da Direcção da Associação que comprovassem a existência de deliberações que incidissem sobre a admissão de membros da associação, desde a sua fundação, perante a inexistência desse livro, beneficiaria a Requerente da inversão do ónus da prova estabelecido nos arts. 456º e 442º, nº 2 do CPC e nº 2 do art. 337º do Código Civil;
LV. Nos termos do art. 146º, nº 2 do Código Civil, a condição de eficácia das deliberações enquanto meio de prova do que ali se decidiu só prevalece quando essa deliberação é invocada pela Direcção, mas já não se aplica quando a deliberação seja invocada por qualquer outro dos membros da Associação, como é o caso;
LVI. A proceder o entendimento do Douto Tribunal a quo, tal legitimaria o Abuso de Direito, proibido por lei;
LVII. Se não há nem nunca houve qualquer acta de deliberação de admissão dos mesmos da Associação, não pode a Requerida invocar em seu favor a falta de acta de admissão da Requerente;
LVIII. A Requerente sempre confiou na sua admissão à Associação desde 1998, pois desde então sempre participou activamente nas suas atividades e fez parte dos seus órgãos sociais, sempre assumindo de boa-fé que a sua admissão havia seguido todos os tramites estatutariamente consagrados, pelo que nada levava a crer que viesse essa sua admissão ser posta em causa, apenas pelo facto de que não existe uma acta nesse sentido;
LIX. É manifesta a violação da boa-fé, constituindo verdadeiro abuso do direito (tu quoque) a posição da Requerida ao fazer-se valer de uma falta que é apenas sua - a omissão de acta - e que a mesma provocou, para pretender retirar eficácia à deliberação de admissão da Requerente como associada que, como se disse, sempre deu por adquirido ao longo dos anos;
LX. O entendimento do Tribunal a quo onera ilegalmente a Requerente com a prova da existência de uma acta, principalmente quando o dever de elaboração da acta recai sobre o Presidente da Direcção e Secretario tal como preceitua o art. 13º, al. b) dos Estatutos;
LXI. Esse entendimento conduziria a um esvaziamento dos direitos dos associados de reagirem contra deliberações que não constassem de uma acta, porquanto a validade das deliberações passaria praticamente a ficar na dependência da vontade da Requerida, bastando que esta alegasse (como alegou) que não existe deliberação de admissão de membro porque a mesma não consta de acta, e obstar à legitimidade dos associados de reagirem às deliberações, não obstante terem sido os seus órgãos (in casu, o Presidente e o Secretário da Direcção) que não reduziu essa deliberações em acta;
LXII. A acta não pode ser entendida como uma formalidade ad substantiam, isto é, como condição de validade da deliberação, nem poderá ser entendida como formalidade ad probationem, ou seja, como requisito de eficácia.
LXIII. Ao contrário do que decidiu o Douto despacho recorrido, parece-nos demonstrado in casu a existência do direito da Requerente quanto à sua legitimidade em lançar mão da presente providencia cautelar de suspensão de deliberações sociais.
LXIV. A decisão Recorrida violou assim o disposto nos arts. 4º, 6º, 8º, 9º, 58º, 326º e 341º, 442º e 455º do CPC, os arts. 146º, nº 2, 162º a 165º e 326º do Código Civil, os artigos 8º, 9º, 11º, 17º e 21º dos Estatutos da Associação Requerida.
Contra-alegando veio a Recorrida apresentar as seguintes conclusões:
1. A recorrente interpôs recurso contra a sentença proferida pelo tribunal a quo, com fundamento essencial de nulidade da sentença e que o tribunal julgou erradamente as provas sobre a qualidade de membro da recorrente.
a. Sobre “nulidade da sentença”
2. A recorrente considera que o tribunal a quo não tomou uma decisão de acordo com o seu pedido para nos termos do artigo 455.º do “Código de Processo Civil”, exigir que a recorrida apresentasse o livro das actas das reuniões de todas as deliberações de admissão dos membros desde a fundação da associação até à presente data, que por sua vez conduziu à nulidade da sentença.
3. Não faz sentido exigir que a recorrida apresente o tal livro das actas das reuniões, razão porque a recorrida já através da deliberação do Conselho de Administração em 19 de Junho de 2022, elaborou formalmente a lista dos associados, constando claramente os membros registados da recorrida, cuja deliberação já foi junta ao presente processo.
4. Na sentença recorrida, o tribunal a quo reportou claramente: "....é à Requerente que incumbe alegar e fazer a prova de ela ser associada da Requerida. Deste modo, não pode a Requerente, ao abrigo do mecanismo do art. 455.° do CPC, fazer a contraparte provar o que ela está onerada o ónus da prova.”
5. Assim sendo, o tribunal a quo após analisar todas as provas documentais constantes dos autos, pronunciou-se sobre a sua posição face ao pedido da recorrente, portanto não houve omissão por parte do tribunal a quo quanto à forma de tratamento deste caso, não há, pois, situação de nulidade da sentença, nem violação dos princípios de cooperação e aquisição processual como alega a recorrente.
b. Sobre “Erro de Julgamento e Aplicação Errónea da Lei”
6. De acordo com os documentos sobre actas das reuniões, a recorrente não é membro da recorrida.
7. A qualidade de associado não pode ser obtida através da participação repetida em actividades da associação. Na situação de haver disposições relevantes no Estatuto, a qualidade de associado tem de necessariamente ser obtida mediante o método estipulado no Estatuto.
8. No artigo 12.º, c) do Estatuto da recorrida estipula claramente que a qualidade de associado tem de necessariamente ser obtida através de deliberação do conselho de administração.
9. Mesmo que se presuma que nunca existiu actas das reuniões ou deliberações do conselho de administração referentes à admissão de associados -- que o facto não foi assim -- mas isso não implica que o método para obtenção da qualidade de associado estipulado no Estatuto da recorrida tenha perdido o efeito, e por sua vez todas as pessoas podem por outros meios obter a qualidade de associado da recorrida.
10. Caso a recorrente tivesse alguma oposição sobre o estipulado no Estatuto da recorrida, deveria reclamar através de meio adequado; se não tendo declarado inválido ou sem efeito o Estatuto relevante, então é vinculativo em termos interno e externo da recorrida.
11. Além disso, o meio legal de prova das deliberações do conselho previsto no artigo 146.º, n.º 2 do Código Civil, ou seja, a acta de reunião, é aplicável a qualquer caso em que as deliberações relevantes sejam invocadas por qualquer entidade.
12. Quanto ao alegado pela recorrente de que como a recorrida não apresentou todas as deliberações de admissão dos membros, pelo que é aplicável o regime de inversão do ónus da prova previsto no artigo 456.º do Código de Processo Civil, é de frisar que o pressuposto para aplicação desta disposição exige que “o notificado não apresente o documento relevante”, mas não existe este pressuposto neste processo.
13. Não houve necessidade o tribunal a quo fazer a notificação relevante porque a recorrida, torna a repetir, que já tinha apresentado os respectivos documentos para provar que a recorrente não possui a qualidade de membro associado, portanto neste caso não há lugar a aplicação do respectivo regime.
14. Quanto ao referido pela recorrente de que, de acordo com as actas das reuniões anteriores da recorrida, a recorrente chegou a desempenhar membro da estrutura da associação, pelo que já demonstra (pelo menos superficialmente) que a recorrente possui a qualidade de membro associado da recorrida, é necessário repetir que a recorrente entre 2008 a 2011 já tinha manifestado em sair da associação.
15. Desde 2011 até à presente data, a recorrente nunca mais participou nos assuntos da associação, nem em qualquer assembleia geral de associados convocada pela recorrida, ela sozinha estabeleceu um salão de budismo (vide Documento de oposição 6).
16. Mesmo que admitamos que a recorrente chegou a possuir a qualidade de membro, mas a verdade é que desde que ela por sua vontade saiu da associação, jamais é membro da recorrida.
17. De acordo com o artigo 4.º da Lei n.º 2/99/M “Regula o Direito de Associação”, qualquer pessoa pode desistir livremente à adesão na associação sem necessidade de qualquer confirmação da recorrida.
18. Quanto à reintegração na “associação” após a saída e que formalidades foram tratadas, a recorrente nunca nas suas alegações de recurso ou no seu requerimento de fls. 380 a 384 falou sobre tais factos.
19. Por outras palavras, não revela qualquer facto aparente neste caso de que a recorrente depois de sair da “associação” tenha voltado a aderir ou, até à data da apresentação do procedimento cautelar ainda possuía a qualidade de membro, por conseguinte, mesmo que adoptamos os padrões declarados pela recorrente, também não são suficientes para permitir que ela possa através de testemunhas comprovar a sua qualidade de membro.
20. Devido ao facto, o tribunal a quo reconheceu que a recorrente não conseguiu provar a sua qualidade de membro associado, e determinou que ela não tinha legitimidade, portanto não padece de qualquer vício de erro de julgamento ou aplicação errónea da lei.
c. Adoptar a lógica do tribunal a quo implica abuso de direito
21. A decisão do tribunal a quo está absolutamente de acordo com a lei e com o Estatuto da recorrida, pois não houve qualquer violação de boa-fé.
22. Desde a constituição da associação, a recorrida nunca procedeu a qualquer alteração das disposições sobre qualidade de membro estipuladas no seu Estatuto, sendo que o Estatuto da recorrida é também um documento disponível publicamente para ser visto tanto à comunidade como aos associados.
23. Desde que a recorrente saiu da associação, nunca mais ela participou nos assuntos da recorrida, ora, de repente, no preciso momento em que surgiu conflitos dentro da recorrida, veio ela alegar precipitadamente de ser membro da associação, de que modo a recorrida ignorou os seus direitos e interesses como membro, de como a recorrida prejudicou os interesses da própria associação e violou os bons costumes da associação que sempre operava normalmente etc., mais ainda, através da apresentação do procedimento cautelar, tentou por todos os meios paralisar a operação da recorrida, afinal quem é que está a abusar dos direitos e quem está a privar maliciosamente os direitos de quem, pois está bem claro.
24. Já que a recorrente optou por iniciar um procedimento cautelar que se baseia na qualidade de membro como requisito de legitimidade, então a qualidade de membro é um pressuposto processual necessário; se ela de facto não possui a qualidade de membro, ou não a puder provar, e se o funcionamento da associação da recorrida prejudica os seus direitos e interesses, a recorrente pode também tomar outras medidas adequadas para resolver o caso.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Fls. 370 a 383 e Fls. 390 a 393:
Visto.
O procedimento cautelar de suspensão de deliberações de assembleia geral, a que alude no art 341.º, n.º 1 do CPC, depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: i) o requerente tenha a qualidade de associado da associação que tomou a deliberação; ii) que essa deliberação seja contrária à lei ou aos estatutos; e iii) que a sua execução possa causar dano apreciável.
Estamos, assim, perante uma das excepções previsto na 1.ª parte do art 58.º do CPC. De facto, tal requisito prende-se com o direito material, nomeadamente, o disposto no art 166.º, n.º l, al. a) do CC, onde dispõe que qualquer associado que não tenha votado favoravelmente a deliberação tem legitimidade para requerer a invalidade de uma deliberação da assembleia geral, por sua vez, quanto ao ónus da prova, cabe ao requerente da providência cautelar justificar a sua qualidade de associado, por força do art 335.º, n.º 1 do CC.
Voltando ao caso em apreço, é à Requerente que incumbe alegar e fazer a prova de ela ser associada da Requerida, Deste modo, não pode a Requerente, ao abrigo do mecanismo do art 455.º do CPC, fazer a contraparte provar o que ela está onerada o ónus da prova.
Embora a Requerente tenha insistido a sua qualidade de associada, acontece que, compete à Direcção da Requerida decidir a admissão e a exclusão de associado - cfr. o art 12.º, al. c) dos Estatutos da Requerida (fls. 212 a 213 dos autos). Assim, em conjugação das normas dos arts 145.º e 146.º, n.º 2 do CC, a qualidade de associado da Requerida teria de ser e apenas podia ser provada pela acta de reunião da Direcção da Requerida onde deliberou a sua admissão e não de qualquer outra.
Sucede que, a Requerente, notificada para juntar aos autos documento que comprove a sua qualidade de associada, apenas vem apresentar três actas que não têm nada a ver com a sua admissão como associada. Ainda que a Requerente insista que tais actas demonstrassem a sua qualidade de associada, a verdade é que das actas somente resultam que ela estava presente numas das reuniões da Assembleia Geral e da Direcção da Requerida. Porém, não é o facto que a Requerente tinha participado nessas reuniões que a torna automaticamente associada da Requerida. Por outro lado, mesmo que a Requerente tenha sido eleita como membro do Conselho Fiscal/Vice-Presidente da Assembleia Geral ou da Comissão da Reconstrução da Requerida, tal facto não nos permite concluir que esta tem necessariamente a qualidade de associada uma vez a lei em lado nenhum exige que apenas o associado pode desempenhar essas funções.
Ainda por cima, o Venerado TSI, num caso semelhante, sob o n.º do processo 837/2023, onde foi interposta um procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais contra a mesma Requerida, afirmou que:
“Efectivamente, resulta da alinea c) do artigo 12.º do Estatuto da Associação de Beneficiência B que compete à Direcção decidir a admissão e a exclusão de associados, ou seja, a admissão de associados faz-se mediante deliberação da Direcção, e não tendo a recorrente alegado que houve deliberação sobre a sua admissão como associado, a eventual prova testemunhal destinada à comprovação da sua qualidade de associado é desnecessária e inútil.
E mesmo que se admitisse a existência de deliberação quanto à admissão de associados, a verdade é que essa deliberação só pode ser provada pela respectiva acta, ao abrigo do n.º 2 do artigo 146.º do Código Civil.
(…)
Na medida em que a lei obriga a que as deliberações dos órgãos das pessoas colectivas constem de livros de actas (artigo 146.º, n.º 1 do CC), aquelas só podem ser provadas pela respectiva acta e não é admitida prova testemunhal (artigo 387.º, n.º 1 do CC), salvo se existir um começo ou princípio de prova por escrito que torne verosímil o facto alegado, caso em que é admitida a respectiva prova testemunhal, o que não é o caso.”
In casu, não vejamos razões para adoptarmos outra solução.
Para além disso, em termos do Direito Comparado, o Tribunal da Relação de Guimarães, proferiu um acórdão no mesmo sentido, sob o n.º do processo 1298/15.5T8VRL.G1:
“(…) era ao A. que incumbia fazer a prova dos requisitos assinalados no art. 178.º, n.º 1, do Cód, Civil, nomeadamente, para além dos demais elementos que aí constam e que aqui não se discutem, alegando e provando ser associado da Ré.
(...) dos factos dados como provados, segundo o ponto 7, dos estatutos da Ré, essa qualidade de associado teria de ser provada ela inscrição no livro respectivo, que a associação obrigatoriamente deve possuir, o que o A. não logrou demonstrar.
Daqui que se tenha entendido que, ao não ter o A. logrado provar esse requisito substantivo, sempre a acção teria de improceder.” (sublinhando nosso)
Pelo exposto, é de concluir que a Requerente não conseguiu provar a sua qualidade de associada e, importa salientar que, a ilegitimidade singular é insanável1.
Sem mais delongas, julga-se procedente a excepção dilatória da falta de legitimidade singular activa e absolve-se a Requerida da instância nos termos dos art 230.º, n.º 1, al. d) e art 413.º, al. c) do CPC.
Notifique e D.N.».
Vejamos então.
Nas suas alegações de recurso – conclusão I a XXXIV – vem a Recorrente invocar a nulidade por omissão de pronúncia, dado que o tribunal “a quo” nada disse quanto ao requerido a fls. 378 artº 41º no sentido de ser pedida a notificação da Requerida e aqui Recorrida para juntar o Livro de actas da Direcção da Associação que comprove as deliberações que incidam sobre todos os membros da associação.
Ora, uma vez que nos termos dos artº 10º e 11º dos estatutos da Requerida – cf. fls. 212v. – a Direcção é um órgão colegial e tem competência para decidir da admissão e exclusão de associados, as respectivas decisões têm de constar de um livro de actas das reuniões da Direcção desde a sua constituição até ao presente. Da leitura dessas actas resultará quem foi admitido como associado da Associação e eventualmente se houve exclusões.
Sendo certo que cabe à Requerente o ónus da prova da sua qualidade de associado, uma vez que essa prova só pode ser feita com a decisão que a admitiu como associada (ou com outro documento de onde resulte um princípio de prova dessa qualidade), estando o livro de actas das deliberações da Direcção na posse da Requerida, isto é em poder da parte contrária, não resulta evidente que não seja essencial emitir pronúncia sobre o pedido formulado nos termos do artº 455º do CPC.
Note-se que a situação dos autos não é igual à decidida nos autos que correram termos neste Tribunal sob o nº 837/2023 e onde foi proferido o Acórdão citado de 11.01.2024, uma vez que subjacente à decisão de primeira instância estava o seguinte:
“Cabe salientar que a deliberação favorável de Direcção da Requerida sobre a admissão como associado da Requerida é condição de aquisição de qualidade de associada da Requerida. Portanto, a aquisição de qualidade de associada da Requerida só pode ser provada pela deliberação favorável de Direcção da Requerida sobre a admissão como associado da Requerida. Como a Requerente admite que a Direcção da Requerida não deliberou sobre a sua admissão como associada da Requerida, entendemos que é desnecessária a produção de prova testemunhal requerida pela Requerente.”
Nos autos que agora nos ocupam o que a Requerente diz é que não foi excluída.
Assim sendo, caberia ao Tribunal “a quo” ter-se pronunciado, deferindo ou indeferindo, como houvesse por conveniente.
Não o tendo feito, e não resultando face ao exposto que seja manifestamente desnecessária ou impossível a diligência de prova requerida, impõe-se concluir que houve omissão de pronúncia quanto ao Requerimento de prova apresentado pela Requerente/Recorrente, o que nos termos da alínea d) do nº 1 do artº 571º é causa de nulidade da decisão recorrida.
Concluindo-se pela nulidade da decisão recorrida por não se ter apreciado um requerimento de prova que imediatamente lhe antecede, fica prejudicada a apreciação de todos os demais fundamentos de recurso, sendo de o declarar e ordenar a remessa dos autos à primeira instância para se decidir como houver por conveniente quanto à matéria omitida e demais que se suscitem.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos concedendo-se provimento ao recurso declara-se nula a decisão recorrida por omissão de pronúncia, ordenando a remessa dos autos ao Tribunal “a quo” para que se conheça do requerido de fls. 370 a 390, nomeadamente no seu artº 41º, decidindo-se posteriormente quanto a essa matéria e o demais como se houver por conveniente.
Custas pela Requerida/Recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 22 de Maio de 2025
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Seng Ioi Man
(1º Adjunto)
Fong Man Chong
(2º Adjunto)
1 António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 59.
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268/2025 CÍVEL 1