Processo nº 69/2025
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)
Data do Acórdão: 19 de Junho de 2025
ASSUNTO:
- Empréstimo ilícitos
- Multa
- Erro nos pressupostos de facto
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 69/2025
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)
Data: 19 de Junho de 2025
Recorrente: Secretário para a Economia e Finanças
Recorrido: A
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
veio instaurar o presente recurso contencioso administrativo contra,
Secretário para a Economia e Finanças, que, pelo Despacho exarado na proposta n.º 086/2022-CA, de 07/06/2022, lhe determinou a aplicação de uma multa de MOP2.800.000,00, bem como a sanção acessória de publicitação da multa aplicada.
Foi proferida sentença a julgar procedente o recurso contencioso interposto, com a anulação do acto recorrido.
Não se conformando com a decisão proferida veio a Entidade Recorrida e agora Recorrente recorrer da mesma, apresentando as seguintes conclusões:
I. Em procedimento administrativo, todos os meios de prova são admissíveis;
II. A confissão é um meio de prova;
III. A confessou, no procedimento administrativo sancionatório que lhe foi instaurado pela AMCM, ter efectivamente recebido 2,173,198MOP das várias pessoas a quem emprestou dinheiro;
IV. Foi esse, e apenas, esse o benefício económico levado em conta pela Administração para efeitos de graduação da multa;
V. Portanto, a Administração, contrariamente ao que se lê na sentença impugnada, não considerou como benefício económico obtido pelo infractor o montante total dos juros a que A teria direito, nos termos estipulados nos contratos de mútuo (e que seria de 2,648,975MOP);
VI. O pagamento efectivo, a A, de quantias inferiores aos juros estipulados foi também confirmado por alguns mutuários, quer no procedimento administrativo, quer na audiência de julgamento;
VII. Consequentemente, a sentença impugnada incorreu em erro sobre os factos.
Notificado o Recorrido das alegações apresentadas pela Recorrente, este silenciou.
Foram os autos ao Ilustre Magistrado do Ministério Público o qual emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando-se a decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos Factos
Na decisão recorrida foi dada por assente a seguinte factualidade:
- No período compreendido entre Setembro de 2018 e Junho de 2021, o ora Recorrente subscreveu no total de 18 contratos de empréstimo hipotecário com os terceiros, em 14 dos quais foram convencionados os juros com taxas que atingiram 28.8% (conforme os docs. juntos a fls. 12 a 71 e 292 a 335 do P.A.).
- As actuações acima referidas do Recorrente nunca foram autorizadas pela Autoridade Monetária de Macau.
- Através da deliberação n.º 411/CA de 5/5/2022, o Conselho de Administração da AMCM decidiu propor à Entidade recorrida a determinação da aplicação da multa única ao Recorrente no montante de MOP 2,800,000.00, pela prática não autorizada da concessão de crédito a terceiros na RAEM, com carácter habitual e intuito lucrativo, no período compreendido entre Setembro de 2018 e Junho de 2021 (conforme o doc. junto a fls. 532 a 539 do P.A.).
- A proposta acima referida mereceu o despacho da concordância da Entidade recorrida em 06/1/2023, exarada na proposta n.º 086/2022-CA de 7/6/2022, que foi por ofício n.º 0186/2023-AMCM-DAJ, de 11/1/2023, enviado ao Recorrente em 13/1/2023 e recebido por este em 6/2/2023 (conforme os docs. juntos a fls. 512 a 531 e 567 do P.A.).
- Em 13/2/2023, o ora Recorrente apresentou o presente recurso contencioso da dita decisão.
b) Do Direito
É do seguinte teor a decisão recorrida:
«Do que se trata aqui é de uma sanção administrativa aplicada nos termos previstos no Regime Jurídico do Sistema Financeiro (doravante designado por RJSF), aprovado pelo DL n.º 32/93/M, de 5 de Julho, pelo exercício não autorizado da actividade da concessão de créditos, a que se refere nos artigos 2.º, n.º 1, 17.º, n.º 1, alínea b), 19.º, n.º 1 e 122.º, n.º 2, alínea b) desse Regime.
As operações de concessão de crédito “incluindo a prestação de garantias e outros compromissos, locação financeira e factoring; …” encontram-se reguladas pelo artigo 17.º, n.º 1, alínea b) do RJSF, operações quando se repetem de modo habitual e com intuito lucrativo, consubstanciam o exercício da actividade financeira, que é reservada, em exclusivo, às instituições de crédito regularmente constituídas e autorizadas para o efeito, por força do artigo 2.º, n.º 1 do Regime, designadamente, os bancos, a Caixa Económica Postal, outras sociedades legalmente classificadas – a que se refere o artigo 15.º do Regime.
Como tal, o exercício da actividade integrada por conjunto de operações de concessão de crédito, por quaisquer outras pessoas ou entidades que para tal não tenham sido autorizadas, constitui uma infracção de especial gravidade prevista no artigo 122.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do RJSF (Não obstante ser a “contravenção”, termo utilizado pela norma, importa que a infracção nela tipificada não reveste, contudo, carácter criminal, segundo o entendimento perfilhado no douto Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, Processo n.º 746/2022, de 16/3/2023. Nesta linha, é da infracção administrativa que se trata, cujo regime geral se encontra estabelecido pelo DL n.º 52/99/M, de 4 de Outubro) e desse modo, está sujeito às sanções cominadas nos artigos 126.º a 128.º do Regime.
Dito de outro modo, é de reter que o que está especificamente regulada, e por isso, reservada às instituições regularmente constituídas é a actividade financeira que reveste o carácter de habitualidade, e do intuito lucrativo. Não é caracterizável como actividade financeira, como por exemplo, uma actuação de concessão de crédito meramente esporádica ou ocasional, ou destituído do intuito de enriquecer com as operações efectuadas.
Na situação vertente, o exercício não autorizado da actividade financeira que desencadeia a aplicação da sanção administrativa foi a concessão de crédito, na modalidade de contrato de mútuo, tal como previsto nos artigos 1070.º e ss do CCM.
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A ora impugnação que o Recorrente deduziu contra o acto recorrido encontra-se assente nas duas vertentes, por um lado, a actuação que lhe foi imputada pela Recorrida não podia ser qualificada como infracção administrativa, pelo facto de ter sido dirigida aos amigos dele, sem intuito lucrativo (conforme se alega nos artigos 6.º a 28.º da petição inicial), e por outro lado, a multa quantificada, além de ser excessiva, carece de base factual por ter-se servido apenas das cláusulas que convencionam os juros para o apuramento do benefício económico (conforme alegado nos artigos 15.º a 33.º).
Salvo melhor opinião, cremos que não lhe assiste razão na primeira das vertentes assinaladas.
De acordo com a factualidade assente com base nos documentos juntos a fls.12 a 71 e 292 a 335 do P.A.do processo administrativo, no período que decorreu entre Setembro de 2018 e Junho de 2021, foram realizadas no total de 18 operações de concessão de crédito, em 14 das quais foram convencionados os juros remuneratórios a cobrar pelo Recorrente enquanto mutuante.
Segundo defende o ora Recorrente, as referidas concessões de crédito, na maior parte das vezes, eram apenas destinadas aos amigos deles, não ao público em geral. Daí a falta da habitualidade, necessária à qualificação da infracção em causa. Tal tese, em nosso entender, apenas ganharia relevância se permite afastar a “indeterminabilidade” dos mutuários a quem se destinavam as operações, ao contrário do que surge nas operações efectuadas nas relações com o público, no exercício de uma actividade típica das instituições bancárias.
Com o devido respeito, alegar o facto de conceder os créditos aos amigos seus, é desprovido de pertinência, uma vez que a definição de “amigos” se apresenta muitas vezes sem qualquer contorno nítido, necessário a determinar os destinatários. A situação seria bem diferente se alegasse que se limitava a conceder os empréstimos aos seus familiares.
Além disso, o facto de ele nunca ter chegado a cobrar efectivamente o montante do juro tal como convencionado nada adianta para afastar a existência do seu intuito lucrativo, o qual deverá ser contemporâneo da conclusão dos negócios jurídicos e não no posterior momento do respectivo cumprimento, sendo certo que a estipulação das cláusulas sobre juros já é bastante demonstrativa da existência do elemento subjectivo.
Daí, não estamos perante as operações de concessão de créditos meramente esporádicas do Recorrente, mas sim o exercício da actividade que se traduz na prática do conjunto das operações bancárias no total de 14, de forma habitual e com intuito lucrativo, de modo idêntico à actividade exercida pelas instituições bancárias, o que é proibido pelas normas legais constantes do RJSF.
Nestes termos, deve-se improceder o recurso nesta parte.
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Mais ainda, o Recorrente insurgiu contra o método que se utiliza no cálculo do benefício económico, decisivo para a quantificação da multa aplicada, alegando que não obstante a convenção dos juros, ele não chegou a cobrar relativamente a todos os contratos celebrados o montante na taxa de 28.8% indicada. Como tal, verificou-se o erro no pressuposto de facto. E não tendo a Administração decidido com base na instrução suficiente a este respeito, a multa determinada está ferida do “défice instrutório”.
Com respeito à posição contrária, à partida, tal “défice instrutório”, mesmo que se tivesse por demonstrado, não conduziria à invalidade do acto praticado a título autónomo. Neste sentido, ainda de acordo com a douta jurisprudência do Tribunal de Segunda Instância – o Acórdão n.º 193/2000, de 27/3/2003, conclui-se o seguinte: “a falta de diligências reputadas necessárias para a constituição da base fáctica da decisão afectará esta, não só se tais diligências forem obrigatórias (acarretando, assim, violação do princípio da legalidade), mas também se a materialidade dos factos não estiver comprovada, ou faltarem, nessa base, factos relevantes alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração poderia e deveria ter colhido (o que gera erro nos pressupostos de facto)”.
Dito por outra forma, o “défice instrutório” proveniente das omissões na utilização das diligências instrutórias em cumprimento do princípio inquisitório geral previsto nos artigos 59.º e 86.º do CPA, assimila-se ao erro sobre os pressupostos de facto, se daí resulta a falta de factos que dêem suporte ao acto. Se assim é, a sentença que conheça deste vício imputado e que se profira é sobre o mérito da causa, não sobre as questões meramente formais.
Situação diferente é quando se verifica a ofensa a um dever instrutório e investigatório especialmente previsto na lei, a falta essa já será suficiente para acarretar a anulação do acto contenciosamente recorrido, tratando-se aqui do vício de forma, pela ocorrência do erro no procedimento administrativo (cfr. quanto às duas vertentes distintas do “défice instrutório”, a jurisprudência do Tribunal de Segunda Instância – o Acórdão n.º 456/2015, de 10/3/2016). Pois, o que importa é saber se a norma legal especialmente obriga a Administração a agir tomando as determinadas diligências em face da situação pressuposta.
No caso concreto, apesar do assinalado “défice instrutório” na petição inicial, também foi invocado o erro no pressuposto de facto, como resultante daquele “défice”. Desse modo, aquele vício invocado perde a relevância autónoma, e com efeito, o que teremos de saber, é se ocorreu ou não o erro no cálculo do benefício económico.
Desde logo, o montante do “benefício económico” obtido pelo infractor, segundo previsto no artigo 128.º, n.º 3 do RJSF, aprovado pelo DL n.º 32/93/M, de 5 de Julho, configura uma das circunstâncias a atender na determinação da medida concreta da sanção administrativa cominada às infracções tipificadas. Tal questão já não é sequer discutível face ao teor da jurisprudência constante do Tribunal de Segunda Instância (cfr. e.g. Acórdão n.º 1040/2020, de 21/1/2021).
O problema continua a colocar-se sobre a forma da quantificação do benefício económico, em termos idênticos aos que surgiram nos processos anteriores. A este respeito, tratando-se da infracção por exercício não autorizado da actividade de concessão de crédito, tem vindo o tribunal superior a considerar que “os contratos de mútuo foram celebrados contra disposições imperativas, precisamente as contidas nos artigos 17.º, n.º 1, alínea b), 19.º, n.º 1 e 122.º, n.º 2, alínea b) do RJSF, advindo daí a assinalada nulidade. Nestes termos, apenas na hipótese de ter havido uma efectiva percepção de juros por parte do infractor é que a multa concretamente a aplicar os deverá ter em devida conta, dessa forma se podendo operar a expropriação do benefício que, no plano dos factos, tenha sido ilicitamente obtido, com desconsideração, mas sem prejuízo, do crédito de natureza restitutiva fundado na norma legal do n.º 1 do artigo 282.º do Código Civil de que o mutuário será titular” (cfr. ainda as jurisprudências recentes, Acórdãos do TSI n.º 357/2022, de 8/9/2022, n.º 350/2022, de 27/10/2022, n.º 378/2022, de 28/9/2022 e n.º 356/2022, de 28/9/2022).
A que acresce que é apenas o benefício económico líquido relevante para o efeito, por ser só este resultado da prática da infracção, porque “não existirá uma correspondência quantitativa exacta entre esses créditos e o dito benefício económico, uma vez que no cálculo deste, por isso que apenas deve relevar o benefício líquido, deve entrar em linha de conta, pelo menos, a privação da disponibilidade do capital por parte do Recorrente durante o prazo do mútuo”. (veja-se o Acórdão mais recente n.º 221/2023, de 18/1/2024).
Deve ser, cremos nós, em conformidade com as linhas orientadoras definidas supra, apreciado o caso dos autos em apreço. É de notar que a partir do teor da proposta n.º 086/2022-CA que se integra na fundamentação do acto recorrido (sobretudo o referido nos pontos 5.1 a 5.2 do Grupo II), que o cálculo do benefício económico se apoia, unicamente, nas cláusulas estipuladas nos contratos de mútuo celebrados, sendo resultante do somatório dos juros remuneratórios assim calculados para cada negócio, o que vai manifestamente contrariar o entendimento da jurisprudência no sentido de que “tudo isto depende da prova concretamente produzida a cargo da entidade com poder punitivo.”.
Aliás, o que veio a contestante questionar neste processo (conforme se alega nos artigos 41.º a 67.º da contestação), a partir do pressuposto de que inexistem “nulidades supervenientes” do negócio jurídico não invalida a posição perfilhada nos doutos acórdãos.
Ao contrário da conclusão que a contestante pretende inferir, parece nós, a nulidade que deriva do negócio celebrado “contra legem”, ou seja, em violação das disposições imperativas - as contidas nos artigos 17.º, n.º 1, alínea b), 19.º, n.º 1 e 122.º, n.º 2, alínea b) do RJSF não é superveniente.
Do que se trata aqui, com já vimos, é de uma infracção administrativa cuja constituição depende cumulativamente da verificação do carácter habitual, e da presença do intuito lucrativo, sendo, desse modo, enquadrável no categoria de “crimes ou infracções habituais ou profissionais”, designadamente, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual” (veja-se Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral Tomo I, p. 314).
Não obstante a realização do tipo nestes casos ser dependente da reiteração de vários actos que funciona como seu elemento objectivo, e por esta razão, nenhum desses actos é, só por si, a infracção habitual, nem por isso se deve afirmar que o elemento subjectivo componente ou não do tipo – isto é, a intenção de exercer actividade sem autorização e o intuito lucrativo - se deixa de exigir relativamente a cada acto ainda isoladamente considerado, tendo em consideração dos princípios gerais do direito penal, em especial, o princípio de congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito doloso, segundo o qual o dolo e a realização típica devem decorrer simultaneamente (cfr. Figueiredo Dias, obra supra. pp. 351, 378 a 379).
Na situação vertente, se concluímos como concluiu a Administração, o Recorrente pelo facto de ter realizado, no período que decorreu entre Setembro de 2018 e Junho de 2021, no total de 18 operações de concessão de crédito, praticou uma infracção de exercício não autorizado da actividade financeira, teríamos de aceitar que o infractor tinha, ab initio, o dolo genérico e o dolo específico do ilícito desde a conclusão do primeiro negócio. A não ser assim, os actos praticados destituídos de elemento subjectivo, sendo irrelevantes, nunca deveriam entrar em conta para verificação da “habitualidade”.
Nesta linha, também, a contrariedade à norma legal imperativa só deve aparecer ab initio, na medida em que “não só quando o objecto do negócio viola directamente uma disposição legal, como também quando o objecto, sem ofender frontalmente a lei, tenta contornar uma proibição por esta imposta, chegando por outros meios ao resultado proibido.” (cfr. Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, p. 693), o que tornam censuráveis todos os negócios concluídos desde o início, contemporâneo da presença do elemento subjectivo do ilícito, a que a lei comina com nulidade prevista no artigo 287.º do CCM.
Por outras palavras, o negócio ferido de nulidade até poderia ser aparentemente válido quanto ao seu objecto, porém “uma análise do elemento teleológico daquela (lei) demonstra uma ofensa clara ao seu escopo. Isto acontece sempre que a norma proibitiva, no fundo, não veda apenas a acção por si tipificada, mas qualquer acção tendente à produção do resultado ilícito” (cfr. obra supra, sublinhado nosso).
Pelo que fica dito, uma vez que o valor do benefício económico determinado no caso se encontra apenas assente no teor das cláusulas estipuladas pelas partes nos contratos, e se trata de um valor do benefício ilíquido, o acto impugnado que quantificou a multa com base neste valor está viciado do erro no pressuposto de facto.
Cumpre ainda uma breve nota sobre o vício de violação do princípio de proporcionalidade invocado em último lugar (conforme se alega nos artigos 48.º a 60.º da petição inicial).
Se admitirmos que a multa quantificada com base no artigo 128.º, n.º 3 do RJSF pudesse chegar a ter um valor superior ao montante total do benefício económico auferido, o acto não é censurável com fundamentação no excesso do quantitativo.
Aliás, partindo do pressuposto de que a matéria da determinação da sanção administrativa é de natureza discricionária, deve-se concluir que os poderes de fiscalização do Tribunal Administrativo relativamente à legalidade do exercício do poder discricionário não são plenos, contrariamente ao que acontece quando em causa está o controlo do exercício de poderes vinculados. Ao tribunal cabe apenas a sindicância do respeito por parte da Administração dos limites jurídicos ao exercício de tal poder e da observância dos critérios que constituem as condições jurídicas do seu exercício legítimo (cfr. Pedro Costa Gonçalves, Manual de Direito Administrativo, p. 234).
Nesta linha, sobre a questão concreta da quantificação da multa aplicada ao abrigo do artigo 128.º, n.ºs 1 e 3 do Regime, o Tribunal de Segunda Instância já entendeu, na situação idêntica à vertente, que não se mostra desproporcional a pena de multa graduada no montante ligeiramente superior ao valor do benefício económico obtido pelo infractor, dentro da moldura estabelecida naquela norma (veja-se o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, acima referido).
Assim, atendendo, no caso em apreço, ao apurado valor de benefício económico de MOP 2,173,198.00, a determinação da aplicação da multa no valor de MOP 2,800,000.00 não constitui erro grosseiro ou manifesto, nem poderá infringir os princípios de cariz constitucional, nomeadamente o princípio proporcionalidade.
Deve-se portanto improceder o recurso quanto a este fundamento.
Assim, deve o acto ser anulado com fundamento no erro no pressuposto de facto que se concretiza no cálculo errado do montante do benefício económico.
Uma vez que carece do elemento (o montante devidamente apurado do benefício económico) para a fixação oficiosa da sanção aplicável ao Recorrente, ainda que entendemos que o mesmo deva ser condenado, não se mostra necessário o cumprimento do artigo 118.º, n.º 2 do CPAC.
Resta decidir.».
Foi do seguinte teor o Douto Parecer do Ministério Público:
«1.
A, melhor identificado nos presentes autos, interpôs recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Economia e Finanças que lhe aplicou a multa de 2 800 000 de patacas e a sanção acessória de publicitação da multa aplicada pela prática da infracção de exercício não autorizado da actividade de concessão de crédito.
Por douta sentença do Tribunal Administrativo que se encontra a fls. 126 a 133 dos presentes autos foi o recurso contencioso julgado procedente com a consequente anulação do acto impugnado.
Inconformado com a dita sentença, veio o Secretário para a Economia e Finanças interpor o presente recurso jurisdicional, pugnando pela respectiva revogação.
2.
(i)
Resulta da leitura da douta sentença recorrida que, no essencial, o fundamento da decisão anulatória aí proferida repousou na constatação da existência de um erro nos pressupostos de facto no acto administrativo que foi objecto de recurso contencioso. Esse erro resultou, segundo a sentença do Tribunal Administrativo, da ponderação por parte da Administração, no momento da decisão, de que o Recorrente contencioso teria obtido um benefício económico que, no entender do Meritíssimo Juiz a quo, não se mostra demonstrado, uma vez que aquela expressão numérica é apenas o resultado do mero cálculo aritmético dos juros remuneratórios por aplicação das taxas contratualmente convencionadas entre as partes sobre os montante de capital mutuado.
(ii)
De acordo com o Recorrente, o Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo teria incorrido em erro de julgamento na medida em que, segundo diz, o benefício económico considerado teve em linha de conta a declaração feita pelo próprio arguido e que se encontra a fls. 409 a 411 do processo administrativo instrutor.
Parece-nos, salvo o devido respeito, que o Recorrente tem razão.
(iii.1)
Da conjugação das normas dos artigos 2.º, n.º 1, 17.º, n.º 1, alínea b), 19.º, n.º 1 e 122.º, n.º 2, alínea b) do Regime Jurídico do Sistema Financeiro, (RJSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 32/93/M, de 5 de Julho, é possível, parece-nos, construir o tipo legal da infracção administrativa por cuja prática o Recorrente contencioso foi punido através do acto recorrido. Na verdade, pode dizer-se que comete essa infracção quem, com carácter habitual e intuito lucrativo e sem autorização da entidade competente, pratique operações de concessão de crédito, incluindo a prestação de garantias e outros compromissos, locação financeira e factoring, reservadas às instituições de crédito.
Por sua vez, a norma legal contida no artigo 126.º do RJSF prevê as sanções aplicáveis a quem incorra na prática da dita infracção administrativa. São elas, sem prejuízo da aplicação de outras sanções previstas na lei, as seguintes:
a) Multa;
b) Suspensão do exercício do direito de voto de qualquer accionista, por um período compreendido entre 1 e 5 anos;
c) Inibição do exercício de cargos sociais e de funções de gestão ou direcção em quaisquer instituições submetidas a supervisão, por um período de 6 meses a 5 anos.
No que especificamente tange à multa, que foi a sanção aplicada no procedimento que culminou com a prática do acto administrativo contenciosamente recorrido, a norma do artigo 128.º do RJSF preceitua o seguinte:
«1. Salvo o disposto nos números seguintes, a pena de multa será fixada entre 10 mil patacas e 5 milhões de patacas.
2. No caso de reincidência, os limites mínimo e máximo da multa aplicável são elevados ao dobro, considerando-se reincidente o infractor que cometer infracção de idêntica natureza no período de um ano, contado da data em que se tornou definitiva a condenação anterior.
3. Quando o benefício económico obtido pelo infractor com a prática da infracção for superior a metade do limite máximo fixado no n.º 1, este poderá ser elevado até ao dobro desse benefício».
Chegados aqui, parece-nos que, com alguma segurança, se pode dizer que o artigo 128.º do RJSF não contém na sua previsão dois tipos legais diferenciados de infracção administrativas. O seu alcance é outro. É, tão-só, o de definir a moldura da pena de multa aplicável à infracção administrativa cujo tipo legal resulta, nos termos que referimos, da conjugação das normas dos artigos 2.º, n.º 1, 17.º, n.º 1, alínea b), 19.º, n.º 1 e 122.º, n.º 2, alínea b) do RJSF.
Salvo o devido respeito, contrariamente ao que vem alegado pelo Recorrente, parece-nos, no entanto, que não há qualquer diferença substantiva entre os nºs 1 e 3 do artigo 128.º do RJSF. Num e no outro, o legislador considera o benefício económico obtido pelo infractor. A diferença é apenas esta. No caso em que esse benefício económico não ultrapassa as 2.500.000,00 patacas (metade do limite máximo da moldura), o legislador considera que a moldura do n.º 1 permite, na aplicação concreta da sanção, acomodar todas as finalidades que são próprias da punição, em especial, aquilo que podemos designar como a finalidade «expropriativa» da mesma e que obsta a que a prática da infracção de alguma forma possa compensar o infractor. Quando tal não sucede, isto é, quando o prejuízo ultrapassa aquele montante de 2.500.000,00 patacas, aí, o legislador, por considerar que a moldura do n.º 1 pode não permitir a dita acomodação, habilita a Administração a elevar o limite máximo da moldura para o dobro do benefício económico obtido pelo infractor.
Em todo o caso, dentro da moldura abstracta da sanção aplicável, seja a do n.º 1, seja a do n.º 3, a Administração, na determinação da medida concreta da mesma, considerará como factor relevante o benefício económico obtido pelo infractor.
Significa isto, para concluir, que, se a determinação desse benefício for errónea, esse erro não pode deixar de se projectar na (in)validade do acto administrativo punitivo.
(iii.2)
Revertendo ao caso em apreço.
A Administração, no iter decisório que deu origem ao acto administrativo impugnado, ponderou, expressis verbis, o benefício económico que considerou ter sido obtido pelo Recorrente contencioso e que calculou no montante de 2,173,198.00 patacas. Esse cálculo não resultou apenas da consideração do teor das cláusulas estipuladas pelas partes. Com efeito, resulta da fundamentação do acto administrativo aqui impugnado que no apuramento do benefício económico foi considerado o teor da declaração que, nesse particular, foi feita pelo Recorrido, através da sua advogada, e que consta de fls. 409 a 411 do processo administrativo instrutor (veja-se fls. 507 e 503 do processo administrativo), sendo que, no ponto 7 dessa declaração se lê o seguinte: «mesmo que o interessado ouvido tenha realmente cometido a infracção indicada no relatório final, o benefício económico efectivamente obtido foi apenas de MOP2,173,198.00, valor inferior a dois milhões e quinhentas mil patacas (…)» (texto da versão portuguesa junta aos presentes autos a fls. 180 e 181 com destacado nosso).
Com o devido respeito por opinião contrária, parece-nos que, com esta declaração do Recorrido, proferida no âmbito do exercício de audiência prévia que, no momento procedimental próprio, lhe foi facultado pela Administração, esta estava legitimada a considerar como benefício económico efectivamente pelo Recorrido aquele que como tal foi declarado por este. A Administração aceitou corrigir o cálculo constante do «projecto de decisão» de acordo com a posição assumida pelo Arguido. É também esse, aliás, o sentido da garantia da audiência prévia à decisão que, nos termos da lei, pode ser exercido através de advogado.
Em qualquer caso, parece-nos irrefutável que a Administração não tomou apenas em consideração o teor das cláusulas dos contratos nem operou de um modo meramente aritmético para calcular o dito benefício económico.
Isto basta, a nosso modesto ver, para que se possa dizer que o Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo, salvo o devido respeito, errou no seu julgamento quando fez assentar o juízo anulatório do acto recorrido no pressuposto, expressamente plasmado na douta sentença impugnada, de que, citamos, «o cálculo do benefício económico se apoia, unicamente, nas cláusulas estipuladas nos contratos de mútuo celebrados, sendo resultante do somatório dos juros remuneratórios assim calculados para cada negócio» (cfr. pp 11 e 13 da douta sentença a fls. 131 e 132 dos presentes autos).
Com a breve motivação que antecede, somos, assim, modestamente a entender que a douta sentença recorrida padece do erro de julgamento que o Recorrente lhe apontou.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, somos de parecer de que deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional.».
Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual integralmente aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta entendemos que a sentença recorrida enferma de erro de julgamento na parte em que conclui que o acto impugnado enferma de erro nos pressupostos, não padecendo este do vício de violação de lei que lhe é imputado, sendo de manter o mesmo.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância em conceder provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte em que concluiu pelo erro nos pressupostos de facto, mantendo-se o acto impugnado.
Custas a cargo do Autor/Recorrido fixando-se a taxa de justiça em 8 UC´s na primeira instância e 7 UC´s nesta instância.
Registe e Notifique.
RAEM, 19 de Junho de 2025
(Relator) Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Primeiro Juiz-Adjunto) Seng Ioi Man
(Segundo Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong
(Procurador-Adjunto)
Mai Man Ieng
69/2025 ADM 41