Processo nº 812/2024
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)
Data do Acórdão: 28 de Maio de 2025
ASSUNTO:
- Procedimentos complexos ou plurifásicos relativos a concursos públicos
- Teoria da degradação de formalidades essenciais
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 812/2024
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)
Data: 28 de Maio de 2025
Recorrente: Director dos Serviços para os Assuntos de Tráfego
Recorrida: (A)服務有限公司
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
(A)服務有限公司, com os demais sinais dos autos,
veio instaurar o presente recurso contencioso administrativo contra,
Director dos Serviços para os Assuntos de Tráfego, que, decidiu indeferir o recurso hierárquico necessário do acto de exclusão da proposta, praticado pela comissão de abertura das propostas designada para presidir ao concurso público para a atribuição de licenças gerais para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer.
Pede a Recorrente e agora Recorrida que seja anulado o acto recorrido, assim como a condenação da Entidade Recorrida à admissão da proposta excluída e a sua consequente avaliação.
Foi proferida sentença a julgar procedente o recurso contencioso interposto, com a anulação do acto recorrido.
Não se conformando com a decisão proferida veio a Entidade Recorrida e agora Recorrente recorrer da mesma, apresentando as seguintes conclusões e pedidos:
I. Violação do princípio dispositivo:
1. Quanto aos vícios de que “as cláusulas 7.2, 11.1 e 11.2 do Programa do Concurso, em conjugação com o artigo 8.º, n.ºs 5 e 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, violaram os princípios do pro concurso e da concorrência” e “o procedimento do acto público do concurso violou o princípio da estabilidade do procedimento”, invocados pela Recorrida, o Tribunal a quo proferiu as respectivas decisões.
2. Salvo o respeito por opinião diferente, a Entidade Recorrente entende apenas que as decisões do Tribunal a quo excedem o âmbito dos dois vícios invocados pela Recorrida, enfermando, assim, do vício de excesso de pronúncia.
3. Em primeiro lugar, a causa de pedir no recurso contencioso administrativo significa o vício concreto de que padece o acto recorrido invocado pela Recorrida para o tribunal, sendo diferente do conceito da “causa de pedir” em outros processos processuais. Na acção administrativa, é necessário ponderar os fundamentos jurídicos concretos do vício, uma vez que isto também envolve se a Administração pode ou não praticar, no futuro, actos repetitivos na eventual execução da sentença do Tribunal Administrativo.
4. Tal como refere José Cândido de Pinho, a causa de pedir tem ainda a função de restringir o julgamento do juiz que concretamente é “o juiz só pode basear a sua decisão nos factos invocados, nos fundamentos da causa concreta” (cfr. José Cândido de Pinho, Manual de Formação de Direito Processual Administrativo Contencioso, traduzido por Ho Wai Neng, CFJJ, 2015, página 9, sublinhado nosso).
5. Na sua petição do recurso contencioso, a Recorrida entendeu apenas que as cláusulas 7.2, 11.1 e 11.2 do Programa de Concurso, em conjugação com o artigo 8.º, n.ºs 5 e 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, padecem de vícios (cfr. art.ºs 54.º a 70.º da petição do recurso contencioso e pontos 4 a 13 da sua conclusão).
6. A Recorrida entendeu meramente que o artigo 8.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 “contraia os princípios gerais do concurso público por excesso de burocratização e de formalismo, devendo ser objecto de interpretação restritiva ou revogatória no sentido de recusar a sua aplicação.” (cfr. ponto 13 da conclusão da petição do recurso contencioso)
7. É de salientar que a Recorrida não impugnou o artigo 12.º, n.º 3, alínea 2) e o artigo 13.º, n.º 3, alínea 3) do aludido Regulamento Administrativo n.º 34/2023 e as cláusulas 14.2.4 e 14.2.10 do Programa do Concurso (onde estipulam a consequência da exclusão da proposta), isto quer dizer que a Recorrida entendeu que as aludidas normas não violam quaisquer leis, diplomas legais ou princípios. Dito por outras palavras, na causa de pedir da petição do recurso contencioso, a Recorrida nunca indicou que existiam vícios no artigo 12.º, n.º 3, alínea 2) e no artigo 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 e nunca indicou que a Entidade Recorrente incorreu em qualquer erro na aplicação ou na interpretação desses dispostos legais.
8. Porém, o Tribunal a quo provou que ao excluir a proposta da Recorrida, a Entidade Recorrente interpretou erradamente os artigos 12.º. n.º 3, alínea 2) e 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 e as correspondentes normas do Programa do Concurso, e em consequência, entendeu que o recurso contencioso devia ser procedente.
9. Obviamente, na sentença recorrida, o Tribunal a quo conheceu dos vícios que a Recorrida nunca invocou, isto equivale ao conhecimento da causa de pedir não invocada pelo interessado (artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável), a questão indevidamente conhecida pelo Tribunal a quo não se integra no âmbito do seu conhecimento oficioso nem é o objecto do presente processo, o Tribunal a quo conheceu da questão não suscitada, pelo que, existe excesso de pronúncia, conduzindo à nulidade da sentença recorrida (artigo 563.º, n.º 3 e parte final da alínea d) do n.º 1 do artigo 571.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicáveis), enfermando do vício de nulidade da sentença.
10. Além disso, na sua petição do recurso contencioso, a Recorrida rodeou apenas a questão da estabilidade do procedimento, ou concretamente, “às 20h11 do dia 24 de Novembro de 2023, momento em que a Administração publicou a lista dos concorrentes admitidos e anunciou os preços de licença, a instância já se manteve a mesma”. (cfr. art.º 118.º da petição do recurso contencioso e ponto 39 da sua conclusão)
11. Os fundamentos da Recorrida são: “após a publicação da lista das sociedades concorrentes admitidas, as respectivas sociedades concorrentes já tiveram devida expectativa, e devido à igualdade do procedimento de propostas, uma vez publicadas as informações sensíveis como o preço de licença, não deve haver qualquer alteração para prevenir a ocorrência de qualquer irregularidade.” (cfr. art.º 119.º da petição do recurso contencioso e ponto 40 da sua conclusão)
12. Assim sendo, nessa fase, “caso seja admitida e depois seja excluída, isto viola a igualdade procedimental e entra no processo de reclamação sem parar, pelo que, a comissão de abertura das propostas não pode actuar na modalidade de venire contra factum proprium, violando os procedimentos legais.” (cfr. art.º 120.º da petição do recurso contencioso e ponto 41 da sua conclusão)
13. Para concluir, a Recorrida referiu que “pelo exposto, é óbvio que a comissão de abertura das propostas alterou arbitrariamente várias vezes as regras legalmente estabelecidas, tratando desigualmente as concorrentes. Durante todo o procedimento do acto público do concurso, a comissão de abertura das propostas incorreu, sem dúvida, em vários vícios ilegais acima referidos.” (cfr. art.º 123.º da petição do recurso contencioso e ponto 43 da sua conclusão)
14. Do texto da petição do recurso contencioso acima referido (mesmo foi salientado novamente na sua conclusão), pode-se ver que a Recorrida rodeou, desde o início até ao fim, a “violação do princípio da estabilidade do procedimento” para invocar a sua causa de pedir e censurou que a Entidade Recorrente alterou as regras após a estabilidade do procedimento, não invocando, porém, outros vícios da ilicitude.
15. No entanto, o Tribunal a quo anulou o acto recorrido com fundamento na violação, pelo acto recorrido, dos artigos 12.º, n.º 7 e 13.º, n.º 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, decisão essa excede o âmbito da aludida causa de pedir invocada pela Recorrida.
16. Em primeiro lugar, na petição do recurso contencioso, a Recorrida não invocou ou citou os dispostos legais citados pelo Tribunal a quo. Secundariamente, os dispostos legais citados pelo Tribunal a quo não têm nada a ver com o vício da “violação do princípio da estabilidade do procedimento” invocado pela Recorrida, e tal princípio também não se consubstancia nos referidos dispostos legais.
17. Mais ainda, os artigos 12.º, n.º 7 e 13.º, n.º 6 do Regulamento Administrativo citado pelo Tribunal a quo referem-se aos dois dispostos legais, isto é, “deliberação sobre a admissão de concorrentes” e “abertura dos invólucros de propostas”, porém, o que a Recorrida impugnou através dos factos por si invocados foi apenas o momento mencionado, isto é, “às 20h11 do dia 24 de Novembro de 2023, momento em que a Administração publicou a lista dos concorrentes admitidos e anunciou os preços de licença”, ou dito por outras palavras, a Recorrida só invocou o acto posterior à “abertura dos invólucros de propostas” praticado pela comissão de abertura das propostas.
18. O que a Recorrida impugnou na sua petição do recurso contencioso não foi a questão de preclusão da “deliberação sobre a admissão de concorrentes” e da “abertura dos invólucros de propostas” da Entidade Recorrente, mas sim a questão de estabilidade do procedimento no momento da “abertura dos invólucros de propostas”, e com base nisso, impugnou que os seus interesses foram prejudicados por a Entidade Recorrente ter alterado os critérios ou as regras.
19. Daí, pode-se ver que ao proceder à indevida alteração oficiosa da causa de pedir ou dos vícios invocados pela Recorrida e conhecer indevidamente da questão que a Recorrida nunca invocou, o Tribunal a quo violou o princípio da adstrição do juiz à causa de pedir.
20. A questão indevidamente conhecida pelo Tribunal a quo não se integra no âmbito do seu conhecimento oficioso nem é o objecto do presente processo. Nos termos do artigo 571.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil aplicável subsidiariamente por força do artigo 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, padece de vício de nulidade da sentença.
Caso o Venerando Tribunal não concorde com o aludido entendimento, com o respeito por opinião diferente e por mera cautela, vem invocar os seguintes fundamentos:
II. A sentença recorrida provou erradamente que a Entidade Recorrente decidiu oficiosamente a exclusão da proposta da Recorrida, em violação das regras procedimentais do concurso público, designadamente, as previstas nos artigos 12.º, n.º 7 e 13.º, n.º 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023:
21. Ressalvando o pleno respeito pelos entendimento e conclusão do Tribunal a quo na sentença recorrida, a Entidade Recorrente não concorda com os fundamentos daí suscitados, nomeadamente não concorda com a sentença recorrida na parte em que referiu que a decisão da apreciação proferida pela comissão de abertura das propostas padece do vício de violação das regras procedimentais do concurso público, e também entende que a sentença recorrida padece dos seguintes vícios:
i) Erro na aplicação da lei - não é aplicável ao caso o "princípio da preclusão", uma vez que tanto o "documento" como a "proposta" da Recorrida violaram os previstos relativos à numeração e ao número total de páginas:
22. É sem dúvida, através dos factos provados da sentença recorrida podemos saber que o Tribunal a quo entendeu também que a “Proposta” (e não unicamente os Documentos”), apresentada pela recorrida à entidade recorrente existe falta e não preenche o conteúdo de elaboração dos documentos de apresentação da proposta, solicitado no procedimento de concurso, designadamente, a proposta apresentada pela recorrida, não preenche o ponto 7.2 do Programa de Concurso, isto é, com as páginas numeradas, e com a menção, na primeira página, do número total de páginas do documento, ou seja, não preenche o abrigo dos n.ºs 5 e 6, do artigo 8.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 (Procedimentos dos concursos públicos para a atribuição de licenças para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer).
23. É de realçar que, nos artigos 55.º a 58.º da sua petição de recurso contencioso, a Recorrida admitiu a falta de numeração de todas as páginas e da menção, na primeira página, do número total de páginas dos documentos colocados por ela no invólucro de “Documentos”, a falta de numeração das páginas da “proposta de preço” colocada no invólucro “Proposta”, e a falta de menção, na primeira página, do número total de páginas do “projecto sobre a exploração do transporte de passageiros em táxis” e do “plano de investimento dos veículos em operação”, colocados no mesmo invólucro (vide anexo 2 do Processo Administrativo).
24. Em suma, tanto sejam os “Documentos” ou a “Proposta”, ambos não estão reunidos o abrigo dos n.ºs 5 e 6, do artigo 8.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, isto é, a entidade recorrente e a Comissão de abertura das propostas não basearam, unicamente, no vício constante do “Documento” da recorrida, para não admitir a recorrida e a sua proposta.
25. Baseando no facto de que a Comissão de abertura das propostas depois de ter aberto o invólucro da proposta, não admitiu a “proposta” da recorrida, por não preenchido o n.º 6, do artigo 8.º do (Procedimentos dos concursos públicos para a atribuição de licenças para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer). Pelo que o “princípio da preclusão”, pretendido pelo Tribunal a quo é totalmente inaplicável e sem condições neste caso, porque o método aplicado pela Comissão de abertura das propostas tinha sido realizado conforme a cada dos trâmites processuais.
26. O Tribunal a quo anular por este motivo o acto recorrido, só poderia, no máximo, anular parcialmente o acto recorrido (por mera hipótese, a entidade recorrente não concordava, inteiramente, com a respectiva interpretação, e abaixo se descreve) face aos “documentos” que visem o “princípio da preclusão”, mas, nada obsta a eficácia de não admissão da “proposta” da recorrida pela Comissão de abertura das propostas, por detectado o não preenchimento das normas em causa, depois da abertura do invólucro da proposta, não admitiu a “proposta” da recorrida.
ii) Vício de erro na aplicação da lei – erros na aplicação das doutrina e jurisprudências, a sentença recorrida citou erradamente as doutrinas e outras normas do procedimento do concurso público, pelo que se violou notoriamente a aplicação de disposições legais:
27. É de salientar, o artigo 5.º do aviso do concurso público e o n.º 1.2 do Programa de Concurso (vide fls. 9v e 12 do Processo administrativo), indicaram expressamente que o objecto do presente concurso é nos termos da Lei n.º 3/2019 (Regime jurídico do transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer) e do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 (Procedimentos dos concursos públicos para a atribuição de licenças para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer), e não outros regulamentos jurídicos
28. O Regulamento Administrativo n.º 34/2023 pertence a um diploma próprio, é um regulamento jurídico especial, que visa propriamente a realização do processamento de “Procedimentos dos concursos públicos para a atribuição de licenças para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer”, pois, seja diferente a dos outros procedimentos de adjudicação e não idêntico às outras normas jurídicas de Portugal ou Macau.
29. Aliás, o Regulamento Administrativo n.º 34/2023 integral, nunca indicou outras normas jurídicas de aplicação subsidiária, designadamente, não havendo a aplicação subsidiária dos Decretos-Leis n.ºs 63/85/M e 74/99/M, de 06 de Julho e 8 de Novembro, respectivamente, a lei superior do que o Regulamento Administrativo n.º 34/2023 é a Lei n.º 3/2019 (Regime jurídico do transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer), e não outros regulamentos jurídicos, designadamente, não os Decretos-Leis n.ºs 63/85/M e 74/99/M, de 06 de Julho e 8 de Novembro, respectivamente.
30. Por isso, as doutrinas (que se basearam substancialmente no entendimento da teoria do regime de procedimento do acto público do concurso - Decretos-Leis n.ºs 63/85/M e 74/99/M, de 06 de Julho e 8 de Novembro, respectivamente, aplicáveis antes da entrada em vigor do Regulamento Administrativo n.º 34/2023), citada na sentença recorrida pelo Tribunal a quo, para nós não havemos dúvidas quanto à sua relevância, mas, salvo o devido respeito, julgamos que seja um erro onde o Tribunal a quo ter citado as respectivas teorias de doutrinas e jurisprudências para a própria sustentação de violação de aplicação da lei, a fim de declarar a anulação do acto recorrido.
31. Ademais, é a lei que estipulava o procedimento do concurso em apreço, e não as doutrinas, nem até às jurisprudências, como todos sabem que ora caso, o Regulamento Administrativo n.º 34/2023 só entrou em vigor em 2023, mas, as aludidas doutrinas não derivaram depois de entrada em vigor do aludido próprio diploma.
32. De facto, o procedimento do concurso estipulado no Regulamento Administrativo n.º 34/2023, não tem natureza de fase, o que importa é deixar os interessados (concorrentes), durante a abertura das propostas, apresentar reclamação em qualquer momento, na sequência da deliberação feita, donde se salientava que os concorrentes tem o direito de reclamação, a fim de proteger a justiça do procedimento do acto público do concurso, a entidade recorrente, vem, descrever em abaixo.
33. A sentença recorrida pode basear-se em qualquer diferente motivo, para efectuar um estudo à doutrina em apreço, mas, não pode considerar (a aludida doutrina inaplicável) como base para uma diferente interpretação às normas, e também não se produz qualquer efeito vinculativo às aludidas normas, ainda por cima, o grau jurídico das doutrinas e jurisprudências também não é superior ao das normas da lei em vigor.
34. Para além deste, na sequência do acto recorrido, se este tinha violado ou não ao princípio da preclusão, constante da sentença recorrida, o Tribunal a quo citou o Acórdão n.º 35/2012, do Tribunal Colectivo do TUI para as correspondentes provas, mas, salvo o devido respeito necessário, a entidade recorrente não concordava com a opinião do Tribunal a quo, porque o Acórdão n.º 35/2012, do Tribunal Colectivo do TUI tem uma natureza diferente a da situação do acto recorrido.
35. Primeiro, como o supracitado, a ora caso é aplicável o Regulamento Administrativo n.º 34/2023, e não o Decreto-Lei n.º 63/85/M aplicado no acórdão do TUI, acima referido, pelo que tendo o Tribunal a quo citado erradamente a respectiva jurisprudência – a doutrina/o princípio constituídos por outro sistema com efeito já produzido, antes da entrada em vigor do Regulamento Administrativo n.º 34/2023.
36. O caso acima referido, devido a recorrente não tinha apresentado reclamação contra a decisão proferida pela Comissão de abertura das propostas na fase do respectivo acto público do concurso, pelo que o TUI é que entendeu, posteriormente, a aludida recorrente não poderia deduzir impugnação contenciosa da adjudicação com fundamento em vícios da proposta do concorrente adjudicatário, porque com existência da violação do princípio da preclusão.
37. Mas, o diferente é que no concurso a reclamação (incluindo mas não se limita após a abertura do invólucro de “Documentos” até antes e depois de abertura do invólucro da “Proposta”) foi apresentada pela concorrente durante a sessão do acto público do concurso, e neste momento encontrava-se ainda na fase do acto público do concurso, que não entrou à fase de avaliação, por no ora caso a concorrente ter apresentado, tempestivamente, a reclamação na sessão do acto público do concurso, não se veja que a decisão proferida, legalmente, pela Administração na sequência da aludida reclamação apresentada, violou o tal dito princípio da preclusão.
38. Por outro lado, no Acórdão n.º 35/2012, do Tribunal Colectivo do TUI , tendo o TUI exposto sobre a violação do princípio da preclusão, indicava que “tendo tido à sua disposição a proposta e os respectivos documentos”, cujo sentido que a recorrente após o seu exercício do direito de acesso, deveria apresentar, tempestivamente, a reclamação, dentro da fase do acto público do concurso.
39. De acordo com a lógica presumida no Acórdão n.º 35/2012, dado que a companhia concorrente só após o acesso à proposta e aos respectivos documentos é que tem condições para conhecer os vícios e apresentar reclamação, identicamente, no acto administrativo recorrido, só após a abertura do invólucro das propostas e o acesso às propostas, a companhia concorrente só nesse momento visado, é que tem condições para conhecer os vícios ou problemas para reclamar-se, isto é compatível com a opinião do TUI.
iii) Erro na aplicação da lei – erro na interpretação nos termos dos artigos 12.º, n.º 7 e 13.º, n.º 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023:
40. O Tribunal a quo entendeu que o acto recorrido violou as regras do respectivo procedimento de concurso, designadamente, artigos 12.º, n.º 7 e 13.º, n.º 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, salvo o melhor respeito suficiente às diferentes opiniões, a entidade recorrente julga que a sentença recorrida para além de ter interpretada, erradamente, artigos 12.º, n.º 7 e 13.º, n.º 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, ignorou ainda, totalmente, artigos 10.º, n.º 4 e 14.º do aludido regulamento administrativo, sucedendo com erro a uma restrição ilegal (não prevista na lei) à reclamação apresentada, dentro da sessão do acto público do concurso.
41. Nos termos do artigo 10.º, as alíneas 2) e 3) do n.º 4, do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 (Procedimentos dos concursos públicos para a atribuição de licenças para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer), determinaram que, durante a sessão do acto público do concurso do concurso, os representantes dos concorrentes, podem apresentar reclamação contra os conteúdos das alíneas 2) e 3) supracitados, donde inclui a deliberação de admissão ou não das propostas, bem como incluindo a deliberação de admissão ou não dos concorrentes, o artigo 14.º do regulamento administrativo supracitado, determinava também que a respectiva reclamação podem ser apresentada, verbalmente ou por escrito, na própria sessão do acto público do concurso.
42. Daí, entende-se que seja necessário indicar a diferença detalhada entre a admissão ou não das propostas e a admissão ou não dos concorrentes:
i) Caso a Comissão de abertura das propostas decidisse a não admissão dos “Documentos”, deve excluir o concorrente, nos termos do artigo 12.º, n.º 3 do regulamento administrativo supracitado;
ii) Pelo contrário, caso a Comissão de abertura das propostas decidisse a não admissão da “Proposta”, deve excluir a proposta, nos termos do artigo 13.º, n.º 3 do regulamento administrativo supracitado.
43. Conjugado o articulado acima referido, é notório que os concorrentes podem apresentar reclamações contra as propostas e os concorrentes, durante toda a “sessão do acto público do concurso”, ou seja, podem reclamar-se contra os “Documentos” e as “Propostas”, enquanto a Comissão de abertura das propostas tem também o direito de apreciar as respectivas reclamações, e o conteúdo desta parte foi também concordado pelo Digm.º Delegado do Procurador do MP no acórdão recorrido.
44. Como se define qual o momento é que pertence a “sessão de acto público do concurso”, os artigos 11.º e 13.º, n.º 7 do regulamento administrativo supracitado, estipulam expressamente que a sessão de acto público do concurso dá-se por início nos termos do artigo 11.º “Início do acto público do concurso” e termina-se por encerramento, quando finalizado o procedimento de abertura dos invólucros das propostas e depois de o presidente proceder a leitura da acta da sessão.
45. Por isso, segundo os princípios das regras acima referidas, sempre que se apresentem reclamações no decurso da sessão do acto público do concurso, são tempestivas e válidas.
46. De facto, os artigos 12.º, n.º 7 e 13.º, n.º 6, fazem parte das normas de especialidade e procedimental da “sessão do acto público do concurso”, essas normas são totalmente compatíveis com os princípios dos artigos 10.º, n.º 4 e 14.º:
47. Em primeiro lugar, de acordo com a redacção do artigo 13.º, n.º 5, após a abertura do invólucro das propostas, pode reclamar-se contra a admissão ou não dos concorrentes, ou contra a admissão ou não das propostas, conforme o supracitado, isto é, pode reclamar-se contra os “Documentos”, bem como as “Propostas”, para além disso, o legislador estipulou apenas no artigo 13.º, n.º 5, que os concorrentes podem consultar as propostas dos outros concorrentes admitidos (as “propostas” dispostas à consulta aí referidas, devem ser entendidas, em sentido lato, como propostas previstas no artigo 8.º, incluindo o documento de habilitação do concorrente disposto no invólucro com palavra de “Documentos”, previsto no artigo 8.º, n.º 5, conjugado n.º 1, alínea 1), bem como a proposta e os documentos dispostos no invólucro com palavra de “Proposta”, previsto no artigo 8.º, n.º 6, conjugado n.º 1, alíneas 2) a 6)) para o efeito de fundamentação das reclamações, antes disso, os concorrentes eram impossíveis conhecer se os outros concorrentes foram admitidos legalmente ou não.
48. Assim, dado que após a abertura dos invólucros com palavra de “Documentos” até antes de abertura dos invólucros de palavra de “Propostas”, o regulamento administrativo supracitado não concedeu aos concorrentes a oportunidade de acesso aos documentos de habilitações dos concorrentes, isto é, os concorrentes só depois de ter sido aberto os invólucros de propostas é que poderiam ter acesso aos documentos de habilitações dos concorrentes e integral conteúdo constante dos invólucros de propostas, e depois tudo disso é que reúnem condições para verificar os vícios das propostas, apresentando reclamação, pelo que a reclamação apresentada depois de abertura dos invólucros de propostas e acesso às propostas, é obviamente que possa contra tanto os concorrentes (“Documentos”), como as propostas (“Propostas”).
49. De facto, é assim mesmo: Segundo o conteúdo das pág. 6 a 10 da “Acta da Sessão do Acto público do concurso das Propostas do Concurso Público para a Atribuição de Licenças Gerais para o Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer”, na abertura dos invólucros com palavra de “Documentos”, após analisado documentos de habilitações dos concorrentes, a Comissão de abertura das propostas deliberou os concorrentes admitidos, admitidos condicionalmente e excluídos, nos termos do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, as companhias que reclamaram neste momento, contra a aludida deliberação eram as concorrentes excluídas (companhias das propostas n.ºs 12, 14, 28, 13 e 17). (vide fls. 268v a 270v do Processo Administrativo)
50. E, na abertura dos invólucros de propostas até antes de ter acesso às propostas, havia já 4 companhias concorrentes cuja propostas foram excluídas, que reclamaram contra a deliberação de exclusão das propostas; após o acesso às propostas, havia 3 companhias, que reclamaram contra a anterior deliberação de admissão das concorrentes (vide fls. 271 a 274 do Processo administrativo, pontos 29 e 36 da acta da sessão do acto público do concurso).
51. Por isso, salvo a melhor opinião, depois de ter efectuado um esclarecimento complexo, lógico e sistemático dos artigos 10.º a 14.º do regulamento administrativo supracitado, não é difícil de perceber que as reclamações apresentas pelas concorrentes contra a deliberação de admissão de habilitações de outras concorrentes, podiam ser apresentadas pelas concorrentes na fase do decurso de abertura dos invólucros de propostas, e só nessa fase é que tinham condição para o efeito.
52. Assim sendo, como as reclamações apresentadas pelas outras concorrentes após o acto público do concurso, são consideradas tempestivas, assim, é natural que sempre que estejam ainda dentro da fase da “sessão do acto público do concurso”, a Comissão de abertura das propostas, perante as jurisdição e lógica, podia também apreciar de novo a admissão que antes por si deliberada, senão, seja, fundamentalmente, impossível de averiguar as reclamações apresentadas pelas outras concorrentes.
53. A entidade recorrente não violou as normas do respectivo procedimento de concurso, designadamente, os artigos 12.º, n.º 3, alínea 2), n.º 7 e 13.º, n.º 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, pelo contrário, a sua deliberação e decisão proferidas, executou, totalmente, nos termos legais.
iv) A sentença recorrida enferma dos vícios de erros no reconhecimento do pressuposto de facto e aplicação da lei – entendeu erradamente que o acto de revogação praticado pela Comissão de abertura das propostas foi por “iniciativa própria” ou ex officio.
54. Por isso, de facto, durante a sessão do acto público do concurso, a proposta da recorrida, desde que tinha sido admitida até ao posterior entendimento que fosse excluída, foi mesmo baseada na reclamação apresentada pela concorrente contra as propostas doutras concorrentes, devido ao não preenchimento do conteúdo do caderno de encargos: (o facto abaixo descriminado deve ser integrado nos factos provados)
i) A reclamação elaborada pela companhia concorrente n.º 32, onde se indicava no último parágrafo “o artigo 7.2 e artigo 8.º/5 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, isto é, a menção, na primeira página, do número total de páginas do documento e da proposta, por remissão dos artigos 11.1, 11.2 dos autos de concurso……nos termos de 14.2.4,114.2.10, houve muitas das concorrentes que também não reúnem, por exemplo, a 40 não reúne” (cfr. fls. 291 do Processo administrativo);
ii) Através da reclamação da companhia concorrente n.º 32, pode ver-se, que a fundamentação da sua reclamação incluiu também a questão de codificação, e o alvo que contrariava, não se limitava a concorrente n.º 40, e sim, todas as concorrentes;
iii) Além disso, segundo a reclamação elaborada pela companhia concorrente n.º 10, o concorrente n.º 10 indicado nas fls. 293 do processo administrativo também impugnou os formatos das diversas propostas admitidas, incluindo, a reclamação contra os problemas de compilação e numeração das páginas.
55. Pelo que a Comissão de abertura das propostas apreciou de novo o problema de numerações e números totais das páginas, por base das dúvidas apresentadas na reclamação, e não por mero ex officio ou “iniciativa própria”, por isso, a sentença recorrida existe erro no reconhecimento do pressuposto de facto, pois, deve ser anulada.
56. É de reiterar, analisado o Regulamento Administrativo n.º 34/2023, pode detectar-se que dentro deste regulamento, não limitava a Comissão de abertura das propostas efectuar meramente a apreciação legal da deliberação sobre a admissão de concorrentes e das situações particular ou até à totalidade das propostas, no momento de abertura dos invólucros de propostas, previstos nos artigos 12.º e 13.º do aludido regulamento administrativo, respectivamente.
57. Nos termos do artigo 127.º do CPA, determina expressamente que, a Administração pode, em qualquer momento, por sua iniciativa ou mediante a reclamação dos interessados, revogar os respectivos actos administrativos, mais, conjugado de acordo com o princípio da legalidade, previsto no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), caso a Administração perante uma situação ou conduta ilícita anterior, a mesma não só pode e tem obrigação de a revogar ou regularizar, e o artigo 130.º do CPA estipula este tipo de situação semelhante. (cfr. o Acórdão n.º 54/2011 do Tribunal Colectivo do TUI).
58. Mesmo que a comissão de abertura das propostas tivesse resolvido admitir a proposta da Recorrente após a abertura dos invólucros dos documentos, isso não impede a comissão de abertura das propostas de rever novamente, por sua iniciativa ou mediante solicitação, se a proposta está em conformidade com a lei e as regras do concurso público, como foi acima referido, durante a sessão do acto público do concurso, os representantes dos concorrentes podem apresentar reclamação contra as deliberações sobre a admissão, admissão condicionada ou exclusão de qualquer concorrente ou proposta (cfr. a al. 3) do n.º 4 do art.º 10.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023), portanto, a comissão de abertura das propostas tem o direito e o dever de tomar uma decisão justa e imparcial sobre essa reclamação, isto inclui, obviamente, a revogação de condições ou actos ilegais.
59. Por isso, a comissão de abertura das propostas reapreciou a questão da numeração e do número total das suas páginas da recorrida com base na impugnação levantada na reclamação, em vez de o fazer oficiosamente; e mesmo que a comissão de abertura das propostas tenha reapreciado oficiosamente e tome uma decisão, a qual foi tomada de acordo com a lei e o princípio da legalidade, pelo que a decisão da entidade recorrente não viola o disposto nos artigos 12.º, n.º 7, e 13.º, n.º 6, do Regulamento Administrativo n.º 34/2023.
60. Pelo exposto, a sentença recorrida enferma de erro na aplicação da lei e na interpretação errónea do disposto no artigo 12.º, n.º 7, e no artigo 13.º, n.º 6, do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, bem como de vício de erro no reconhecimento dos factos, que por sua vez, viola o disposto no Regulamento Administrativo n.º 34/2023, nomeadamente o disposto no artigo 12.º, n.º 7, e ao artigo 13.º, n.º 6, devendo ser anulada.
III. A sentença recorrida refere que a entidade recorrente interpretou e aplicou erradamente o artigo 8.º, n.ºs 5 e 6, o artigo 12.º, n.º 3, alínea 2), e o artigo 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, bem como as disposições relevantes do Programa de Concurso:
61. Com o devido respeito por opinião diversa, a entidade recorrente não concordo de todo com o ponto de vista que a sentença recorrida defende, alega-se que a mesma incorrera nos seguintes vícios:
i) Erro na aplicação da lei - Afastamento da interpretação literal e não deve ser interpretado restritivamente.
ii) Erro na aplicação da lei - Interpretação errónea do artigo 8.º, n.ºs 5 e 6, do artigo 12.º n.º 3, alínea 2), e do artigo 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, bem como do programa de concurso; e
iii) Erro na aplicação da lei - interpretação errónea do princípio da proporcionalidade.
i. Erro na aplicação da lei - Afastamento da interpretação literal e não deve ser interpretado restritivamente:
62. De acordo com o artigo 8.º do Código Civil, o intérprete da lei deve presumir de que a solução elaborada pelo legislador é a mais correcta e que o legislador sabe exprimir as suas ideias com as palavras certas, não podendo o intérprete da lei interpretar a lei e retirando-lhe completamente o seu sentido literal.
63. O artigo 12.º, n.º 3, alínea 2) e o artigo 13.º, n.º 3, alínea 3) e artigo 8.º, n.ºs 5 e 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 preveem claramente os seguintes: tanto no “documento” como na “proposta”, a inobservância do modo de encadernação ou da numeração de cada página e do número total de páginas do documento na primeira página, ou a não colocação do documento num invólucro opaco, fechado e lacrado, ou em cujo rosto se escreve a palavra “documento” / “proposta”, em qualquer destas situações, constitui fundamento legal para a exclusão do concorrente/proposta.
64. Não há dúvidas quanto ao significado das disposições acima referidas, nem é tão ampla que exija qualquer interpretação do seu significado para a sua aplicação, que não é desejável contornar a aplicação de uma disposição legal clara através de uma interpretação restritiva da mesma, pelo que a sentença recorrida errou ao considerar que era necessária uma interpretação restritiva de uma disposição clara e explícita, a sentença recorrida aplicou erradamente o disposto no artigo 8.º do Código Civil, bem como no artigo 8.º, n.ºs 5 e 6, artigo 12.º, n.º 3, alínea 2) e artigo 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, padece de anulabilidade a sentença recorrida.
ii) Erro na aplicação da lei - Interpretação errónea do artigo 8.º, n.ºs 5 e 6, do artigo 12.º n.º 3, alínea 2), e do artigo 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, bem como do programa de concurso:
65. Por outro lado, somos de opinião que a entidade recorrente não interpretou ou aplicou erradamente o artigo 8.º, n.ºs 5 e 6, artigo 12.º, n.º 3, alínea 2) e artigo 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, bem como os requisitos previstos no Programa de Concurso.
66. Tanto dos factos provados na sentença recorrida, como do conteúdo das propostas apresentadas pela recorrida (ver anexo II do processo administrativo), é óbvio que as propostas do concurso apresentadas pela recorrida (incluindo os documentos de habilitação dos concorrentes e os documentos da proposta) não foram feitas a numeração das páginas e a enumeração do número total das suas páginas da proposta na primeira página, como exigido pelo regulamento. De facto, nem a recorrida nem o Tribunal a quo negaram a existência de tal situação, apenas que a sentença recorrida entendeu que a ausência de numeração não afectava a atendibilidade da proposta e, portanto, considerou que a entidade recorrente devia ter admitido a proposta da recorrida.
67. É de salientar que o Regulamento Administrativo n.º 34/2023 foi decretado pelo Chefe do Executivo como regulamento administrativo complementar, nos termos do artigo 39.º, n.º 1 da Lei n.º 3/2019 (Regime jurídico do transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer); nos termos do artigo 7.º, n.º 2 da Lei n.º 13/2009 (Regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas), “Podem ser objecto de regulamentos administrativos complementares as matérias reguladas em leis que se devam executar.”. De acordo com a jurisprudência do Acórdão n.º 438/2009 do Tribunal de Segunda Instância, desde que a matéria não esteja reservada à lei da Assembleia Legislativa, nada obsta a que regulamentos possam estabelecer deveres ou impor restrições sobre os particulares. O que os regulamentos não podem é impor restrições aos direitos fundamentais.
68. Os regulamentos administrativos acima referidos estipularam claramente as consequências da não observância dos requisitos formais pertinentes pelas propostas e documentos, e dividido em duas partes, ou seja, a abertura de “Documento” e a de “Proposta”, e a admissão condicional dos concorrentes só pode ser feita no momento da abertura do “Documento” (artigo 12.º do Regulamento Administrativo), mas não é permitido à Administração fazê-lo após a abertura da “Proposta”, encontra-se a situação de exclusão da Recorrida, quer do “Documento”, quer da “Proposta” apresentada pela Recorrida, o que significa que não existia base legal para que a Administração admitisse condicionalmente a “proposta” da Recorrente, sendo óbvio que a exigência não envolvia restrição de direito fundamental.
69. Além disso, com o devido respeito pelos pontos de vista expressos na sentença recorrida, somos de opinião que o objectivo do processo de concurso e os interesses a proteger não podem ser ponderados apenas na “perspetiva do interesse público”, caso contrário todos os concursos deveriam ser procedidos de uma forma completamente aberta e os concorrentes deveriam ser autorizados a alterar as suas propostas a qualquer momento para oferecer melhores condições, de modo a permitir que o contrato seja adjudicado ao concorrente mais forte do mercado; Embora esta situação seja superficialmente benéfica para a Administração na obtenção de melhores serviços, a longo prazo prejudicará a concorrência no mercado e poderá facilmente conduzir a oligopólios e favoritismos, que é também a situação que o mecanismo das propostas em carta fechada pretende evitar.
70. O Regulamento Administrativo n.º 34/2023 “Procedimentos dos concursos públicos para a atribuição de licenças para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer” serve de base legal para o concurso público neste caso, a comissão de abertura das propostas cumpriu rigorosamente os requisitos literais do referido regulamento legal para apreciar os documentos das proposta, o que decorreu do seu poder legítimo de apreciação e não deve ser considerado pelo Tribunal a quo como uma interpretação ou aplicação erradas das disposições pertinentes.
71. Entendemos que a lei deve ser certa e constante, não devendo estar sujeita a múltiplas ou diferentes interpretações, portanto, conduzindo várias interpretações face a mesma disposição, ou podem existir circunstâncias especiais, o que só criará ou dará origem a mais problemas e litígios no futuro acto público do concurso ou no subsequente processo de apreciação de propostas, nomeadamente o incumprimento dos requisitos literais da legislação aplicável e dar uma interpretação diferente dos requisitos literais, podendo facilmente dar origem à percepção do concorrente que cumpriu os requisitos pertinentes de que a Administração de execução foi tendenciosa e injusta na sua execução.
72. Quanto aos requisitos dos documentos de propostas e regras do concurso, o artigo 8.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 estabelece claramente o conteúdo dos requisitos pertinentes, e a comissão de abertura das propostas apenas necessita de respeitar as exigências previstas no regulamento para apreciar se o conteúdo das propostas dos vários concorrentes cumpre ou não os requisitos do regulamento em causa, e depois toma uma decisão de exclusão contra a recorrida.
73. Além disso, sem sequer como alegado na sentença recorrida, a forma de encadernação e a numeração das páginas em questão serem insignificante, é evidente que a sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente a lei. Para mais, tanto o requisito de encadernação como o de numeração estão previstos no n.º 7.2 do programa de concurso (bem como no artigo 8.º, n.ºs 5 e 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023), se tiver que apreciar se a recorrida cumpriu o requisito de encadernação do n.º 7.2, mas ignorou a questão de saber se cumpriu o requisito da numeração prevista na mesma disposição, então não seria razoável e é contrário ao princípio da Administração de acordo com a lei.
74. Pelos expostos, o entendimento da sentença recorrida viola evidentemente o princípio legal e o princípio de estabilidade, na qual, foram entendidas e aplicadas erradamente as regras imperativas e vinculativas estabelecidas no processo de concurso e no programa de concurso.
iii) Aplicação errada de direito – Compreensão errada do princípio da proporcionalidade
75. O artigo 8.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 estabelece claramente os requisitos exigidos da proposta em causa, o que é norma e processo de caderno de encargos estabelecidos pelo legislador, visto que a proposta é documento importante para o acto público do concurso, tendo de cumprir rigorosamente os requisitos formais específicos, tais como a encadernação e a numeração, a fim de facilitar a apreciação e evitar irregularidades, etc. O facto de o Regulamento Administrativo n.º 34/2023 ser relativamente rigoroso quanto aos requisitos de encadernação e numeração dos documentos não significa que esses requisitos sejam inúteis ou sem importância.
76. O objectivo da exigência de encadernação e de numeração não é idêntico, e os requisitos são complementares entre si para garantir que o documento da proposta não será facilmente substituído ou alterado, não podendo ser permitida a livre escolha de cumprir apenas alguns dos requisitos só com base na opinião subjectiva de um juiz ou da comissão de abertura das propostas sobre se a intenção legislativa foi ou não alcançada.
77. De facto, como já se referiu supra, tanto do ponto de vista factual como do da fundamentação da sentença recorrida, a carece de numeração das páginas e do número total de páginas da primeira edição da proposta apresentada pela recorrente não deixa dúvidas de que a proposta da recorrente não cumpria os requisitos do artigo 8.º, n.ºs 5 e 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, assim, a comissão de abertura das propostas deliberou, após a apreciação executada nos termos das disposições do regulamento acima referido, a exclusão da proposta da recorrente, o que tinha tido feito plenamente conforme com o disposto no Regulamento Administrativo n.º 34/2023, não houve qualquer erro de interpretação e aplicação da lei em apreço, como alegado na sentença recorrida.
78. Segundo o artigo 3.º, n. º1 do Código de Procedimento Administrativo, a Administração, por força do princípio da legalidade, deve respeitar as disposições da lei e agir em conformidade com a lei, não podendo criar novas regras de conduta por si só à margem do direito aplicável, mesmo que essas regras sejam favoráveis à sociedade ou ao interesse público.
79. Pelos acima expostos, a sentença recorrida errou na interpretação e aplicação, e violou o artigo 8.º, n.ºs 5 e 6, o artigo 12.º, n.º 3, alínea 2), e o artigo 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, bem como as disposições pertinentes do Programa de Concurso, devendo ser anulada.
Face ao exposto, tudo depende da douta opinião da lei dos Meritíssimos Juízes do Tribunal de Segunda Instância, requeira a V. Exas. que julguem em consequência:
1. procedente o recurso interposto, declarando a nulidade da sentença recorrida, e por sua vez revogar a sentença recorrida, mantendo a decisão da entidade recorrente;
Caso assim não se entenda, requeira a V. Exas. que julguem:
2. procedente o recurso interposto, anulando a decisão da sentença recorrida, mantendo a decisão da entidade recorrente.
Pela Recorrida foram apresentadas contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida contudo, não apresentando conclusões.
Foram os autos ao Ilustre Magistrado do Ministério Público o qual emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, mantendo-se a anulação do acto administrativo recorrido.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos Factos
Na decisão recorrida foi dada por assente a seguinte factualidade:
- A ora Recorrente (A)服務有限公司, candidatou-se ao concurso público para a atribuição de licenças gerais para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer, anunciado no Boletim Oficial da RAEM, n.º 43, II série, de 25 de Outubro de 2023.
- A Recorrente apresentou, para o efeito, a proposta instruída com os seguintes documentos necessários à candidatura: os documentos comprovativos de habilitação do concorrente, a proposta de preço, o projecto sobre a exploração do transporte de passageiros em táxis, o plano de frota de veículos de exploração, conforme indicado nas cláusulas 10.1 a 10.4 do Programa de Concurso aprovado (conforme os docs. juntos no anexo 2 do processo administrativo, referente à 33.a concorrente).
- A Recorrente, tendo compilado os documentos acima referidos, encerrou-os separadamente em dois invólucros opacos, fechados e lacrados, no rosto dos quais foi escrita, respectivamente, a palavra “Documentos” e a “Proposta”, que foram encerrados num terceiro invólucro, opaco, fechado e lacrado, denominado por “Invólucro exterior” (conforme doc. supra indicado).
- A Recorrente não procedeu à numeração das páginas dos documentos encerrados no invólucro “Documentos”, com a menção na primeira página, do número total de páginas do documento (conforme ibid.).
- Relativamente aos documentos encerrados no invólucro “Propostas”, a Recorrente não procedeu à numeração das páginas da proposta de preço, e numerou as páginas do projecto sobre a exploração do transporte de passageiros em táxis, e do plano de frota de veículos de exploração, mas com a menção do número total de páginas do documento na segunda página, não na primeira (conforme ibid.).
- Em 24/11/2023, por volta das 10h03, foi realizada a sessão do acto público do concurso pela comissão de abertura das propostas, designada para presidir ao concurso (conforme o doc. junto a fls. 266 a 279v do processo administrativo referente ao procedimento do acto público, ponto 1 da acta).
- Dando-se início à sessão do acto público, a comissão procedeu à identificação dos elementos relativos ao concurso e à da lista de concorrentes, ordenada de acordo com a ordem de registo de entrada das propostas (conforme idem pontos 3 a 6).
- Depois, procedeu à abertura dos invólucros, e de seguida, à verificação dos documentos contidos no invólucro “Documentos”, e da respectiva forma de compilação (conforme ibid., pontos 8 a 18).
- Cerca das 15h25 do mesmo dia, a comissão deliberou sobre a admissão de 30 concorrentes, incluindo a ora Recorrente enquanto 33.a concorrente, com a exclusão de 9 concorrentes e a admissão condicional de 1 concorrente, decidindo, depois, sobre as reclamações interpostas pelas concorrentes excluídas (conforme ibid., pontos 20 a 27).
- Seguidamente, a comissão procedeu à verificação formal dos documentos contidos no invólucro “Propostas”, e da respectiva forma de compilação, e deliberou, pelas 20h11, sobre a admissão das propostas, tendo admitido no total de 27 propostas apresentadas incluindo a da Recorrente (conforme ibid., pontos 29 a 30).
- Sobre a referida deliberação, 7 concorrentes, após a consulta das propostas, apresentaram reclamações (conforme ibid., pontos 31 a 38).
- Segundo a reclamação apresentada pela concorrente n.º 10, a proposta e os documentos apresentados pela concorrente n.º 33, a ora Recorrente, não foram compilados por modo a impedir a separação ou acréscimo de folhas, devendo a proposta ser excluída, cujo teor se transcreve no seguinte:
“Do mesmo modo, os documentos e as propostas apresentadas pelas companhias n.º 33, n.º 38 e n.º 39 também não satisfazem os respectivos dispostos (compilados numa forma que impeça a separação ou acréscimo de folhas), pelo que não devem ser admitidos por não satisfazerem os dispostos no programa do concurso.”
(conforme ibid., ponto 36.3 e p. 293).
- Mais tarde, a comissão, na nova sessão realizada em 27/11/2023, pelas 10h04, tomou deliberação sobre as reclamações apresentadas, decidindo no que concerne à ora Recorrente, o seguinte:
“41.4.2 A alegada não satisfação da exigência relativa à forma de compilação da proposta:
41.4.2.1 Quanto à cláusula 7.2 do Programa do Concurso que estipula que a proposta deve ser compilada numa forma que impeça a separação ou acréscimo de folhas, tendo em conta que o Programa do Concurso não define expressamente a forma de compilação, a Comissão entende que a proposta já satisfaz os respectivos dispostos, desde que os documentos sejam ligados através de uma forma adequada e não sejam facilmente separados sem força externa, mais conjugando que já foi feita a numeração das páginas do documento, através da qual as folhas não podem ser acrescentadas facilmente para afectar a apreciação do documento.
41.4.2.2 Tendo apreciado novamente todas as propostas, não verificou que a forma de compilação da proposta da sociedade concorrente admitida não satisfaz a cláusula 7.2 no que diz respeito a que a proposta deve ser compilada numa forma que impeça a separação ou acréscimo de folhas, pelo que, não admitiu a reclamação a este respeito, mantendo a deliberação de admissão da referida proposta.
41.4.3 A alegada não satisfação das exigências relativas à numeração e ao número total de páginas:
41.4.3.1 Tendo apreciado novamente todas as propostas, verificou que as seguintes 15 concorrentes: [...], (A)服務有限公司, concorrente n.º 33 [...], os documentos colocados nos invólucros de “Documentos”/“Proposta” das aludidas companhias não satisfazem a cláusula 7.2 do Programa do Concurso relativa à numeração em todas as páginas, com a menção, na primeira página, do número total das páginas, pelo que, nos termos das cláusulas 11.1 e 11.2, 14.2.4 e 14.2.10, mais em conjugação com os artigos 8.º, n.ºs 5 e 6, 12.º, n.º 3, alínea 2) e 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 (Concurso público para a atribuição de licenças gerais para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer), a Comissão admitiu as referidas reclamações, e anulou as deliberações da admissão da proposta [...] da concorrente n.º 33, (A)服務有限公司, da [...], e deliberou a exclusão da proposta das aludidas 5 concorrentes.”
(conforme ibid. ponto 41.4).
- Da referida decisão de exclusão da proposta, a Recorrente reclamou de imediato para a comissão, reclamação essa que foi indeferida seguidamente (conforme ibid. pontos 46.3 e 48.2).
- Da referida decisão, a Recorrente interpôs recurso hierárquico necessário para ora Entidade Recorrida, por carta datada de 6/12/2023, a que foi negado provimento pelo despacho desta exarado na Proposta n.º 0029/DGT/2024 datada de 4/1/2024 (conforme os docs. juntos a fls. 1 a 7 do anexo 1 do processo administrativo, referente à 33.a concorrente).
- Em 5/2/2024, a ora Recorrente apresentou o presente recurso contencioso da última decisão.
b) Do Direito
É do seguinte teor a decisão recorrida:
«2.1. O ora recurso contencioso é interposto do acto que decidiu o recurso hierárquico necessário deduzido contra a decisão sobre reclamação apresentada por concorrentes com exclusão de proposta da ora Recorrente, acto esse que foi praticado, na sessão do acto público do concurso, pela comissão de abertura das propostas designada para presidir ao concurso público para a atribuição de licenças gerais para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer.
Começa a ora Recorrente por suscitar a questão de ilegalidade das normas concursais, na medida em que a efectiva concretização da exigência excessiva de formalismo contemplada nelas contraria os princípios gerais do concurso, designadamente, os da concorrência e do pro concurso (conforme se alega nos artigos 54.º a 70.º da petição inicial). Ainda que se entenda ser de aplicar as referidas normas, o acto de exclusão decidido com base na irregularidade meramente formal – a falta da numeração das páginas de documento - violou os princípios da proporcionalidade, e da prossecução do interesse público, além de incorrer no vício de desvio de poder, por ter como a única intenção afastar os concorrentes que oferecessem um preço mais elevado (conforme os artigos n.ºs 71.º a 92.º). Além disso, o facto de o órgão concursal excluir os concorrentes já admitidos que tivessem proposto um preço mais elevado, na sequência da decisão sobre reclamação apresentada constitui a violação do princípio da igualdade, da imparcialidade, e do da estabilidade das peças do procedimento (conforme os artigos 93.º a 112.º e 113.º a 124.º).
Na contestação deduzida, a Recorrida pugnou-se pela inadmissibilidade dos vícios alegados na petição inicial, por não terem sido previamente invocados na reclamação que no acto público do concurso fora deduzida perante a comissão de abertura das propostas (conforme os artigos 4.º a 8.º da contestação).
Estamos, neste ponto em particular, de acordo com o que entendeu o digno Magistrado do Ministério Público, no sentido de que não deve funcionar aqui uma regra de preclusão impeditiva da invocação contenciosa dos vícios não invocados no meio de impugnação administrativa necessária, que representaria nada mais que uma ideia da continuidade entre a via graciosa e a via contenciosa, e que “Recortar a causa de pedir no recurso contencioso pelo molde do recurso hierárquico necessário” implicaria “uma restrição inadmissível da garantia de acesso à jurisdição administrativa que a Lei Básica expressamente consagra no seu artigo 36.º ” (cfr. Viriato Lima, Álvaro Dantas, Código de Processo Administrativo Contencioso, Anotado, p. 106, Carla Amado Gomes, Sobre a não preclusão do direito de invocar novos vícios no âmbito do recurso contencioso por referência ao recurso hierárquico, CJA, n.º 0, pp. 25 a 29. E quanto à questão concreta que surge no procedimento adjudicatário, veja-se, Mário Esteves de Oliveira, Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e Outros Procedimentos de Adjudicação Administrativa, das Fontes às Garantias, pp. 618 a 622).
Aliás, a reclamação deduzida no acto público por ora Recorrente não se nos afigura necessária – uma vez deliberada sobre a reclamação apresentada pela concorrente n.º 10, com a consequente exclusão da Recorrente, esta pode recorrer hierarquicamente, por força do artigo 14.º, n.º 2 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 (Procedimentos dos concursos públicos para a atribuição de licenças para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer) para a entidade adjudicante que é o Director dos Serviços para os Assuntos de Tráfego.
Com isto quer dizer, não há mais reclamação necessária sobre a reclamação já decidida - o que ainda se perceberá pelo teor da carta de recurso apresentada à Recorrida, que fora dirigido contra o acto de exclusão da proposta da comissão de Abertura de Propostas. Tal reclamação previamente deduzida pela Recorrente no acto público configuraria, quanto muito, o meio impugnatório facultativo previsto na norma geral – dos artigos 148.º e ss do CPA.
Num e noutro sentido, a falta da invocação dos vícios na reclamação deduzida não preclude a possibilidade da alegação, em sede de recurso contencioso, destes vícios, dos quais passaremos a ocupar-nos seguidamente.
*
2.2. Invertemos a ordem das questões a apreciar e conheceremos em primeiro lugar, a existência do vício procedimental invocado, isto é, a alegada violação da estabilidade do procedimento, nos artigos 113.º a 124.º. A violação decorre, em termos concretizados, do facto de a comissão de abertura das propostas excluir a proposta apresentada pela Recorrente já depois de a ter admitido, e com fundamento na ilegalidade do acto de admissão, diferente da exposta na reclamação apresentada pela concorrente n.º 10.
Parece-nos, desde logo que a questão não deva ser equacionada como a de violação da estabilidade do concurso, a qual se prende com a imodificabilidade das regras e dados constantes das peças do procedimento, como o programa do concurso ou o caderno de encargos, durante a pendência dos respectivos procedimentos (veja-se a este propósito, Acórdão do Tribunal de Última Instância n.º 35/2012, de 27/6/2012).
Mas não obstante isso, deixou-se claro que aquilo que a Recorrente pretendia é, na essência, salvaguardar o “status quo” já constituído pelos actos procedimentais anteriores, ou melhor, pelo acto de admissão da proposta por ela apresentada, a qual, em seu entender, não devia ser posta em causa, muito menos possível com fundamento numa ilegalidade não arguida na reclamação deduzida, mas que conheceu oficiosamente.
Conforme resulta apurado nos autos, na sequência da deliberação sobre a admissão no total de 27 propostas, a concorrente n.º 10 reclamou da admissão das propostas, incluindo a da Recorrente, com fundamento na irregularidade da compilação do documento que não foi feita por modo que impeça a separação ou o acréscimo de folhas, nos termos previstos na cláusula 7.2 do Programa de Concurso, para além de também arguir a falta de numeração do documento relativamente às propostas apresentadas por outras concorrentes.
Sucedeu, porém, que na subsequente deliberação sobre as reclamações apresentadas, a comissão de abertura das propostas entendeu inexistir a apontada irregularidade na forma de compilação do documento, indeferindo desse modo, a reclamação apresentada com este fundamento. Contudo ainda assim, acabou por dar razão à reclamação com a consequente exclusão da proposta, fundada nos artigos 8.º n.ºs 5 e 6, e os 12.º n.º 3 alínea 2) e 13.º n.º 3 alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, por motivo ligado à detectada falta da numeração das páginas dos documentos, não apenas relativamente aos colocados no invólucro “Propostas”, como ainda aos que se encontravam no invólucro “Documento”, cuja numeração de páginas na fase anterior esteve sujeita à verificação formal. Em termos precisos, a referida decisão da exclusão da proposta foi tomada sem reclamação interposta com arguição daquela ilegalidade específica que a fundamente.
À partida, sem razão a ora Recorrente na parte em que entendeu que as concorrentes, uma vez admitidas pela deliberação da comissão de abertura das propostas para passarem à subfase seguinte na sessão do acto público, jamais podem ser afastadas do concurso. Tal hipótese de excluir uma concorrente admitida encontra-se prevista no artigo 10.º, n.º 4, alínea 3) do referido Regulamento, ao permitir aos concorrentes reclamarem contra todas as deliberações da comissão, incluindo as sobre admissão ilegal de qualquer concorrente ou proposta, (não se trata, neste caso, da impugnação autónoma dos actos destacáveis ou seja os que produzem efeitos (subjectiva ou objectivamente) finais, e portanto as decisões tomadas no sentido de indeferimento da reclamação são contenciosamente recorríveis. Porém com repercussões que têm sobre a decisão final de procedimento, estes actos podem ser objecto de apreciação contenciosa indirecta através da impugnação judicial do acto final do procedimento que é a decisão da adjudicação – veja-se, Mário Esteves de Oliveira, Rodrigo Esteves de Oliveira, obra cit., pp. 612 a 613), o que legitima, por conseguinte, a comissão, decidindo as reclamações ao abrigo dos artigos 12.º, n.º 7 e 13.º, n.º 6 do Regulamento, a excluir as concorrentes admitidas.
Também, por outro lado, nem se diria que em tese, sem reclamação da concorrente que tenha expressamente arguido a ilegalidade específica que inquina a anterior admissão da concorrente, a comissão nunca podia, por sua iniciativa, excluir as concorrentes já por ela admitidas.
A exclusão da proposta da Recorrente fundada na verificação posterior das irregularidades formais dos documentos que tenham passado desapercebidas à comissão nas fases anteriores do acto público, podia configurar, ainda, a existência de um acto administrativo de segundo grau, a revogação anulatória da anterior admissão ilegal do concorrente, “cuja função é a de destruir – e não apenas fazer cessar – os efeitos de uma anterior decisão administrativa inválida (rectius, anulável) ...” (cfr. Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves – J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo, comentado 2.ª edição, p. 667). A revogação dá-se não apenas mediante a decisão de reclamação ou recurso administrativo, como ainda por iniciativa dos órgãos competentes, conforme se prevê no artigo 127.º do CPA.
Não obstante, cremos que o questionamento nos termos formulados pela Recorrente na petição inicial permaneça legítimo. Importa saber se tendo em vista o modelo legal de estruturação das fases procedimentais do acto público que está em causa, é ainda possível conceber tal intervenção oficiosa revogatória por parte do órgão concursal, por via da aplicação das normas gerais constantes do CPA.
Como se sabe, os procedimentos concursais configurados nas legislações relativas à contratação pública apresentam-se, de modo geral, “divididos em fases sequenciadas que se pretende sejam (relativamente) estanques em relação às que lhes sucedem”. Dessa natureza multi-faseada de processo decorre que os meios de reacção administrativa das decisões concursais devem seguir em regra um regime próprio, “estabelecido nas leis adjudicatórias ou nas normas regulamentares do próprio concurso – dominado por interesses e consubstanciado em regras diferentes daquelas em que assentam os correspondentes meios de impugnação administrativa regulados no CPA” (cfr. Mário Esteves de Oliveira, Rodrigo Esteves de Oliveira, obra cit., pp. 610 a 611).
Isto sem descurar ainda do interesse da funcionalidade ou eficiência do procedimento, “no sentido de proporcionar um seu desenvolvimento seguro e inquestionável, que ponham a respectiva decisão final ao abrigo de impugnações tardias e da necessidade de fazer constantes “marchas atrás” para reparação das ilegalidades cometidas, com enorme prejuízo para a realização célere e estável dos interesses públicos a que a adjudicação tende” (cfr. obra cit., p. 610).
Na mesma linha de consideração, tal como ensina o douto acórdão n.º 35/2012 do Tribunal de Última Instância, “Como é sabido, é princípio do direito processual ou procedimental que a sucessão de actos que constituem o processo, assenta na consolidação dos actos anteriores cobertos por decisões que não tenham sido impugnadas (princípio da preclusão). Se fosse possível, a todo o tempo, estar a impugnar decisões anteriores sobre as quais assentam as seguintes decisões e os actos posteriores, seria o caos. Ensina MANUEL DE ANDRADE que “Há ciclos processuais rígidos, cada um com a sua finalidade própria e formando compartimentos estanques. Por isso os actos (maxime as alegações de factos ou os meios de prova) que não tenham lugar no ciclo próprio ficam precludidos”.
Na verdade, é a tal sucessão das diversas fases estanques que constatamos aqui, colocando-nos no âmbito do procedimento do concurso em causa, designadamente, do acto público de concurso que decorre perante a comissão de abertura das propostas segundo o disposto nos artigos 9.º e 10.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023. Veremos assim que a comissão toma várias decisões pertinentes pela ordem indicada no seguinte:
- Desde logo, no início da sessão do acto público, a comissão procede-se à leitura da lista de concorrentes, ordenada de acordo com a ordem de registo de entrada das propostas, e seguidamente, à abertura de todos os invólucros exteriores e dos invólucros com a indicação “Documentos” (artigo 11.º do referido Regulamento).
- Depois, em sessão não pública, delibera sobre a habilitação dos concorrentes em face dos documentos apresentados, após o que voltará a tornar-se pública a sessão para proceder à leitura das listas dos concorrentes admitidos, admitidos condicionalmente e excluídos, ordenadas de acordo com a ordem de registo de entrada das propostas, com indicação, nestes dois últimos casos, das respectivas razões.
- E aprecia e decide sobre as eventuais reclamações apresentadas relativamente a esta fase do acto público do concurso, sendo as reclamações apresentadas, verbalmente ou por escrito e exaradas na respectiva acta (artigos 12.º, n.ºs 1, 2 e 5 e 14.º, n.º 1 do referido Regulamento).
- Na sequência disso, procede-se à abertura dos invólucros com a indicação «Proposta» apresentados pelos concorrentes admitidos ou admitidos condicionalmente e depois, procede à apreciação formal dos documentos contidos nele, delibera em sessão não pública, sobre a admissão das propostas, e procede à leitura das listas das propostas admitidas e excluídas (artigo 13.º, n.ºs 1, 2 e 4 do referido Regulamento).
- E de seguida, aprecia e decide sobre as eventuais reclamações apresentadas nesta fase, que apenas podem dirigir contra as deliberações aqui tomadas (artigos 13.º, n.º 6 e 14.º, n.º 1 do Regulamento).
- Decididas as reclamações, a comissão procede à leitura da acta da sessão e encerra a sessão do acto público do concurso (artigo 13.º, n.º 7 do Regulamento).
- Por fim, das deliberações sobre as reclamações cabe recurso hierárquico necessário para a entidade adjudicante, recurso esse deve ser interposto na própria sessão do acto público do concurso e exarado na respectiva acta (artigo 14.º, n.ºs 2 a 3 do Regulamento).
Face ao modelo procedimental do acto público como tal estruturado, a exigência feita aos concorrentes quanto à utilização tempestiva dos meios da garantia administrativa não parece que se esgote na letra da norma do artigo 14.º, n.º 1 do Regulamento, segundo a qual as reclamações devam ter lugar na própria sessão do acto público sob pena de preclusão da possibilidade de reclamar posteriormente, os efeitos preclusivos devem-se ainda impor ao ponto de serem compatíveis com o faseamento dos momentos específicos em que as reclamações devem ser deduzidas nesta sessão.
O que vem acabado de referir corresponde, nas palavras de Mário Esteves de Oliveira, a “…interesses relevantes do procedimento do acto público do concurso, a saber, por exemplo, o interesse em que só se passa a (sub)fases posteriores do procedimento depois de estarem realizadas as tarefas e tomadas as decisões que respeitam às questões suscitadas ou suscitáveis em cada uma dessas sub-fases. E não são….apenas interesses de ordem e arrumação procedimental, mas valores ligados à transparência e imparcialidade que exigem que as coisas se passem assim, pelo menos, na sequência entre alguma das sub-fases (v.g. admissão do concorrentes e admissão de propostas) do acto público do concurso ” (cfr. continuando a seguir a obra cit., pp. 632 a 633).
À luz deste entendimento, na situação vertente, a reclamação contra a deliberação sobre a admissão (ou não) do concorrente após a verificação formal dos documentos contidos no invólucro de “Documentos” deve ser apresentada logo depois da ser lida a lista de concorrentes e antes de passar-se à subfase de abertura dos invólucros de propostas – conforme se prevê nos artigos 12.º, n.ºs 5 e 6, e 13.º, n.º 1 do Regulamento. E na reclamação apresentada na subfase do acto público a seguir, apenas pode-se arguir a legalidade da deliberação sobre a admissão (ou não) da proposta, não sendo possível voltar a discutir as ilegalidades que inquinem as deliberações anteriores. A decisão que se profere é apenas a da exclusão da proposta apresentada pela concorrente, e não a exclusão da concorrente (Neste ponto, apesar de o Programa do Concurso utilizar, na cláusula 14.2, a “exclusão da proposta”, indistintamente para as deficiências da instrução dos documentos que tanto respeitam à habilitação do concorrente, como à própria proposta, a distinção entre os dois termos é nítida face ao previsto nas normas do Regulamento. Ademais é de ainda sublinhar, apesar do equívoco originado pela redacção deficiente da norma do artigo 13.º, n.º 5 do Regulamento donde parece resultar que os concorrentes possam nesta fase reclamar não apenas da deliberação de admissão de propostas, como também a de anterior admissão de concorrente, que a norma nesta parte, em termos de coerência interna, tem de ser lida em conjugação com o disposto no n.º 6, onde se limita o exercício do poder decisório da comissão de abertura das propostas sobre as reclamações que “possam existir nesta fase e que apenas podem ter por objecto as deliberações aqui tomadas”. E com o n.º 2 segundo o qual a comissão procede à apreciação formal dos documentos contidos no invólucro de proposta, “para efeitos de deliberação sobre a admissão ou não das propostas”).
Nesta medida, parece incontroverso que na falta do cumprimento do ónus específico de impugnação que impende sobre os concorrentes, isto é, não tendo sido objecto da reclamação oportunamente deduzida num determinado momento formal da sessão do acto público, tal como especificado nas normas legais, ou tendo sido indeferidas as reclamações, sem que desse indeferimento haja sido interposto recurso hierárquico necessário, as decisões tomadas pela comissão na sessão do acto público tornam-se inimpugnáveis, formando-se assim imediatamente um caso decidido “enquanto decisões de autoridade que definem o direito do caso concreto de forma estável, em nome da segurança jurídica” (Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, p. 202).
Se assim é, a vinculação que vimos atrás e que exista para os concorrentes no sentido de impugnar administrativamente as decisões tomadas em cada momento próprio durante o decorrer da sessão do acto público, deverá valer, em termos coerentes, para qualquer actuação oficiosa do órgão concursal que preside ao procedimento, tendente ao mesmo resultado pretendido com a apresentação da reclamação, sob pena de inutilizar completamente os efeitos preclusivos que referimos atrás.
Como temos vindo a assinalar, o regime de tramitação do procedimento concursal é estruturado em modelo procedimental de fases processuais relativamente estanques, tendo sobretudo presentes os interesses da funcionalidade ou da eficiência do procedimento, com vista a evitar os riscos de comprometer a eficácia da decisão final por causa das impugnações tardias dos particulares, assim como a incorrência dos desnecessários custos emergentes das constantes operações correctivas, motivo pelo qual se reclama, na matéria sobre os meios de garantias administrativas, a aplicação do regime próprio estabelecido pela lei adjudicatária, em derrogação das normas gerais existentes no CPA, por serem incompatíveis com as supraditas exigências de um procedimento faseado.
Em nosso entender, no acto público, o órgão concursal não deve actuar senão em cada fase procedimental formalmente definida, isto é, deliberar sobre a admissão (ou não) de concorrente, e as reclamações apresentadas, e de seguida, sobre a admissão (ou não) de proposta, e as reclamações, mais nada. À parte disso, não lhe caberia qualquer iniciativa de revogar as deliberações anteriormente tomadas. Aliás, teremos de assim concluir, se invocaremos o princípio de formalismo legal, conforme adiante se verá, contra os argumentos alegados respeitantes à violação dos princípios fundamentais, com o fundamento na inexistência da margem de liberdade de conformação procedimental por parte do órgão concursal.
A solução alternativa seria a de definir, no plano de jure constituendo e de forma isenta de dúvidas, o momento específico da intervenção oficiosa dentro da sessão do acto público, e.g. deve prever-se uma fase de verificação formal extraordinária para esse efeito, além daquelas previstas nos artigos 12.º, n.º 2, alínea 1) e 13.º, n.º 2 do Regulamento. Além disso, deve existir norma sobre o âmbito dessa verificação, é uma verificação cabal face a todos os requisitos formais contemplados, ou parcial; uma verificação sobre todos os concorrentes ou apenas aleatoriamente em relação a alguns? De qualquer forma, cremos nós, a verificação oficiosa não deve ser conduzida pela Administração de forma arbitrária, conforme lhe apetecer.
E assim como deve existir a norma que preveja o exercício dos meios de defesa contra o resultado desfavorável dessa intervenção oficiosa, especialmente, quanto à oportunidade da reclamação e da respectiva decisão. Mas neste ponto é de sublinhar que no caso de se entender que exista uma coincidência temporal entre o momento formal do exercício dos meios na situação já prevista e o da dedução das reclamações neste caso específico, assim como os momentos da decisão da reclamação, tornar-se-ia vazio o teor da exigência para compelir os concorrentes a actuar tempestivamente, com expectativa de que a falta por parte deles possa sempre vir a ser sanada mediante a intervenção oficiosa.
Em todo o caso, consideramos ser sobretudo importante acautelar-se neste tipo de procedimento administrativo, contra os perigos de perturbação da segurança jurídica criada por causa da força estabilizadora do caso decidido formado, em cada “compartimento estanque”. A autorização das outras intervenções oficiosas formalmente não reguladas consubstanciaria, de outro modo, uma descaraterização do procedimento concursal como tal definido na lei vigente.
Nestes termos expostos, entendemos que as normas vigentes do Regulamento não parecem comportar qualquer margem para a intervenção oficiosa da entidade concursal. Ao actuar como actuou no caso vertente, a Recorrida violou de modo ostensivo, as normas procedimentais previstas nos artigos 12.º, n.º 7 e 13.º, n.º 6 do Regulamento, o que leva à anulação do acto recorrido.
*
2.3. Sem prejuízo do que antecede, conheceremos de outros vícios materiais que também foram imputados ao ora acto recorrido pela Recorrente.
Mais alegou que o acto recorrido foi praticado com base numa irregularidade meramente formal – a falta da numeração das páginas de documento, e como tal violou os princípios da proporcionalidade, e da prossecução do interesse público. Além disso, tendo o autor do acto uma única intenção afastar os concorrentes que oferecessem um preço mais elevado, ainda incorreu o vício de desvio de poder (conforme os artigos n.ºs 71.º a 92.º).
E que ademais, no acto público, o órgão concursal ao aplicar, de forma diferenciada, as normas de exigência formal, relativamente à proposta da Recorrente e a dos outros concorrentes, violou os princípios da igualdade, da imparcialidade (conforme os artigos nºs 93.º a 112.º na petição inicial, posteriormente densificado nos artigos 1.º a 8.º da alegação facultativa).
Importa à partida que constitui a jurisprudência consolidada dos Tribunais superiores, que “no âmbito da actividade vinculada não releva a alegada violação dos princípios gerais do Direito Administrativo, incluindo os princípios da boa fé, da justiça, da adequação, da proporcionalidade, da colaboração entre a Administração e os particulares e da igualdade” (veja-se, entre os outros, os Acórdãos do Tribunal de Última Instância n.º 77/2021, de 3/06/2021, n.º 176/2020, de 18/12/2020, n.º 143/2020, de 27/11/2020).
Como se sabe, é o princípio da legalidade que prevalece na área de contratação pública em que toda a actuação administrativa está sujeita necessariamente às normas legais ou aos padrões normativos pré-estabelecidos. No procedimento que se desenvolve no acto público, o qual consubstancia uma formalidade essencial no concurso público destinada a apurar a regularidade formal das candidaturas, é natural que a exigência da legalidade é ainda mais acentuada, sendo relativamente reduzida a margem de conformação procedimental que se encontra à disposição do órgão encarregado da instrução.
Na situação vertente, no caso de as normas previstas no Regulamento n.º 34/2023, e doutras constantes das peças concursais comportarem o alcance que a ora Recorrida lhes efectivamente atribuiu, não teríamos nenhuma alternativa senão extrairmos as consequências desfavoráveis, em resultado da sua aplicação rigorosa. Ou seja, a comissão de abertura das propostas deve-se limitar a excluir a proposta apresentada pela Recorrente, no pressuposto de verificação das irregularidades formais - a falta da numeração das páginas dos documentos e com a menção do número total de páginas do documento na segunda página, ao contrário do que se exige nas referidas normas.
Nesta linha, a alegada desproporcionalidade entre a falta cometida e os efeitos desfavoráveis acarretados a existir, é apenas relativa às previsões normativas existentes, no fundo é saber se as ditas normas regulamentares, pelo seu teor ou pela interpretação adoptada violam ou não os princípios fundamentais, questão essa que iremos abordar de seguida.
Mas de todo modo, inexiste o vício de violação do princípio da proporcionalidade, imputado ao próprio acto recorrido.
E pela mesma razão, nem se deve dizer que o acto recorrido tivesse violado o princípio da igualdade – o caso de ter admitido ilegalmente os outros concorrentes ou as propostas por eles apresentados, certamente não vincula a entidade competente a admitir a proposta da Recorrente que padeça da mesma ilegalidade, já que estamos, reiterando-se, no âmbito da actividade legalmente vinculada.
Também, o invocado vício de desvio de poder é insusceptível de obter a anulação do acto recorrido. É consabido que tal vício consiste “no exercício de um poder discricionário por um motivo principalmente determinante que não condiga com o fim que a lei visou ao conferir aquele poder” (cfr. Viriato Lima, Álvaro Dantas, Código de Processo Administrativo Contencioso, anotado, p. 51), enquanto aqui limitamo-nos a verificar se a entidade administrativa actua conforme as exigências legais, não relevando, para o efeito, a existência de um motivo distinto que tenha conduzido à prática do acto recorrido.
Isto dito, deve-se improceder os fundamentos invocados nesta parte do recurso.
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2.4. É de conhecer agora do primeiro vício invocado, dirigido contra as normas regulamentares concursais, designadamente, o artigo 8.º, n.ºs 5 e 6 constantes do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, e as previstas no Programa de Concurso, nas cláusulas n.ºs 7.2, 11.1. e 11.2. Segundo afirmou a Recorrente, a exigência do formalismo contemplada pelas referidas normas é de tal maneira excessiva que contraria os princípios gerais do concurso público, designadamente, os da concorrência e do pro concurso (conforme se alega nos artigos 54.º a 70.º da petição inicial).
Apesar de insurgir-se, literalmente, contra as normas onde se estabelecem as exigências sobre o modo de apresentação das propostas, a censura de ilegalidade da Recorrente não deve deixar de abranger, implicitamente, as consequências da inobservância da forma exigida, tal como previstas nos artigos 12.º, n.º 3, alínea 2), e 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento e nas correspectivas normas do Programa do Concurso. Na realidade, apesar de não ter indicado as normas todas, ela nunca deixou de arguir o excesso da medida de exclusão determinada, primeiro nos artigos 80.º a 85.º da petição inicial e depois nos artigos 16 a 17 da parte (2) e 6.º a 7.º da parte (3) da alegação facultativa, só que discordámos do enquadramento feito e entendemos atrás que a desproporcionalidade existiria antes em relação à própria norma regulamentar aplicada. Pois bem, interpretando a petição inicial, a questão essencial que ela pretende ver respondida por este Tribunal prende-se, no fundo, com a proporcionalidade da norma que deva existir entre os benefícios visados pela entidade administrativa com aquela exigência normativa e os sacrifícios assim impostos aos concorrentes que a violem.
Daí é o princípio da proporcionalidade como tal configurado que está em jogo, não, propriamente, os princípios da concorrência e do pro concurso, que residem, aliás, numa mera construção doutrinária, sem consagração legal expressa.
Por sua vez, o princípio da proporcionalidade encontra-se previsto no artigo 5.º, n.º 2 do CPA, sendo de cariz legal, e até constitucional, dado o seu carácter estruturante da noção de Estado de Direito ou de Região de Direito (conforme se entende na recente jurisprudência do Tribunal de Segunda Instância n.º 851/2021, de 3/3/2022), ou seja, da hierarquia supra-regulamentar, poderá ser mobilizado como parâmetro de controlo das actuações normativas dos órgãos administrativos.
Assim sendo, o Tribunal vai, num enquadramento jurídico distinto do que foi efectuado pela ora Recorrente, conhecer incidentalmente da invocada ilegalidade das normas constantes do Regulamento Administrativo complementar, com fundamento no princípio da hierarquia das normas, segundo as linhas gerais traçadas pelo Acórdão do Tribunal de Última Instância n.º 33/2012, de 4/7/2012. E mais de acordo com o entendimento vertido na jurisprudência pacífica do direito comparado, o juízo de ilegalidade deve ser formulado sobre as normas regulamentares aplicadas, “quer no seu teor, quer na interpretação adoptada em eventual violação de normas ou princípios constitucionais” (ou de ordem supra-regulamentar) (cfr. a título de exemplo, no direito comparado, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 035590, de 13/3/2003).
As normas regulamentares em apreço regulam essencialmente o modo de ordenação, arrumação e apresentação das propostas por parte dos concorrentes: por um lado, é necessário, entre todos os documentos que instruam a proposta, haver uma arrumação separada dos relativos à habilitação dos concorrentes, referidos no artigo 8.º, n.º 1, alínea 1), e dos relativos ao conteúdo da proposta – os referidos nas alíneas 2) a 6) do mesmo número. E por outro lado, os documentos “têm de ser compilados na forma prevista no programa do concurso, com as páginas numeradas e com a menção, na primeira página, do número total de páginas do documento, sendo colocados num invólucro opaco, fechado e lacrado, em cujo rosto se escreve a palavra” «Documentos» ou «Proposta» - conforme se prevê no artigo 8.º, n.ºs 5 e 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023.
A supradita exigência regulamentar encontra-se densificada nas peças concursais, designadamente, no Programa de Concurso, nas cláusulas 11, 11.1 a 11.3, pela seguinte forma:
“11. Apresentação da proposta
11.1. Os documentos referidos no n.º 10.1 devem ser enfeitados de acordo com a forma prevista no n.º 7.2, e colocados num invólucro opaco, fechado e lacrado, em cujo rosto se escreve a palavra “Documentos”, indicando-se a denominação social da sociedade concorrente, a designação do concurso, e o nome da entidade onde corre o procedimento do concurso público (Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego).
11.2. Os documentos referidos nos n.os 10.2 a 10.4 devem ser feitos de acordo com a forma prevista no n.º 7.2, e colocados num invólucro opaco, fechado e lacrado, em cujo rosto se escreve a palavra “Proposta”, indicando-se a denominação social da sociedade concorrente, a designação do concurso, e o nome da entidade onde corre o procedimento do concurso público (Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego).
11.3. Os invólucros referidos nos dois números anteriores têm de ser colocados dentro de outro invólucro opaco, fechado e lacrado, em cujo rosto se escreve «Invólucro exterior», indicando-se a denominação social da sociedade concorrente, o título “Apresentação de propostas para o «Concurso público para a atribuição de licenças gerais de exploração da actividade de transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer» realizado pela Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego”, o nome e o endereço da entidade onde corre o procedimento do concurso público (Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego, sita na Estrada de D. Maria II, n.º 33, Macau).”
Por sua vez, a cláusula 7.2, para onde remeteu a 11.1 tem o seguinte teor.
“A proposta deve ser impressa na frente e verso, com as páginas numeradas e com a menção, na primeira página, do número total de páginas do documento. Caso o documento tenha mais de uma folha, deve ser compilado numa forma que impeça a separação ou acréscimo de folhas.”
Por último, em caso do incumprimento das exigências formais, dá-se lugar à exclusão do concorrente ou da proposta por ela apresentada, por força da aplicação dos artigos 12.º, n.º 3, alínea 2) - “Caso as propostas não satisfaçam o disposto em qualquer dos n.os 3 a 7 do artigo 8.º”, e 13.º, n.º 3, alínea 3) – “Quando os documentos contidos no invólucro de proposta não estejam em conformidade com o disposto em qualquer dos n.os 3, 4 e 6 do artigo 8.º” do Regulamento.
À partida, não nos parece que as referidas normas regulamentares padeçam da ilegalidade quanto ao seu teor por terem afrontado o princípio da proporcionalidade. O que se revela patológica é a interpretação dessas normas feita por entidade administrativa, cujo resultado produzido, a nosso ver, violou manifestamente este princípio geral aplicável a todos os tipos de procedimento administrativo. Vejamos em que medida.
Como referimos atrás, o que está em causa é a exigência dos requisitos sobre o modo de apresentação de proposta, no sentido de que os documentos exigidos para efeitos de concurso não apenas devam ser todos apresentados, como ainda devem sê-lo de forma arrumada e organizada, de acordo com as determinadas regras impostas aos concorrentes.
O modelo de apresentação das propostas estabelecido no artigo 8.º, n.ºs 5 a 7 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 é o geral que é seguido nos procedimentos concursais no ordenamento jurídico da RAEM, que se traduz, recapitulando-se, no seguinte: os documentos que respeitem à habilitação dos concorrentes, encerrados num invólucro opaco, fechado e lacrado, em cujo rosto se escreve a palavra «Documentos»; a proposta de preço e os documentos que a instruem respeitante às condições da execução das prestações, encerrados num invólucro opaco, fechado e lacrado, em cujo rosto se escreve a palavra «Proposta»; esses dois invólucros são encerrados num terceiro, com as mesmas características, e em cujo rosto se escreve «Invólucro exterior» , com a identificação do concorrente, a indicação do nome da entidade onde corre o procedimento do concurso público e a designação do concurso.
E por outro lado, ainda exige-se nestes preceitos legais, quanto à observância da forma de compilação dos documentos que instruam a proposta, densificada no programa do concurso, sobretudo “com as páginas numeradas e com a menção, na primeira página, do número total de páginas do documento”. Trata-se de um modo complementar de arrumação dos documentos em “fascículos indecomponíveis”, por modo a impedir a separação ou acréscimo de folhas, sem que isso fosse detectável (cfr. Mário Esteves de Oliveira, Rodrigo Esteves de Oliveira, obra cit., pp. 373 a 374).
Como se vê, as normas regulamentares vêm aqui analisadas são extremamente densas quanto ao seu conteúdo, para não falar de existir ainda uma parte em branco que carece de ser preenchida pela norma constante do Programa de Concurso. Nesta linha, temos para nós que, ainda que as normas dos artigos 12.º, n.º 3, alínea 2), e 13.º, n.º 3, alínea 3), fundamentadoras da exclusão da concorrente ou da proposta limita-se a prever como pressuposto a inconformidade dos documentos contidos nos invólucros com o disposto dos n.ºs 5 e 6 do artigo 8.º, não é certamente aceitável que a consequência da exclusão corresponderia a qualquer incumprimento de qualquer formalidade mencionada naquelas normas (A este propósito, no direito comparado, a questão de mesmo teor tinha sido colocada face a norma do artigo 59.º, n.º 1, alínea b) do DL n.º 55/99 que estabeleceu o regime da contratação pública relativa à prestação de serviços, locação e aquisição de bens móveis. Da mesma forma, tal norma limitou-se a dizer que não são admitidos os concorrentes que não cumpram as formalidades previstas no artigo 55.º, sem especificar o tipo concreto de falta que levasse à exclusão. Foi assim, nestes termos, fortemente rejeitada a interpretação literal da norma em virtude do resultado produzido ser inexorável e até absurdo, veja-se, obra cit., pp. 381 a 382).
É pacífico que hoje em dia, um paradigma que impunha uma interpretação das normas jurídicas apegada estritamente à letra da lei ficou há muito superado face às directrizes que emergem do artigo 8.º do CCM, nos termos do qual “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei...”. Ademais, como mencionamos acima, a interpretação literal da norma regulamentar em causa, nos moldes em que foi conduzida pela entidade administrativa dificilmente compatibiliza-se com o princípio da proporcionalidade.
É consabido que tal princípio previsto no artigo 5.º, n.º 2 do CPA comporta tradicionalmente os três elementos – o da adequação, “no sentido de exigir que as medidas restritivas em causa sejam aptas a realizar o fim visado com a restrição ou contribuam para o alcançar”; o da necessidade, com o sentido de que “se deve escolher, de entre todos os meios idóneos disponíveis e igualmente aptos a prosseguir o fim visado com a restrição, o meio que produza efeitos menos restritivos” e o da proporcionalidade em sentido restrito, que respeitaria “à relação de justa medida ou de adequação… entre os bens e interesses em colisão, ou mais, especificamente, entre o sacrifícios imposto pela restrição e o benefício por ele prosseguido” (cfr. Jorge Rei Novais, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, pp. 130 a 133).
É este último elemento que especialmente nos interessa, sendo certo que o princípio nesta dimensão é mobilizável como parâmetro de controlo das actuações dos poderes públicos, conforme se alude, recentemente, no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, n.º 851/2021, de 3/3/2022, no seguinte, “a mobilização do princípio da proporcionalidade como parâmetro de controlo das actuações restritivas dos poderes públicos tem essencialmente a ver com uma comparação, com uma ponderação ou valoração de alternativas restritivas, sendo orientada ao apuramento da existência de um eventual excesso ou desproporcionalidade entre benefícios pretendidos e sacrifícios impostos pelos poderes públicos aos particulares.”.
É portanto, a existência de uma justa medida que se deve averiguar numa ponderação relativa entre o interesse público que a actuação restritiva pretende satisfazer e o interesse do particular sacrificado pela mesma actuação. Ou dito de foma mais precisa, o que se exige é que haja uma proporção entre o grau de realização do interesse público e o grau de sacrifício imposto ao particular. Nesta conformidade, inexistirá tal justa medida ou a relação apurada é desproporcionada quando com a actuação restritiva alternativa escolhida, se conseguiria apenas uma ligeira melhoria em termos de realização do interesse público, mas entretanto se provocaria um enorme sacrifício para o particular afectado face às outras possibilidades de actuação.
Dada esta configuração que o princípio da proporcionalidade tem acolhido, parece-nos que as normas em causa – artigos 12.º, n.º 3, alínea 2), e 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento não pudessem comportar o alcance que a Recorrida lhes atribuiu.
Na interpretação da norma com vista a desvendar o seu verdadeiro sentido, os princípios fundamentais consubstanciados como elemento sistemático, ou seja “outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada”, a que qualquer intérprete deve lançar mão tendo sobretudo em conta “a unidade do sistema jurídico” conforme postulado no artigo 8. º, n.º 1 do Código Civil de Macau, para além de agarrar-se ao elemento gramatical da norma (cfr. J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183).
A não ser assim, em alternativa, propugnar-se-ia a interpretação restritiva da norma para melhor se compaginar com o dito princípio na acepção dada. Segundo o Professor Baptista Machado, procede-se à interpretação restritiva quando “o intérprete chega à conclusão de que o legislador adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que se pretendia dizer. Também aqui, a ratio legis terá uma palavra decisiva. O intérprete não deve deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo, isto é, com aquele ratio. O argumento em que assenta este tipo de interpretação costuma ser assim expresso: cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance).” (cfr. J. Baptista Machado, obra cit., p. 186).
De todo o modo, na situação aqui em causa, conforme entendemos, a consequência da exclusão da proposta estatuída nas normas – artigos 12.º, n.º 3, alínea 2), e 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, nunca podiam, sob pena de criar, em violação do supradito princípio, uma relação manifestamente desproporcionada entre os benefícios pretendidos e os sacrifícios impostos, ser acarretada para o caso em que é apenas ínfimo ou marginal o benefício que resulte para a satisfação do interesse público, da observância escrupulosa da exigência formal relativa ao modo de apresentação da proposta.
Cremos que deve ser sob este alcance dado às normas que veremos a situação concreta.
Como já vimos, as normas da exigência formal – designadamente, o artigo 8.º, n.ºs 5 a 7 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, regulam essencialmente o modelo de apresentação das propostas estabelecido, com os requisitos adicionais relativos aos “fascículos indecomponíveis”. À luz do entendimento supra explanado, é de começar por averiguar da relevância e das implicações jurídicas dessas exigências e formalidades, na realização dos interesses que cada uma delas se destina a preencher.
Neste sentido, se entendemos que a deficiência na instrução da proposta atinente à violação da separação dos sobrescritos “Documentos” e “Proposta” (e.g. a inclusão errónea da proposta no invólucro “Documentos”) deverá conduzir à exclusão da proposta com fundamento vertido naquelas normas, porque a não ser assim, ficam os princípios estruturantes do concurso público, como os da igualdade, da imparcialidade e da transparência, irremediavelmente comprometidos, a mesma não pode suceder com a violação das exigências complementares relativas aos “fascículos indecomponíveis” – designadamente, sobre a numeração das páginas que se contém em cada fascículo e da indicação na primeira página, do número total de páginas. Do que se trata aqui, como referido acima, é de uma formalidade cuja finalidade se esgota unicamente na garantia da inviolabilidade da proposta instruída, para que não lhe acrescentasse ou retirasse folhas sem deixar nenhum vestígio.
A verdade é que estas exigências, “desde que esteja assegurada a indecomponibilidade do fascículo, já não garantem interesses da mesma monta, porque as duas, uma: ou o fascículo não apresenta sinais de violação e é evidente que não se tiraram ou acrescentaram folhas às que ele inicialmente continha – ou então, há sinais de violação e (independentemente da indicação e numeração das folhas nele contidas) a respectiva proposta não pode ser aceite.” (veja-se Mário Esteves de Oliveira, Rodrigo Esteves de Oliveira, obra cit., p. 386).
Foi o que ocorreu no caso dos autos – se o cumprimento das outras exigências relativas à compilação dos documentos que instruem a proposta assegura comprovadamente a inviolabilidade ou a indecomponibilidade da proposta apresentada (o que aliás corresponde ao que afirmou a comissão da abertura das propostas no acto público, segundo o qual as propostas, incluindo a da Recorrente, foram compiladas de modo conforme a exigência na cláusula 7.2 do Programa de Concurso para impedir a separação ou acréscimo de folhas (veja-se o ponto 41.4.2 da acta do acto público), então a violação da exigência formal aqui em causa não deve gerar sem mais a consequência da exclusão da proposta, uma vez que o benefício trazido com o cumprimento alternativo dessa exigência é quase insignificante, sendo manifestamente desproporcionado em comparação com a perda definitiva da possibilidade de ver avaliada a proposta por parte do concorrente afastado.
Numa palavra, inexiste, nessa interpretação adoptada das normas pela entidade recorrida, a referida justa medida entre o grau de benefício pretendido e o grau do sacrifício imposto, o que colide com o princípio da proporcionalidade em sentido restrito.
Concluímos assim que o acto recorrido deve ser anulado porque interpretou e aplicou erradamente os artigos 8.º, n.ºs 5 e 6 e 12.º, n.º 3, alínea 2) e 13.º, n.º 3, alínea 3) constantes do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 e as correspectivas normas do Programa do Concurso.
Em síntese, o acto recorrido deve ser anulado, com a procedência do recurso contencioso, pelo seguinte:
- por ter decidido oficiosamente a exclusão da proposta da Recorrente, em violação das regras procedimentais do concurso público, designadamente, as previstas nos artigos 12.º, n.º 7 e 13.º, n.º 6 do Regulamento Administrativo n.º 34/2023.
- e também por ter excluído a dita proposta, com uma interpretação errada das normas regulamentares aplicáveis, os artigos 8.º, n.ºs 5 e 6 e 12.º, n.º 3, alínea 2) e 13.º, n.º 3, alínea 3) constantes do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 e as correspectivas normas do Programa do Concurso.
Não se mostra necessário atender ao pedido cumulado formulado pela Recorrente, designadamente o da condenação à admissão da proposta excluída e a sua consequente avaliação, porquanto o que se pretende aqui é a efectivação, na fase posterior, dos efeitos repristinatórios da sentença anulatória transitada, ao abrigo do artigo 174.º, n.º 3 do CPAC.
Resta decidir.».
Foi do seguinte teor o Douto Parecer do Ministério Público:
«1.
(A)服務有限公司, melhor identificada nos presentes autos, interpôs recurso contencioso do acto administrativo praticado pelo Director dos Serviços para os Assuntos de Tráfego através do qual foi indeferido o recurso hierárquico do acto de exclusão da proposta da Recorrente praticado pela comissão de abertura de propostas designada para presidir ao concurso público para a atribuição de licenças gerais para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer, pedindo a respectiva anulação.
Por douta decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo que se encontra a fls. dos presentes autos foi o recurso julgado procedente com a consequente anulação do acto administrativo recorrido.
Inconformada, veio a Entidade Recorrida interpor o presente recurso jurisdicional perante o Tribunal de Segunda Instância, pugnando pela revogação daquela decisão.
2.
(i)
A primeira questão colocada no presente recurso é a de saber se a douta sentença recorrida sofre, como vem alegado, de nulidade por excesso de pronúncia (conclusões 1 a 20 das doutas alegações de recurso).
Segundo a Recorrente, aquela nulidade resultaria do facto de o Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo ter conhecido de vícios do acto administrativo contenciosamente recorrido que não foram, em concreto, invocados pela Recorrente contenciosa e que, além disso, não são de conhecimento oficioso.
Salvo o devido respeito, não nos parece que assim seja.
É certo que, em recurso contencioso, é sobre o recorrente que recai o ónus de alegar os factos que constituem a causa de pedir e, do mesmo modo, as razões de direito que servem de fundamento à sua pretensão anulatória. No entanto, é preciso ter em devida conta o seguinte. Em primeiro lugar, que, quando em recurso contencioso se fala de causa de pedir o que se refere é o vício do acto administrativo invocado pelo recorrente e esse vício consiste «no comportamento concreto da Administração que ao praticar certo acto violou a legalidade» (assim, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Sobre a Autoridade do Caso Julgado das Sentenças de Anulação de Actos Administrativos, Coimbra, 1994, p. 91). Em segundo lugar, que, como de modo expresso decorre do n.º 5 do artigo 74.º do CPAC, também no recurso contencioso vigora o princípio jura novit curia, segundo o qual a qualificação jurídica dos fundamentos do recurso feita pelo recorrente não vincula o tribunal, o qual pode dar provimento ao recurso com base na qualificação que considere adequada.
Ora, no caso em apreço, resulta da petição inicial do recurso contencioso que a Recorrente contenciosa ataca o acto recorrido por considerar que a Administração estava legalmente impedida de excluir a sua proposta com os fundamentos com que concretamente o fez. É esta, pois, no essencial, a sua causa de pedir.
Neste conspecto, e tendo em conta o que antes dissemos, parece-nos claro, salvo o devido respeito, que o Meritíssimo Juiz a quo, contrariamente ao que vem alegado pelo Recorrente, dispunha de total liberdade para qualificar juridicamente a invalidade resultante do concreto comportamento administrativo questionado no presente recurso, não estando, pois, cingido pela qualificação jurídica proposta pela Recorrente. Daí que, a nosso modesto ver, não tenha ocorrido violação do princípio dispositivo e daí, também, que a douta sentença recorrida não sofra da nulidade por excesso de pronúncia que o Recorrente lhe imputa no presente recurso jurisdicional.
(ii)
(ii.1)
A segunda questão colocada no presente recurso é a de saber se a douta decisão recorrida padece de erro de julgamento por ter considerado que a Administração incorreu em vício de violação de lei, nomeadamente dos artigos 12.º, n.º 7 e 13.º n.º 6 do Regulamento Administrativo n.º 34.º/2023 (conclusões 21 a 60 das doutas alegações de recurso).
Vejamos.
Como resulta da conjugação das normas dos artigos 9.º a 13.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, que estabelece os procedimentos relativos aos concursos públicos para a atribuição de licenças para o transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer, é possível distinguir, dentro da fase chamada do «acto público do concurso», duas sub-fases: (i) uma atinente à admissão/exclusão de concorrentes (vamos chamar-lhe a sub-fase do artigo 12.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023) e (ii) outra, subsequente a essa, concernente à admissão/exclusão de propostas (vamos chamar-lhe a sub-fase do artigo 13.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023).
Como facilmente se compreende, por isso que se trata de um procedimento complexo ou plurifásico, cada uma dessas sub-fases procedimentais comporta decisões parcelares por parte da Administração que funcionam como actos pressupostos daqueles que, eventualmente, venha a ser praticados nas fases seguintes e bem assim do acto final do procedimento. Nos termos que decorrem da alínea 3) do n.º 4 do artigo 10.º e do n.º 1 do artigo 14.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, essas decisões parcelares podem ser objecto de reclamação por parte dos concorrentes, as quais são obrigatoriamente apresentadas, verbalmente ou por escrito, na própria sessão do acto público do concurso e exaradas na respectiva acta. Nos termos do n.º 6 do artigo 13.º do Regulamento, «a comissão de abertura das propostas aprecia e decide as reclamações que possam existir nesta fase e que apenas podem ter por objecto as deliberações aqui tomadas».
(ii.2)
No caso, da matéria de facto que foi dada como provada resulta o seguinte:
- No dia 23 de Novembro de 2023, foi realizada a sessão do acto público do concurso aqui em causa;
- Depois de ter aberto os invólucros «documentos» apresentados pelos concorrentes, a comissão de abertura de propostas, cerca das 15 horas e 25 minutos daquele dia, deliberou sobre a admissão dos concorrentes, incluindo a Recorrente contenciosa;
- Seguidamente, a comissão procedeu à verificação dos elementos contidos no invólucro «propostas» e deliberou, cerca das 20 horas e 11 minutos do mesmo dia, admitir um total de 27 propostas, incluindo a da Recorrente contenciosa;
- O concorrente n.º 10 apresentou reclamação, alegando que os documentos e a proposta apresentados pela Recorrente contenciosa (concorrente n.º 33) não foram compilados numa forma que impede a separação ou acréscimo de folhas, pelo que não devia ter sido admitida a respectiva proposta;
- Sobre esta reclamação, a comissão de abertura de propostas, decidiu o seguinte: «Quanto à cláusula 7.2 do Programa do Concurso que estipula que a proposta deve ser compilada numa forma que impeça a separação ou acréscimo de folhas, tendo em conta que o Programa do Concurso não define expressamente a forma de compilação, a comissão entende que a proposta já satisfaz os respectivos dispostos, desde que os documentos sejam ligados através de uma forma adequada e não sejam facilmente separados sem força externa, mais conjugando que já foi feita a numeração das páginas do documento, através da qual as folhas não podem ser acrescentadas facilmente para afectar a apreciação do documento. Tendo apreciado novamente todas as propostas, não verificou que a forma de compilação da proposta da sociedade concorrente admitida não satisfaz a cláusula 7.2 no que diz respeito a que a proposta deve ser compilada numa forma que impeça a separação ou acréscimo de folhas, pelo que, não admitiu a reclamação a este respeito, mantendo a deliberação de admissão da referida proposta» (transcrevemos o texto da tradução para línguas portuguesa constante de fls. 178 e 179 dos presentes autos).
- Além disso, ainda sobre a mesma reclamação, a comissão deliberou, na tradução portuguesa antes referida, o seguinte: «Tendo apreciado novamente todas as propostas, verificou que as seguintes 15 concorrentes: (…), , concorrente n.º 33 (…), os documentos colocados nos invólucros de «documentos/propostas» das aludidas companhias não satisfazem a cláusula 7.2 do Programa do Concurso relativa à numeração em todas as páginas, pelo que, nos termos das cláusulas 11.1 e 11.2, 14.2.4 e 14.2.10, mais em conjugação com os artigos 8.º, n.º 5 e 6 e 12.º, n.º 3, alínea 2) e 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, a comissão admitiu as referidas reclamações e anulou as deliberações de admissão da proposta da concorrente n.º 2 (…)» (a concorrente n.º 33 é a aqui Recorrente contenciosa).
A partir da leitura desta matéria de facto pode com segurança concluir-se que a concorrente nº 10, na sua reclamação, pediu que fosse anulada a deliberação da comissão proferida na sub-fase do artigo 13.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, anulando a admissão da proposta da concorrente n.º 33.
Além disso, também parece incontroverso que a Administração decidiu, expressis verbis, no sentido a procedência da reclamação e da consequente anulação da deliberação anterior de admissão da proposta da Recorrente contenciosa (concorrente n.º 33) com base num fundamento não invocado pela Reclamante (concorrente n.º 10).
Contudo, com todo o respeito pelo decidido pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo, não nos parece que a Administração tenha excluído ex officio a proposta da Recorrente contenciosa. Não nos parece, pois, de acompanhar a afirmação constante da douta sentença impugnada segundo a qual, «(…) a referida decisão da exclusão da proposta foi tomada sem reclamação interposta com arguição daquela ilegalidade específica que a fundamente» (cfr. página 14 da douta sentença a fls. 101 verso dos presentes autos) O que aconteceu, se estamos a ver bem, foi outra coisa. A Administração colocada perante uma reclamação apresentada pelo concorrente n.º 10 que questionava a legalidade da admissão da proposta da Recorrente contenciosa (concorrente n.º 33), decidiu deferi-la, anulando aquela admissão, embora com base num fundamento não invocado pelo reclamante.
Se assim é, a questão a colocar é, pois, outra. É a de saber se a Administração estava legalmente habilitada a deferir a falada reclamação com base num fundamento diverso daquele que foi concretamente invocado pelo reclamante.
A resposta a tal questão, em nosso modesto entendimento, não pode deixar de ser positiva. Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 59.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), são muito amplos os poderes procedimentais da Administração, quer em sede de instrução quer em sede de cognição e decisão. Nomeadamente, a lei permite que os órgãos administrativos decidam coisa diferente ou mais ampla do que a pedida, quando o interesse público o exigir. Não há, pois, no procedimento administrativo o constrangimento ou a vinculação temática que a lei processual civil impõe, nos artigos 563.º e 564.º do Código de Processo Civil ao juiz. Ademais, em matéria de revogação anulatória de actos administrativos, a Administração dispõe, como é sabido, de poderes de iniciativa oficiosos como decorre do disposto no artigo 127.º do CPA.
Deste modo, somos a concluir, com o respeito devido pela douta decisão a quo, que, nesta parte, a mesma não se poderá manter por ter incorrido em errada interpretação e aplicação das normas regulamentares e legais aplicáveis ao caso.
(iii)
(iii.1)
A terceira e última questão que se coloca no presente recurso é a de saber se a douta sentença recorrida incorreu em erro de julgamento na interpretação e na aplicação das normas do artigo 8.º, n.ºs 5 e 6, o artigo 12.º, n.º 2, alínea 3) e o artigo 13.º, n.º 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 (conclusões 61 a 79 das doutas alegações de recurso).
A resposta a esta questão deve, em nosso humilde entendimento, ser negativa.
Vejamos.
De acordo com o disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 8.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, os documentos referidos na alínea 1) do n.º 1 têm de ser compilados na forma prevista no programa do concurso, com as páginas numeradas e com a menção, na primeira página, do número total de páginas do documento, sendo colocados num invólucro opaco, fechado e lacrado, em cujo rosto se escreve a palavra «Documentos» e os documentos referidos nas alíneas 2) a 6) do n.º 1 têm de ser compilados na forma prevista no programa do concurso, com as páginas numeradas e com a menção, na primeira página, do número total de páginas do documento, sendo colocados num invólucro opaco, fechado e lacrado, em cujo rosto se escreve a palavra «Proposta».
Por sua vez, a alínea 2) do n.º 3 do artigo 12.º do Regulamento determina que são excluídos os concorrentes no caso de as propostas não satisfazerem o disposto em qualquer dos n.os 3 a 7 do artigo 8.º.
Identicamente, a alínea 3) do n.º 3 do artigo 13.º do Regulamento comina a exclusão da proposta quando os documentos contidos no invólucro de proposta não estejam em conformidade com o disposto em qualquer dos n.os 3, 4 e 6 do artigo 8.º.
No caso, como antes vimos, a Administração, aplicando as normas acabadas de referir, excluiu a proposta da Recorrente contenciosa com fundamento no facto de a mesma não ter procedido à numeração das páginas contidas nos invólucros de «documentos/propostas», em preterição, portanto, de formalidade imposta pelos n.ºs 5 e 6 do artigo 8.º do Regulamento.
Salvo o devido respeito, erradamente.
(iii.2)
Não é discutido que a Recorrente contenciosa, como dissemos, não observou a formalidade imposta pelo Programa do Concurso e pelos n.ºs 5 e 6 do artigo 8.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 relativa à numeração das páginas da sua proposta. Contudo, a consequência dessa inobservância não é, no caso, aquela que a Administração extraiu.
Na verdade, encontra-se há muito consolidada na jurisprudência e na mais representativa doutrina administrativista a chamada «teoria da degradação das formalidades essenciais» segundo a qual, apesar da preterição de uma formalidade imposta por lei, o efeito invalidante não se produz quando se tenham obtido os efeitos que a lei pretendeu acautelar com a imposição da dita formalidade (por todos, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/PEDRO COSTA GONÇALVES/J. PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo, Comentado, 2.ª edição, Coimbra, 1998, p. 658, segundo os quais a dita teoria corresponderia mesmo a um princípio geral de direito).
Tal «teoria da degradação das formalidades essenciais» não tem apenas por objecto decisões administrativas, mas abrange, igualmente, os próprios actos dos particulares, em especial quando estejam causa procedimentos de natureza concursal ou concorrencial (neste sentido, RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Os Princípios Gerais da Contratação Pública, in Estudos de Contratação Pública – I, Coimbra, 2008, p. 110 e também em MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO RESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e Outro Procedimentos de Contratação Pública, Coimbra, 2016, p. 247 e PEDRO COSTA GONÇALVES, Direito dos Contratos Públicos, Volume I, 2.ª edição, Coimbra, 2018, p. 778). Na verdade, se a preterição de uma formalidade pelo concorrente na sua proposta acaba por se repercutir na actividade da entidade adjudicante que a sanciona ou não, deve admitir-se a mobilização daquela teoria quando em causa esteja a apreciação das próprias propostas (assim, LUÍS VERDE DE SOUSA, Algumas Considerações sobre o Novo Regime de Suprimento de Irregularidades das Propostas, in Comentários à Revisão do Código dos Contratos Públicos, 2.ª edição, Lisboa, 2018, pp. 841-842).
Assim, a esta luz, deve entender-se que as formalidades impostas aos concorrentes, salvo indicação da lei em contrário, serão essenciais, pelo que, a sua inobservância, implicará a exclusão da proposta. Todavia, assim não será se o objectivo ou interesse específico subjacente à norma legal ou regulamentar que impõe a finalidade subjacente à imposição da formalidade tenha sido alcançada por outra via, uma vez que, nesse caso, a aquela se degradará em não essencial e a consequência será, portanto, o aproveitamento da proposta e a sua não exclusão (cfr. na jurisprudência portuguesa, o ac. do STA de 1.10.2015, proc. n.º 0856/15, e ac. do STA de 12.05.2016, proc. n.º 0236/16 disponíveis para consulta online, e na doutrina, BERNARDO DINIZ DE AYALA, A distinção entre formalidades essenciais e não essenciais no quadro da contratação administrativa, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 56, Março/Abril 2006, p. 30, LUÍS VERDE DE SOUSA, Algumas…, p. 842 e MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO RESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos…, p. 247).
Com uma restrição importante, em todo o caso, e que é esta: a aplicação da «teoria da degradação das formalidades essenciais» para efeitos de salvar uma proposta irregular ou de evitar o efeito excludente dessa irregularidade, legalmente determinado, deve ser encarado como uma situação de excepção, que só deve operar quando ocorra uma ofensa evidente e manifesta aos princípios gerais da actividade administrativa, nomeadamente, ao princípio da proibição do excesso, e que, por outro lado, não represente sacrifício dos princípios fundamentais dos procedimentos concorrenciais, como sejam os princípios da igualdade e da concorrência, da transparência, da imparcialidade, da publicidade, da estabilidade, da intangibilidade das propostas, da segurança jurídica e da confiança (neste mesmo sentido, na jurisprudência portuguesa, cfr. ac. da 1.ª secção do Tribunal de Contas de 25.01.2022, processo n.º 1446/2021. Sublinhe-se que esta decisão se refere, de modo expresso, à possibilidade de operar a «teoria da degradação das formalidades essenciais» em relação, por exemplo, à preterição de formalidades exigidas por lei e legalmente sancionadas com a exclusão da proposta).
(iii.3)
Revertendo ao caso.
Como dissemos, a Recorrente contenciosa preteriu as formalidades exigidas pelo Programa do Concurso e pelos nºs 5 e 6 do artigo 8.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023, na medida em que não numerou as páginas da sua proposta. Essa formalidade é uma formalidade essencial, porquanto a sua inobservância implica a exclusão da proposta tal como resulta das antes mencionadas normas da alínea 2) do n.º 3 do artigo 12.º e da alínea 3) do n.º 3 do artigo 13.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023. O ponto reside em saber se, na situação em apreço, a dita formalidade se degradou em não essencial (com efeito a questão da degradação da formalidade em não essencial supõe a prévia afirmação da sua essencialidade: assim, PEDRO COSTA GONÇALVES, Direito…, p. 778). Cremos que sim.
Com efeito, a finalidade subjacente à imposição da finalidade é dupla. Por um lado, evitar que se subtraiam ou acrescentem páginas à proposta (é a finalidade assegurada com a menção, na primeira página, do número total de páginas do documento) e, por outro lado, assegurar a ordem das páginas, ou seja, que à pagina 1 se segue a página 2 e que a esta se segue a página 3 e assim sucessivamente (é a finalidade assegurada com a numeração das páginas do documento).
Ora, como resulta da primeira parte da própria decisão da comissão de abertura de propostas relativa à reclamação apresentada pelo concorrente n.º 10, é manifesto que aquelas finalidades estão plenamente asseguradas por outra via, uma vez que, como ali se disse, a proposta da Recorrente contenciosa estava compilada de uma forma que impedia a separação ou acréscimo de folhas. Assim, tendo a Administração concluído que a forma de compilação dos documentos assegurava, por um lado, que à proposta não eram subtraídas nem adicionadas páginas e, por outro lado e pela mesma razão, que a ordem numérica das páginas também se mostrava garantida, tinha também de concluir que a finalidade da imposição das formalidades legais previstas nos n.ºs 5 e 6 do artigo 8.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 estavam plenamente asseguradas e, como tal, por apelo à «teoria da degradação das formalidades essenciais» devia ter concluído no sentido de que as formalidades em causa se haviam degradado em não essenciais.
Salvo o devido respeito, só por homenagem a um formalismo destituído de qualquer sentido útil que não a sua própria afirmação, mas em manifesta contravenção ao princípio da proibição do excesso e em claro prejuízo da maximização da concorrência, tal como muito bem foi assinalado na douta decisão recorrida, se poderia justificar a exclusão da proposta da Recorrente contenciosa.
Deste modo, concluindo-se, com toda a segurança, pela degradação das formalidades impostas pelos nºs 5 e 6 do artigo 8.º do Regulamento Administrativo n.º 34/2023 em não essenciais, estava a Administração impedida de revogar a sua decisão de admissão da proposta da Recorrente contenciosa, porquanto aquela degradação implica, justamente, que não opere o efeito excludente da proposta resultante da preterição das formalidades e impõe, ao invés, o aproveitamento da proposta afectada pela irregularidade.
Deste modo e com esta fundamentação, materialmente muito próxima da que foi adoptada na douta sentença recorrida, embora não totalmente coincidente com ela, somos a concluir que, em nosso modesto entender, não ocorre o erro de julgamento que àquela sentença foi imputado pelo Recorrente.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, mantendo-se a anulação do acto administrativo recorrido.
É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público.».
Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual integralmente aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta entendemos que o acto impugnado enferma do vício de lei por errada interpretação das normas regulamentares dos artº 8º nº 5 e 6 e 12º nº 3 alínea 2) e 13º nº 3, alínea 3) do Regulamento Administrativo nº 34/2023, sendo de manter a anulação do acto administrativo recorrido, negando-se provimento ao recurso contencioso.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
III) DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância em negar provimento ao recurso.
Sem custas por delas estar isenta a Recorrente.
Registe e Notifique.
RAEM, 28 de Maio de 2025
Rui Pereira Ribeiro (Relator)
Seng Ioi Man (Primeiro Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong (Segundo Juiz-Adjunto)
Mai Man Ieng (Procurador Adjunto do Ministério Público)
812/2024 ADM 41