Processo nº 756/2024
(Autos de Revisão e Confirmação de Decisões)
Data do Acórdão: 05 de Junho de 2025
ASSUNTO:
- Revisão de sentença estrangeira
- Dívida
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 756/2024
(Autos de Revisão e Confirmação de Decisões)
Data: 05 de Junho de 2025
Requerente: A
Requerida: B Limitada
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar a presente acção para Revisão e Confirmação de Decisão Proferida por Tribunal Exterior de Macau, contra
B Limitada, também com os demais sinais dos autos.
Citada a Requerida para querendo contestar, veio esta fazê-lo alegando que na certidão da decisão a rever junta aos autos não foi aposta a Apostilha da Haia, da falta de inteligibilidade da decisão a rever, da violação do princípio do contraditório, da decisão violar a ordem pública de Macau, bem como, de que sendo a Requerida uma sociedade constituída ao abrigo da Lei de Macau e aqui com a sua sede, se a acção tivesse sido decidida de acordo com a legislação de Macau o resultado seria mais favorável à Requerida.
Concluindo pede que se negue a confirmação da decisão a rever.
A Requerente respondeu concluindo pela improcedência dos argumentos invocados pela Requerida.
Pelo Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer com o seguinte teor:
«1.
A, sociedade comercial melhor identificada nos autos (doravante, Requerente) veio pedir a revisão e confirmação da decisão proferida no «Circuit Court of the 17th Judicial Circuit in a for Broward County», no Estado da Florida, nos Estados Unidos da América, que condenou B Limited, sociedade comercial melhor identificada nos autos, no pagamento da quantia de 6,944,217.36 dólares americanos acrescida de juros.
A Requerida apresentou contestação.
2.
Na sua douta contestação, o defensor da Requerida levantou as seguintes questões que, a seu ver, constituem obstáculo à confirmação da decisão revidenda.
⁃ Da falta de autenticidade e inteligibilidade da decisão a rever;
⁃ Violação do contraditório;
⁃ Incompatibilidade da decisão com a ordem Pública;
⁃ Verificação do fundamento de oposição previsto no n.º 2 do artigo 1202.º do CPC.
A nosso modesto ver nenhum destes fundamentos procede. Muito sinteticamente, pelo seguinte.
(i)
O exame visual da certidão da sentença a rever não deixa permite, razoavelmente, suscitar quaisquer dúvidas fundadas em relação à sua autenticidade, pelo que a falta de apostilha invocada pela Requerida se torna, estamos em crer, irrelevante.
Além disso, também nos parece evidente que a decisão é inteligível, porquanto o seu conteúdo se mostra facilmente apreensível pelo Tribunal de Segunda Instância e isso basta para assegurar a verificação do requisito em causa. As incongruências em matéria de datas apontadas pela Requerida, podendo resultar de mero lapso de escrita, não relevam, em todo o caso, quanto à apreciação da inteligibilidade da decisão.
(ii)
A decisão revidenda foi, importa sublinhar, proferida no âmbito de um processo instaurado pela requerida e, portanto, na sequência de um pedido reconvencional (counterclaim) apresentado pela Requerente. Significa isto, portanto, que, tanto uma como outra intervieram no dito processo, aí se fizeram representar por advogados, e aí puderam, pois, fazer uso de todas as faculdades processuais normalmente associadas ao exercício do contraditório, tal como, de resto, a própria Requerente não deixou de reconhecer, ao menos no que tange às alegações que efectuou no processo. Como tal, e com todo o respeito, cremos ser manifestamente infundada a alegação feita pela Requerida no sentido de ter ocorrido violação do princípio do contraditório no processo no qual foi proferida a decisão agora sujeita a revisão e confirmação.
(iii)
Segundo pensamos, e salvo o devido respeito pelo entendimento da Requerida, o resultado do reconhecimento e confirmação da decisão revidenda não é incompatível com a ordem pública da RAEM.
Quando se trata de obstaculizar à revisão e confirmação de decisão proferida por tribunal do exterior de Macau, o que está em causa é a chamada exceção de ordem pública internacional ou reserva da ordem pública, a qual visa evitar, em cada caso, os resultados chocantes que poderiam advir da aplicação de lei de uma jurisdição exterior à RAEM, em função das valorações económicas, sociais e políticas aqui prevalecentes e das quais a Região não pode prescindir.
Ora, a excepção de ordem pública internacional ou reserva da ordem pública só tem cabimento quando da aplicação do direito de uma jurisdição do exterior da RAEM resulte contradição flagrante, grosseiro atropelo ou intolerável ofensa dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica do foro e, assim, a concepção de justiça de direito material tal como, no caso, a Região a entende.
No caso em apreço, somos modestamente a entender que a decisão revidenda, tendo em conta o respectivo objecto, não ofende, e muito menos de modo intolerável, a reserva de ordem pública internacional da Região definida nos termos que vimos, pois que não mexe com o núcleo axiológico e principiológico fundamental aqui prevalecente, do mesmo modo que, como parece evidente, a circunstância de a lex fori prever a intervenção de um júri no julgamento de causas cíveis de modo algum colide com esse mesmo núcleo.
(iv)
Finalmente, vem também impugnado o pedido de revisão e confirmação com fundamento no n.º 2 do artigo 1202.º do CPC, segundo qual, «se a decisão tiver sido proferida contra residente de Macau, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se tivesse sido aplicado o direito material de Macau, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos de Macau».
Todavia, também neste ponto nos parece que a impugnação doutamente deduzida pela Requerida é claudicante. Pelo seguinte.
Está em causa, no essencial, uma acção tendente à efectivação de responsabilidade contratual, ou, talvez mais precisamente, de responsabilidade emergente de comportamentos inseridos no âmbito de uma relação contratual.
Resulta do disposto no n.º 1 do artigo 40.º do Código Civil, que «as obrigações provenientes de negócio jurídico, assim como a própria substância dele, são reguladas pela lei que os respectivos sujeitos tiverem designado ou houverem tido em vista», devendo entender-se que a lei designada é a competente para regular a constituição, a execução, a modificação e a extinção das obrigações provenientes de negócio jurídico (veja-se, neste sentido, ANA TAVEIRA DA FONSECA, Comentário ao Código Civil, Parte geral, universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2014, p. 118).
No caso, o que se extrai do contrato (cláusula 13:5), quanto à lei aplicável, que a mesma é a do Estado da Flórida, ou, por opção da aqui Requerente, pelas leis de qualquer jurisdição na qual a mesma inicie qualquer acção relacionada com o contrato. Deste modo, tendo a acção sido instaurada nos tribunais da Florida, são as leis deste Estado as aplicáveis.
Assim, por força da designação feita pelas partes da lei aplicável ao litígio que entre as mesmas eclodiu, não se verifica um dos pressupostos de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 1202.º do CPC, concretamente o de que a questão devesse ser resolvida por aplicação do direito material de Macau, segundo as normas de conflitos aqui vigentes.
(v)
Quanto aos demais requisitos legais da confirmação da decisão, parece-nos que eles se mostram verificados.
A decisão provém de uma entidade cuja competência não foi provocada em fraude à lei e a matéria sobre que versa não é da competência exclusiva dos Tribunais da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) [alínea c) do artigo 1200.º e artigo 20.º do CPC].
Não foi alegado nem há notícia de que a apreciação da questão que constitui objecto da decisão revidenda tenha sido submetida a qualquer tribunal de Macau e por isso não pode ser invocada a excepção da litispendência ou do caso julgado [alínea d) do artigo 1200.º do CPC].
(iii.)
Pelo exposto, o Ministério Público nada tem a opor à requerida revisão e confirmação.».
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
1. Pelo Circuit Court of the 17th Judicial Circuit in and for Broward County, Florida foi proferida decisão nos termos do CACE17003780 com o seguinte teor:
«IN THE CIRCUIT COURT OF THE 17TH JUDICIAL CIRCUIT IN AND FOR BROWARD COUNTY, FLORIDA
PROCESSO N.º CACE17003780 DIVISÃO: 09 JUIZ: Levenson, Jeffrey R. (09)
B Limited
Autor(es) / Peticionário(s)
Contra
A, et al
Réu(s) / Respondente(s)
——————————— /
SENTENÇA FINAL
Este assunto foi apresentado ao Tribunal para julgamento por júri em 5 de Dezembro de 2023. De acordo com o veredicto do Júri proferido em 12 de Dezembro de 2023, é
DECIDIDO e ADJUDICADO o seguinte:
1. A sentença final é proferida a favor da Autora, B Limited, Macau (“B”) e contra a Ré, A (“A”) no Pedido I (Violação do Contrato) e Pedido II (Conta Declarada (Account Stated)) da petição da B.
2. A sentença final é proferida a favor da A e contra a B no Pedido III (Quantum Meruit) da petição da B.
3. A sentença final é proferida a favor da A e contra a B no Pedido I (Violação do Contrato), no Pedido II (Violação do Pacto Implícito de Boa Fé e Negociação Leal), no Pedido III (Fraude) e no Pedido V (Lei da Florida sobre práticas comerciais enganosas e desleais (“FDUTPA”)) da segunda reconvenção alterada da A.
4. A sentença final é proferida a favor da B e contra a A no Pedido IV (Conspiração Civil) da segunda reconvenção alterada da A.
5. A B tem direito a $63.043,75 da A, o que inclui o montante principal atribuído pelo júri de $43.741,73 e juros pré-julgamento de $19.302,02. A A tem direito a $7.007.261,11 da B, o que inclui o montante principal atribuído pelo júri de $4.903.412,90 e juros pré-julgamento de $2.103.848,21. O montante a favor da B deve ser compensado com o montante a favor da A.
6. Por conseguinte, é proferida uma sentença final líquida a favor da A e contra a B no montante de $6.944.217,36. Este montante deverá vencer juros à taxa legal aplicável estabelecida na secção 55.03, Florida Statutes, para a qual é emitida na execução. A taxa de juro pós-julgamento será ajustada anualmente a 1 de Janeiro de cada ano sucessivo, de acordo com a taxa de juro em vigor nessa data, conforme estabelecido pelo Chief Financial Offier, até que o julgamento seja pago.
7. O endereço atual da B é Bloco XX, XX.º andar, Edifício XX, XX Avenida da XX, Macau. O endereço atual da A é XX SW XXnd street, XX, Fl 3XXX2.
8. A B deve preencher sob juramento o Fla. R. Civ. P. Form 1.977 (Ficha de Informação) anexado à cópia oficial da decisão final, incluindo todos os anexos necessários, e notificá-lo ao advogado do credor da decisão final, C, em XX XX, Suite 1XX3, Miami, FL 3XXX6, XX@XX.com, o mais tardar 45 dias após a data da presente decisão final, a menos que a decisão seja satisfeita ou que a descoberta pós-julgamento seja suspensa.
9. O Tribunal reserva-se a competência para determinar o direito e o montante de honorários razoáveis dos advogados e das custas judiciais; emitir outras ordens que sejam apropriadas para obrigar a B a completar e a notificar o advogado da A de todas as descobertas pós-julgamento (incluindo o preenchimento do Formulário 1.977 e a submissão de todos os anexos necessários) e a submeter-se a depoimentos em auxílio è execução; e emitir quaisquer outras ordens ou ordens adicionais que possam ser necessárias ou apropriadas.
FEITO E ORDENADO nas Câmaras do Broward County, Florida, em 19 de Julho de 2023.
[assinatura ilegível]
CACE7003780 07-19-2023 3:57 PM
Exmo. Jeffrey Levenson
JUIZ DO CIRCUIT COURT
Assinado electronicamente por Jeffrey Levenson
Cópias fornecidas a:
C IV, E-mail: XX@XX.com
D, E-mail : XX@XX.com
D, E-mail : XX@XX.com
E, E-mail : XX@XX.com
E, E-mail : XX@XX.com
F, E-mail : XX@XX.com
G, E-mail : XX@XX.com
H, E-mail : XX@XX.com
H, E-mail : XX@XX.com
I, E-mail : XX@XX.com
I, E-mail : XX@XX.com
J, E-mail : XX@XX.com
J, E-mail : XX@XX.com
K IV, E-mail : XX@XX.com
K IV, E-mail : XX@XX.com»
b) Do Direito
De acordo com o disposto no nº 1 do artº 1199º do CPC «Salvo disposição em contrário de convenção internacional aplicável em Macau, de acordo no domínio da cooperação judiciária ou de lei especial, as decisões sobre direitos privados, proferidas por tribunais ou árbitros do exterior de Macau, só têm aqui eficácia depois de estarem revistas e confirmadas.».
Como é sabido nos processos de revisão e confirmação de decisões proferidas no exterior de Macau o Tribunal não conhece do fundo ou mérito da causa limitando-se a apreciar se a decisão objecto dos autos satisfaz os requisitos de forma e condições de regularidade para que possa ser confirmada.
Esses requisitos são os que vêm elencados no artº 1200º do CPC, a saber:
«1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.».
Vejamos então.
Na sua contestação vem a Requerida invocar a falta de autenticidade da decisão a rever por nela não ter sido aposta a Apostilha da Haia.
Notificada a ora Requerida nos termos do despacho de fls. 988 a 9891 para esclarecer se:
- Invoca a falsidade do documento junto aos autos como tendo sido a decisão proferida na reconhecida acção judicial,
Ou
- Apenas invoca a falta de aposição de apostilha no documento junto aos autos como sendo certidão dessa mesma decisão?
Em resposta àquele despacho a fls. 993 veio a Requerida informar que apenas invoca a falta de apostilha no documento junto aos autos como sendo a certidão da decisão a rever.
Na sua contestação vem a Requerida confessar serem verdadeiros os factos 1º, 2º, 3º e 5º da p.i. de onde resulta a identidade e personalidade jurídica enquanto sociedades comerciais da Requerente e Requerida (artº 1º e 2º), o acordo entre ambas celebrado (artº 3º) e o ter sido instaurada acção pela agora Requerida contra a Requerente onde esta terá deduzido Recovenção.
Quanto ao artº 4º alega de forma vaga e imprecisa que “o mesmo não se encontra inteiramente correcto e nessa medida vai impugnado”.
Nada mais concretizando nos artigos 7º a 15º da p.i. vem a Requerida e que foi Autora na acção cuja invocada decisão aqui se pede a revisão, invocar a falta da Apostilha nos termos da Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961 Relativa à Supressão da Exigência de Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros.
Respondendo vem a Requerida alegar que a aposição da Apostilha não é essencial e que não se invoca a falsidade do documento cuja autenticidade é aliás conhecida pela Requerida, convocando em sua defesa Jurisprudência Comparada Portuguesa entre eles o Acórdão proferido em 19.10.2022 pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães no processo que ali correu termos sob o nº 170/22.7YRGMR disponível em www-dgsi.pt, do qual consta o seguinte:
«Questão prévia – Apostilha
A cópia (fotocópia) do acto – sentença estrangeira – cuja revisão vem pedida não tem Apostilha. Tal como a não tem a certidão que atesta o respectivo trânsito.
A conformidade ou exactidão da referida cópia (reprodução mecânica) com o original por ninguém foi posta em causa nos autos (impugnada) – artº 444º, nº 1, CPC.
Por isso, ela faz prova plena do documento que incorpora a sentença original que representa – artº 368º, do CC.
As partes concordam que a sentença documentada é autêntica.
Apenas o Ministério Público notou a falta de Apostilha, pediu o suprimento de tal deficiência, fundamentando-o na alegação de que podem suscitar-se dúvida sobre a autenticidade.
Ao que os requerentes objectaram que ela não é necessária.
Ora, sobre a questão já nos pronunciámos em recente despacho de 02-10-2022, proferido em idêntico processo em que também ela se suscitou – o nº 125/22.1YRGMR.
Em processo semelhante deste Tribunal e Secção nº 13/21.YRGMR –, sobre a mesma questão e em idêntico sentido também já se pronunciou, em Decisão Sumária de 05-07-2022, a Exmª Desembargadora Alexandra Lopes.
Vamos, por isso, uma vez que razões para qualquer alteração do entendimento assumido não foram opostas nem as vislumbramos, seguir, e reproduzir mesmo, adaptando, o que explanámos no aludido processo 125/22.1YRGMR, mas que para aqui é transponível.
Assim: Na alínea a), do artº 980º, do CPC, consta como um dos requisitos necessários para que a sentença estrangeira a rever seja confirmada: “Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão”.
Se as houver, se forem suscitadas e elas não forem removidas é, pois, apodítico concluir que a sentença não poderá ser confirmada.
Como se viu, só o Ministério Público e apenas por não constar a Apostilha, aventou a possibilidade de se suscitarem dúvidas, sem a menor sustentação fáctica ou invocação de qualquer argumento sequer, sobre a autenticidade do documento.
Ao Tribunal competindo verificar, oficiosamente, se concorre essa condição (e as demais) – o que significa dever examinar o documento, certificar-se e assegurar desse modo que, quanto à sua autenticidade, não há motivos para duvidar –, também nenhum este encontrou, nem encontra, nem lhe vem apontado, sendo que a falta de Apostilha não tem como consequência gerar tal efeito, nem uma afirmação vaga ou teórica da possibilidade de alguma dúvida surgir releva para tal.
O artº 983º, nº 1, em sintonia com o sistema de delibação (revisão formal) vigente entre nós limita as possibilidades de impugnação do pedido a certos e determinados fundamentos – “só pode ser impugnado…” – e, entre eles, o da falta do requisito da alínea a), do artº 980º.
Só que este é, como se viu: que “não haja dúvidas sobre a autenticidade…”.
O artº 982º, nº 1, reserva ao Relator a realização das diligências que “tenha por indispensáveis”, não lhe impõe a efectivação das que, se considerar não o serem, lhe sejam requeridas pelas partes.
Faltará, pois, o requisito referido se tais dúvidas emergirem do documento.
Verificar-se-á o mesmo se, ao invés, nenhuma for suscitada dispositivamente, nem verificada oficiosamente.
A condição legalmente exigida apresenta-se na negativa – “Que não haja dúvidas sobre a autenticidade…”. Se nenhuma for suscitada pelas partes, pelo Ministério Público, nem sobressair do documento por ocasião do exame oficioso do mesmo, há-de positivamente presumir-se intocada, logo assente, aquela autenticidade e, assim, verificado o requisito, considerando-se, assim, que inexistem, nesta hipótese, quaisquer dúvidas e que a autenticidade está verificada.
O documento de que conste a sentença, ou melhor, que a comprove, refere-se, como é evidente, a um documento originalmente estrangeiro e a sua autenticidade afere-se segunda a respectiva lei.
Havendo dúvidas sobre a autenticidade, o tribunal, nos termos do artº 370º, do CC: i) pode ouvir a autoridade ou oficial público a quem o documento é atribuído com vista a esclarecê-las e removê-las; ii) pode excluir oficiosamente a presunção de autenticidade quando seja manifesta pelos sinais exteriores do documento a sua falta; iii) julgá-la ilidida mediante prova (e pressuposta alegação) em contrário.
Efectivamente, tal norma dispõe:
“1. Presume-se que o documento provém da autoridade ou oficial público a quem é atribuído, quando estiver subscrito pelo autor com assinatura reconhecida por notário ou com o selo do respectivo serviço.
2. A presunção de autenticidade pode ser ilidida mediante prova em contrário, e pode ser excluída oficiosamente pelo tribunal quando seja manifesta pelos sinais exteriores do documento a sua falta de autenticidade; em caso de dúvida, pode ser ouvida a autoridade ou oficial público a quem o documento é atribuído.”.
Entre nós, a autenticidade de um documento pressupõe, segundo o nº 2, do artº 363º, e o artº 369º, do nosso Código Civil (CC), que ele foi exarado com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência, em razão da matéria e do lugar, sem que estejam impedidas de o lavrar ou, dentro do círculo de actividades que lhes é atribuído, designadamente por notário ou outro oficial público provido de fé pública, considerando-se exarado por autoridade ou oficial público competente o documento lavrado por quem exerça publicamente as respectivas funções.
A força probatória plena dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade – artºs 371º e 372º-
Porém, conforme dispõe o artº 365º, sobre documentos passados em país estrangeiro:
“1. Os documentos autênticos ou particulares passados em país estrangeiro, na conformidade da respectiva lei, fazem prova como o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal.
2. Se o documento não estiver legalizado, nos termos da lei processual, e houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento, pode ser exigida a sua legalização.”
Note-se que relativamente à questão diversa das reproduções mecânicas (caso das cópias ou fotocópias), elas “fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão” – artº 368º.
Impugnação esta que deve ser feita de acordo com o artº 444º, do CPC.
Como, sobre a autenticidade de documentos passados em país estrangeiro, comentavam P. Lima e A. Varela acerca daquele artº 365º:
“A obrigatoriedade da legalização dos documentos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, foi, em princípio, abolida. Os tribunais, como quaisquer repartições públicas, devem, pois, atribuir a esses documentos todo o seu valor probatório, independentemente da legalização. Esta, porém, pode tornar-se obrigatória, se vierem a suscitar-se dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento”.
A respeito da legalização dos documentos passados em país estrangeiro a lei processual estabelece, no artº 440º, nº 1, do actual CPC (correspondente ao 540º, do velho), que:
“Sem prejuízo do que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os documentos autênticos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, consideram-se legalizados desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respetivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respetivo.”.
A esta luz, considera-se, pois, legalizado, “nos termos da lei processual” e para o efeito de fazer a prova adequada (plena, no caso), como decorre do artº 365º, CC, o documento “desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respectivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respetivo” – artº 440º, nº 1.
Assim se considerará nessa condição ou pressuposto, mas sem prejuízo do que estiver “estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais” – nº 2, do mesmo artigo.
Não se questionando que a sentença estrangeira objecto do presente pedido de revisão constitui, prima facie, à luz da lei helvética, um documento autêntico, tal como, aliás, o é à luz da lei nacional, nem que, portanto, ele foi emitido em conformidade com as normas legais daquele país – ou seja, por um tribunal, no exercício da sua função e de acordo com as suas competências, com observância dos requisitos formais –, é certo que, para ele estar abrangido pela presunção de autenticidade e não ser necessária a demonstração desta – isto é, de estarem reunidos aqueles ditos pressupostos – e, consequentemente, para ele se revestir de eficácia probatória plena do juízo de facto e de direito e decisão nele contidos e, ainda, para poder produzi-la no processo civil português como se tivesse esta origem, maxime no que tem por objecto a revisão e reconhecimento da sentença nele contida, há-de a assinatura do respectivo juiz estar reconhecida pelo selo do respectivo serviço.
É o que resulta da conjugação das citadas normas.
Mas quando é que, não obstante, pode ser exigida a sua legalização?
O nº 2, do artº 365º, CC, responde: caso não esteja legalizado, se houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento.
Sublinhe-se que a legalização, nos termos da lei processual portuguesa, do documento autêntico passado em país estrangeiro assegura a presunção da sua autenticidade. Mas note-se também que a legalização, mesmo que regular, não impede a possibilidade de a autenticidade ser ilidida ou até oficiosamente excluída, como já se viu, à luz do nº 2, do artº 370º, CC.
Portanto, a legalização não é, à partida, necessária. Muito menos obrigatória. Pode ser usada à cautela. Pode ser exigida, se se perfilarem as referidas dúvidas. Tem a vantagem de assegurar a presunção.
Esta, contudo, pode sempre ser ilidida ou excluída.
Assim, se a parte espontaneamente tencionar juntar a legalização ou se o tribunal, por fundamentadamente ter dúvidas sobre a autenticidade, a exigir, é que se coloca o problema de como fazê-la ou obtê-la de modo a que o documento possa considerar-se legalizado.
É disso que trata e é aí que deve convocar-se o citado artº 440º, do CPC.
Chegámos, pois, ao âmago do nosso problema.
O artº 540º, do velho CPC, estabelecia que, para o efeito de se poderem considerar legalizados os documentos autênticos estrangeiros, requeria-se o reconhecimento da assinatura do funcionário público estrangeiro autor do acto por agente diplomático ou consular português no Estado respectivo (cuja assinatura também teria de ter o selo branco consular).
O artº 440º, do novo CPC, acolhendo a mesma previsão normativa, cuidou ainda de ressalvar expressamente o estabelecido nos regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais – como nem seria até necessário face ao disposto no artº 8º, da Constituição da República.
Assim, os documentos estrangeiros serão considerados também legalizados nas condições previstas no direito internacional vinculante do Estado Português.
É aí que deve convocar-se a Convenção de Haia, de 05-10-1961, que foi entre nós aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei nº 48 450, publicado no DR nº 148, de 24-06-1968.
Portugal e a Suíça estão ambos vinculados à mesma, é certo.
Tal instrumento, como resulta do seu título – Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros – e se proclama no seu Preâmbulo, visou exactamente suprimir a exigência de legalização diplomática ou consular entre nós prevista no artº 540º (actual 440º) CPC – exigência cabível nas condições já referidas (artº 365º, nº 2, CC).
Ele aplica-se aos actos públicos lavrados no território de um dos Estados contratantes que devam ser apresentados no território de outro deles – artº 1º.
Aí se define o que são, para tal efeito, actos públicos, nenhuma dúvida existindo de que, na sua definição, se enquadra a sentença judicial enquanto acto jurisdicional provindo de órgão da justiça pública, assim como não a havendo também de que não deixa de ser acto público (mas administrativo) aquele em que um funcionário desse órgão (caso do Escrivão do Tribunal) certifica a conformidade de uma cópia (ou fotocópia) daquele com o original respectivo e o trânsito em julgado.
Abra-se aqui um parêntesis para deixar claro que tudo aquilo que se refere à autenticidade do próprio acto estrangeiro e sua legalização compreende a autenticidade e a legalização do acto de reconhecimento ou certificação, sendo certo que, por isso mesmo, as Conclusões e Recomendações (nº 11, de 2003) emanadas da Comissão Especial sobre a aplicação prática da Convenção de Haia, designadamente no que concerne à Apostilha, foram no sentido de que as cópias de documentos também serão de considerar como actos susceptíveis de ser abrangidos pela supressão de legalização diplomática ou consular e de esta poder ser substituída pela Apostilha.
Ora, o que a Convenção dispôs foi, não que a legalização diplomática ou consular dos actos passava a ser substituída pela Apostilha e esta como obrigatória, mas antes que tal legalização passava, por regra, a ser dispensada.
Nesse sentido, o artº 2º, refere que “Cada um dos Estados contratantes dispensará a legalização dos actos aos quais se aplica a presente Convenção e que devam produzir os seus efeitos no seu território. A legalização, no sentido da presente Convenção, apenas abrange a formalidade pela qual os agentes diplomáticos ou consulares do país sobre cujo território o acto deve produzir os seus efeitos reconhecem a assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto.”.
Dispensará a legalização … – bem entendido –, quando ela for pretendida ou exigível. Fora isso, não sendo obrigatória, não faria sentido tratar-se de prescindir dela e dispor sobre isso.
Quando muito, ou seja, nas situações em que a legalização diplomática ou consular se tornar necessária, então é que poderá, para a alcançar e como sucedânea daquela, ser exigida, como única formalidade, a Apostilha (e nem sequer esta se os costumes vigentes no Estado onde se celebrou o acto ou um acordo entre dois ou mais Estados contratantes a afastarem, simplificarem ou dispensarem).
Veja-se o artº 3º:
“A única formalidade que pode ser exigida para atestar a veracidade da assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto consiste na aposição da apostila definida no Artigo 4.º, passada pela autoridade competente do Estado donde o documento é originário.
Todavia, a formalidade mencionada na alínea precedente não pode ser exigida se as leis, os regulamentos, os costumes que vigorem no Estado onde se celebrou o acto, ou um acordo entre dois ou mais Estados contratantes afastem, simplifiquem ou dispensem o acto da legalização.”.
Suprimiu-se, portanto, deliberadamente, a legalização diplomática ou consular mas previu-se ao mesmo tempo, como ressalva abrangente das situações em que a autenticidade do documento ou do seu reconhecimento (da assinatura do seu autor, respectiva qualidade, autenticidade do selo ou carimbo) suscitem dúvidas, que, então, poderá ser exigida a Apostilha.
Mas só nessas.
Não existe, pois, uma obrigatoriedade de, à partida, quem pretende usar documento estrangeiro, o dotar e se munir da Apostilha.
A sua exigência e necessidade só surgirão exactamente nas mesmas condições e circunstâncias em que, já antes, surgia a da legalização diplomática ou consular, todavia suprimida pela Convenção – ou seja, se houver fundadas dúvidas acerca da autenticidade do documento.
A obrigatoriedade, insista-se, fora, em princípio, abolida e, como diziam P. Lima e A. Varela, ela só ressurgirá se se suscitarem tais dúvidas sobre a autenticidade do acto ou a autenticidade do reconhecimento.
Então é que poderá ser exigida a Apostilha.
Não as havendo, o documento é autêntico, nos termos do artº 363º, nº 2, e por força do artº 365º, nº 1, CC.
A Apostilha, conforme prevê artº 5º da Convenção, enquanto única formalidade susceptível de ser exigida, “atestará a veracidade da assinatura, a qualidade em que agiu o signatário do acto e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto” – os requisitos da autenticidade do documento.
Mostrando-se estes evidentes, e parafraseando o Acórdão da Relação de Lisboa de 01-02-2011, “Perante o que se expôs, não há dúvidas sobre a autenticidade do documento onde consta a sentença a rever e por isso, não se mostra necessário que se proceda à sua legalização nos termos da lei processual através do reconhecimento da assinatura do funcionário do referido Tribunal Superior estrangeiro que emitiu a certidão ou através da apostilha prevista na Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961.”
A tal entendimento se aderiu no Acórdão do STJ, de 12-07-2011, que corroborou e confirmou aquele, e no da Relação de Lisboa, de 12-05-2020, já atrás citado.
Segue-o a escassa Doutrina que conseguimos localizar sobre o assunto.
Embora, que saibamos, a Jurisprudência divirja.
Em suma, julgamos nós: Só suscitando-se fundadas dúvidas sobre a autenticidade da sentença a rever ou da autenticidade do seu reconhecimento ou certificação, será exigível a legalização por meio de Apostilha. Nenhuma se suscitando (nem se impugnando a exactidão das reproduções mecânicas dos actos), nada mais é necessário.
Ora, no caso aqui em apreço, nenhuma razão para duvidar se detecta e nenhuma vem apontada, acrescendo-lhe até a especial mas sempre relevante circunstância de ser consensual a posição de ambos os directos interessados requerentes quanto à autentidade da sentença cujo revisão pedem por acordo, bem como quanto à genuinidade dos documentos juntos, não objecto de qualquer impugnação.
Não é necessária, por tudo isso, a Apostilha. Não se trata de diligência indispensável. A sua exigência infundada não é legal e a sua junção redundaria em acto inútil, logo proibido, nos termos do artº 130º, do CPC.
Colidiria, aliás, com os objectivos subjacentes à lei adjectiva nos artºs 6º e 7º.
Igualmente aos visados pela Convenção de Haia.
Têm, pois, razão os requerentes.
Não a tem o Ministério Público – ressalvado o devido respeito pela sua ou por outra opinião diversa desta –, uma vez que a hipótese de dúvida aventada não se mostra justificada e, por isso, não há deficiência a suprir.
Daí que seja de indeferir o seu requerimento e de prosseguir, posto que nenhuma outra questão se coloca que obste ao conhecimento do mérito da causa.
Para o efeito, consideram-se plenamente provados os factos contidos no documento a rever e na certidão do trânsito em julgado adjunta – artº 371º, nº 1, CC.».
Tal como já se referia no anterior despacho, ninguém melhor do que as partes nestes autos, e que o foram também naqueles outros, sabem se ali foi proferida decisão e qual o teor da mesma, pelo que esclarecidos que não se invoca a falsidade da certidão junta aos autos, dúvidas não temos de ter sido proferida a decisão cuja revisão e confirmação se pede.
Com excepção do disposto no artº 440º do CPC Português que não tem respaldo na legislação de Macau, o mesmo não acontece com as demais normas invocadas na jurisprudência comparada citada, que correspondem aos artigos 369º nº 2, 371º nº 1 e 377º do C.Civ. de Macau.
Assim sendo, aderimos integralmente à Jurisprudência comparada citada supra, a qual se adequa perfeitamente à legislação de Macau.
Pelo que, não se suscitando dúvidas sobre a autenticidade da decisão a rever e confirmar, a aposição da Apostilha de Haia não é um requesito necessário para se concluir pela veracidade da Certidão junta aos autos de onde resulta que pelo Circuit Court of the 17th Judicial Circuit in and for Broward County, Florida foi proferida a sentença supra indicada, nada havendo que ponha em causa a autenticidade da mesma e o sentido da decisão, estando assim preenchido o pressuposto da al. a) do nº 1 do artº 1200º do CPC.
Da certidão igualmente não resulta expressamente que a certidão haja transitado em julgado ou seja definitiva, mas também o contrário não se evidencia, sendo certo que resulta que foi emitida a sentença sem nada se acrescentar que ponha em causa ser exequível e definitiva.
Sobre esta matéria é esclarecedora a Jurisprudência consagrada no Acórdão do TUI de 15.03.2006 proferido no processo que ali correu termos sob o nº 2/2006:
«(…)
Examinemos, agora, se os requisitos necessários para a revisão e confirmação de sentença do exterior, previstos nas alíneas b) e e) do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil – que a decisão a rever tenha transitado em julgado segundo a lei local em que foi proferida e que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local de origem – têm de ser provados pelo requerente ou, pelo contrário, se se devem presumir verificados, cabendo ao requerido a prova da sua não verificação.
Foi proposta no TSI uma acção com processo especial de confirmação e revisão de sentença do exterior, mais concretamente de uma sentença proferida por um tribunal da Região Administrativa Especial de Hong Kong que condenou o requerido B a pagar uma quantia em dinheiro e ainda outras prestações.
O requerido foi citado editalmente, por estar ausente em parte incerta e não contestou. Fê-lo o Ministério Público, em representação do ausente, suscitando a questão de a requerente não ter feito prova dos requisitos previstos nas alíneas b) e e) do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil – que a decisão a rever tenha transitado em julgado segundo a lei local em que foi proferida e que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local de origem.
Mas o TSI, por meio do 1.º Acórdão – seguindo, aliás, jurisprudência anterior uniforme na matéria – considerou que o tribunal de revisão só deve negar oficiosamente o exequatur quando o exame do processo ou o conhecimento derivado do exercício da função o convencer de que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil, pelo que não se verificando estes casos apontados, se presume que esses requisitos concorrem, estando, assim, o requerente dispensado de fazer a prova positiva e directa dos mesmos. E, ponderando a falta de demonstração concreta em sentido contrário pelo requerido, representado pelo Ministério Público, considerou preenchidos os dois requisitos que estavam em causa e procedeu à revisão e confirmação da sentença.
Deve acrescentar-se que esta também era a jurisprudência do Tribunal Superior de Justiça, expressa, por exemplo, no Acórdão de 25 de Fevereiro de 1998, no Processo n.º 786.
(…)
O nosso sistema é, em regra, de revisão meramente formal porque as condições da confirmação da sentença do exterior exigidas e enumeradas nas várias alíneas do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil - que no Código português corresponde ao art. 1096.º - “não respeitam senão à regularidade da decisão e do processo de que ela constitui o último termo”.
Já existe, no entanto, revisão de mérito, de aplicação do direito, numa situação específica: quando a decisão tiver sido proferida contra residente de Macau, este pode impugnar o pedido de reconhecimento de sentença do exterior com fundamento em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se tivesse sido aplicado o direito material de Macau, quando por este devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos de Macau (n.º 2 do art. 1202.º do Código de Processo Civil).
No caso dos autos estamos perante a revisão formal, visto que não foi deduzida impugnação pelo requerido com fundamento nesta última norma, que protege um interesse meramente disponível e renunciável.
(…)
Vejamos, então, o que dispõe o art. 1200.º do Código de Processo Civil:
(…)
Se fosse apenas este o preceito do Código de Processo Civil a ter em conta para resolver a questão em apreço, teria o recorrente, possivelmente, razão na sua tese, já que, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, a prova dos factos constitutivos do direito alegado cabe àquele que invocar o direito (art. 335.º, n.º 1 do Código Civil).
Mas há que considerar ainda outro preceito, do Código de Processo Civil, que já vem, aliás, do Código de 1939, e que é o art. 1204.º:
“Artigo 1204.º
(Actividade oficiosa do tribunal)
O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200.º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
O Código de 1961 continha um preceito semelhante a este (o art. 1101.º) e o mesmo acontecia no Código de 1939 (o art. 1105.º), com uma diferença respeitante à revisão de mérito, a que há pouco se fez referência, mas irrelevante na matéria que nos ocupa.
Pois bem, o art. 1200.º contem seis requisitos necessários para a confirmação da decisão proferida por tribunal do exterior. Mas o art. 1204.º faz uma nítida distinção entre os requisitos das alíneas a) e f) do n.º 1 do art. 1200.º (respectivamente, que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão e que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública) – impondo a sua verificação oficiosa pelo tribunal – e os restantes requisitos do art. 1200.º - entre os quais os dois que estão em causa, a propósito dos quais o tribunal só deve negar oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum desses requisitos.
Foi por causa desta distinção que a doutrina começou a defender que o requerente está dispensado da prova directa destes quatro requisitos, que se devem presumir verificados. Assim é que ALBERTO DOS REIS defendeu o seguinte na vigência do Código de 1939:
“Desde que o tribunal só deve negar oficiosamente a confirmação quando o exame do processo ou o conhecimento derivado do exercício da função o convencer de que falta algum dos requisitos exigidos nos n.ºs 2.º, 3.º, 4.º e 5.º do art. 1102.º, segue-se que, não se verificando os casos apontados, presume-se que esses requisitos concorrem; entendida assim a disposição, é claro que o requerente está dispensado de fazer a prova positiva e directa dos requisitos indicados”.
Também FERRER CORREIA, na vigência do Código de 1961, se pronunciou em idêntico sentido:
“36. 2.º - Trânsito em julgado. – O segundo requisito de confirmação é o que consta do art. 1096.º, al. b): “Para que a sentença seja confirmada é necessário que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida”.
Para que a sentença possa ser confirmada é necessário, portanto, que seja uma sentença definitiva, uma sentença da qual não caiba recurso ordinário, segundo a lei do tribunal de origem.
Mas será necessário que a parte interessada faça a prova do trânsito em julgado?
O tribunal só negará oficiosamente a confirmação se pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções apurar que falta o requisito da alínea b), ou seja, se apurar que a sentença ainda não transitou em julgado.
…
O simples facto de não constar do processo a prova de que a sentença transitou em julgado não é, pois, suficiente para o tribunal recusar a confirmação. Em tal hipótese, há-de o tribunal presumir que o trânsito em julgado ocorreu”.
O mesmo autor, nas recentes lições do ano 2000, mantém o mesmo entendimento:
“O simples facto de não constar do processo a prova do trânsito em julgado não constitui impedimento à confirmação; tal impedimento existirá, contudo, se o tribunal, por conhecimento derivado do exercício das suas funções, chegar à conclusão de que no caso vertente esse requisito falta. É esta a solução mais consentânea com o preceito do art. 1101.º”.
Também RODRIGUES BASTOS se pronuncia no mesmo sentido.
E da mesma opinião é a restante doutrina internacional privatista.
Assim, MARQUES DOS SANTOS abonando o entendimento de Alberto dos Reis e Ferrer Correia, já mencionados, escreve:
“Tal doutrina parece-nos ser aceitável, na medida em que se entenda que, só por si, a não existência, no processo, de prova de que a sentença estrangeira transitou em julgado não é bastante para ser recusada a confirmação, podendo, porém, esta vir a ser negada sem que a parte contrária tenha de provar que não houve trânsito em julgado, desde que o tribunal português de revisão, por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta o requisito da alínea b) do artigo 1096.º do Código”.
LUÍS DE LIMA PINHEIRO emitiu idêntica opinião.
Em contrário só se conhece a doutrina de MACHADO VILELA, expressa na vigência do Código de Processo Civil de 1876, para quem deve ser o requerente a provar todos os requisitos de confirmação de sentença estrangeira. Mas neste Código (arts. 1087.º a 1091.º) não havia preceito semelhante ao actual art. 1204.º, pelo que se aceita que, nesse caso, valessem as regras gerais do ónus da prova. Não é o caso do direito vigente, como já se disse.
Em conclusão, é de sufragar o entendimento tomado pelo Acórdão recorrido, na sequência da jurisprudência do Tribunal Superior de Justiça e abonado pela doutrina, de que se devem considerar verificados os requisitos das alíneas b) e e) do n.º 1 do art. 1200.º, na falta de prova em contrário, por parte do requerido, sem prejuízo de o tribunal dever negar a confirmação quando pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções apure que falta algum deles.
(…)».
Acompanhando-se a Jurisprudência do TUI consagrada no indicado Acórdão, não estando demonstrado a decisão não transitou em julgado, impõe-se concluir que se presume estar preenchido o requisito da alínea b) do nº 1 do artº 1200º do CPC.
Igualmente não resulta que a decisão a rever provenha de Tribunal cuja competência haja sido provocada em fraude à lei e não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau, estando, assim, preenchido o requisito da alínea c) do nº 1 do artº 1200º do CPC.
Não consta que a questão tenha sido submetida a qualquer tribunal de Macau, não havendo sinais de poder ser invocada a litispendência ou caso julgado, pelo que se tem por verificada a condição da alínea d) do nº 1 do artº 1200º do CPC.
Vem a Requerida invocar a violação do princípio do contraditório dada a fase do processo em que é apresentada a quantificação do pedido indemnizatório.
O momento no qual o pedido dever ser quantificado resulta das regras do processo na jurisdição onde a decisão a rever foi proferida.
A sentença a rever foi proferida, repete-se, em acção instaurada pela agora Requerida contra a Requerente tendo ficado vencida em sede de Reconvenção.
A apresentação do valor do pedido deduzido pela Ré Recovinte segundo se alega foi feita em sede de alegações onde a agora Requerida enquanto Autora e como Reconvinda também participou e teve oportunidade de apresentar alegações, sendo certo que as regras processuais já estavam definidas quando decidiu ali instaurar acção, pelo que, o facto do momento da quantificação ser nas alegações finais dali não resulta qualquer violação do princípio do contraditório, estando assim verificado o requesito da alínea e) do nº 1 do artº 1200 do CPC.
Mais invoca a Requerida que a decisão a rever conduz a um resultado incompatível com a ordem pública por ter sido proferida por um Juri.
A constituição dos Tribunais por Juízes ou Juri tem a ver com o sistema jurídico em que aquele se insere, não resultando a violação de qualquer princípio jurídico o facto de a lei do foro local prever a intervenção de júri na formação da decisão.
Pelo que, também pelas Doutas razões constantes do Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público entendemos que não procede o invocado argumento, tendo-se, também, por verificada a condição da alínea f) do nº 1 do artº 1200º do CPC.
Por fim invoca a Requerida que segundo as normas de conflito a decisão havia de ter sido decidida de acordo com o direito material de Macau o que conduziria a um resultado que lhe era mais favorável.
Relativamente a esta matéria, nada mais se impõe acrescentar ao que já consta do Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público, a cujos fundamentos - já reproduzidos supra – aderimos, nada mais havendo a acrescentar.
Pelo que, não ocorre a situação prevista no nº 2 do artº 1202º do CPC.
Termos em que, se impõe concluir no sentido de estarem verificados os requisitos para a revisão e confirmação da decisão proferida por tribunal exterior a Macau.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em conceder a revisão e confirmar a decisão da Circuit Court of the 17th Judicial Circuit in and for Broward County, Florida nos termos acima transcritos.
Custas pela Requerente.
Registe e Notifique.
RAEM, 05 de Junho de 2025
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Seng Ioi Man
(1o Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong
(2o Juiz-Adjunto)
1 Na sua contestação vem a Requerida confessar serem verdadeiros os factos 1º, 2º, 3º e 5º da p.i. de onde resulta a identidade e personalidade jurídica enquanto sociedades comerciais da Requerente e Requerida (artº 1º e 2º), o acordo entre ambas celebrado (artº 3º) e, pese embora quanto ao artº 4º se alega de forma vaga e imprecisa que “o mesmo não se encontra inteiramente correcto e nessa medida vai impugnado”, ao se confessar o artº 5º duvidas não há de ter sido instaurada uma acção pela agora Requerida contra a Requerente onde esta terá deduzido Reconvenção.
Nada mais concretizando nos artigos 7º a 15º da p.i. vem a Requerida e que foi Autora na acção cuja decisão aqui se pede a revisão, invocar a falta da Apostilha nos termos da Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961 Relativa à Supressão da Exigência de Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros.
Contestando vem a Requerida alegar que a aposição da Apostilha não é essencial e que não se invoca a falsidade do documento cuja autenticidade é aliás conhecida pela Requerida, convocando em sua defesa Jurisprudência Comparada Portuguesa entre eles o Acórdão proferido em 19.10.2022 pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães no processo que ali correu termos sob o nº 170/22.7YRGMR disponível em www-dgsi.pt.
Do que se alega, subjacente a estes autos está uma acção em que a aqui Requerida era Autora e a aqui Requerente era Ré, sendo que, por força da Reconvenção por esta deduzida contra aquela, veio a ali Ré e aqui Requerente a obter ganho de causa.
Se houve uma acção da qual eram parte os aqui sujeitos processuais, não se dizendo em momento algum que essa acção não haja ainda sido decidida, outra conclusão não se poderá retirar que alguma decisão foi já proferida.
Também não se invoca que ainda não se haja sido notificado da referida decisão.
Mais, em grande parte da contestação vem a questionar-se da justiça da decisão a rever e confirmar, bem como, que segundo o direito de Macau a decisão haveria de ter sido mais favorável à Requerida.
Assim sendo é porque alguma decisão foi proferida.
E se decisão houve, ninguém melhor do que as partes o sabe, bem como os seus Ilustres Mandatários que ao assumirem o patrocínio desta causa têm a obrigação e o dever ético de o saber.
Destarte, antes de passar a decidir a questão suscitada, urge saber se a Requerida:
- Invoca a falsidade do documento junto aos autos como tendo sido a decisão proferida na reconhecida acção judicial,
Ou
- Apenas invoca a falta de aposição de apostilha no documento junto aos autos como sendo certidão dessa mesma decisão?
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756/2024 1
REV e CONF DE DECISÕES