Processo nº 18/2022
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. “A1”, (“甲一”), agora, “A”, (“甲”), propôs, no Tribunal Judicial de Base, acção ordinária – CV3-15-0077-CAO – contra, “B”, (“乙”), R., pedindo a sua condenação no pagamento a seu favor de MOP$18.994.582,97 e juros legais; (cfr., fls. 2 a 15 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Citada, a R. contestou e deduziu reconvenção pedindo a condenação da A. a lhe pagar um total de HK$795.997.482,62; (cfr., fls. 104 a 118).
*
Oportunamente, realizada a audiência de discussão e julgamento, e decidida a matéria de facto, proferiu o Tribunal Judicial de Base sentença onde decidiu:
- “Absolver a Ré B, dos pedidos formulados pela Autora A1”; e,
- “Absolver-se a Reconvinda/Autora de todos os pedidos reconvencionais formulados pela Reconvinte/Ré”; (cfr., fls. 402 a 413-v).
*
Inconformadas com o decidido, do mesmo recorreram a A. (“A”), e a R. (“B”); (cfr., fls. 432 a 460 e 517 a 558).
*
Apreciando os ditos recursos, proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão de 23.09.2021, (Proc. n.° 52/2021), que a seguir se passa a transcrever na íntegra:
“I) RELATÓRIO
Inconformada com a sentença que julgou improcedente a acção intentada pela A1, contra B, recorreu aquela jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. Vem o presente recurso interposto da parte da douta decisão a quo que julgou improcedentes os pedidos formulados pela ora Recorrente em sede da presente demanda por, no seu entendimento, o Contrato de Promoção de Jogo celebrado entre a ora Recorrente e a Recorrida ter sido declarado nulo por preterição do disposto no n.º 9 do artigo 17º da Lei 16/2001.
II. Entendeu o douto Tribunal a quo que por força do contrato de promoção de jogo celebrado entre a ora Recorrente e a Recorrida, mormente por força das Comissões a pagar à Recorrida poderem sofrer descontos correspondentes a 55% das perdas verificadas na sala VIP, bem assim como pelo facto de a Recorrida ter ficado responsável pelas despesas de manutenção e conservação do interior da sala do casino, estaríamos perante um cessão, ainda que parcial, da exploração de jogo.
III. Na modesta opinião da ora Recorrente, o douto Tribunal parte de uma errada interpretação das cláusulas do contrato de promoção de jogo, pois que aquilo que o contrato prevê é que a retribuição mensal a que o promotor, neste caso a Recorrida, tem direito sofrerá deduções caso no mês anterior a sala de jogo tenha verificado perdas ou se o limite de aquisição de fichas por mesa de jogo não seja atingido. (vide facto constante da alínea L) da matéria de facto assente)
Ou seja,
IV. A Retribuição da Recorrida tem que ser vista como um todo, como uma conta corrente que vai sofrendo créditos e deduções de acordo com o resultado da sua actividade, e se ao longo da vida do contrato de promoção de jogo, tendencialmente esta conta corrente é francamente favorável ao promotor, como se viu nos presentes autos e é de conhecimento geral na indústria de jogo.
V. Nada impede que, ao longo e também no final da vida deste contrato, face a fracos resultados consecutivos da sua actividade, essa conta recorrente possa apresentar um superavit para o promotor de jogo e, consequentemente, lhe incumba a obrigação de devolver à Recorrente esse excesso.
VI. Os descontos correspondentes a 55% das perdas verificadas na sala VIP e a penalização no valor de HK$550,000.00 a que estavam sujeitas as Comissões da Recorrida representam somente uma das variantes da fórmula de cálculo da comissão a que a Recorrida estava intitulada por força do contrato de promoção de jogo.
VII. Esta interpretação literal e forma de ler o contrato em causa nos presentes autos em nada contende com as normas legais em vigor, parecendo à ora Recorrente, salvo devido respeito, desnecessário que o douto Tribunal a quo se tivesse sentido na contingência de recorrer ás regras da interpretação previstas no artigo 8º do Código Civil.
VIII. Não existe na Lei n.º 16/2001 e nem mesmo no Regulamento Administrativo n.º 6/2002 – aplicáveis ao caso ora em apreço -, qualquer limitação às partes contratantes sobre as formas de remuneração do promotor de jogo.
IX. Neste quadro legal as partes têm plena liberdade para acordar os melhores termos e condições que entenderem, por forma a determinar o montante da retribuição devida no âmbito da relação contratual entre concessionária e promotor de jogo, aplicando ao cálculo da retribuição as variantes que de comum acordo entendam convenientes.
X. A lei não restringe por qualquer forma a liberdade contratual das partes no que se refere à fixação da retribuição, designadamente no sentido de a actividade de promoção ter um resultado negativo, e esse resultado negativo poder-se repercutir no valor da comissão a receber pelo promotor, podendo mesmo dar-se o caso de, no computo geral da relação contratual, chegando ela ao fim com resultados negativos acumulados, ser o promotor quem deve à concessionária, por essa razão é que os valores das comissões atribuídas ao promotor de jogo são, in casu, de montante consideravelmente elevado, incorporando as mesmas um risco pelos mesmos assumidos.
XI. E como é sabido, os contratos entre concessionária e promotor de jogo não são o resultado de uma mera relação especifica entre uma concessionária e um determinado promotor de jogo, mas antes obedece a um padrão ou a um standard já aceite no sector de jogo, sendo apenas normal fixar o valor ou a percentagem específica a um determinado promotor de jogo num modelo de contrato já existente.
XII. Tal modelo de contrato existe no sentido em que ele plasma a vontade dos próprios promotores de jogo de quererem participar nos resultados do trabalho por eles desenvolvido, sendo esta uma forma de obterem um maior rendimento, pois que caso assim não fosse, as suas comissões seriam necessariamente num valor muito inferior.
XIII. A existência no contrato de promoção de jogo de uma variante de cálculo da comissão que passe também pela aplicação de uma percentagem às perdas verificadas na sala VIP objecto do contrato de promoção e que a aplicação de tal variante possa implicar para o promotor a obrigação de compensar a concessionária pelo mau resultado da sua actividade, não implica, salvo devido respeito por melhor opinião, a cessão ou transferência, ainda que parcial, da exploração dos jogos naquela Sala VIP.
XIV. Os elementos essenciais de cada sala VIP, e a dos autos não é excepção, continuam a ser da responsabilidade da ora Recorrente, tais como os croupiers, as mesas de jogo e todo o equipamento inerente.
XV. Sobre esta matéria já se debruçou o douto Tribunal de Segunda Instância em sede do Acórdão proferido no âmbito do processo 272/2003, tendo sucintamente decidido que para que se fale em transferência/cessão da exploração de jogos necessários nos parece ser que a concessionária, neste caso a ora Recorrente, transfira para um terceiro a faculdade de explorar, de forma autónoma e independente e por sua conta e risco, a actividades de jogos de fortuna ou azar em casino.
XVI. A actividade de exploração de jogos de fortuna e azar é uma actividade muito complexa e mediante a qual se disponibiliza ao cliente o jogo, providenciando um espaço, mesas de jogo, slot machines, cartas, fichas, croupiers, aceitação de apostas, pagamento ou apropriação do resultado do jogo… No presente caso, nenhuma destas obrigações foi transferida para o promotor do jogo, tendo sido sempre a ora Recorrente quem, durante a execução do contrato, providenciou aos jogadores a sala, as mesas de jogo, as cartas, as fichas, os croupiers, aceitou as apostas e pagou/reteve o resultado do jogo,
XVII. Explorar a actividade de jogo não pode senão significar a prática de todo o conjunto de actos materiais e jurídicos que o jogo envolve, por forma a se obter as virtualidades económicas que o mesmo encerra, em benefício próprio e exclusivo.
XVIII. Com efeito, a exploração de jogo, conforme é prevista na própria Lei do Jogo, implica e traz consigo sempre a execução de um concreto jogo ou exercício autónomo da actividade em questão – veja-se a propósito os artigos 1º, n.º 2, alínea a), ou art. 3º, n.º 1, art. 4º, n.º, art. 5º, n.º 5 – e é esta exploração, salvo devido respeito, que a norma contida no artigo 17º, n.º 9 quis prevenir.
XIX. Parece-nos claro que a Lei nos referidos preceitos legais (artigo 7º e 17º, n.º 9) não teve em vista a situação que nos ocupa o presente Recurso, o que tais preceitos pretendem evitar é que um terceiro não autorizado tome as rédeas da exploração de uma actividade altamente regulada e a qual só entidades devidamente autorizadas, face às responsabilidades sociais que acarretam, estão em condições de facultar ao grande público.
XX. Quanto à licitude de essa remuneração ser negativa, já se pronunciou definitivamente o douto Tribunal de Última Instância, no âmbito do processo n.º 4/2015 em 26 de Junho de 2019, tendo resumidamente decidido que existe imposição legal para o limite máximo às remunerações a pagar aos promotores de jogo (levado a cabo pelo Despacho do Secretário para a Economia e Finanças n.º 83/2009), mas nada prevê quanto a um mínimo de remuneração e que, não havendo na lei nada que o impeça, bem podiam as partes acordar em que a promotora de jogo tivesse uma remuneração com base na receita da sala de jogo, mas suportando igualmente, parte das perdas da mesma.
XXI. Ademais, como é consabido, esta forma de cálculo é uma prática normal e comummente aceite na indústria do jogo da RAEM, atrevendo-se a ora Recorrente a afirmar ser comum à totalidade ou grande maioria dos contratos de promoção de jogo celebrados entre as Concessionárias e os promotores de jogo.
XXII. Salvo devido respeito por melhor opinião, se o contrato de promoção de jogo em causa nos presentes autos implicasse uma verdadeira cessão da exploração da sala VIIP objecto do mesmo não autorizada, a entidade reguladora do sector, ou seja, a Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) há muito teria intervindo, nos termos do do disposto nas alíneas 2) e 7) do artigo 2º, artigo 6º alíneas 2) e 4) e 1), 2), 3) e 4) do Artigo 8º do Regulamento Administrativo 34/2003.
XXIII. O contrato de promoção de jogo em causa nos presentes autos trata-se de um contrato com cláusulas standards comuns a todos os contratos de promoção de jogo celebrados entre a ora Recorrente e os promotores que lhe prestam serviços, bem assim como aos demais contratos de promoção de jogo celebrados entre as outas Concessionárias e os seus promotores.
XXIV. Assim, salvo devido respeito por melhor opinião, não se afigura correcto o entendimento do douto Tribunal a quo de que o contrato de promoção de jogo celebrado entre a ora Recorrente e a Recorrida é nulo por violação do disposto no artigo 17º, n.º 9 da Lei 16/2001, uma vez que o mesmo implica uma cessão, ainda que parcial, da exploração da sala VIP para a Recorrida, saindo por conseguinte violada tal disposição legal.
Nestes termos, e nos mais em Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso nos termos supra explanados, e consequentemente, julgue procedentes por provados os pedidos da ora Recorrente, fazendo V. Exas. dessa forma inteira e sã JUSTIÇA!”
Ao recurso respondeu a ré, pugnando pela absolvição dos pedidos formulados pela autora.
*
Por sua vez, a ré, inconformada com a sentença que julgou improcedente a reconvenção por si intentada contra a A1, recorreu jurisdicionalmente para este TSI, tendo formulado as seguintes conclusões alegatórias:
“1. A decisão de facto apresenta-se excessiva por envolver a consideração de factos fora das condições da sua admissibilidade e deficiente na selecção dos factos assentes e dos factos quesitado, o que conjugadamente impede o estabelecimento de uma plataforma factual sólida necessária à integração jurídica do caso.
2. O facto constante da alínea C) nunca deveria ter sido selecionado como facto assente, dado que o mesmo foi impugnado expressamente pelo ora Recorrente no artigo 45º da sua contestação, o que é impedido pelas normas dos artigos 403º/2, 562º/3 do CPC e 345º do CC.
3. Sendo que tal facto apenas poderia ser levado ao questionário dado o mesmo ser facto controvertido.
4. O facto alegado pela R no artigo 31º da sua contestação, excepto no segmento em que se afirma “Face à total e inexplicável inércia da Autora” (cfr. artigo 24º da Réplica), deve considerar-se confessado pela A, nos termos do artigo 403º/2 do CPC.
5. O facto alegado pela R no artigo 31º da sua contestação, dado tratar-se de facto complementar ou concretizador do facto quesitado no ponto 8º da douta Base Instrutória, revela-se decisivo para a viabilidade ou procedência da defesa por excepção da Recorrente, razão por que o mesmo deveria ter sido selecionado e integrado na lista dos factos assentes.
6. O ques. 11º revela-se deficiente, dado não integrar na matéria quesitada a referência ao mês de Outubro de 2014, matéria alegada nos artigos 34º, 38º e 44º da contestação e relevante e necessária para a boa e justa de decisão da causa.
7. Por causa de tais deficiências, o despacho que procedeu à selecção da matéria de facto e, através dele, a douta sentença recorrida, ficaram inquinados do vício de deficiência da matéria de facto, previsto nos artigos 629º/4 e 650º do CPC.
8. A Recorrente reclamou do despacho que procedeu à selecção da matéria de facto, tendo requerido, nomeadamente, a respectiva a ampliação, pelo aditamento de nova alínea ao grupo dos factos assentes, com vista a integrar a matéria do artigo 31º da contestação, sento tal pedido rejeitado por despacho de fls. 191 a 192, por entender que tal facto é instrumental e sem “muita relevância para a decisão da causa”.
1. Tal despacho revela-se ilegal, por violação da norma do artigo 430º/1 do CPC, uma vez que tal facto se mostra complementar ou concretizador de factos essenciais e, portanto, relevante para uma decisão justa e criteriosa da causa.
2. Considerada a prova produzida, o Acórdão sobre a matéria de facto respondeu erradamente aos quesitos 5º, 6º e 8º da Base Instrutória.
3. O Tribunal recorrido errou no juízo que fez sobre a credibilidade das testemunhas da Recorrente, tendo por base a referência de uma das testemunhas ao momento em que afirmou ter ocorrido os incidentes, tendo a testemunha afirmado que não se recordava concretamente da hora, que se verificaram dos incidentes ocorridos em momentos diferentes e que na altura dos factos mesma, tal como se pode da reprodução em Recorded on 19-Nov-2019 at 15.23.56 (2ZHM%WH102520319).mp3, pelas 0:01:34, pelas 0:03:47 e pelas 0:54:04.
4. Face ao alegado pela testemunha, principalmente o facto de a mesma ter afirmado que não se lembrava em concreto de qual a hora em que o referido incidente ocorreu, aliado ao facto de a mesma testemunha estar a cumprir, nesse momento, um regime de turno especial, tal como a mesma refere, e ainda a circunstância de terem ocorrido dois incidentes, verificados em momentos distintos, não deveria o Tribunal deixar de reconhecer credibilidade às testemunhas da Recorrente, principalmente quando está em causa aquele depoimento de uma testemunha, afigurando-se ser absurda e ilógica a razão invocada.
5. Os depoimentos das testemunhas da R são de molde a comprovar a realidade de tal factualidade, concretamente, os depoimentos da 1ª testemunha reproduzido na gravação de 19/11/2019, at 10:34:00, pelas 1:47:05, da 2ª testemunha reproduzido na gravação de 19/11/2019, at 15:23:56, pelas 0:16:26 e, em resposta a perguntas da Mma. Juíza, reproduzido na gravação de 19/11/2019, at 15:23:56, pelas 0:54:20, inclusivamente, o depoimento da 3ª testemunha, reproduzido na gravação de 19/11/2019, at 15:23:56, pelas 1:52:52 e pelas 2:04:28, resultando a mesma conclusão do depoimento da 4ª testemunha da A reproduzida na gravação de 19/11/2019, at 15:23:56, pelas 2:18:19 e do depoimento da 2ª testemunha da R, I reproduzido na gravação de 19/19/2019, at 15:23:56, pelas 0:24:27 e pelas 0:29:46.
6. A prova produzida, os factos assentes, os depoimentos ouvidos de todas as testemunhas, principalmente os acabados de especificar, impunham uma resposta positiva aos ques. 5º, 6º e 8º, contrariamente àquela que foi dado pelo Tribunal recorrido.
7. Considerada a prova produzida, o Acórdão sobre a matéria de facto respondeu erradamente aos quesitos 9º e 11º da Base Instrutória.
8. O Tribunal errou na formação e formulação da sua convicção sobre tal matéria.
9. O que se pergunta é saber se a consequência negativa para o negócio e o prestígio da Sala e para a prossecução dos objectivos mínimos é consequência do referido conjunto factos e não, como se pressupõe na douta fundamentação, de um simples episódio.
10. Contrariamente ao afirmado na douta fundamentação, não é verdade que tenha havido qualquer “conflito entre os sócios da Sala VIP” ou “o envolvimento no incidente de uma parceira do patrão” da testemunha em causa, sendo que se encontra assente nos autos é que foi “uma disputa entre dois jogadores” (al CC) dos Factos Assentes), sendo que tendo-se dado como assente tal facto, não poderia o douto Tribunal apoiar o seu juízo no depoimento de uma testemunha que frontalmente contraria aquela matéria assente.
11. A R é uma sociedade unipessoal, razão por que não se pode falar verdadeiramente, sob pena de contradição nos próprios termos, de sócios da R.
12. Dos documentos dos AA, inclusivamente dos juntos pela A (fls. 272) resulta que C não é parceira de negócios do administrador da Recorrente, mas sim de sócio de um outro promotor de jogo D.
13. Não se cuida de saber se a intervenção da PJ se traduziu ou não “exercício legítimo do poder público”, mas antes se a intervenção da mesma, ainda que legítima, afectou ou não negócio da sala aí em causa.
14. Os depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência são de molde a impor uma decisão diferente a tais quesitos, nomeadamente, da 1ª testemunha da R, que presenciou os factos mencionados em EE), FF), GG), II), JJ) e KK), reproduzido na gravação de 19/11/2019, at 10:34:00, pelas 1:24:32, 1:39:05, 1:53:47 e pelas 1:56:32 e pelas 2:00:25, da 2ª testemunha da R, reproduzido na gravação de 19/11/2019, at 15:23:56, pelas 0:25:02, 0:27:59 e pelas 0:32:55 e também da 3ª testemunha da R, funcionário da A, reproduzido na gravação de 19/11/2019, at 15:23:56, pelas 1:28:12.
15. As considerações supra referidas, os depoimentos ouvidos em audiência, concretamente os supra especificados impunham também uma resposta positiva aos ques. 9 e 11º da Base Instrutória, contrária àquela que foi dada pelo Colectivo.
16. Considerada a prova produzida, o Acórdão sobre a matéria de facto respondeu erradamente aos quesitos 14º, 15º, 16º e 17º da Base Instrutória.
17. O Tribunal recorrido não devia ter considerado “prejudicados os factos dos quesitos dos quesitos 14º a 16º”, dando-os por não provados, sem qualquer outra fundamentação.
18. A resposta negativa ao facto de a A ter fechado a Sala VIP unilateralmente a partir de 31 de Janeiro de 2015, não impedia que o douto Tribunal se pronunciasse, autonomamente, tendo em conta a prova produzida, sobre os referidos ques. 14º, 15º e 16º, sem vinculação à resposta dada ao ques. 12º.
19. Tendo-se dado como provado que “a Ré deixou de poder explorar a sua actividade na Sala VIP a partir de 31 de Janeiro de 2015” (cfr. resp. ques. 13º) (fls. 327), afirmando o douto Tribunal que a cessação da actividade da R se deveu à resolução do contrato pela A e não por força do encerramento unilateral da sala, e encontrando-se assente que o referido contrato entrou em vigor no dia 18 de Setembro de 2013 (al. NN) dos Factos Assentes) e que tem a duração de 3 anos (al. OO) dos Factos Assentes), afigura-se à Recorrente que o douto Colectivo deveria ter proferido decisão de sentido diferente sobre tais factos e não, como fez, considerando-os prejudicados, em virtude da resposta dada ao ques. 12º; também o depoimento da 2ª testemunha da R reproduzido na gravação de 19/11/2019, at 15:23:56, pelas 0:40:37, aliado a facto assente da al. PP), impunha que se respondesse positivamente ao ques. 17º, contrariamente ao que fez o tribunal recorrido.
20. É razoável e lógico o fundamento invocado pelo douto Tribunal para justificar a decisão de sentido negativo dada ao ques. 17º.
21. Está em causa é um dano futuro, isto é, a frustração de um rendimento emergente da cessação do contrato, por força da resolução imposta pela A, o qual é previsível quando se pode prognosticar, conjecturar com antecipação ao momento em que ocorrerá, caso contrário, o dano é imprevisível, não sendo indemnizável antecipadamente.
22. Estando provado que o contrato tinha vigência até ao dia 18 de Setembro de 2016, não se tendo provado que a actividade ora Recorrente cessara por outras razões que não a resolução do contrato por vontade da A, tendo-se de presumir que a R continuaria normalmente a desenvolver a sua actividade, superando os efeitos negativos decorrentes da situação anómala ocorrida em Outubro de 2014 e recuperando a médica das comissões recebidas no ano anterior, de Setembro de 2013 a Setembro de 2014, tem pois de concluir-se tratar-se de um dano futuro previsível com grau de segurança bastante e, portanto, indemnizável.
23. Tendo-se dado por assente que no ano imediatamente anterior a Recorrente recebeu comissões no valor médio mensal de HK$40.674.373,15 (al. PP) dos Factos Assentes), afigura-se demonstrada a probabilidade suficiente da obtenção de tal ganho para que o douto Tribunal desse como provado tal facto.
24. As respostas dadas aos ques. 13º e 14º revelam-se ainda total ou parcialmente obscuras e incongruentes.
25. Se provou que a Ré “deixou de poder explorar a sala VIP a partir de 31 de Janeiro de 2015”, era porque ela poderia continuar a exploração da sala e se deixou de a explorar por causa da resolução do contrato, era porque ela, não fosse a resolução do contrato, poderia continuar a explorar a sua actividade na sala a partir de 31 de Janeiro.
26. O Tribunal não fundamenta a decisão dada aos quesitos 14º a 16º, conquanto se limita a afirmar que os mesmos estão prejudicados pela resposta dada a outro ques. 12º, principalmente quando se constata que os mesmos explicitam realidades factuais distintas, o que claramente revela que o douto Tribunal recorrido não chegou a pronunciar-se sobre cada um desses pontos da matéria de facto, o que apenas fez por decorrência da decisão negativa relativamente ao ques. 12º.
27. A factualidade provada não permite concluir como concluiu a Sentença recorrida no sentido de que o contrato celebrado entre a A e a R, ora Recorrente operou, contra legem, a transferência ou a cessão, ainda que parcial, da exploração do jogo de fortuna ou azar.
28. Não se provando que tenha havido transferência da titularidade dos meios, o espaço, as mesas da concessionária, ora Recorrida, para a promotora, ora Recorrente, não se pode afirmar que tenha havido transmissão ou cessão total ou parcial da concessão de jogo.
29. Apesar da actividade desenvolvida pela Recorrente, tudo se encontra sujeito exclusivamente à administração da Recorrida, a qual é solidariamente responsável pela actividade desenvolvida pela Ré enquanto promotora de jogo, nos termos do artº 29º e 30º-A da Lei 16/2001.
30. A participar da Recorrente no prejuízo das mesas que explora não é bastante para permitir a conclusão a que chega o Tribunal recorrido.
31. A participação da Recorrente no prejuízo das mesas é forma de incentivar a responsabilização do promotor pela actividade por si exercida, lucrativa, mas também muito exigente em termos de esforço e empenho e no risco associado, nomeadamente de prejuízos altos.
32. A promoção de jogos de fortuna e azar é também uma actividade comercial, pelo que, o participar nos proveitos e nos prejuízos não extravasa os fins a que se destina, não significando nem podendo significar transferência da exploração de jogos fortuna e azar.
33. Não havendo transferência da exploração dos jogos de fortuna e azar, não se verifica a previsão do n.º 9 do artº 17º da Lei n.º 16/2001, falecendo a sustentada nulidade do contrato de promoção.
34. A lei claramente admite outros modelos de pagamento ou remuneração aos promotores de jogo para além do sistema clássico de pagamento de comissões calculadas sobre os valores das fichas não negociáveis transacionadas num dado mês, designado na gíria por net rolling; podendo ser modelo alternativo o sistema de partilha de ganhos e de perdas brutas mensais decorrentes da actividade de promoção desenvolvida nas salas VIP, tal como vem comprovado nos autos, sendo esse o sistema contratado no caso vertente.
35. As disposições citadas não impedem as de acordar outros sistemas remuneratórios, com outras bases de cálculos e outras obrigações e contrapartidas para o promotor, como os de participar numa percentagem dos prejuízos brutos da sala VIP, caso os haja, desde que, naturalmente, destes sistemas não resultem pagamentos ao promotor de valores superiores ao limite legal, aí, sim, observando-se uma norma imperativa, cuja justificação se alcança perfeitamente, a fim de evitar práticas potencialmente atentatórias de uma livre e sã concorrência no sector.
36. Os normativos citados referem-se apenas a remunerações aos promotores e não às obrigações e pagamentos destes às concessionárias decorrentes do contrato de promoção de jogo.
37. De acordo com o disposto no n.º 1 artigo 392º do CC, as partes podem fixar livremente, dentro dos limites da lei, o conteúdo positivo ou negativo da prestação.
38. Segundo o consagrado no artigo 399º do CC, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste Código ou incluir nestas cláusulas que lhes aprouver e reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, totalmente ou parcialmente regulados na lei.
39. Não havendo qualquer disposição que proíba aos promotores de jogo de partilharem com as concessionárias uma percentagem dos prejuízos verificados nas salas VIP que aqueles operam a favor destas, no âmbito da liberdade contratual que a lei lhes confere, as partes convencionaram no contrato de promoção o modelo da “Partilha de Ganhos e de Perdas”, por via do qual o promotor é remunerado com base numa determinada percentagem das receitas brutas das salas VIP e, em contrapartida, responde por uma percentagem dos prejuízos brutos verificados na mesma, conforme acima descrito.
40. A decisão recorrida ao decidir como decidiu violou o princípio da autonomia privada e da liberdade contratual das partes, e traduz uma menos acertada interpretação das normas relativas às citadas da Lei do Jogo, Regulamento Administrativo n.º 6/2002, do Regulamento Administrativo n.º 27/2009 e Despacho do Secretário para a Economia e Finanças n.º 83/2009, pelo que se impõe a sua revogação.
41. O que significa que podiam as partes acordar em que a promotora de jogo tivesse uma remuneração com base na receita da sala de jogo, mas suportando igualmente, parte das perdas da mesma.
42. Pelo que se tem de concluir, tal como se sintetiza do sumário do Ac. do TUI que a cláusula contratual, celebrada entre operador de casino e promotor de jogo, no sentido de este suportar determinada percentagem das perdas da sala de jogo onde opera, em exclusivo, não viola o Regulamento Administrativo n.º 6/2002, designadamente os seus artigos 1º, 2º e 27º.
Razão por que se requere a exclusão da matéria da al. S) da lista dos Factos Assentes e a sua introdução na douta Base Instrutória e a ampliação dos Factos Assentes e da Base Instrutória nos termos referidos, com vista a constituir a base factual sólida necessária à resolução da questão.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., se requer se dignem V. Exas., reapreciando a prova produzida, conceder provimento ao presente recurso e, em consequência:
- Anular a decisão recorrida e, concomitantemente, o despacho que rejeitou o aditamento de novo facto assentes, eliminado o facto constante da al. C) dos factos assentes e integrando-o na Base Instrutória, ampliando a matéria assente com o alegado no artigo 31º da contestação e ampliando o âmbito do quesito 11º, proferindo nova decisão em conformidade com tais factos;
- Revogar a sentença recorrida, proferindo nova decisão aos quesitos mencionados, nos termos das normas do artigo 629/1/2/3 do CPC;
- Revogar a decisão recorrida, por erro de julgamento, proferindo nova decisão, nos termos peticionados na contestação;
Caso assim não se entenda
- Anular a decisão recorrida em virtude da insuficiência da matéria selecionada, obscuridade e contradição na decisão de facto e falta de fundamentação, ordenando o reenvio do processo ao Tribunal recorrido para suprimento de tais vícios.”
Ao recurso respondeu a autora, apresentando nas alegações as seguintes conclusões:
“I. Vem o Recurso a que ora se responde interposto da Sentença final proferida pelo douto Tribunal a quo que indeferiu a presente acção, bem assim como o pedido reconvencional deduzido pela Ré, ora Recorrente, com fundamento na alegada nulidade do Contrato de Promoção de Jogos celebrado entre a ora Recorrente e a Recorrida, nulidade essa decorrente da violação do disposto no n.º 9 do artigo 17º da Lei n.º 16/2001.
II. O Recorrente insurge-se em relação à matéria de facto dada como assente na alínea S) dos Factos Assentes, por entender que tal matéria não deveria ter integrado o elenco dos factos assentes por se tratar de um facto alegado pela Autora no artigo 26º da p.i. e impugnado pela Ré no artigo 45º da contestação, porém, não existe uma impugnação expressa do alegado pela ora Recorrida no artigo 26º da petição inicial, pois que, aquilo que a Recorrente alegada nos artigos 45º e 46º da sua contestação foi que não concordou com a aplicação da penalidade e que requereu à Autora que a cancelasse, mas que, na sequencia do seu pedido, a Autora, ora Recorrida, apenas acedeu em diminuir a penalidade, conforme descrito no artigo 26º da p.i.
III. Assim, sendo, salvo devido respeito por melhor opinião, a Recorrente no artigo 46º da sua contestação confirma o teor do alegado no artigo 26 da p.i., donde nenhum vício há a apontar à inclusão do facto vertido em tal artigo no elenco da matéria de facto assente e deverá ser mantida na íntegra a alínea S) da matéria de facto assente.
IV. Invoca a Recorrente que o douto Tribunal a quo deveria ter levado à Matéria de Facto Assente parte do que foi alegado no artigo 31º da contestação, mais especificamente que “O administrador da Ré, Sr. F, viu-se forçado a apresentar queixas à PJ e a outras autoridades competentes sobre a permanência de agentes na Sala VIP”, pois tal facto, para além de parcialmente confessado pela ora Recorrida, nos termos do artigo 24º da Réplica, se trata de um facto complementar ou concretizador do facto quesitado no artigo 8º da Base Instrutória.
V. No artigo 8º da Base Instrutória foi devidamente quesitado se “Apesar das diversas solicitações da Ré, a Autora, mais uma vez, não prestou qualquer assistência nesse âmbito?” e no que respeita a factos densificadores e concretizadores a alegada e não provada falta de assistência por parte da ora Recorrida o douto Tribunal a quo mais incluiu na base instrutória os factos constantes dos artigos 5º e 6º, sendo que tais factos foram dados por não provados.
VI. Também nas alíneas II, JJ e KK dos factos assentes, no quesito 7 – que foi dado como não provado – e no quesito 9 – que foi dado como não provado -, foram saneados pelo douto Tribunal a quo todos os factos relevantes para a boa decisão da causa e que respeitavam à permanência de agentes da PJ na Sala VIP e o eventual nexo causal entre essa permanência e os maus resultados alcançados pela Sala, bem assim como estes factos se reputam densificadores e concretizadores da alegada e não provada falta de assistência por parte da ora Recorrida e as suas alegadas e não provadas consequência.
VII. Donde, salvo devido respeito por melhor opinião, nenhum vício, designadamente o de insuficiência da matéria de facto, deve ser apontado à decisão recorrida no que respeita à não inclusão nos Factos assentes de que foi o administrador da Recorrente quem fez queixa à própria Polícia Judiciária da actuação dos seus agentes.
VIII. De qualquer forma sempre se diga que, contra a não inclusão de tal facto constante do artigo 31º da Contestação na lista dos Factos Assentes já se havia insurgido a Recorrente na reclamação que apresentou da selecção da matéria de facto – vide fls. 175 e 176, sendo que, por decisão proferida a fls. 191 dos autos, o douto Tribunal a quo havia já decidido indeferir a reclamação do Recorrente por entender que tal facto fazia “parte dos factos instrumentais da versão alegada pela Ré nos quesitos n.º 5 e seguintes” e também por o considerar destituído de relevância para a boa decisão da causa.
IX. Ora, não se conformando com esta decisão, no ponto C) das suas aliás doutas Alegações, o Recorrente veio impugná-la nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 430º, n.º 3 do CPC, porém, face ao que supra se disse, e tendo em conta que a matéria referente à alegada falta de assistência por parte da ora Recorrida foi devida e abundantemente investigada pelo douto Tribunal a quo e porque efectivamente, pouco releva se o administrador da Recorrente se queixou ou não da actuação da Policia Judiciária, nenhum vício há apontar a tal decisão de fls. 191 e 192, designadamente a violação do disposto no artigo 430º, n.º 1 do CPC.
X. A Recorrente assaca ainda à decisão sob recurso o vício de insuficiência da matéria de facto por entender que no quesito 15º - que foi dado como não provado – se deveria também ter incluído a menção ao mês de Outubro de 2014, face ao alegado nos artigos 34º, 38º e 44º da Contestação.
XI. Porém, e no que respeita à causa dos maus resultados de Outubro de 2014, tal matéria está em abundância incluída nos quesitos 5º a 10º da Base Instrutória e consequentemente, incluí-la também no quesito 15º seria, salvo devido respeito, redundante, pelo que deverá neste ponto improceder o recurso a que ora se responde, sendo se concluir que nada há a apontar, nem por excesso e nem por defeito, à selecção da matéria de facto realizada pelo douto Tribunal a quo.
XII. Insurge-se a Recorrente com a respostada dada pelo douto Tribunal a quo aos quesitos 5º, 6º e 8º, por entender que mal andou o douto Tribunal na apreciação que fez do depoimento prestados pelas 1ª, 2ª testemunhas da Ré e da 3ª e 4ª testemunhas da Autora.
XIII. A impugnação que a Recorrente faz da decisão do tribunal de primeira instância e bem assim como o erro na apreciação da prova que aponta à decisão recorrida resumem-se a uma mera discordância ou divergência em relação à resposta do tribunal e à valoração feita em relação ao depoimento das testemunhas que depuseram sobre tais quesitos.
XIV. O douto Tribunal a quo fez uma valoração fundamentada do depoimento prestados pelas testemunhas em relação a esta matéria e, com base na sua percepção imediata de tais depoimentos, entendeu que o depoimento das testemunhas da Autora é mais coerente com outras provas documentais existentes, o que levou o Tribunal a inclinar-se pela versão apresentada pela Autora e para além de assim concluir, o douto Tribunal a quo indica ainda os motivos que o levaram a assim decidi, fundamentando e justificando devidamente porque assim o fez.
XV. Ademais, a análise e ponderação do douto Tribunal a quo é muito pertinente já que, para além de efectivamente ter afirmado que a ocorrência se deu entre as 12:00am e as 5:00pm, a 2ª testemunha da Ré mais afirmou naquele dia o seu turno terminou pelas 17h00 ou 18h00 e que a essa hora as 50 pessoas que haviam invadido a Sala VIP estavam prestes a sair, a testemunha mais referiu que terá sido a A, ora Recorrida, a chamar a participar a ocorrência à Policia Judiciária, vide depoimento registado em Recorded on 19-Nov-2019 at 15.25.30 minutos 51:00 em diante (translator 1).
XVI. Nada há assim a apontar à valoração que o douto Tribunal a quo fez do depoimento da 2ª testemunha da Recorrente.
XVII. Não é verdade inverídico que as 3º e 4º testemunhas da ora Recorrida tenham confirmado que esta nada fez, pois, que, conforme resulta do depoimento das mesmas, devidamente identificada nas alegações a que ora se responde, ambas confirmaram que depois de terem tido conhecimento do incidente o comunicaram prontamente às autoridades com poder bastante para intervir, ou seja, a Policia Judiciária e a Direcção de Inspecção de Jogos.
XVIII. Face ao supra exposto, salvo devido respeito, nada há a apontar à decisão proferida quanto à matéria constante dos quesitos 5º, 6º e 8º da base instrutória, encontrando-se a mesma devidamente fundamentada e proferida de forma clara, objectiva e fundada na livre apreciação da prova testemunhal e documental efectuada pelo douto Tribunal a quo, não tendo sido violada qualquer regra relativa à força probatória das provas apresentadas e nem cometido qualquer erro manifesto ou contradição evidente entre a prova produzida e a decisão tomada.
XIX. A Recorrente com a resposta dada pelo douto Tribunal a quo à matéria objecto dos quesitos 9º e 11º da base instrutória.
XX. É certo que o incidente de 5 de Outubro de 2015 se desenrolou na forma descrita nas referidas alíneas DD), EE), FF) e GG) dos facto assentes, mas ele não deixou de se tratar de um incidente único e isolado que teve inicio, meio e fim naquele próprio dia.
XXI. Assim sendo, poder-se-á concordar com o Recorrente e concluir-se que este incidente e até mesmo a permanência de agentes da Polícia Judiciária na Sala VIP nos 10 dias que se lhe seguiram perturbou o normal funcionamento da Sala VIP, naturalmente naqueles dias, porém bem diferente é concluir-se que o incidente ocorrido em 05.10.2014 e a permanência da Policia na Sala VIP num período que terá ido de 06.10.2014 a 16.10.2014, determinaram os maus resultados alcançados na Sala Vip naqueles mês de Outubro e nos três meses que se lhe seguiram, ou seja, Novembro, Dezembro de 2014 e Janeiro de 2015.
XXII. Uma vez mais, a impugnação que a Recorrente faz da resposta dada pelo douto Tribunal a quo aos quesitos 9º e 11º da base instrutória trata-se de uma mera discordância ou divergência da análise da prova realizada pelo douto Tribunal recorrido.
XXIII. O Recorrente insurge-se com o facto de o Tribunal Recorrido ter dado relevância ao depoimento das testemunhas da Autora, na parte em que as mesmas deram conta que os problemas da Sala Vip em causa nos presentes autos, sendo certo que, em consonância com tais depoimentos temos os documentos de fls. 273 a 276 dos autos, dos quais resulta que a ora Recorrente, quer na altura da ocorrência do incidente na sala VIP ora em questão, quer posteriormente, ultrapassava dificuldades e que o seu prestigio era questionado em praça pública por motivos que nada tinham que ver com o incidente ocorrido no dia 5 de Outubro de 2014.
XXIV. E quanto a esta matéria veja-se o que a testemunha E da ora Autora refere no depoimento que prestou que a Recorrente tinha problemas com os seus sócios e parceiros, vide o depoimento gravado in Recorded on 19-Nov-2019 at 16:36:43 (translator 1), minuto 5.07 a 7:56 e depois de minuto 18:13 até final, e Recorded on 19-Nov-2019 at 17:11:29 (translator 1) – minuto 00:00 até final.
XXV. Por outro lado, a própria 2ª testemunha da Ré, então gerente da Sala VIP (no depoimento gravado em 19-Nov-2019 às 15.25.30 – Translator 1), o mesmo refere que a permanência da Policia era essencial pois que se estava a lidar com uma associação criminosa, a qual receava e que até ameaçam, e o meu gerente, depois do trabalho até o perseguem, veja o grau de gravidade!
XXVI. Assim, com base nestes depoimentos e demais documentos juntos aos autos, bem andou o douto Tribunal a quo ao responder de forma negativa aos quesitos 9º e 11º da Base Instrutória, devendo em consequência manter-se tal decisão.
XXVII. Finalmente a Recorrente insurge-se com a resposta dada aos quesitos 14º a 17º da base instrutória, decorrente do alegado erro na apreciação da prova, porém, uma vez mais a impugnação da resposta dada a tais quesitos trata-se de uma mera discordância da Recorrente em relação à interpretação que o douto Tribunal a quo fez das provas produzidas.
XXVIII. Não existe qualquer erro manifesto e nenhum elemento de prova cujo valor probatório tenha sido violado na resposta dada a estes quesitos e, como bem decidiu o douto Tribunal a quo, ao se ter provado nos presentes autos apenas que o contrato de promoção de jogo celebrado entre a ora Recorrida e a Recorrente foi por aquela resolvido por carta datada de 27 de Janeiro de 2015, e com os fundamentos da mesma constante, (alínea A)A) dos factos assentes), lógica é a decisão do douto Tribunal a quo ao considerar prejudicada a resposta à matéria dos quesitos 14º a 16º, a qual, contém matéria diametralmente oposta àquela que consta da referida alínea A)A) dos factos assentes.
XXIX. Salvo devido respeito, torna-se efectivamente desnecessária a resposta aos quesitos 14º a 16º, e julgamos ser até que se fosse a resposta a tal matéria alterada nos termos propostos pela Recorrente a mesma passaria a ter uma natureza puramente puramente conclusiva.
XXX. Quanto à resposta ao quesito 17º, também nada há a apontar à decisão do douto tribunal a quo, para prova de tal quesito a Ré apresenta apenas os resultados que teve no ano anterior e utiliza a média de tais resultados para conjecturar os resultados que conseguiria alcançar não fora o contrato ter terminado em Janeiro de 2015.
XXXI. Pretender provar que conseguiria continuar a sua actividade nos exactos mesmos termos em que o fez no ano anterior aos acontecimentos de Outubro de 2014, seria olvidar todos os circunstancialismos que objectivamente afectaram o seu negócio em particular e ainda aqueles que afectaram a indústria do jogo em geral.
XXXII. No campo do negócio da própria Recorrente, resultou devidamente demonstrado nos presentes autos que, para além da sala VIP que esta promovia no Casino [Hotel(1)], outras salas que esta promovia em outros casinos da RAEM foram encerradas, vide o depoimento supra da testemunha E Recorded on 19-Nov-2019 at 17:11:29 (translator 1) – minuto 00:00 até final.
XXXIII. Também conforme resulta do documento de fls. 273 a 276, em Março de 2014 um dos parceiros da Recorrente fugiu com mais de 10 mil milhões de HK$, e isso, salvo devido respeito, necessariamente afectou os negócios da Recorrente, e os problemas da Recorrente com os seus parceiros não se terão ficado por ali, pois que também o incidente que ocorreu em Outubro de 2014 e em discussão nos presentes autos envolveu outra parceira da Recorrente.
XXXIV. Assim sendo, resulta óbvio que mercê de instabilidades internas da própria Recorrente a sua capacidade produtiva estava seriamente afectada e nada garantia que pudesse continuar a sua actividade nos exactos mesmos moldes em que o fizera até Setembro de 2014.
XXXV. Tudo isto resulta devidamente confirmado pela primeira testemunha da ora Recorrida no depoimento devidamente gravado em Recorded on 19-Nov-2019 at 11.05.42 (translator 1) – minuto 26:47 até final.
XXXVI. Nada há apontar à resposta negativa dada pelo douto Tribunal a quo ao quesito 17 e que deverá manter-se inalterada.
XXXVII. Por fim e no que à impugnação da matéria de facto respeita, a Recorrente aponta a existência de uma obscuridade e contradição nas respostas dadas aos quesitos 13 e 14 e bem assim como falta de fundamentação da resposta dada aos quesitos 14 a 16.
XXXVIII. Como acime se referiu, a matéria contida no quesito 14 fica efectivamente prejudicada pela resposta dada aos quesitos 12 e 13 da base instrutória, pois que ficou provado que o contrato foi resolvido pela ora Recorrida com fundamento no facto de a Recorrente não ter atingido os objectivos contratualmente estipulados nos três meses anteriores à resolução (quesitos 12 e 13), e ficou também assente a celebração do contrato celebrado entre Recorrente e Recorrida em toda a sua extensão, designadamente, a sua duração inicial.
Ora,
XXXIX. Seguramente que, se o contrato foi resolvido, a Recorrente não pode continuar a sua actividade, mas não é isso que se pergunta no quesito 14 e nem foi com essa intenção que a Recorrente alegou tal facto na sua Reconvenção.
XL. O que se pergunta no quesito 14 é manifestamente contraditório com aquilo que resultou provado face à resposta dos quesitos 12 e 13, e por isso sua resposta tornou-se necessariamente aquela que foi dada pelo douto Tribunal a quo.
XLI. Por outro lado, ao se pronunciar no sentido de que o contrato dos autos foi resolvido pela ora Recorrida por a Recorrente não ter atingido os seus objectivos nos meses de Novembro, Dezembro de 2014 e Janeiro de 2015, o douto Tribunal a quo está necessariamente a pronunciar-se também sobre a matéria que estava quesitada nos quesitos 14 a 16.
XLII. Se o tribunal chega à conclusão de que choveu porque o céu se apresentava carregado de nuvens e que dessas nuvens caiu água, não precisa justificar porque deu como não provados os quesitos onde se perguntava se estava sol.
XLIII. Assim, salvo devido respeito não existe qualquer contradição, obscuridade ou falta de fundamentação na resposta dada aos quesitos 14 a 16 da base instrutória, devendo a decisão recorrida ser integralmente mantida em relação aos mesmos.
XLIV. Quanto á impugnação da decisão recorrida na parte em que aplica o direito aos factos, a ora Recorrida subscreve a opinião da Recorrente na parte em que imputa à decisão recorrida o erro de julgamento por violação das normas legais.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o Recurso a que ora se responde ser indeferido na parte que incide sobre a decisão da matéria de facto, devendo porém proceder na parte em que impugna a decisão por erro de julgamento, por violação das normas legais.
Termos em que farão V. Exas. JUSTIÇA!”
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
A Autora é uma sociedade comercial anónima que se dedica à exploração de jogos de fortuna e azar em casino. (alínea A) dos factos assentes)
A Autora é concessionária para a exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, nos termos do contrato celebrado por escritura pública em 28 de Março de 2002 entre a primeira outorgante e o Governo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), publicado no Suplemento da Série II do Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau n.º14 de 3 de Abril de 2002, e posteriormente alterado por escritura de 19 de Abril de 2005, lavrada de folhas 90 a 122 do Livro 373 da Divisão de Notariado da Direcção dos Serviços de Finanças de Macau, alteração essa publicada na Série II do Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau n.º18, de 04/05/2005. (alínea B) dos factos assentes)
A Ré é uma sociedade registada na Conservatória do Registo Comercial de Macau sob o n.º XXXXX(SO) que se dedica à actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino. (alínea C) dos factos assentes)
A Ré exerce a referida actividade enquanto titular da licença n.º XXXXX emitida pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos. (alínea D) dos factos assentes)
Em 9 de Setembro de 2013, a Autora celebrou com a referida sociedade um Contrato de Promoção de Jogos de Fortuna ou Azar em Casino para a Sala B VIP Club (XXXXX), no Casino [Hotel(1)], conforme documento que se junta sob a designação de doc. 4 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos. (alínea E) dos factos assentes)
No âmbito do referido Contrato Promoção de Jogos, a Ré comprometeu-se a tomar todas as diligências necessárias à promoção do mercado, entre as quais, o aprovisionamento de transporte, alimentação, alojamento e entretenimento, com vista a captar os interessados para jogarem na referida sala do casino melhor identificada em E). (alínea F) dos factos assentes)
Nos termos da cláusula 5ª do contrato, com excepção das despesas das primeiras obras de benfeitorias e das facilidades básicas, a Ré ficou responsável, entre outras, pelas despesas de manutenção e conservação do interior da sala do casino, incluindo mas não se limitando às despesas de telefone. (alínea G) dos factos assentes)
Nos termos do número 3 da cláusula 5ª do contrato, a Ré comprometeu-se a compensar a Autora pelas perdas verificadas na Sala VIP por si promovida até ao dia 5 do mês seguinte a que tais perdas digam respeito. (alínea G-1) dos factos assentes)
Nos termos da cláusula 4ª e 16ª do contrato e do Anexo I, foi acordado que a Ré obrigou a adquirir mensalmente, para os jogadores por si angariados, um volume mínimo de fichas especiais por mesa correspondente a HKD$200.000.000,00 e assegurar que cada mesa tivesse um ganho mensal superior a HKD$6.000.000,00. (alínea H) dos factos assentes)
A remuneração da Ré, era calculada de acordo com a tabela constante do Anexo I, ou seja:
Montante de fichas por mês e por mesa
Comissão baseada nos ganhos
Comissão sobre fichas adquiridas
Subsídio
De
Até
850 milhões
Mais
47,50%
0,1200%
0.03%
800 milhões
850 milhões
47,50%
0,1100%
0.03%
750 milhões
800 milhões
47,50%
0,1000%
0.03%
700 milhões
750 milhões
47,50%
0,0900%
0.03%
650 milhões
700 milhões
47,50%
0,0800%
0.03%
600 milhões
650 milhões
47,50%
0,0700%
0.03%
550 milhões
600 milhões
47,50%
0,0600%
0.03%
500 milhões
550 milhões
47,50%
0,0550%
0.03%
450 milhões
500 milhões
46%
0,0500%
0.03%
400 milhões
450 milhões
46%
0,0450%
0.03%
350 milhões
400 milhões
46%
0,0400%
0.03%
300 milhões
350 milhões
46%
0,0350%
0.03%
250 milhões
300 milhões
46%
0,0300%
0.03%
Menos de 250 milhões
46%
0,0000%
0.03%
(alínea I) dos factos assentes)
A retribuição acordada era paga pela Autora à Ré até ao dia 10 do mês seguinte a que a mesma diz respeito. (alínea J) dos factos assentes)
Ainda nos termos das referidas cláusula 4ª, 16ª e Anexo I, caso a Ré não conseguisse atingir os objectivos mencionados em H), a sua comissão seria calculada à razão de 55% das Receitas da Sala VIP, acrescida de uma penalização correspondente a HKD$550.000,00 por mesa de jogo. (alínea K) dos factos assentes)
Caso as receitas da sala de jogo promovida pela Ré fosse negativas e/ou caso a penalização a que a Ré estava sujeita caso não atingisse os objectivos estabelecidos no n.º1 do Anexo I, ou seja, HKD$550.000,00 por mesa, ultrapassasse o valor da Comissão a que estava intitulada, a Ré autorizou a Autora a descontar nas retribuições que lhe competissem os valores das comissões negativas nos termos da cláusula 20ª do contrato e da “Carta de Aval de Garantia do cumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo promotor de jogo” assinada pela Ré, na data da celebração do contrato. (alínea L) dos factos assentes)
Nos termos da cláusula 19ª do contrato, a Ré autorizou a Autora a descontar os impostos legalmente estabelecidos nas remunerações cujo pagamento lhe fosse devido. (alínea M) dos factos assentes)
A Sala VIP promovida pela Ré contava inicialmente com 10 mesas de jogo. (alínea N) dos factos assentes)
Sendo que, a partir de Novembro de 2014, a solicitação da própria Ré, passou apenas a contar com 7 mesas. (alínea O) dos factos assentes)
Em Outubro de 2014, a Ré não conseguiu promover o valor mínimo de fichas por mesa. (alínea P) dos factos assentes)
Nesse mês, o valor de fichas adquiridas ficou-se nos HKD$402.000.000,00. (alínea Q) dos factos assentes)
Em virtude do facto referido em P), a Autora tinha descontado HKD$5.500.000,00, a título de penalidade, nos termos do Anexo I do contrato, no valor da comissão a que nesse mês a Ré teria direito, ou seja, HKD$14.396.800,00. (alínea R) dos factos assentes)
A pedido da própria Ré, a ora Autora, visto que aquela tinha sido a primeira vez que a Ré não tinha conseguido atingir um dos objectivos, acedeu em diminuir o valor da referida penalidade para HKD$5.000.000,00. (alínea S) dos factos assentes)
Sendo que o valor de HKD$500.000,00 lhe seriam creditados na comissão que lhe coubesse no mês seguinte. (alínea T) dos factos assentes)
Em Novembro, Dezembro e Janeiro de 2014, o Réu não conseguiu atingir nenhum dos objectivos estipulados no Anexo I do contrato. (alínea U) dos factos assentes)
Em Novembro de 2014 a Ré apenas promoveu a aquisição de fichas especiais de jogo no valor de HKD$493.000.000,00 (quatrocentos e noventa e três milhões de dólares de Hong Kong). (alínea V) dos factos assentes)
A sala de jogo por si promovida apresentou perdas no valor de HKD$11.775.845,00. (alínea W) dos factos assentes)
No mês de Dezembro de 2014, a Ré apenas promoveu a aquisição de fichas especiais de jogo no valor de HK$99.600.000,00 (noventa e nove milhões e seiscentos mil dólares de Hong Kong). (alínea X) dos factos assentes)
A sala VIP teve perdas no montante de HKD$1.554.085,00. (alínea Y) dos factos assentes)
Por carta datada de 30 de Dezembro de 2014, a ora Autora interpelou a Ré para o pagamento dos valores que até àquela data se encontravam em dívida, ou seja, HKD$9.876.014,00 x 1,03 (taxa de conversão para patacas). (alínea Z) dos factos assentes)
A ora Autora, por carta datada de 27 de Janeiro de 2015, resolveu o contrato de promoção de jogo celebrado com a ora Ré, cfr. documento n.º11 que se junta com a P.I. e aqui se dá por integralmente reproduzido. (alínea AA) dos factos assentes)
Carta esta que a Ré recebeu. (alínea BB) dos factos assentes)
Até à presente data, a Ré não procedeu ao pagamento da quantia reclamada à Autora. (alínea CC) dos factos assentes)
A Ré, para além de ter sido interpelada verbalmente para pagar a quantia reclamada à Autora na data em que cessou a sua actividade, foi-o também através da carta de interpelação datada de 10 de Março de 2015. (alínea CC-1) dos factos assentes)
No dia 5 de Outubro de 2014, na Sala B VIP Club (adiante “Sala VIP”), onde a Ré desenvolvia a sua actividade, surgiu uma disputa entre dois jogadores. (alínea DD) dos factos assentes)
No mesmo dia, e na sequência da referida disputa, uma das jogadoras em causa voltou para a Sala VIP, acompanhada por cerca de 60 pessoas. (alínea EE) dos factos assentes)
Ora, tais indivíduos ocuparam a Sala VIP sem qualquer intenção de jogar. (alínea FF) dos factos assentes)
O que impediu o funcionamento normal da Sala VIP, tendo os outros jogadores que estavam dentro da sala saído para irem jogar noutros sítios. (alínea GG) dos factos assentes)
É a Autora responsável pela segurança da Sala VIP. (alínea HH) dos factos assentes)
A partir da data do referido incidente, como houve participação do caso à Polícia Judiciária (“PJ”), os agentes da PJ começaram a vigiar a Sala VIP diariamente. (alínea II) dos factos assentes)
Durante cerca de 10 dias, agentes da PJ permaneceram 24 horas por dia Sala VIP, verificando os documentos de identificação de todos os jogadores que ali se encontravam. (alínea JJ) dos factos assentes)
Passados cerca de 10 dias desde a data da disputa descrita supra, os agentes da PJ finalmente deixaram de permanecer na Sala VIP. (alínea KK) dos factos assentes)
A Ré teria direito a uma comissão no valor de HKD$14.396.800,00 referente ao mês de Outubro de 2014. (alínea LL) dos factos assentes)
Relativamente ao mês de Outubro de 2014, em vez de receber o valor total de HKD$14.396.800,00, a Ré recebeu apenas HKD$8.856.600,00. (alínea MM) dos factos assentes)
O contrato referido em E) entrou em vigor no dia 18 de Setembro de 2013. (alínea NN) dos factos assentes)
De acordo com o n.º1 da cláusula 31ª do contrato, o contrato tem a duração de 3 anos. (alínea OO) dos factos assentes)
No período entre Setembro de 2013 e Setembro de 2014, a Ré recebeu, a título de comissões, os seguintes montantes mensais:
Mês
Comissão
1.
Setembro de 2013
HKD$8.801.710,00
2.
Outubro de 2013
HKD$50.262.100,00
3.
Novembro de 2013
HKD$46.004.640,00
4.
Dezembro de 2013
HKD$54.231.932,00
5.
Janeiro de 2014
HKD$21.143.267,00
6.
Fevereiro de 2014
HKD$68.573.010,00
7.
Março de 2014
HKD$53.469.580,00
8.
Abril de 2014
HKD$45.915.491,00
9.
Maio de 2014
HKD$37.526.000,00
10.
Junho de 2014
HKD$41.236.676,00
11.
Julho de 2014
HKD$34.601.363,00
12.
Agosto de 2014
HKD$38.496.180,00
13.
Setembro de 2014
HKD$28.504.902,00
Total
HKD$528.766.851,00
Média
HKD$40.674.373,15
(alínea PP) dos factos assentes)
No mês de Novembro de 2014, a Autora suportou a título de imposto sobre as fichas adquiridas o valor de HKD$49.300,00. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
No mês de Dezembro de 2014, a Autora suportou um imposto no valor de HKD$9.960,00. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
Em Janeiro de 2015 a Ré não adquiriu quaisquer fichas, nem tendo a sala de jogo apresentado lucros ou perdas. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
A Ré ficou com uma dívida perante a Autora de HKD$622,69 a título de despesas com bilhetes de ferry e acomodação dos seus clientes. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
O facto referido em II), JJ) e KK) perturbou o bom funcionamento da Sala VIP. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
A Autora descontou uma penalidade de HKD$5.500.000,00 da comissão referente ao mês de Outubro de 2014. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
A Ré deixou de poder explorar a sua actividade na Sala VIP a partir de 31 de Janeiro de 2015. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
*
Comecemos pelo recurso da ré, uma vez que vem impugnar a matéria de facto.
Entende a ré recorrente que a alínea S) dos factos assentes corresponde ao artigo 26º da petição inicial e que foi impugnado pela ré, daí que entende não dever aquela matéria ter integrado o elenco dos factos assentes.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, é bom de ver que a ré recorrente não logrou reclamar oportunamente do despacho do tribunal a quo que selecionou os factos assentes e a base instrutória, no tocante à matéria agora levantada, sendo assim, aquele despacho já transitou em julgado, não podendo este TSI conhecer de questões que não foram apreciadas pelo tribunal a quo, salvo na situação prevista no n.º 4 do artigo 629.º do CPC, o que não é o caso.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
*
Entende a ré recorrente que parte do que foi alegado no artigo 31º da contestação, mais especificamente que “O administrador da Ré Sr. F, viu-se forçado a apresentar queixas à PJ e a outras autoridades competentes sobre a permanência de agentes na Sala VIP”, deveria ter sido incluído nos factos assentes, por ser um facto confessado pela autora e um facto complementar ou concretizador do facto quesitado no artigo 8º da base instrutória.
Sem necessidade de delongas considerações, somos a entender que aquela factualidade é totalmente impertinente para a apreciação do caso concreto. Senão vejamos.
Foi quesitado no artigo 8º da base instrutória se “Apesar das diversas solicitações da ré, a autora, mais uma vez, não prestou qualquer assistência nesse âmbito?”
Por sua vez, foi quesitado nos artigos 5º e 6º da base instrutória o seguinte:
5º - “No dia 5 de Outubro de 2014, aquando da ocorrência do incidente referente em DD), EE), FF) e GG) nenhum funcionário da autora prestou assistência para manter a ordem na Sala VIP em causa e impedir a reunião dos indivíduos na sala?”
6º - “Só quando o administrador da ré, o Sr. F, chegou à sala VIP e logrou persuadir a jogadora em questão, é que estava e concordou em deixar a Sala VIP com os tais 60 indivíduos que levava consigo?”
Além do mais, consta nas alíneas II), JJ) e KK) dos factos assentes o seguinte:
II) – “A partir da data do referido incidente, como houve participação do caso à Polícia Judiciária (“PJ”), os agentes da PJ começaram a vigiar a Sala VIP diariamente.”
JJ) – “Durante cerca de 10 dias, agentes da PJ permaneceram 24 horas por dia na Sala VIP, verificando os documentos de identificação de todos os jogadores que ali se encontravam.”
KK) – “Passados cerca de 10 dias desde a data da disputa descrita supra, os agentes da PJ finalmente deixaram de permanecer na Sala VIP.”
Por outro lado, perguntava-se nos quesitos 7º e 9º da base instrutória o seguinte:
7º – “O facto referido em II), JJ) e KK) perturbou o bom funcionamento da Sala VIP?”
9º – “Os incidentes referidos em DD), EE), FF), GG), II), JJ), KK) prejudicaram o negócio da Sala VIP e o prestígio da mesma?”
Face ao acima descrito, somos a entender que os factos pertinentes, tanto os essenciais como os instrumentais, destinados a apurar o nexo de causalidade entre a permanência de agentes da PJ na Sala VIP e os maus resultados alcançados pela mesma Sala, já foram devidamente selecionados, não sendo, assim, relevante a inclusão do facto constante do artigo 31º da contestação.
Improcede, assim, esta parte do recurso.
*
Alega ainda a ré recorrente que, no respeitante ao quesito 15º, se deveria também ter abrangido no seu âmbito temporal o mês de Outubro de 2014 e não apenas os meses de Novembro e Dezembro de 2014 e Janeiro de 2015.
Efectivamente, conforme dito acima, quanto a esta matéria, a ré recorrente não logrou reclamar do despacho proferido pelo tribunal a quo que selecionou os factos assentes e a base instrutória, daí que aquele despacho transitou em julgado, não podendo este TSI conhecer de questões que não foram apreciadas pelo tribunal a quo, salvo na situação prevista no n.º 4 do artigo 629.º do CPC, o que não é o caso.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
*
A ré vem ainda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto vertida nos quesitos 5º, 6º, 8º, 9º, 11º, 14º, 15º, 16º, 17º da base instrutória, com fundamento no suposto erro na apreciação da prova.
O Tribunal recorrido respondeu aos referidos quesitos da seguinte forma:
Quesito 5º – “No dia 5 de Outubro de 2014, aquando da ocorrência do incidente referido em DD), EE), FF) e GG), nenhum funcionário da Autora prestou assistência para manter a ordem na Sala VIP em causa e impedir a reunião dos indivíduos na sala?”, e a resposta foi: “Não provado”.
Quesito 6º – “Só quando o administrador da Ré, o Sr. F, chegou à Sala VIP e logrou persuadir a jogadora em questão, é que esta concordou em deixar a Sala VIP com os tais 60 indivíduos que levava consigo?”, e a resposta foi: “Não provado”.
Quesito 8º – “Apesar de diversas solicitações da Ré, a Autora, mais uma vez, não prestou qualquer assistência nesse âmbito?”, e a resposta foi: “Não provado”
Quesito 9º – “Os incidentes referidos em DD), EE), FF), GG), II), JJ) e KK) prejudicaram o negócio da Sala VIP e o prestígio da mesma?”, e a resposta foi: “Não provado”
Quesito 11º – “Em virtude dos incidentes referidos em DD), EE), FF), GG), II), JJ) e KK), não tinha a Ré conseguido atingir os objectivos estipulados no Anexo 1 do Contrato em Novembro e Dezembro de 2014 e Janeiro de 2015?”, e a resposta foi: “Não provado”
Quesito 14º – “Se a Autora não tivesse proibido o acesso da Ré à Sala VIP a partir do dia 31 de Janeiro de 2015, a Ré poderia continuar a explorar a sua actividade na sala referida até ao dia 18 de Setembro de 2016?”, e a resposta foi: “Não provado”
Quesito 15º – “A Ré poderia auferir, nos termos do Contrato, as comissões correspondentes a 19 meses de actividades da Sala VIP?”, e a resposta foi: “Não provado”
Quesito 16º – “O comportamento da Autora impediu a Ré de auferir o lucro a que tinha direito por força da celebração do contrato em causa?”, e a resposta foi: “Não provado”
Quesito 17º – “O que corresponderia a um lucro de HK$772.813.089,92?”, e a resposta foi: “Não provado”
Mais precisamente, todos aqueles quesitos foram dados como não provados pelo tribunal a quo.
Ora bem, dispõe o artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
Estatui-se nos termos do artigo 558.º do CPC que:
“1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.”
Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012, no Processo n.º 551/2012: “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção, atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599.º, n.º 1 e 2 do CPC.”
Também se decidiu no Acórdão deste TSI, de 28.5.2015, no Processo n.º 332/2015 que:“A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629.º do CPC. E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”
A convicção do Tribunal alicerça-se no conjunto de provas produzidas em audiência, sendo mais comuns as provas testemunhal e documental, competindo ao julgador valorar os elementos que melhor entender, nada impedindo que se confira maior relevância ou valor a determinadas provas em detrimento de outras, salvo excepções previstas na lei.
Não raras vezes, pode acontecer que determinada versão factual seja sustentada pelo depoimento de algumas testemunhas, mas contrariada pelo depoimento de outras. Neste caso, cabe ao Tribunal valorá-las segundo a sua íntima convicção.
Ademais, não estando em causa prova plena, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração e decidir segundo a sua prudente convicção acerca dos factos controvertidos, em função das regras da lógica e da experiência comum.
Assim, estando no âmbito da livre valoração e convicção do julgador, a alteração das respostas dadas pelo tribunal recorrido à matéria de facto só será viável se conseguir lograr de que houve erro grosseiro e manifesto na apreciação da prova.
Analisada a prova produzida em primeira instância, a saber, a prova documental junta aos autos e o depoimento das testemunhas, entendemos não assistir razão à ré recorrente.
De facto, tanto os documentos apresentados pela autora, que são meros documentos particulares, não fazendo, em princípio, prova plena, assim como os depoimentos das testemunhas, estão sujeitos à livre apreciação do tribunal, sendo verdade que a ré recorrente pretende apenas sindicar a íntima convicção do tribunal recorrido formada a partir da livre apreciação e valoração global das provas produzidas nos autos.
Sinceramente, se atentarmos na fundamentação da matéria de facto bem elaborada pelo tribunal recorrido que a seguir se transcreve, não restam dúvidas de que nenhuma censura merece a decisão quanto à matéria de facto questionada por aquela recorrente:
“A convicção do Tribunal baseou-se no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, nos documentos de fls. 16 a 65, 122 a 151, 197 a 204, 271 a 276 e 293 a 294 dos autos, cujo teor se dá reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permite formar uma síntese quanto à veracidade dos apontados factos.
(...)
Em especial, quanto aos factos sobre a Autora não cumpriu os deveres na manutenção da segurança da sala VIP e se por causa dessa violação que prejudica o negócio e prestígio da Ré. Sobre essa matéria, as duas testemunhas da Ré deram conta de que aquando da ocorrência do incidente no dia 5 de Outubro de 2014, ou não se viu os funcionários da Autora ou o funcionário não prestou qualquer assistência. As duas testemunhas G e H deram conta de que deslocaram, pessoalmente, ao sala VIP acompanhar ao caso e que a última exigiu a intervenção da PJ. Aliás, a testemunha I disse o caso ocorrido por volta de 12:00 am até 5:00 pm, mas, segundo as fotografias retiradas da câmara de vigilância (fls. 122 a 131), o incidente ocorreu na noite, cerca das 9:00 pm. De acordo com o documento interno da Autora, constante de fls. 271, foi registado o incidente ocorrido em 9:00 pm e a deslocação dos funcionários da Autora para averiguar a situação e o chamamento da agente da PJ e DSIJ para tratar o caso. Em comparação, o depoimento das testemunhas da Autora é mais coerente com outras provas documentais existentes, o que levou o Tribunal a inclinar-se pela versão apresentada pela Autora. Assim, não se deram por provados os factos dos quesitos 5º, 6º e 8º.
Se esse incidente e a posterior vigilância da Sala VIP pelas agentes da PJ durante 10 dias levaram consequência negativa para a Ré. Para já, o incidente de 5/10/2015 é apenas um episódio, não poderá ser determinante para o negócio e prestígio da Sala VIP. Segundo o depoimento da testemunha I, a vigilância diária da sala VIP pelas agentes da PJ durante 10 dias é que influenciou o negócio desta. Segundo a regra normal, a comparência da polícia no local para jogo criará, na cerca medida, alguma dúvida e receio para os jogadores, o que perturbou, inevitavelmente, o próprio funcionamento da sala VIP. No entanto, não podemos esquecer que, segundo o depoimento das testemunhas da Autora, o incidente de 5/10/2015 e a perda do negócio tinha conexão com o conflito entre os “sócios” da sala VIP, a testemunha da Ré I também disse que foi envolvido no incidente uma “parceira” do seu patrão, quem habituava recomendar os jogadores para a Sala VIP, o conflito entre os sócios da sala VIP poderá ser o motivo essencial da falta da cliente a jogar na referida Sala VIP. Ademais, a vigilância da agente da PJ decorre do exercício do poder público, particularmente para a investigação criminal, as provas apresentadas (duma testemunha) é, manifestamente, insuficiente para suportar a existência do nexo causal entre a intervenção da PJ durante 10 dias e o resultado negativo do negócio da Sala VIP nos três meses seguintes. Aliás, segundo a regra de bom senso, também não é muito crível e provável estabelecer o nexo causal entre o exercício legítimo do poder público com a perda da clientela da sala VIP. Nestes termos, deu-se provado apenas o facto do quesito 7º e não se deu por provado o facto do quesito 9º. Na sequência disso, não se deu por provado o facto do quesito 11º.
Foram estipuladas expressamente as cláusulas quanto à penalidade por insucesso de atingir as condições contratuais no contrato outorgado pela Ré, esta tinha conhecimento perfeito o que era a penalidade consoante o resultado, sem necessidade aviso prévio nem o seu consentimento, o desconto feito pela Autora na comissão relativa ao Outubro de 2014 foi calculado conforme os termos do contrato, assim, não pode concluir que o desconto foi feito sem consentimento da Ré, pelo que apenas se deu por provado o facto do quesito 10º nos termos respondidos.
Quanto aos factos dos quesitos 14º a 17º, como não ter considerado provados os factos de encerramento da sala VIP por decisão arbitrária da Autora, ficam prejudicados os factos dos quesitos 14º a 16º. Acresce que o valor do lucro que a Ré alegou deixou de auferir é meramente conjectura da Ré sem qualquer prova sólida que o sustentou. Assim, deram-se por não provados todos esses factos.”
Analisada toda a prova produzida, não vislumbramos, a nosso ver, qualquer erro grosseiro e manifesto por parte do tribunal recorrido na análise da prova nem na apreciação da matéria de facto controvertida, sendo que os dados trazidos aos autos permitam chegar à mesma conclusão a que o tribunal a quo chegou, pelo que improcede o pedido de impugnação da matéria de facto.
*
Aponta ainda a ré recorrente a existência de obscuridade e contradição nas respostas dadas aos quesitos 13º, 14º, bem como falta de fundamentação da resposta dada aos quesitos 14º a 16º.
Sem necessidade de delongas considerações, igualmente não assiste à mesma recorrente. Efectivamente, uma vez provado ficou que o contrato celebrado entre autora e ré foi resolvido com fundamento de que esta não ter atingido os objectivos estipulados, a resposta à matéria vertida nos quesitos 13º, 14º, 15º e 16º da base instrutória não podia deixar de ficar como não provada, na medida em que não ficou demostrado o encerramento unilateral e abusivo da Sala VIP por parte da autora.
Improcede, em consequência, o recurso quanto a esta parte.
*
Quanto ao mérito do recurso, considerando a fundamentação de direito exposta na sentença recorrida, remetemos para os seus precisos termos que a seguir se transcreve, com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução ao caso, ao abrigo do disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC:
“Alega a Autora que celebrou um contrato de promoção de jogo com a Ré no âmbito do qual esta se comprometeu a tomar todas as medidas necessárias para captar os interessados para jogarem na sala B VIP Club (XXXXX), localizado no casino [Hotel(1)], a Ré obriga-se a adquirir mensalmente à Autora, fichas de jogo especiais, com um volume mínimo por mesa correspondente à HK$200.000.000,00, e assegurar que cada mesa tivesse um ganho mensal superior a HK$6.000.000,00, caso a Ré conseguisse atingir esse objectivo, ela teria o direito de receber uma remuneração calculado na tabela constantes do anexo I e caso não conseguisse atingir esse objectivo, a sua comissão seria calculada à razão de 55% das receitas da salva VIP, acrescida de uma penalização correspondente a HK$550.000,00 por mesa de jogo. Nos meses de Novembro, Dezembro e Janeiro de 2014, o Réu não conseguiu atingir os objectivos de aquisição das fichas acordadas e cessou a actividade na sala de jogo em Janeiro de 2015, o que levou a Autora a resolver o contrato de promoção de jogo celebrado com a Ré. À data de cessação do contrato, a Ré ficou com uma dívida perante com a Autora no valor total de HKD$18.441.342,69, correspondente aos saldos negativos, as penalidades aplicadas, os impostos de selos devidos pela aquisição das fichas de jogo e as despesas com bilhetes de ferry e acomodação dos clientes.
Na contestação, a Ré disse que, em 5 de Outubro de 2014, uns 60 pessoas ocuparam a sala VIP por causa duma disputa entre dois jogadores, mas a Autora não prestou qualquer assistência na manutenção da segurança da sala VIP, o caso levou a intervenção da PJ, a partir dessa data, os agentes da PJ permaneceram 24 horas por dia na sala VIP, verificando os documentos de identificação de todos os jogadores que se encontravam, esse episódio perturbou o bom funcionamento da sala VIP, o que determinou a Ré não conseguir promover o valor mínimo de fichas, pugnando que a impossibilidade de alcançar o valor mínimo de fichas é imputável à Autora, não tendo esta o direito a qualquer compensação ou penalidade. Por outro lado, em virtude de a Autora cessar unilateralmente a sala VIP em 31 de Janeiro de 2015, fazendo com que a Ré não pudesse explorar a sua actividade na sala VIP desde essa data, exigiu àquela, em reconvenção, de lhe indemnizar os lucros cessantes que deixou de receber desde 31 de Janeiro de 2015 até 18 de Setembro de 2016 (termo do contrato), no montante de HKD$772.813.089,92.
Relação jurídica estabelecida entre a Autora e a Ré
Conforme os factos tidos por apurados, entre a Autora e a Ré foi celebrado um contrato designado por contrato de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino para a sala B VIP Club (XXXXX), no casino [Hotel(1)], segundo o qual a Ré se comprometeu a tomar todas as diligências necessárias à promoção do mercado, entre as quais, o aprovisionamento de transporte, alimentação, alojamento e entretenimento, com a vista a captar os interessados para jogaram na referida sala de jogo e, com excepção das despesas das primeiras obras de benfeitorias e das facilidades básicas, fica responsável, entre outras, pelas despesas de manutenção e conservação do interior da sala do casino, incluindo mas não se limitando às despesas de telefone.
A Ré obrigou-se, ainda, a adquirir mensalmente, para os jogadores por ela angariados, um volume mínimo de fichas especiais por mesa correspondente a HKD200.000.000,00 e assegurar que cada mesa tivesse um ganho mensal superior a HKD$6.000.000,00.
Como remuneração, esta terá o direito de receber a remuneração calculada de acordo com a tabela constante do Anexo I, abaixo discriminada:
Montante de fichas por mês e por mesa
Comissão baseada nos ganhos
Comissão sobre fichas adquiridas
Subsídio
De
Até
850 milhões
Mais
47,50%
0,1200%
0.03%
800 milhões
850 milhões
47,50%
0,1100%
0.03%
750 milhões
800 milhões
47,50%
0,1000%
0.03%
700 milhões
750 milhões
47,50%
0,0900%
0.03%
650 milhões
700 milhões
47,50%
0,0800%
0.03%
600 milhões
650 milhões
47,50%
0,0700%
0.03%
550 milhões
600 milhões
47,50%
0,0600%
0.03%
500 milhões
550 milhões
47,50%
0,0550%
0.03%
450 milhões
500 milhões
46%
0,0500%
0.03%
400 milhões
450 milhões
46%
0,0450%
0.03%
350 milhões
400 milhões
46%
0,0400%
0.03%
300 milhões
350 milhões
46%
0,0350%
0.03%
250 milhões
300 milhões
46%
0,0300%
0.03%
Menos de 250 milhões
46%
0,0000%
0.03%
O Regulamento Administrativo nº 6/2002 de 1 de Abril de 2002 que regula o exercício da actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino, cujo artº 2º se define, “Para efeitos do presente regulamento administrativo e demais regulamentação complementar, considera-se de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino, adiante designada por promoção de jogos, a actividade que visa promover jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, junto de jogadores, através da atribuição de facilidades, nomeadamente de transporte, alojamento, alimentação e entretenimento, em contrapartida de uma comissão ou outra remuneração paga por uma concessionária.”
No mesmo regulamento são estabelecidas as condições de acesso para o exercício da actividade de promoção de jogo, (artº 3º, nº 1, 4º a 6º, 23º e 24º), exigindo que o agente seja titular duma licença de promotor de jogo e impondo que o seu registo comercial, (seja pessoa singular, seja pessoa colectiva) seja lavrado apenas depois de atribuída essa licença, que o agente esteja registado junto de uma concessionária e entre esta e aquele tenha sido celebrado um contrato de promoção de jogo.
De acordo com os factos assentes, a Ré era titular de licença de promotor de jogo emitida pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, celebrou com a Autora, concessionária da exploração de jogo de fortuna ou azar, o acordo titulado por “contrato de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino para a sala B VIP Club (XXXXX), segundo as cláusulas nele estipuladas a Ré estava vinculada a exercer a actividade de promoção de jogos no casino [Hotel(1)] (Sala B VIP Club) a favor da Autora.
Por outro lado, vem comprovado que uma das obrigações decorrente do contrato para a Ré é tomar as diligências necessárias, entre as quais, o aprovisionamento de transporte, a alimentação, o alojamento e entretenimento com vista a captar os interessados para jogar na referida sala VIP, como contrapartida, a Ré tem direito de receber da Autora uma retribuição fixada na tabela anexada ao acordo.
Aparentemente, estamos perante um contrato de promoção de jogo a que se refere o Regulamento Administrativo nº 6/2002, de 1 de Abril de 2002, onde é estabelecido um vínculo sinalagmático entre a prestação da actividade de promoção de jogo pela Ré a favor da Autora com a correspondente obrigação de pagamento de retribuição por parte da última.
Contrato esse é enquadrável na noção do contrato de prestação de serviço previsto no art°1080° do C.C., “aquele que em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.”
Subsumindo a essa definição, a obrigação principal do promotor do jogo é a prestação dum conjunto de facilidades destinadas a angariar os interessados para jogar na sala de VIP referida e, como contrapartida desta prestação, tem o direito de receber da concessionária a retribuição acordada.
No entanto, melhor analisado o conteúdo do acordo entre a Autora e a Ré, se verifica que o que o promotor de jogo assume é mais daquilo é previsto no regulamento acima referido.
Se a função essencial do promotor de jogo, segundo a lei, é captar os interessados, através da atribuição da facilidade, para jogar no casino junto do concessionário. No acordo entre a Autora e a Ré, a obrigação principal da Ré é outra, isto é, i) adquirir, mensalmente um volume mínimo de fichas especiais por mesa correspondente a 200 milhões de dólares de Hong Kong; e ii) assegurar que cada mesa tivesse um ganho mensal superior a HKD$6.000.000,00.
À luz do conceito de contrato de prestação de serviço, por uma razão lógica, o promotor de jogo, por serviços prestados para a promoção do jogo, receberá retribuição, no caso pior de insucesso na angariação de quaisquer jogadores, a actividade prestada por ele não é remunerada, isto é, não poderá receber qualquer retribuição.
Mas, não é isso que acontece no acordo celebrado entre a Autora e Ré. Esta tinha a obrigação de garantir que o volume mínimo das fichas adquiridas (pelos jogadores) por cada mesa e com a obrigação de obter um ganho no valor mínimo por cada mesa de jogo que lhe foi atribuída pela Autora.
A promoção de jogo e o resultado de jogo são, conceitualmente, coisas distintas. Se o promotor de jogo não explora o casino, como é que ele garante o ganho de cada mesa? Também parece que o risco pela perda nos jogos de fortuna ou azar dever ser assumido por quem explora a sala de jogo, a própria concessionária da exploração de jogo, quem obterá rendimentos nas apostas dos jogadores.
Vejamos.
De acordo com o sistema de retribuição estipulado pelas partes, o valor de comissão varia entre a percentagem de 46% a 47.5% do valor dos rendimentos obtidos na sala de jogo por si promovida, mas caso a Ré não consiga obter o objectivo fixado no acordo, a percentagem da comissão passa a ser 55%, mais com a penalização de HKD$550.000,00 por cada mesa de jogo.
Será admissível essa forma de remuneração?
Sustenta a Autora que não existe qualquer limitação a liberdade contratual na fixação da retribuição, designadamente no caso de ter um resultado negativo, não violando do disposto do Regulamento Administrativo nº 6/2002, nem do despacho do Secretário para a Economia e Finanças nº 83/2009 e que essa forma de remuneração contida no contrato já é uma prática normal e aceite na indústria do jogo da RAEM.
Diz o artº 399º, nº 1 do C.C., “1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste Código ou incluir as cláusulas que lhes aprouver. 2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regressa de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulado na lei”.
Por força do princípio da liberdade convencional, as partes podem estipular, livremente, as convenções, salvo as limitações da lei.
Com efeito, prevê-se a nova redacção dada ao artº 27º do Regulamento Administrativo nº 6/2002, introduzida pela alteração do Regulamento Administrativo nº 27/2009:
“1. O Secretário para a Economia e Finanças pode fixar, por despacho, o limite máximo das comissões ou outras remunerações que podem ser pagas pelas concessionárias aos promotores de jogo, e regular a referida forma de pagamento.
2. Para efeitos do presente artigo, presume-se que têm carácter remuneratório, quaisquer bónus, liberalidades, serviços ou outras vantagens susceptíveis de avaliação pecuniária que sejam oferecidas ou proporcionadas ao promotor de jogo pela concessionária, na Região Administrativa Especial de Macau ou no exterior, quer seja por forma directa ou indirectamente, através de sociedade participada pela concessionária ou com a qual a mesma esteja em relação de grupo.
3. O despacho previsto no n.º 1 aplica-se a todas as comissões ou remunerações futuras, ainda que pagas ao abrigo de contratos já existentes à data da sua entrada em vigor, e para tal é concedido um prazo aos interessados para apresentarem na Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos novos contratos redigidos de acordo com os limites remuneratórios nele estabelecidos.”
Por sua vez, por despacho do Secretário para a Economia e Finanças nº 83/2009, foi fixado como limite das comissões de jogo ou quaisquer outras formas de remuneração da actividade de promoção de jogos em 1.25%, do valor total apostado (net rolling) seja qual fora a respectiva base de cálculo.
A intervenção administrativa pelo governo, entidade competente para atribuição da concessão de exploração de jogo de fortuna ou azar, na fixação do limite máximo da remuneração ou comissão a receber pelo promotor de jogo no âmbito da actividade de promoção de jogo não deixa de ser interpretado como manifestação firme contra essa prática “habitual” no sector do jogo.
Diz a Autora que o legislador apenas fixa o patamar máximo da remuneração a receber pelo promotor, não impedindo que o mesmo suporte as perdas resultantes do exercício da exploração de jogo. Não concordamos com essa afirmação.
Segundo a definição da promoção de jogo, a actividade promotora de jogo é remunerada.
“A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.” (artº 8º, nº 1 do C.C.).
Ora bem, a palavra de “remuneração”, na linguagem comum, tem o significado de receber algo, uma contrapartida ou retribuição, com sentido positivo, nela não se caberá, simultaneamente, perda ou prejuízo, em sentido negativo.
Na verdade, os contraentes têm o cuidado e cautela de não usar a expressão perdas ou prejuízos, em sua substituição, adoptam a expressão “comissão negativa”. Mas, o que é isso? A “comissão negativa” se reporta, na sua substância, a perdas e prejuízos e não à comissão nem remuneração. Para o legislador, pela actividade de promoção de jogo prestado pelo promotor de jogo trará, coerente e logicamente, para este, remuneração, comummente designado por “comissão”, mesmo na situação péssima, os serviços prestados não produzirem qualquer efeito, então a consequência normal é que estes serviços não são remunerados. que não pode imaginar é que o promotor de jogo tem que pagar a outra parte a favor de quem os serviços são prestados pelos prejuízos advindos dos negócios da sala de jogo, alegadamente pertence à concessionária de exploração de jogo.
“Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” (artº 8º, nº 3 do C.C.)
Creremos que o legislador nem sequer tivesse pensado que a remuneração poderia ser apresentada em sentido negativo, com o significado de perdas e prejuízos, controvertendo o sentido da palavra. Por não ter pensado de o promotor de jogo suportar as perdas da sala de jogo, claro é que o legislador não se vê necessário a fixar o limite mínimo a ser suportado pelo promotor do jogo.
Portanto, como a lei fixa o patamar máximo das remunerações a pagar aos promotores de jogo pelo concessionários de jogo, por maioria das razões e por lógica, não permitir aos concessionários exigir ao promotor de jogo a suportar as perdas da sala de jogo.
*
Perante essas obrigações impostas à Ré, afigura-se que o acordo entre a Autora e a Ré não deverá ser considerado como mero contrato de promoção de jogo, importa aquilatar qual é a natureza real desse acordo e se o mesmo é válido nos termos legais.
Portanto, prevê-se o nº 1 do artº 7º da Lei nº 6/2001 que “A exploração de jogos de fortuna ou azar é reservada à Região Administrativa Especial de Macau e só pode ser exercida por sociedade anónimas constituídas na Região, às quais haja sido atribuída uma concessão mediante contrato administrativo, nos termos da presente lei.”
Estatui-se o nº 9 do artº 17º da mesma lei que “É nula a transferência ou cessão para terceiro, a qualquer título, da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino, bem como de outras actividades que constituam obrigações legais ou contratuais da concessionária, sem prévia autorização do governo.”
Como se refere acima, a Ré estava obrigada a adquirir mensalmente fichas de jogo especiais no montante mínimo mensal em 200 milhões de dólares de Hong Kong por cada mesa de jogo e tinha ainda que assegurar que cada mesa de jogo tivesse um ganho mensal superior a HKD$6.000.000,00, a frustração de alcançar esse objectivo tem como consequência de a comissão será calculada à razão de 55% das receitas da Sala VIP mais a penalização correspondente a HKD$550.000,00 por cada mesa de jogo. Para além disso, a Ré ficava com a responsabilidade de suportar as despesas decorrentes da manutenção e conservação do interior da sala do casino, incluindo mas não se limitando às despesas de telefone.
Para já, sendo a Autora concessionária de jogo deverá ser ela e só lhe incumbirá a exploração de jogos de fortuna ou azar, como consequência lógica, tanto os lucros como as perdas decorrentes dessa exploração deverão ser recebidos e suportados exclusivamente por ela.
Se bem que a concessionária não importe partilhar os lucros decorrentes da exploração de jogo nessa sala VIP com a promotora de jogo, a título de comissão, pela actividade de promoção de jogo, já não faria muito sentido que as perdas verificadas na exploração da sala VIP e as despesas inerentes ao próprio local do casino e ao funcionamento do Sala VIP, não fossem suportadas pela própria concessionária.
Não se pode ignorar de apesar de ter adoptado o termo das receitas da Sala VIP, essas “receitas”, no conceito das partes, têm dois sentidos, sentido positivo e sentido negativo. As “receitas negativas” são, na realidade, as perdas da Sala VIP e nesse caso, o promotor de jogo assumirá a proporção maior do que a concessionária do jogo, que é fixada em 55%.
Esse sistema de partilha de lucros e perdas demonstra que a relação real que existe entre a Autora e a Ré, é a transferência da exploração de jogos de fortuna ou azar pela concessionária para o promotor de jogo, só assim se justifica que este poderia receber comissão calculada, em percentagem de quase metade, nos ganhos da Sala VIP e, em correspectiva, assumir o risco derivada dessa exploração, suportando, com percentagem de mais de metade, nas perdas da sala de jogo, como se fosse parceiro da Autora.
Com efeito, vem comprovado que a Sala VIP promovida pela Ré contava inicialmente com 10 mesas de jogo, a partir de Novembro de 2014, a solicitação da Ré, passou apenas a contar com 7 meses. (alínea N) e O) dos factos assentes) Daí se resulta que a Ré é responsável pelas mesas de jogos colocadas na Sala VIP pela Autora. A Ré admitiu que o funcionamento da Sala VIP cabia a ela, queixando da perturbação do funcionamento da Sala VIP por um grupo de indivíduos e que levou a intervenção da PJ durante 10 dias.
Ou seja, através da celebração desse acordo, passa a Ré ser responsável pelo funcionamento da Sala VIP, podendo, por isso, participar nos lucros e perdas da exploração da Sala VIP.
No fundo, por veste do contrato de promoção de jogo, o que é essencial para as partes não é a mera promoção de jogo no sentido de angariação dos jogadores por parte da Ré à concessionária, ora Autora, mas a entrega efectiva da Sala VIP à Ré para a explorar, ela tem a obrigação de angariar os interessados a jogar na sala de jogo e tem que garantia as receitas ou resultado da sala VIP, daí a exigência da aquisição de limite máximo do volume das fichas de jogo por parte da Ré e de valor mínimo de ganho de cada mesa de jogo, se a sala VIP operada pela Ré conseguisse esse resultado, a Autora permitiria partilhar com ela, na proporção entre 46% e 47.5% nos lucros dos jogos mas também lhe transferindo, o risco proveniente das perdas da Sala VIP. Repara-se que, nesse caso, a proporção assumida pelo promotor de jogo é de 55%, maior do que a própria concessionária de jogo assume.
Pelo que entendemos que, sob a capa do contrato de promoção de jogo, está, na realidade, um modelo de transferência ou cessão, ainda parcial, da exploração de jogo à Ré, a que a lei impede expressamente à concessionária, ora Autora fazer, sem prévia autorização do governo.
Conforme o ofício emitido pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogo, constante de fls. 387, não houver autorização por parte do governo da RAEM.
Assim, esse contrato é nulo por preterição do disposto do nº 9 do artº 17º da Lei nº 6/2001.
Consideramos nulo o contrato entre a Autora e a Ré, não podendo aquela exigir a este o cumprimento das cláusulas neles estipulados, pedindo-lhe o pagamento das comissões negativa estipuladas no referido contrato e provenientes da operação da sala de jogo.
*
Assim, nos fundamentos acima expostos julgam-se improcedentes os pedidos da Autora.
Reconvenção
Reconvindo a Ré que a Autora rescindiu, unilateralmente e sem causa justificada, o contrato celebrado com a Ré, impedindo-lhe de ter acesso à Sala VIP, com que lhe impossibilitou de auferir o lucro que poderia receber na continuação da exploração da Sala VIP no cumprimento do contrato, pretendendo uma indemnização no montante de MOP$795.997.482,62, correspondentes aos lucros que deixaria de auferir desde 31 de Janeiro de 2015 até ao termo do contrato.
O fundamento da indemnização pretendida pela Ré alicerce-se no incumprimento do contrato imputável à Autora.
Por um lado, a Ré não logrou provar todos os factos alegados para sustentar a sua pretensão indemnizatória, o que não poderá deixar de conduzir o naufrágio do seu pedido.
Por outro lado, de acordo com o exposto acima, como nos julgamos que o contrato celebrado entre a Autora e a Ré é nulo por violação do disposto do nº 9 do artº 17º da Lei 6/2001, não poderá, igualmente, a Ré exigir à Autora qualquer indemnização ao abrigo do e no cumprimento desse contrato.
Nestes termos, julgam-se, igualmente, improcedentes os pedidos da reconvenção.”
Por tudo quanto deixou exposto, há-de negar provimento ao recurso interposto pela ré recorrente.
Em relação ao recurso interposto pela autora, por se cingir na mesma questão, nega-se igualmente provimento ao recurso.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento aos recursos interpostos pela autora A1 e pela ré B, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela parte vencida nos respectivos recursos.
Fixam-se os honorários a favor do patrono oficioso da ré, em MOP$10.000,00.
Registe e notifique.
(…)”; (cfr., fls. 605 a 635).
*
Ainda inconformadas com o assim decidido, trazem as referidas A. e R. os presentes recursos.
Nas suas alegações, produz a A. “A” as conclusões seguintes:
“I. A decisão Recorrida, secundando na íntegra a decisão proferida pelo douto Tribunal de Primeira Instância, a qual transcreve e para cujos fundamentos remete nos termos do artigo 631.º, n.º 5 do CPC, concluí pela nulidade do Contrato celebrado entre a ora Recorrente e a Recorrida por alegada violação do disposto no artigo 17.º, n.º 9 da Lei n.º 16/2001, de 24 de Setembro.
II. Conforme resulta dos factos apurados nos presentes autos, a remuneração da Ré era calculada nos termos seguintes:
Montante de Fichas por mês e por mesa
Comissão baseada nos ganhos
Comissão sobre fichas adquiridas
Subsídio
De
Até
850 milhões
Mais
47,50%
0,1200%
0,03%
800 milhões
a 850 milhões
47,50%
0,1100%
0,03%
750 milhões
800 milhões
47,50%
0,1000%
0,03%
700 milhões
a 750 milhões
47,50%
0,0900%
0,03%
650 milhões
a 700 milhões
47,50%
0,0800%
0,03%
600 milhões
a 650 milhões
47,50%
0,0700%
0,03%
550 milhões
a 600 milhões
47,50%
0,0600%
0,03%
500 milhões
a 550 milhões
47,50%
0,0550%
0,03%
450 milhões
a 500 milhões
46%
0,0500%
0,03%
400 milhões
a 450 milhões
46%
0,0450%
0,03%
350 milhões
a 400 milhões
46%
0,0400%
0,03%
300 milhões
a 350 milhões
46%
0,0350%
0,03%
250 milhões
a 300 milhões
46%
0,0300%
0,03%
Menos de 250 milhões
46%
0,0000%
0,03%
III. Caso a Ré não conseguisse atingir os objectivos estabelecidos no contrato, a sua comissão seria calculada à razão de 55% das Receitas da Sala VIP, acrescida de uma penalização correspondente a HK$550,000.00 por mesa de jogo, e caso as receitas da sala de jogo promovida pela Ré fosse negativas e/ou caso a penalização a que a Ré estava sujeita caso não atingisse os objectivos estabelecidos no n.º1 do Anexo I, ou seja, HK$550,000.00 por mesa, ultrapassasse o valor da Comissão a que estava intitulada, a Réu autorizou a Autora a descontar nas retribuições que lhe competissem os valores das comissões negativas.
IV. O douto Tribunal a quo entende que, face à fórmula de calculo utilizada para a remuneração da Recorrida, se estabeleceu uma parceria entre a Recorrente e a Recorrida na exploração do jogo, sendo que, nada indica que a Ré foi autorizada nos termos do artigo 17.º, n.º 9 da Lei n.º 16/2001.
V. Para que se fale em transferência/cessão da exploração de jogos, necessário nos parece ser que a concessionária, neste caso a ora Recorrente, transfira para um terceiro a faculdade de explorar, de forma autónoma e independente e por sua conta e risco, a actividades de jogos de fortuna ou azar em casino.
VI. A transferência/cessão da exploração de jogos trata-se da possibilidade de se conferir a terceiro o conjunto de faculdades inerentes ao direito de que se é titular para que este, de modo independente, em seu nome e por sua conta e risco, exerça a actividade que é objecto da exploração concessionada. Para que o terceiro, pois, possa exercer a exploração da actividade do jogo de forma autónoma e responsável.
VII. O que a lei pretendeu impedir é o exercício autónomo e por entidade não autorizada da actividade de exploração de jogos e não uma mera partilha de resultados, positivos e negativos.
VIII. A actividade de exploração de jogos de fortuna e azar é uma actividade complexa, mediante a qual se disponibiliza ao cliente o jogo, providenciando um espaço, mesas de jogo, slot machines, cartas, fichas, croupiers, aceitação de apostas, pagamento ou apropriação do resultado do jogo… e no presente caso, nenhuma destas obrigações foi transferida para o promotor do jogo, tendo sido sempre a ora Recorrente quem, durante a execução do contrato, providenciou aos jogadores a sala, as mesas de jogo, as cartas, as fichas, os croupiers, aceitou as apostas e pagou/reteve o resultado do jogo,
IX. A Recorrida por seu turno angariava clientes para jogar na sala VIP e aproveitava ou participava da actividade desenvolvida pela Recorrente, na medida em que a sua retribuição dependia dos resultados obtidos pela sala VIP, sem que isso signifique que explorasse ou sequer lhe tivesse sido transferida/cedida a exploração do jogo.
X. Explorar a actividade de jogo não pode senão significar a prática de todo o conjunto de actos materiais e jurídicos que o jogo envolve, por forma a se obter as virtualidades económicas que o mesmo encerra, em benefício próprio e exclusivo.
XI. A participação nos resultados, quer eles sejam positivos quer negativos, de uma determinada sala VIP não é subsumível à figura da transferência/cessão da actividade prevista na Lei, tal participação, por si só não é suficiente para se preencher a previsão da norma, pois que, a exploração de jogo, conforme é prevista na própria Lei do Jogo, implica e traz consigo sempre a execução de um concreto jogo ou o exercício autónomo da actividade em questão – veja-se a propósito os artigos 1.º, n.º 2, alínea a), ou art. 3.º, n.º 1, art. 4.º, n.º, art. 5.º, n.º 5. – e é esta exploração, salvo devido respeito, que a norma contida no artigo 17.º, n.º 9 quis prevenir.
XII. Tal como doutamente defendido no também mui douto Acórdão do TSI proferido no âmbito do processo n.º 267/2020, esta forma de remuneração acordada, onde se incluí a participação nas perdas, foi criada também para dar resposta ao funcionamento do mercado da actividade de promoção de jogos, então muitíssimo competitivo e lucrativo.
XIII. Ademais, quanto à licitude de essa remuneração ser negativa, já se pronunciou também esse Venerando Tribunal de Última Instância, no âmbito do processo 4/2015, decisão para a qual se remete.
XIV. A Lei estabelece que o promotor recebe uma retribuição, que pode ser uma comissão ou outra forma de remuneração, só. No art.º 24.º, n.º 5, al. 1) do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, que regula a actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino, diz-se que o contrato de promoção do jogo entre o candidato a promotor e uma concessionária deve conter o montante e forma de pagamento da comissão ou outra remuneração acordada. Está em causa apenas a determinação de que o contrato entre as concessionárias e os promotores de jogo é oneroso, não gratuito.
XV. O que será e como se determinará essa a remuneração, a lei deixa à autonomia da vontade das partes, sendo as partes são livres de acordarem os termos em que a retribuição do promotor será fixada, sendo os únicos limites os que decorrem do limite máximo determinado pelo Despacho n.º 83/2009 do Secretário para a Economia e Finanças, em desenvolvimento do n.º 1 do art.º 27.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, na redacção do Regulamento Administrativo n.º 27/2009, e dos princípios cogentes do ordenamento, como em qualquer outro negócio.
XVI. No caso discutido nos presentes autos, as partes acordaram em que a retribuição do promotor fosse determinada com base numa percentagem sobre os resultados, positivos ou negativos, da sala VIP e desde que não ultrapasse o limite máximo supra referido, as partes são livres de acordarem, dentro dos limites da lei, o conteúdo dos seus arranjos contratuais (art.ºs 392.º, n.º 1 e 399.º, n.º 1 do Código Civil). Exprime a lei a ideia de que os interessados são os melhores juízes dos seus interesses.
XVII. Sendo assim, apenas se o acordo das partes contrariasse princípios e limites essenciais garantes da ordem pública e dos bons costumes (art.º 273.º, n.º 2 do Código Civil) é que se poderia reputar ilícito, sendo que, no caso dos autos, tal não acontece.
XVIII. As regras de ordem pública relativas à actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino são as relacionadas com a idoneidade dos promotores, a qual constitui o núcleo central do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, e não com o modo como essa actividade é retribuída e a idoneidade do promotor não é colocada em causa pela forma de remuneração que escolheu.
XIX. Os contratos entre concessionária e promotor de jogo não são o resultado de uma mera relação especifica entre uma concessionária e um determinado promotor de jogo, mas antes obedece a um padrão ou a um standard já comummente aceite no sector de jogo, sendo apenas normal fixar o valor ou a percentagem específica a um determinado promotor de jogo num modelo de contrato já existente.
XX. Tal modelo de contrato existe no sentido em que ele plasma a vontade dos próprios promotores de jogo de quererem participar nos lucros e prejuízos resultantes do trabalho por eles desenvolvido, sendo esta uma forma de obterem um maior rendimento.
XXI. A existência no contrato de promoção de jogo de uma variante de cálculo da comissão que passe também pela aplicação de uma percentagem às perdas verificadas na sala VIP objecto do contrato de promoção e que a aplicação de tal variante possa implicar para o promotor a obrigação de compensar a concessionária pelo mau resultado da sua actividade, não implica, salvo devido respeito por melhor opinião, a cessão ou transferência, ainda que parcial, da exploração dos jogos naquela Sala VIP.
XXII. Salvo devido respeito por melhor opinião, se o contrato de promoção de jogo em causa nos presentes autos implicasse uma verdadeira cessão da exploração da sala VIP objecto do mesmo não autorizada, a entidade reguladora do sector, ou seja, a Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) há muito teria intervindo.
XXIII. Com efeito, o contrato de promoção de jogo em causa nos presentes autos trata-se de um contrato com cláusulas standards comuns a todos os contratos de promoção de jogo celebrados entre a ora Recorrente e os promotores que lhe prestam serviços, bem assim como aos demais contratos de promoção de jogo celebrados entre as outas Concessionárias e os seus promotores.
XXIV. À DICJ incumbem as prerrogativas estabelecidas nas alíneas 2) e 7) do artigo 2.º, do artigo 6.º alíneas 2) e 4) e alíneas 1), 2), 3) e 4) do Artigo 8.º do Regulamento Administrativo 34/2003.
XXV. Conforme resulta das supra mencionadas disposições legais e do facto de contrato de promoção de jogo em causa nos presentes autos ser, em toda a sua extensão, devidamente comunicado à DICJ a actividade da ora Recorrente e as relações contratuais que estabelece com os promotores de jogo, designadamente com a ora Recorrida, são escrutinadas, controladas e auditadas pela referida entidade.
XXVI. Assim, salvo devido respeito por melhor opinião, não se afigura correcto o entendimento do douto Tribunal a quo de que o contrato de promoção de jogo celebrado entre a ora Recorrente e a Recorrida é nulo por violação do disposto no artigo 17.º, n.º 9 da Lei 16/2001, uma vez que o mesmo implica uma cessão, ainda que parcial, da exploração da sala VIP para a Recorrida.
XXVII. A decisão recorrida violou nesta matéria o disposto no artigo 17.º, n.º 9 da Lei 16/2001, devendo ser revogada e substituída por uma outra que, face à factualidade assente e provada no âmbito dos presentes autos, julgue procedentes por provados os pedidos da ora Recorrente”; (cfr., fls. 648 a 678).
Por sua vez, assim conclui a R. “B”:
“1.ª - O Tribunal recorrido incorre em erro de julgamento quando afirma que o despacho que procedeu à selecção da matéria de facto transitou em julgado e quando considera que as questões suscitadas e supra referidas se não enquadram na norma do artigo 629.º/4 do CPC;
2.ª - O Tribunal de recurso pode anular oficiosamente a decisão da matéria de facto proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta;
3.ª - A decisão que procede à selecção da matéria de facto, mesmo que contra ela tenha sido deduzida reclamação, não transita em julgado;
4.ª - Impugnada ou não, a selecção nunca torna indiscutível que os factos incluídos na base instrutória sejam efectivamente controvertidos, nem que os considerados assentes não sejam afinal controvertidos – nem ainda que não existam factos relevantes que não foram sequer seleccionados;
5.ª - A matéria constante da alínea S) não podia ser considerado facto assente, dado que a mesma foi oportunamente impugnada pela Ré, no artigo 45.º da sua contestação, o que contraria as normas dos artigos 430.º/1 e 562.º/3 do CPC e 345.º do CC;
6.ª - É insuficiência a matéria constante do quesito 11.º, por a mesma não integrar a referência ao mês de Outubro de 2014, matéria alegada nos artigos 34.º, 38.º e 44.º da contestação e relevante e necessária para a boa e justa de decisão da causa;
7.ª - O facto constante do artigo 31.º da Contestação, excepto na parte relativa ao segmente em que se afirma “Face à total e inexplicável inércia da Autora” (cfr. artigo 24.º da Réplica), deva considerar-se confessado pela Autora, nos termos do artigo 403.º/2 do CPC;
8.ª - Contrariamente ao afirmado pelo Tribunal recorrido, a questão não é a de “apurar o nexo de causalidade entre a permanência de agentes da PJ na Sala VIP e os maus resultados alcançados pela mesma Sala”, mas antes a de esclarecer qual o comportamento da Ré no sentido de garantir o cumprimento do contrato;
9.ª - O facto, cuja selecção a Recorrente pretende que seja seleccionado como matéria assente: “O administrador da Ré, Sr. F, viu-se forçado a apresentar queixas à PJ e a outras autoridades competentes sobre a permanência de agentes da PJ na Sala VIP”, concretiza e densifica o facto quesitado sob o ponto 8.º, onde se pergunta: “Apesar de diversas solicitações da Ré, a Autora, mais uma vez, não prestou qualquer assistência nesse âmbito?”
10.ª - Com tais factos pretende a Recorrente defender-se do pedido formulado pela Autora, sustentando que o incumprimento do contrato se ficou a dever a razões que não lhe são imputáveis e que tudo fez para que evitar tal incumprimento;
11.ª - Tal facto é relevante e necessário para efectivar o seu direito de defesa, sustentando que os maus resultados verificados se deveram a circunstâncias por que não pode ser responsabilizada e que tudo fez, contrariamente à Recorrida, para que tais resultados, e com eles o incumprimento do contrato, se não verificassem, não devendo ser responsabilizada pelos mesmos;
12.ª - Tal facto deveria ser seleccionado porque interessa à decisão da causa, em face de qualquer das soluções plausíveis que a questão de direito possa comportar;
13.ª - Ao não seleccionar como facto assente tal matéria, violou o douto Tribunal recorrido, a norma do artigo 430.º/1-a do CPC;
14.ª - O Tribunal recorrido não procedeu, como lhe competia, a uma efectiva reponderação do julgamento da matéria de facto definida, exercendo os poderes de que dispõe, com vista a dar efectividade ao direito ao 2.º grau de jurisdição nessa matéria;
15.ª - O Tribunal recorrido não chegou a apreciar os meios de prova concretamente indicados, limitando-se a formular juízos de forma abstracta em torno do princípio da livre apreciação da prova e a transcrever na integra a motivação da decisão da matéria de facto do douto Colectivo da primeira instância, para, com base nela, concluir abstractamente e sem qualquer motivação e demonstração que nenhuma censura merece a decisão quanto à matéria de facto;
16.ª - A solução que o legislador adoptou, com vista à efectivação do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, passa pela atribuição ao TSI de amplos poderes que permitem corrigir efectivamente eventuais erros de julgamento que sejam devidamente identificados pelas partes;
17.ª - Compete ao juiz de recurso formar e formular, com total autonomia, a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes e daqueles a que possa aceder, e com base nela responder às questões de facto que lhe são colocadas pelas partes, concluindo pela confirmação ou pela alteração das decisões impugnadas;
18.ª - A motivação explicitada demonstra que o Tribunal recorrido não ponderou, ainda que minimamente, os fundamentos da impugnação das decisões dadas aos quesitos 6.º, 8.º, 9.º, 11.º, 14.º, 15.º, 16.º e 17.º, não reapreciou a prova indicada, não tendo formado, com base nela, a sua própria convicção, de acordo com as regras da ciência, do raciocínio e das máximas da experiência, tal como não chegou, com base nela, às suas próprias conclusões sobre as decisões impugnadas;
19.ª - Face aos dados normativos, não é correcto o entendimento de que a modificação da decisão da matéria de facto apenas é admitida em casos de erro grosseiro e manifesto por parte do tribunal recorrido na análise da prova e na apreciação da matéria de facto controvertida;
20.ª - Face às soluções normativas consagradas, não é correcto o entendimento de que o princípio da livre apreciação da prova apenas em casos excepcionais pode ser contrariado;
21.ª - O Tribunal recorrido limitou-se a confirmar, de forma abstracta e acrítica, a bondade do julgamento da matéria de facto realizado pela TJB, sem evidenciar que tenha feito qualquer sindicância do processo de valoração da prova e sem que tenha revelado e demonstrado, através da necessária explicitação, os efeitos que os meios de prova concretamente identificados provocaram na convicção do douto Tribunal recorrido, em termos de poder afirmar o acerto das decisões impugnadas;
22.ª - Tendo a Recorrentes impugnado especificadamente diversos pontos de facto cuja resposta pretendia ver alterada e tendo indicado, para além das respostas pretendidas, os meios de prova que no seu entender determinam as pretendidas modificações, o TSI só tinha de proceder à reapreciação dos meios de prova e, uma vez formada a sua convicção, traduzi-la, se fosse o caso, em modificações da decisão da matéria de facto;
23.ª - Ao não apreciar efectivamente os meios de prova indicados, ao não formar e formular a sua própria convicção tendo por base tais meios de prova, ao não pôr em confronto as suas próprias conclusões com as decisões dadas pelo TJB, o douto Tribunal recorrido não cumpriu os deveres a que estava adstrito nos termos do artigo 629.º do CPC;
24.ª - Uma resposta de “não provado” à segunda parte do quesito 14.º onde se pergunta se “a Ré poderia continuar a explorar a sua actividade na sala referida até ao dia 18 de Setembro de 2016?” resulta manifestamente incongruente ou em contradição com a resposta de “provado” ao quesito 13.º onde se pergunta: “A Ré deixou de poder explorar a sua actividade na Sala VIP a partir daquela data?”;
25.ª - Se a Ré “deixou de poder explorar a sua actividade na Sala VIP a partir daquela data” e se tal ocorreu por força da resolução do contrato que lhe foi comunicada, só não existirá incongruência ou contradição se se afirmasse que “a partir de 31 de Janeiro a Ré poderia continua a explorar a sua actividade na sala referida até ao dia 18 de Setembro de 2016”;
26.ª - Razão por que se evidencia, contrariamente ao que se afirma no douto Ac. recorrido, uma clara contradição ou incongruência entre as respostas dadas a esses quesitos, o que impede o estabelecimento de uma plataforma factual sólida para a integração jurídica do caso;
27.ª - O Tribunal recorrido erra na resposta dada à questão suscitada da falta de fundamentação da decisão dada aos quesitos 14.º a 16.º;
28.ª - O Tribunal recorrido erra quando considera que foi dada resposta negativa ao quesito 13.º, quando na realidade o mesmo obteve resposta positiva;
29.ª - Do facto provado “o contrato celebrado entre a autora e ré foi resolvido com fundamento de que esta não ter atingido os objectivos estipulados” não resulta logica e necessariamente que se tenha de dar uma resposta negativa aos quesitos 13.º, 14.º, 15.º e 16.º;
30.ª - Os quesitos 14.º, 15.º e 16. explicitam realidades factuais diferentes, cuja resposta não está subordinada à resposta relativa cessação do vínculo contratual;
31.ª - A factualidade provada não permite concluir, como concluiu o Ac. recorrido, no sentido de que o contrato celebrado entre a Autora e ora Recorrente operou, contra legem, a transferência ou a cessão, ainda que parcial, da exploração do jogo de fortuna ou azar;
32.ª - Não se provando que tenha havido transferência da titularidade dos meios, o espaço, as mesas da concessionária, ora Recorrida, para a promotora, ora Recorrente, não se pode afirmar que tenha havido transmissão ou cessão total ou parcial da concessão de jogo;
33.ª - Apesar da actividade desenvolvida pela Recorrente, tudo se encontra sujeito exclusivamente à administração da Recorrida, a qual é solidariamente responsável pela actividade desenvolvida pela Ré enquanto promotora de jogo, nos termos do art.º 29º e 30º-A da Lei 16/2001;
34.ª - A participação da Recorrente no prejuízo das mesas que explora não é bastante para permitir a conclusão a que chega o Tribunal recorrido, é antes forma de incentivar a responsabilização do promotor pela actividade por si exercida, lucrativa, mas também muito exigente em termos de esforço e empenho e no risco associado, nomeadamente de prejuízos altos;
35.ª - A promoção de jogos de fortuna e azar é também uma actividade comercial, pelo que, o participar nos proveitos e nos prejuízos não extravasa os fins a que se destina, não significando nem podendo significar transferência da exploração de jogos de fortuna e azar;
36.ª - Não havendo transferência da exploração dos jogos de fortuna e azar, não se verifica a previsão do nº 9 do artº 17º da Lei nº 16/2001, falecendo a sustentada nulidade do contrato de promoção;
37.ª - A lei claramente admite outros modelos de pagamento ou remuneração aos promotores de jogo para além do sistema clássico de pagamento de comissões calculadas sobre os valores das fichas não negociáveis transaccionadas num dado mês, designado na gíria por net rolling, podendo ser modelo alternativo o sistema de partilha de ganhos e de perdas brutas mensais decorrentes da actividade de promoção desenvolvida nas salas VIP, tal como vem comprovado nos autos, sendo esse o sistema contratado no caso vertente;
38.ª - As disposições citadas não impedem de se acordar outros sistemas remuneratórios, com outras bases de cálculos e outras obrigações e contrapartidas para o promotor, como os de participar numa percentagem dos prejuízos brutos da sala VIP, caso os haja, desde que, naturalmente, destes sistemas não resultem pagamentos ao promotor de valores superiores ao limite legal, aí, sim, observando-se uma norma imperativa, cuja justificação se alcança perfeitamente, a fim de evitar práticas potencialmente atentatórias de uma livre e sã concorrência no sector;
39.ª - Os normativos citados referem-se apenas a remunerações aos promotores e não às obrigações e pagamentos destes às concessionárias decorrentes do contrato de promoção de jogo;
40.ª - As partes podem fixar livremente, dentro dos limites da lei, o conteúdo positivo ou negativo da prestação (artigo 392.º/1 do CC);
41.ª - Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos no CC ou incluir nestes cláusulas que lhes aprouver e reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, totalmente ou parcialmente regulados na lei (artigo 399.º do CC),
42.ª - Não havendo qualquer disposição que proíba, as partes convencionaram no contrato de promoção o modelo da “Partilha de Ganhos e de Perdas”, por via do qual o promotor é remunerado com base numa determinada percentagem das receitas brutas das salas VIP e, em contrapartida, responde por uma percentagem dos prejuízos brutos verificados na mesma, conforme acima descrito;
43.ª - A decisão recorrida, ao decidir como decidiu, violou o princípio da autonomia privada e da liberdade contratual das partes, e traduz uma menos acertada interpretação das normas relativas às citadas da Lei do Jogo, Regulamento Administrativo n.º 6/2002, do Regulamento Administrativo n.º 27/2009 e Despacho do Secretário para a Economia e Finanças n.º 83/2009, pelo que se impõe a sua revogação;
44.ª - Pelo que se tem de concluir, tal como se sintetiza do sumário do Ac. do TUI, que a cláusula contratual celebrada entre operador de casino e promotor de jogo, no sentido de este suportar determinada percentagem das perdas da sala de jogo onde opera, em exclusivo, não viola o Regulamento Administrativo n.º 6/2002, designadamente os seus artigos 1.º, 2.º e 27.º;
45.ª - De acordo com tabela de honorários, os honorários correspondentes ao recurso ordinário em processo civil e de trabalho, tem o valor mínimo de MOP6.000,00 e o valor máximo é de MOP30.000,00;
46.ª - O valor de honorários fixado para o patrono oficioso no valor de MOP10.000,00 revela-se claramente desajustado do que é devido;
47.ª - Considerado o número de horas despendidas na audição e reprodução por escrito de todos os depoimentos gravados das testemunhas e na elaboração da minuta das alegações de recurso, a complexidade do recurso, que não poderá deixar de ser de grau elevado, o valor da acção, extremamente elevado, não deveria ser fixado valor inferior ao máximo previsto, no valor de MOP30.000,00, como honorário para patrocínio exercido pelo signatário no âmbito do TSI;
48.ª - O Ac. recorrido viola, nomeadamente, as normas dos artigos 430.º/1, 562.º/3 e 629.º do CPC e 345.º, 392.º/1 e 399.º do CC e os princípios da autonomia privada e da liberdade contratual que estes preceitos consagram, e ainda 7.º, 17.º/9 da Lei n.º 16/2001 e o Regulamento Administrativo n.º 6/2002 e, finalmente, 34.º/2 da Lei n.º 13/2012”; (cfr., fls. 713 a 750).
*
Por deliberação do Conselho dos Magistrados Judiciais de 26.03.2025 foram estes autos redistribuídos ao ora relator.
*
Adequadamente processados, e nada parecendo obstar, cumpre decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
2. Dois são os recursos – pela A., (“A”), e pela R., (“B”) – trazidos à apreciação desta Instância.
Da análise e reflexão que nos foi possível efectuar ao pelas Instâncias recorridas decidido, assim como ao que agora pelas ora recorrentes alegado vem, eis como se nos mostra de decidir a presente lide recursória.
Antes de mais, adequado se nos mostra de aqui fazer uma ainda que breve síntese do que nos presentes autos se processou e decidiu.
Pois bem, como se deixou relatado, a “A”, (ou “A1”), A., propôs no Tribunal Judicial de Base uma acção ordinária contra a “B”, R., pedindo que esta última fosse condenada a lhe pagar a quantia global de MOP$18.994.582,97, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data de citação até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou que celebrou um “contrato de promoção de jogo” com a R., no âmbito do qual esta se comprometeu a angariar interessados para jogarem na sala B VIP Club (XXXXX), localizada no casino “[Hotel(1)]”, estando a R. obrigada a adquirir mensalmente à A. fichas de jogo (especiais), com um volume mínimo por mesa correspondente a HKD$200.000.000,00, e a assegurar que cada mesa tivesse um ganho mensal superior a HKD$6.000.000,00.
Caso esse objectivo não fosse conseguido, a sua comissão seria calculada à razão de 55% das receitas da dita sala VIP, acrescida de uma penalização correspondente a HKD$550.000,00 por mesa de jogo.
Defendeu ainda a A. que nos meses de Novembro, Dezembro e Janeiro de 2014, a R. não conseguiu atingir os objectivos de aquisição das fichas acordadas, vindo a cessar a actividade na sala de jogo em Janeiro de 2015, o que levou a que a A. tivesse que resolver o contrato de promoção de jogo com a R. celebrado, ficando esta com uma dívida perante a A. no valor total de HKD$18.441.342,69, (correspondente aos saldos negativos, às penalidades aplicadas, impostos de selo devidos pela aquisição das fichas de jogo e despesas com bilhetes de ferry e acomodação de clientes).
*
Tempestivamente, a R. contestou, impugnando os factos articulados pela A., e deduziu reconvenção, pedindo a sua condenação no pagamento a seu favor de HKD$795.997.482,62, acrescida de juros de mora vincendos até integral e efectivo pagamento.
Sumariamente, alegou a R. que em 05.10.2014, houve uma disputa entre dois jogadores que levou a que 60 pessoas tenham ocupado a sala VIP sem que a A. prestasse qualquer assistência na manutenção da segurança da sala, e que, a partir de então, a sala passou a contar com a presença de agentes da Polícia Judiciária durante 24 horas por dia, os quais verificavam os documentos de identificação de todos os jogadores, alegando ainda que o assim sucedido, prejudicou o bom funcionamento da sala VIP, o que se teria ficado a dever à A., o que fez com que a R. não tenha conseguido promover o valor mínimo de fichas acordado.
E, assim, em face da cessação unilateral – na sua opinião injustificada – do contrato de promoção de jogo pela A., entende a R. que lhe assiste o direito a receber os lucros cessantes desde 31.01.2015 até 18.09.2016 (data do termo do contrato), o que perfaz um montante total de HKD$772.813.089,92.
*
Realizado o julgamento, o Tribunal Judicial de Base considerou que o contrato celebrado entre a A. e a R. não era um (mero) “contrato de promoção de jogo”, na medida em que ali se previa a “assunção de perdas ou prejuízos da sala de jogo pela R.”, (considerando que o sistema de “partilha de lucros e perdas” resultante do contrato celebrado entre as partes equivalia a uma assunção de um “risco dessa exploração”, suportando com uma percentagem de mais de metade das perdas da sala de jogo, como se a R. fosse “parceira” da A.).
No fundo, entendeu que através da celebração do acordo, tinha ocorrido uma “transferência da exploração de jogos de fortuna ou azar pela concessionária para o promotor de jogo”, passando a R. a ser a responsável pelo funcionamento da Sala VIP, podendo por isso participar nos lucros e perdas da sua exploração, pelo que sob as vestes de um contrato de promoção de jogo, estaria em causa um modelo de transferência ou cessão, ainda que parcial, da exploração de jogo, a que a lei impede expressamente à concessionária, ora A. fazer, sem prévia autorização do Governo.
E, não havendo neste caso essa “autorização”, o Tribunal Judicial de Base considerou que o contrato seria “nulo” por preterição do disposto no n.° 9 do art. 17° da Lei n.° 16/2001, pelo que à A. não assistia nenhum direito de exigir à R. o pagamento das comissões negativas estipuladas no contrato e provenientes da operação da sala de jogo.
Nos mesmos moldes, e porque a R. nem sequer conseguiu provar os factos que sustentavam a sua pretensão indemnizatória, tão pouco poderia ser procedente o pedido reconvencional pela mesma deduzido.
*
Inconformadas com o assim decidido, e como se deixou relatado, tanto a A. como a R. apresentaram recurso junto do Tribunal de Segunda Instância.
No seu recurso, a A. defendeu que o Tribunal Judicial de Base incorreu numa errada interpretação e qualificação do contrato, sustentando que o Tribunal de Última Instância também entendeu que nada obstaria a que as partes acordassem em que a promotora de jogo tivesse uma remuneração com base na receita da sala de jogo mas suportando igualmente parte das perdas da mesma sala, pelo que deveria ser dado provimento ao recurso e consequentemente julgados procedentes, por provados, os pedidos da A..
Por sua vez, a R. também inconformada com a sentença do Tribunal Judicial de Base na parte em que decidiu pela improcedência do seu pedido reconvencional, sustentou no seu recurso a existência de “erros na selecção da matéria de facto”, “erros na decisão que recaiu sobre os quesitos 5°, 6°, 8°, 9°, 11°, 14°, 15°, 16° e 17° da base instrutória”, e, no que ao direito diz respeito, que o contrato não era nulo pois nada obstava a que as partes fixassem livremente o conteúdo positivo ou negativo da prestação, nada proibindo na lei que os promotores de jogo partilhem com as concessionárias uma percentagem dos prejuízos verificados nas salas VIP que aqueles operam a favor destas.
Concluindo, pediu que fosse anulada a decisão recorrida e o despacho que rejeitou o aditamento de novo facto assente, eliminado o facto constante da “alínea S)” dos factos assentes de modo a ser integrado na base instrutória, ampliada a matéria assente com o alegado no art. 31° da contestação e ampliado também o âmbito do quesito 11°, proferindo-se nova decisão em conformidade com tais factos.
Pediu também a R. que a sentença recorrida viesse a ser revogada e a proferida nova decisão em relação aos quesitos mencionados nos termos do art. 629° do C.P.C.M. e revogada a decisão recorrida, por erro de julgamento, para que fosse proferida uma nova decisão, nos termos peticionados na contestação, e, caso assim não fosse de entender, que fosse anulada a decisão recorrida em virtude da insuficiência da matéria seleccionada, obscuridade e contradição na decisão de facto e falta de fundamentação, sendo ordenado o reenvio para o Tribunal Judicial de Base para suprimento de tais vícios.
Apreciando os recursos, (e como se deixou transcrito), veio o Tribunal de Segunda Instância a considerar improcedente a pela R. efectuada impugnação da “selecção e decisão da matéria de facto”.
Quanto ao “mérito” dos recursos, o Tribunal de Segunda Instância optou por uma “fundamentação por remissão”, ao abrigo do art. 631°, n.° 5 do C.P.C.M., (não obstante a existência de um voto de vencido), assim confirmando a decisão do Tribunal Judicial de Base.
*
Discordando deste Acórdão, trazem agora A. e R. os presentes recursos para este Tribunal de Última Instância.
Nas suas alegações, e, em apertada síntese, defende a A. que a decisão recorrida violou o art. 17°, n.° 9 da Lei n.° 16/2001, considerando que a mesma deveria ser revogada e substituída por outra que face à factualidade assente e provada julgue procedentes os seus pedidos, visto que nada obstaria à celebração do contrato de promoção de jogo nos termos acordados, não implicando assim qualquer transferência ou cessão de exploração da sala VIP não autorizada, ou alguma ilegalidade em relação ao cálculo ou forma de pagamento das comissões estipuladas no contrato.
Por sua vez, no seu recurso, entende a R. que o Tribunal de Segunda Instância incorreu em erro de julgamento quando afirma que o despacho que procedeu à selecção da matéria de facto transitou em julgado e quando considerou que as questões suscitadas não se integram no âmbito do art. 629°, n.° 4 do C.P.C.M., considerando assim que deve ser revogada a decisão do Tribunal de Segunda Instância na parte em que não tomou conhecimento da “impugnação do facto assente sob a “alínea S)”, (e não C) como certamente por lapso vem referido), o mesmo devendo suceder com a sua alegada “insuficiência da matéria constante do quesito 11°”.
Por outro lado, a R. alega também que o Tribunal errou ao considerar “irrelevante o facto constante do art. 31° da contestação”, e que também não efectuou uma “efectiva reponderação do julgamento da matéria de facto”, como lhe competia, com vista a dar efectividade ao direito ao 2° grau de jurisdição nessa matéria, tendo antes se limitado a proferir juízos abstractos em torno do princípio da livre apreciação e a transcrever a fundamentação dada pelo Colectivo do Tribunal Judicial de Base, (pelo que não foi dado cumprimento ao art. 629° do C.P.C.M.), defendendo, ainda, que as respostas dadas aos “quesitos 13° e 14°da base instrutória são obscuras e incongruentes”.
Quanto ao mérito, sustenta a R. que o Tribunal errou na interpretação e qualificação do contrato celebrado entre a A. e a R., sendo que nada obstava a que as partes acordassem num regime de partilha de lucros e prejuízos, tal como já antes decidiu o Acórdão do Tribunal de Última Instância de 26.06.2019, no Proc. n.° 4/2015.
*
Finalmente, vem o Exmo. Patrono Oficioso da R. pedir a alteração do valor que lhe foi atribuído a título de honorários pelo patrocínio da R., considerando que o valor de MOP$10,000.00 é manifestamente desajustado pedindo um valor não inferior a MOP$30.000,00.
*
Feita que assim nos parece ter ficado uma síntese de todo o processado, decidido, e agora (novamente) alegado, avancemos então para a apreciação das “questões” colocadas.
–– Considerando que a A. limita o seu recurso à “solução jurídica” da causa, ao passo que a R. levanta também questões relacionadas com a “matéria de facto” que, naturalmente, podem afectar a referida decisão (quanto ao “mérito”), (mais) lógico seria de se iniciar por estas últimas “questões” pela R. suscitadas quanto ao julgamento que recaiu sobre a “matéria de facto”, (sem prejuízo dos condicionalismos que, neste âmbito, a Lei impõe a este Tribunal de Última Instância).
Porém, considerando que as Instâncias recorridas entenderam ser “nulo o contrato de promoção de jogo entre A. e R. celebrado”, (e cujo teor constituiu o “fundamento dos pedidos” pelos mesmos deduzidos), mais adequado parece de se começar por tal questão, uma vez que, a se confirmar o assim entendido quanto à “ilegalidade” do dito contrato, utilidade (já) não terá a solução que se julgue dever merecer as questões sobre a decisão da matéria de facto.
Nesta conformidade, vejamos.
–– Da pelas Instâncias recorridas declarada “nulidade do contrato” entre a A. e a R. celebrado.
No que concerne a esta questão, tanto a A. como a R. sustentam que nada na Lei n.° 16/2001 obstava à celebração de um “contrato de promoção de jogo” nos termos do que foi outorgado entre as partes, inexistindo qualquer “impedimento legal” a que as partes estabelecessem um “regime de partilha de lucros e prejuízos”, não sendo assim o contrato “nulo” como decidido foi.
Dest’arte, considera a A. que o Acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que, face à factualidade assente e provada julgue procedentes os seus pedidos.
Por sua vez, (e para além das questões relacionadas com a “matéria de facto”), entende também a R. que igualmente revogado deveria ser o Acórdão recorrido por “erro de julgamento” quanto à aludida “invalidade do contrato”.
Ora, da reflexão que sobre a dita “questão” nos foi possível efectuar, cremos que (ambas) as recorrentes têm razão.
Passa-se a (tentar) expor este nosso ponto de vista.
Pronunciando-se sobre a questão agora em apreciação, o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância ponderou nos termos seguintes:
“Quanto ao mérito do recurso, considerando a fundamentação de direito exposta na sentença recorrida, remetemos para os seus precisos termos que a seguir se transcreve, com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução ao caso, ao abrigo do disposto no artigo 631.º, n.º 5, do CPC:
(…)
Por tudo quanto deixou exposto, há-de negar provimento ao recurso interposto pela ré recorrente.
Em relação ao recurso interposto pela autora, por se cingir na mesma questão, nega-se igualmente provimento ao recurso”; (cfr., fls. 628-v e 634-v).
Porém, esta (mesma) decisão teve um “voto de vencido”, no qual se sustentou a solução (oposta) que foi dada no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 30.07.2020, Proc. n.° 267/2020, pelo que, adequado não se mostra que o Tribunal de Segunda Instância tenha efectuado uma “fundamentação por remissão” ao abrigo do art. 631°, n.° 5 do C.P.C.M., visto que nos termos do aí preceituado tal só é possível “Quando o Tribunal de Segunda Instância confirmar inteiramente e sem voto de vencido o julgado em primeira instância, (…)”.
De todo o modo, e quanto à questão de mérito (propriamente dita), importa aqui explicitar das “razões” que nos levam a considerar que podiam as partes celebrar um “contrato de promoção de jogo” como o que celebraram, (através do qual acordaram uma “partilha de lucros e prejuízos que a sala de jogo viesse a ter”).
E, nesta conformidade, cabe então observar que já no Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 26.06.2019, Proc. n.° 4/2015, (sobre a mesma matéria), se considerou nomeadamente que:
“2. Liberdade contratual na promoção de jogo
Pela acção dos presentes autos, um operador de casino pediu a condenação de uma promotora de jogo de uma sala de jogo do casino por si explorado, em exclusivo, no pagamento do que estava estabelecido por contrato celebrado entre as partes, que obrigavam a promotora a suportar 45% das perdas de jogo. (…)
Interpretando os preceitos em análise, salta logo à vista desarmada que os artigos 1.º e 2.º nada têm que ver com o tema em apreciação, pois se limitam a estatuir sobre o âmbito do diploma normativo (artigo 1.º) e sobre a noção de actividade de promoção de jogos (artigo 2.º), embora este adiante que é essencial que ao promotor de jogo caiba uma contrapartida de uma comissão ou outra remuneração paga por uma concessionária.
Quer dizer, o artigo 2.º impõe que o promotor de jogo tenha uma remuneração, mas não impõe concretamente qual seja.
Por outro lado, o artigo 27.º dispõe que o Secretário para a Economia e Finanças pode fixar, por despacho, o limite máximo das comissões ou outras remunerações que podem ser pagas pelas concessionárias aos promotores de jogo, e regular a referida forma de pagamento.
Ou seja, preocupa-se em prever poder ser imposto um limite máximo às remunerações a pagar aos promotores de jogo (levado a cabo pelo Despacho do Secretário para a Economia e Finanças n.º 83/2009), mas nada prevê quanto a um mínimo de remuneração. E nem este preceito, nem qualquer outro do mesmo Regulamento Administrativo n.º 6/2002, estatuem qualquer limite ao princípio da liberdade contratual das partes, previsto no artigo 399.º do Código Civil, no sentido de não permitirem ao promotor suportar perdas do negócio que promove, em exclusivo, numa sala VIP.
Logo, bem podiam as partes acordar em que a promotora de jogo tivesse uma remuneração com base na receita da sala de jogo, mas suportando igualmente, parte das perdas da mesma.
Improcede, assim, o recurso”.
Posteriormente, sobre a mesma matéria, e no atrás citado Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 30.07.2020, Proc. n.° 267/2020, considerou-se também o que segue:
“Entende-se na decisão em causa que houve transferência da exploração de jogos de fortuna e azar para o promotor porquanto este passou a participar nos prejuízos da sala por si gerida o que iria para além do simples “canalizar jogadores para os casinos da Autora”.
Porém, longe está a matéria dos autos de permitir tal conclusão.
A Autora forneceu à Ré um espaço (a sala de jogo) e mesas de jogo para onde estes canalizam os seus clientes promovendo os jogos de fortuna e azar naquele espaço, isto é, com as fichas do casino, as mesas do casino, no espaço do casino e com recurso às utilidades do casino, tudo propriedade da concessionária, sujeita exclusivamente à administração desta, a qual é solidariamente responsável pela actividade desenvolvida pela Ré enquanto promotora de jogo nos termos do artº 29º e 30º-A da Lei 16/2001.
Não há nem resulta dos autos que tenha havido qualquer transferência da titularidade desses meios da concessionária para o promotor, não sendo o facto deste (o promotor) participar no prejuízo das mesas que explora o bastante para se retirar aquela conclusão.
Os meios espaço e mesas adstritos ao promotor por força do acordo celebrado com a concessionária implica que esta (a concessionária) durante a execução do contrato está também privada da exploração do jogo relativamente aos meios abrangidos pelo contrato – v.g. mesas, máquinas –.
Ora, numa área de tão forte concorrência a entender-se estar proibida a participação nos prejuízos por banda do promotor – sob pena de se haver por transmitida a exploração dos jogos de fortuna e azar – isso significaria que o promotor nenhuma responsabilidade assumiria ao tomar a exploração da sala, pois se nada fizesse ou se fosse negligente, seria a concessionária a perder, por não poder explorar as mesas/recursos em causa, sem que a si (promotor) se assacasse responsabilidade alguma.
Para o promotor bastaria ter apenas ali o espaço, levar clientes quando os tivesse, receber se houvesse ganho, sem mais responsabilidades.
Ora, não é esse o espírito da actividade, a qual sendo, como é sabido, bastante lucrativa, não o é menos exigente no esforço e empenho e no risco associado, nomeadamente de prejuízos altos.
A promoção de jogos de fortuna e azar é também uma actividade comercial, pelo que, o participar nos proveitos e nos prejuízos que gera não consiste em nada que extravase os fins a que se destina, não sendo, seguramente, o bastante para concluir que só por isso – participar nos prejuízos – houve transferência da exploração de jogos de fortuna e azar.
No caso dos autos não há o mínimo indício de subjacente aos contrato de promoção esteja a transferência da exploração da actividade pelo que, não pode este argumento agora usado proceder.
Não havendo transferência da exploração dos jogos de fortuna e azar, não se verifica a previsão do nº 9 do artº 17º da Lei nº 16/2001, falecendo a sustentada nulidade do contrato de promoção.
Sendo válido o contrato de promoção somos remetidos para a apreciação da cláusula que estabelece o direito da Ré de receber 55% dos ganhos se o saldo fosse positivo e o dever de pagar à Autora 55% das perdas se o saldo fosse negativo acrescida da penalização por não atingir o volume de fichas adquiridas nem o ganhos fixado. (…)
Em suma, o Tribunal a quo considerou inválida a cláusula em que as partes fixaram o sistema de "Partilha de Ganhos e de Perdas" por violação de lei imperativa.
8.2.Quid juris?
Será que a lei impõe a comissão sobre as apostas como a única forma de retribuição da actividade promocional do jogo nos casinos e mais particularmente das salas VIP? (…)
De acordo com o disposto no artigo 29.º da Lei 16/2001, (a “Lei do jogo”), mantido inalterado pelo Regulamento 27/2009, no que respeita ao imposto incidente sobre as comissões de jogo e ao seu modo de pagamento, expressamente se estabelece que este imposto incide sobre as comissões ou outras remunerações pagas a promotores, em reconhecimento de que em alternativa ao pagamento de comissões podem as partes acordar noutros tipos ou modelos de remunerações.
E, por outro, do n.º 8 do artigo 30.º do Regulamento Administrativo 2/2006, também este mantido inalterado pelo Regulamento 27/2009, decorre como uma das obrigações da concessionária de jogo “pagar pontualmente as comissões ou outras remunerações acordadas com os promotores de jogo”, numa clara referência a outros sistemas remuneratórios.
8.3. Ora, fica demonstrado que a lei claramente admite outros modelos de pagamento ou remuneração aos promotores de jogo para além do sistema clássico de pagamento de comissões calculadas sobre os valores das fichas não negociáveis transaccionadas num dado mês, designado na gíria por net rolling.
Um desses modelos utilizados em alternativa ao pagamento de comissões, pode ser o sistema de partilha de ganhos e de perdas brutas mensais decorrentes da actividade de promoção desenvolvida nas salas VIP, tal como vem comprovado nos autos, sendo esse o sistema contratado no caso vertente.
Pelas disposições acima transcritas resulta que as partes de um contrato de promoção de jogo não estão impedidas de acordar outros sistemas remuneratórios, com outras bases de cálculos e outras obrigações e contrapartidas para o promotor, como os de participar numa percentagem dos prejuízos brutos da sala VIP, caso os haja, desde que, naturalmente, destes sistemas não resultem pagamentos ao promotor de valores superiores ao limite legal, aí, sim, observando-se uma norma imperativa, cuja justificação se alcança perfeitamente, a fim de evitar práticas potencialmente atentatórias de uma livre e sã concorrência no sector.
É do conhecimento público nesta RAEM, vista até a importância que a indústria do jogo tem na economia local, a concorrência aguerrida no mercado, sendo que a chamada “guerra de comissões” conduziu ao aumento de custos de exploração de salas VIP, visando-se pela intervenção legislativa produzida, preservar o normal desenvolvimento da indústria do jogo e assumir a responsabilidade de defender o desenvolvimento ordenado do mercado da indústria do jogo.
8.4. Acresce que os normativos acima citados se referem simplesmente a remunerações aos promotores e não às obrigações e pagamentos destes às concessionárias decorrentes do contrato de promoção de jogo, porque o propósito, desta alteração legislativa, compreende-se que seja o de impor um valor máximo àquilo que os promotores poderiam receber ou ganhar e não restringir ou impor um mínimo às responsabilidades assumidas por estes naquele tipo de contrato, como é o caso de os promotores se comprometerem a pagar à concessionária uma percentagem dos prejuízos brutos da sala VIP nos moldes acima descritos para a "Partilha de Ganhos e de Perdas, situação que se verifica no caso “sub judice.””.
Apresentando-se-nos justo e adequado o que atrás se deixou consignado, impõe-se pois concluir que – para a “situação” dos presentes autos, e em face do “regime legal” que ao tempo a regulava – inexiste norma legal aplicável reguladora da actividade de promoção de jogos que preceituasse “no sentido de não permitir ao promotor suportar perdas do negócio que promove, em exclusivo, numa sala VIP”.
Por isso, acertado se nos mostra pois de considerar que o regime legal – então vigente – não impedia que as partes acordassem “que a promotora de jogo tivesse uma remuneração com base na receita da sala de jogo, mas suportando, igualmente, parte das perdas da mesma”; (cfr., o citado Ac. deste T.U.I. de 26.06.2019, Proc. n.° 4/2015 e o de Ac. do T.S.I. de 30.07.2020, Proc. n.° 267/2020).
Assim sendo, (e tal como o fez o Tribunal Judicial de Base), não se deveria concluir, (“apenas com base nesse sistema de partilha de ganhos e perdas”), que com o contrato celebrado se efectuava uma “transferência, ou cessão, (ainda que parcial), da exploração de jogos de fortuna ou azar pela concessionária para o promotor de jogo”, (por Lei vedada porque sem autorização do Governo); (cfr., pág. 21 e 22 da sentença proferida pelo T.J.B., para cuja fundamentação remeteu, o Ac. do T.S.I. agora recorrido).
Nestes termos, afigura-se-nos que o contrato em questão não padece da declarada “nulidade”, na medida em que o acordado sistema de partilha de ganhos e perdas, configura apenas um “regime remuneratório” que – em face do regime legal que no momento lhe era aplicável – se apresentava legalmente possível, (ou, não “proibido”, não havendo, com base no mesmo, uma transferência ou cessão da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino para terceiro sem autorização do governo).
Pelo que, (e ressalvando sempre melhor entendimento), aplicação não tem o art. 17°, n.° 9 da Lei n.° 16/2001, e, dest’arte – aplicável também não sendo aqui as disposições sobre esta matéria prevista na (nova) Lei n.° 16/2022 sobre o “Regime da actividade de exploração de jogos de fortuna ou azar em casino”), aprovada em 15.12.2022, em especial, o estatuído no art. 10°, n.° 4, e 19°, n.° 1, assim como o preceituado no art. 17°, n.° 2 – não se vislumbra a declarada “nulidade” do contrato entre a A. e a R. celebrado e matéria destes autos.
Atento o assim decidido, e, embora relativamente à “validade do contrato” esta seja a nossa opinião, a “solução final” a dar aos recursos apresentados implica ainda uma prévia apreciação das “questões sobre a matéria de facto” suscitadas no recurso pela R. interposto.
Nesta conformidade, vejamos.
–– Do “trânsito em julgado do despacho que procedeu à selecção da matéria de facto”.
No Acórdão recorrido, entendeu-se não ser de apreciar as questões suscitadas pela R. quanto, por um lado, ao facto assente da “alínea S)” não poder ser dado como assente por ter sido impugnado, e, por outro lado, quanto à alegada “insuficiência da matéria constante do quesito 11°”, porque para o Tribunal de Segunda Instância, “(…) é bom de ver que a ré recorrente não logrou reclamar oportunamente do despacho do tribunal a quo que selecionou os factos assentes e a base instrutória, no tocante à matéria agora levantada, sendo assim, aquele despacho já transitou em julgado, não podendo este TSI conhecer de questões que não foram apreciadas pelo tribunal a quo, salvo na situação prevista no n.º 4 do artigo 629.º do CPC, o que não é o caso.
(…)
Efectivamente, conforme dito acima, quanto a esta matéria, a ré recorrente não logrou reclamar do despacho proferido pelo tribunal a quo que selecionou os factos assentes e a base instrutória, daí que aquele despacho transitou em julgado, não podendo este TSI conhecer de questões que não foram apreciadas pelo tribunal a quo, salvo na situação prevista no n.º 4 do artigo 629.º do CPC, o que não é o caso”; (cfr., fls. 623 e 624-v).
Em causa está assim a questão do “valor da selecção dos factos assentes e da base instrutória”.
No Direito Comparado, antes da reforma de 1995/96 do C.P.C. de Portugal, a doutrina considerava, maioritariamente, que “a selecção dos factos assentes e a base instrutória (mesmo após reclamação) não fazem caso julgado formal, podendo ser alterados”; (cfr., v.g., Viriato de Lima in, “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., pág. 457, com abundantes notas e referências sobre a matéria).
E, cremos que acertado é o assim entendimento, pois que, como no mesmo sentido, aponta António Abrantes Geraldes:
“Dada a natureza puramente instrumental das peças onde o juiz fixa os factos que já considera provados e aqueles que devem ser submetidos a julgamento, concluiu-se que, haja ou não reclamação das partes relativamente à selecção, sempre o tribunal poderá introduzir as alterações que, correspondendo à verdade do processo, se justifiquem.
Assim, apesar de se ter considerado provado determinado facto que, afinal, se constata estar controvertido, ou vice-versa, nada obsta à transposição do mesmo para a peça processual adequada.
Do mesmo modo, omitido um qualquer facto controvertido, nada impede o juiz de, no início da audiência de julgamento ou ao longo desta, determinar a sua inserção na base instrutória, nos termos expressos no art. 650.º, n.º 2, al. f).
Apesar de um determinado facto provado não ter sido oportunamente seleccionado, nada impede igualmente que, na sentença, o juiz o pondere para dele extrair os correspondentes efeitos jurídicos, pois que o art. 659.º, n.º 2, dá suficiente guarida a esta decisão.
Se a questão anteriormente debatida acerca da formação de caso julgado formal relativo à especificação ou questionário já se deveria considerar resolvida, no sentido negativo, com a doutrina do Assento n.º 14/94, in D.R. de 4-10-94, está, neste momento, definitivamente afastada pela revisão do CPC, que veio realçar a função instrumental das normas processuais civis, para, em princípio, não prejudicarem a correspondência entre a decisão final e o direito substantivo adequado ao litígio efectivamente estabelecido entre as partes.
Sinal desta mudança é a norma do art. 650.º, n.º 2, al. f), que, em conjugação com o disposto no art. 264.º, n.ºs 2 e 3, vem permitir a ampliação da matéria de facto quanto aos factos instrumentais ou mesmo essenciais que resultem da discussão e instrução da causa, por constituírem complemento ou concretização de outros oportunamente alegados.
Quanto a ambas as categorias de factos deve, no entanto, notar-se que às partes é concedida a possibilidade de exercerem o contraditório no tocante à sua atendibilidade, discutindo, por exemplo, o preenchimento dos requisitos legais ou, quanto à respectiva prova, concedendo-lhes a faculdade de apresentação de
elementos probatórios complementares”; (in “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. II, 3ª ed., pág. 156 e 157, podendo também ver José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto in, “C.P.C. Anotado”, Vol. II, pág. 382 e 383).
A propósito do C.P.C.M., e após cogitar as posições doutrinárias sobre a matéria, assim conclui Viriato de Lima:
“(…) De facto, a selecção dos factos assentes e a base instrutória são meros instrumentos de trabalho, destinados a facilitar a instrução, discussão e julgamento da causa, que não criam nem tiram direitos, pelo que se deve entender que, quanto às mesmas, não se coloca, nem a questão do esgotamento do poder jurisdicional do juiz, nem o caso julgado formal.
Assim, salvo melhor opinião, deve entender-se que a selecção dos factos assentes e a base instrutória (tenha ou não havido reclamação), podem ser alterados nos seguintes casos: (…)
- Eliminar um facto da selecção dos factos assentes que, indevidamente, tivesse sido considerado assente; (…)”; (in ob. cit., pág. 458 a 459, apresentando-se ser este entendimento unânime em face de normas processuais similares, pois que se considera que “A selecção da matéria de facto, tenham ou não sido deduzidas, contra ela, reclamações, não constitui caso julgado quanto às questões que podia suscitar a sua organização”; cfr., v.g., Jacinto Rodrigues Bastos in, “Notas ao C.P.C.”, Vol. III, 3ª ed., pág. 73, afirmando ainda, mais adiante, a pág. 179, que, “A selecção da matéria de facto, mesmo quanto aos factos que considera assentes, não constitui caso julgado formal que obste à sua posterior modificação. Posição que mutatis mutandis parece dever ser acolhida actualmente”).
Verificado este aspecto, atentemos então na decisão recorrida.
Em primeiro lugar, pretendia a R. que o facto constante da “alínea S)” da especificação fosse eliminado de entre os factos considerados assentes por ali ter sido colocado indevidamente, na medida em que, correspondendo ao art. 26° da petição inicial, o mesmo teria sido oportunamente impugnado pela R..
A este propósito, o Tribunal de Segunda Instância decidiu que “(…) é bom de ver que a ré recorrente não logrou reclamar oportunamente do despacho do tribunal a quo que selecionou os factos assentes e a base instrutória, no tocante à matéria agora levantada, sendo assim, aquele despacho já transitou em julgado, não podendo este TSI conhecer de questões que não foram apreciadas pelo tribunal a quo, salvo na situação prevista no n.º 4 do artigo 629.º do CPC, o que não é o caso”; (cfr., fls. 623).
Em segundo lugar, defendia a R. que o “quesito 11°” da base instrutória deveria abranger também o mês de Outubro de 2014 (conforme teria sido alegado nos art°s 34°, 38° e 44° da contestação) e não, somente, os meses de Novembro e Dezembro de 2014 e Janeiro de 2015, sendo assim matéria relevante e necessária para a boa e justa decisão da causa; (cfr., concl. 6ª das respectivas alegações de recurso para o T.S.I.).
Novamente, veio o Tribunal de Segunda Instância a considerar que “(…)a ré recorrente não logrou reclamar do despacho proferido pelo tribunal a quo que selecionou os factos assentes e a base instrutória, daí que aquele despacho transitou em julgado, não podendo este TSI conhecer de questões que não foram apreciadas pelo tribunal a quo, salvo na situação prevista no n.º 4 do artigo 629.º do CPC, o que não é o caso”; (cfr., fls. 624-v).
Ora, como se viu, a posição sufragada pelo Tribunal de Segunda Instância não corresponde ao entendimento que se mostra de adoptar.
Nesta conformidade, e sendo que a primeira situação aqui em exame é precisamente um dos exemplos referidos por Viriato de Lima: “Eliminar um facto da selecção dos factos assentes que, indevidamente, tivesse sido considerado assente”, (in ob. cit., pág. 459), apresenta-se-nos que assiste razão à R. e que, nesses termos, a sua impugnação deveria, pelo menos, ter sido considerada e apreciada pelo Tribunal de Segunda Instância já que não se verificava qualquer facto preclusivo, (designadamente a existência de caso julgado positivo), que impedisse essa apreciação, podendo assim – se fosse o caso – a “alínea S)” ser eliminada dos factos assentes e integrada na base instrutória.
Por outro lado, quanto à “ampliação do quesito 11°”, julgamos que não existe também qualquer “caso julgado”, visto que o art. 629°, n.° 4 do C.P.C.M., permite a ampliação quando seja considerada “indispensável para a boa decisão da causa”, (até porque, se possível é o aditamento de “novos quesitos”, nada deve obstar a uma rectificação por ampliação dos quesitos já existentes).
Nesses termos, também aqui somos de opinião que o Tribunal de Segunda Instância não devia considerar que havia um “facto preclusivo” que lhe impedia a apreciação da necessidade de ampliação da matéria factual constante do quesito 11° da base instrutória, apresentando-se pois de, nesta matéria, conceder provimento ao recurso da R..
Continuemos.
–– Da “relevância do facto constante do art. 31° da contestação”.
Para a R., a matéria de facto constante do art. 31° da contestação (com excepção do trecho “Face à total e inexplicável inércia da Autora”) deveria ter sido levada à especificação – passando ali a constar que “O administrador da Ré, Sr. F, viu-se forçado a apresentar queixas à PJ e a outras autoridades competentes sobre a permanência de agentes da PJ na sala VIP” – por conta da confissão da A. ao abrigo do art. 403°, (rectius, 410°), n.° 2 do C.P.C.M., sendo que o mesmo seria, em sua opinião, decisivo para a viabilidade ou procedência da defesa por excepção da ora recorrente na medida em que complementa, (ou concretiza), o facto constante do “quesito 8° da base instrutória”.
Considera também que, ao contrário do que entendeu o Tribunal de Segunda Instância, a relevância deste facto não se prenderia com o apuramento de um nexo de causalidade entre a permanência de agentes da Polícia Judiciária na sala VIP e os maus resultados alcançados pela mesma Sala, mas, antes, operaria como um esclarecimento da actuação da R. no sentido de “garantir o cumprimento do contrato que a vinculava à A.”.
É pois de opinião, que tal facto, permitir-lhe-ia, defender-se do pedido formulado pela A., já que o incumprimento se deveria a factos que não lhe podem ser “imputáveis”, e que tudo teria feito para evitar tais resultados, concluindo assim que se inobservou a norma do art. 430°, n.° 1, alínea a) do C.P.C.M..
Apreciemos, então, a questão colocada.
É certo que, ao abrigo dos art°s 649° e 650° do C.P.C.M., tem sido entendimento deste Tribunal de Última Instância que:
“(…) apurar se um facto é ou não destituído de relevância jurídica para a decisão da causa constitui, manifestamente, matéria de direito e não de facto.
Neste sentido se pronunciaram, por exemplo, ALBERTO DOS REIS1 e A. ANSELMO DE CASTRO2.
Também ANTUNES VARELA3 se pronunciou, não só sobre este ponto, mas sobre a questão mais vasta, a de saber se o tribunal supremo pode conhecer «dos casos em que a Relação considera indispensável a formulação de outros quesitos, nos termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º do mesmo Código.
E esta indispensabilidade da formulação de novos quesitos mede-se por uma regra de direito importantíssima – por um preceito que é uma das regras de ouro da organização do questionário.
Essa regra, que o Código de 1961 explicitamente fixou, baseada na formulação de MANUEL ANDRADE, através da nova redacção do n.º 1 do artigo 511.º do Código de Processo Civil (correspondente ao art.º 515.º do Código de 39), é a de que o questionário deve ser elaborado, tendo em vista, não apenas a solução que o organizador da peça considera a boa decisão da causa, mas todas as soluções plausíveis das questões de direito debatidas na causa.
...
A fiscalização da aplicação desta regra é questão de direito, perfeitamente enquadrada na competência do tribunal de revista (o sublinhado é nosso).
Quer isto dizer que a remissão feita no n.º 2 do artigo 712.º do Código de Processo Civil para o disposto na alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º não deve nunca perder de vista o esquema traçado no n.º 1 do artigo 511.º para a organização, tanto da especificação como do questionário, porque é à luz desse programa genérico que cumpre ajuizar da indispensabilidade da formulação de novos quesitos.
A necessidade da inclusão de novos quesitos não se medirá apenas em função da solução que o juiz da causa (ou o próprio presidente do colectivo, ao usar da faculdade conferida pela alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º) julgue na altura ser a boa decisão jurídica do litígio, mas em face também das outras soluções plausíveis das
questões de direito debatidas na acção»”; (cfr., v.g., o Ac. de 23.05.2001, Proc. n.° 5/2001, e de 19.10.2005, Proc. n.° 18/2005, de 11.03.2008, Proc. n.° 51/2007 e de 17.04.2013, Proc. n.° 51/2012).
Porém, se bem entendemos e ressalvando melhor opinião, cremos que a questão trazida à colação pela R. não “afecta o pleito”, na medida em que, caso esse facto seja relevante para a boa solução da causa, o mesmo pode sempre ser levado em conta independentemente da sua inclusão na especificação.
Pelo que bastaria à R. defender uma determinada solução jurídica da causa apoiando-se em tal facto, (que afirma ser complementar).
De todo o modo, sempre se dirá que, afirmar-se que: “O administrador da Ré, Sr. F, viu-se forçado a apresentar queixas à PJ e a outras autoridades competentes sobre a permanência de agentes da PJ na Sala VIP”, não traduz, ou implica, por si só, qualquer “acto” ou “omissão” das obrigações contratuais imputáveis à A., nem tão pouco densifica ou permite retirar qualquer presunção quanto à sua actuação.
O que, aliás, bem se compreende, pois que não se pode olvidar que o art. 31° da contestação continha o trecho “Face à total e inexplicável inércia da Autora”, que a própria R. considera que não pode ser dado como confessado pela A., pelo que o trecho remanescente, salvo melhor opinião, é inócuo e irrelevante, (pois que o que seria efectivamente relevante saber era, nomeadamente, se “Apesar das diversas solicitações da ré, a autora, mais uma vez, não prestou qualquer assistência nesse âmbito?”, e também se “Os incidentes referidos em DD), EE), FF), GG), II), JJ), KK) prejudicaram o negócio da Sala VIP e o prestígio da mesma?”, matérias dos quesitos 8° e 9°).
Assim, e resolvida que se nos apresenta ter também ficado a questão da “relevância do facto alegado no art. 31° da contestação da R.”, avancemos para as últimas questões suscitadas em sede da “decisão sobre a matéria de facto”.
–– Da “falta de uma efectiva reponderação do julgamento da matéria de facto”, e da “incongruência das respostas dadas aos quesitos 13° e 14°”.
No seu recurso, pugnou também a R. ora recorrente por uma “alteração da decisão sobre a matéria de facto do Tribunal Judicial de Base”, afirmando que considerando a prova produzida, (que especificou), o “Acórdão recorrido respondeu erradamente aos quesitos 5°, 6°, 8°, 9°, 11°, 14°, 15°, 16° e 17°”, (cfr., concl. 2ª, 7ª e 16ª), sendo ainda de opinião que as “respostas dadas aos quesitos 13° e 14° revelam-se ainda total, ou parcialmente, incongruentes”; (cfr., concl. 24ª).
E, começando-se por esta alegada “incongruência”, cabe dizer que apreciado o teor da sua alegação, não se vislumbra que a R. ora recorrente sustente a sua “obscuridade” intrínseca, mas, apenas, a existência de uma suposta “contradição” nas aludidas respostas dadas à matéria de facto.
Contudo, seja como for, e mesmo que assim não fosse de entender, não se afigura que a este Tribunal de Última Instância caibam “poderes de cognição” a respeito de uma potencial “obscuridade” nas respostas dadas à matéria de facto, pois que, como já se considerou no Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 11.03.2008, Proc. n.° 51/2007:
“(…) saber se as respostas do Tribunal Colectivo aos quesitos 2.º a 7.º são obscuras, ou seja, não inteligíveis, envolve apenas uma questão de facto e não de direito, não tem o TUI poder de censura do TSI, salvo se tivesse havido ofensa expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, o que não aconteceu.
Assim, não iremos conhecer da questão da obscuridade”; (sub. nosso).
Assim, claro está que não pode este Tribunal de Última Instância apreciar a questão de facto relativa à pretensa “obscuridade” das respostas dadas aos quesitos em apreço.
Por sua vez, e relativamente a uma eventual “contradição na matéria de facto”, cabe igualmente referir que este Tribunal de Última Instância tem defendido uma leitura restritiva dos seus poderes ao abrigo do art. 649°, n.° 2 do C.P.C.M., valendo a pena assim recordar o que se considerou no seu Acórdão de 19.10.2005, Proc. n.° 18/2005:
“Ou seja, o único caso em que o TUI aprecia contradições na matéria de facto é quando considere que tais contradições inviabilizam a decisão de direito do TUI. Neste caso, manda o TSI julgar novamente a causa de modo a sanar as contradições.
4. O caso dos autos. Contradição entre factos detectada pelo TSI
O caso dos autos não se enquadra na situação mencionada. Aqui, foi o TSI que entendeu que havia uma contradição entre um facto constante de uma alínea da especificação e factos constantes de respostas a quesitos do questionário.
É indiscutível que esta situação é pura matéria de facto, que não levanta qualquer questão jurídica. Qualquer indivíduo com cultura média e inteligência normal pode apurar se entre factos existe contradição. Não necessita de ter quaisquer conhecimentos de direito. Repare-se que não está em causa qualquer qualificação jurídica da situação em apreço. Trata-se tão só de usar conhecimentos de lógica para saber se há contradição entre factos.
Temos, então, uma primeira conclusão: saber se há contradição entre factos envolve apenas uma questão de facto. Não é uma questão jurídica.
Mas num segundo momento, o TSI decidiu que a matéria em causa, a alínea G) da especificação, fora devidamente colocada nesta peça, ou seja, o TSI decidiu que o facto estava provado por confissão, acordo das partes ou prova documental, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 511.º do Código de Processo Civil de 1961, aplicável ao caso.
E, num terceiro momento, o TSI considerou que, face à falada contradição, devia prevalecer o facto da especificação, atendendo ao disposto no n.º 4 do art. 646.º do mesmo Código de Processo Civil, que determina que se têm por não escritas as respostas do tribunal colectivo dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Nestes dois últimos momentos, já a actuação do TSI suscita questões de direito, salvo no que toca ao entendimento da existência de contradição entre factos”; (sub. nosso).
Dest’arte, também não poderia este Tribunal de Última Instância apreciar a alegada “contradição” entre as respostas dadas aos quesitos 13° e 14° da base instrutória por falta dos necessários poderes de cognição sobre a matéria de facto.
*
Aqui chegados, e encontrada que assim nos parece ter ficado a solução para mais esta questão que se deixou apreciada, apreciemos então se efectuou o Tribunal de Segunda Instância uma “efectiva reponderação do julgamento da matéria de facto”.
Pois bem, cabe desde já salientar que sobre “idêntica questão” já tivemos oportunidade de nos pronunciar nos Acórdãos deste Tribunal de Última Instância de 19.10.2022, Proc. n.° 189/2020, de 29.09.2023, Proc. n.° 210/2020, de 25.04.2024, Proc. n.° 68/2023 e de 03.10.2024, Proc. n.° 5/2022, onde se considerou (essencialmente) o seguinte.
Nos termos do art. 599° do C.P.C.M.:
“1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º”.
Relativamente a tal “impugnação”, prescreve o art. 629° do mesmo Código que:
“1. A decisão do Tribunal Judicial de Base sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 599.º, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
2. No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, o Tribunal de Segunda Instância reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham servido de fundamento à decisão de facto impugnada.
3. O Tribunal de Segunda Instância pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos em primeira instância que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto objecto da decisão impugnada, aplicando-se às diligências ordenadas, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na primeira instância e podendo o relator determinar a comparência pessoal dos depoentes.
4. Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
5. Se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode o Tribunal de Segunda Instância, a requerimento da parte, determinar que o Tribunal Judicial de Base a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou escritos ou repetindo a produção da prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limita-se a justificar a razão da impossibilidade”.
Na verdade, e como sabido é, sob a epígrafe “Poderes de cognição” estatui o art. 39° da Lei n.° 9/1999, (“Lei de Bases da Organização Judiciária”), que:
“Excepto disposição em contrário das leis de processo, o Tribunal de Segunda Instância, quando julgue em recurso, conhece de matéria de facto e de direito”.
Aliás, doutra forma, nenhum sentido fazia o que se referiu a propósito dos atrás transcritos art°s 599° e 629° do C.P.C.M..
Porém, visto estando que tem o Tribunal de Segunda Instância o referido “poder de cognição”, importa definir – com o rigor e clareza possível – qual a concreta e justa “medida para o seu exercício”.
Ora, (adiantando-se desde já que atenta a natureza da referida “questão”, esta não se apresenta isenta de polémica), útil se mostra de ponderar no debate na doutrina e jurisprudência comparada existente sobre a questão.
Pois bem, apresentando-se-nos (especialmente) valiosas e meritórias as considerações que António Abrantes Geraldes teceu sobre o tema – tendo por referência o Código Português na versão resultante da reforma de 1995/96 – plenamente justificada se nos afigura de sobre as mesmas reflectir, destacando-se a seguinte passagem:
“(…)
Foi, pois, no campo da oralidade pura e, complementarmente, no reforço dos poderes da Relação que o legislador interveio em 1995 com o objectivo de permitir uma efectiva sindicância do julgamento da matéria de facto, assegurando o reclamado segundo grau de jurisdição.
Para o efeito foram recusadas soluções maximalistas no sentido da realização de novo julgamento na segunda instância ou da reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos. Ao invés, a competência da Relação é residual, circunscrevendo-se os seus poderes à reapreciação de concretos meios probatórios relativamente a determinados pontos de facto impugnados, sendo recusada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto.
Continua, porém, o legislador a omitir directrizes mais específicas quanto aos objectivos da impugnação da decisão da matéria de facto e quanto às regras que devem ser observadas pela Relação na apreciação das impugnações, designadamente quando fundadas em prova gravada.
Efectivamente, decorrida mais de uma década sobre a aprovação do novo regime de impugnação da decisão da matéria de facto, para além de se desconhecerem com rigor os resultados que foram alcançados, ainda não foi assumido claramente se a impugnação da decisão da matéria de facto deve ser reservada para a correcção de manifestos erros de apreciação da prova cometidos pelo tribunal de 1.ª instância ou se, ao invés, a Relação que não intermediou a produção da prova oralmente produzida e que não pôde percepcionar todos os aspectos relevantes para a formação da convicção deve, ainda assim, proceder a uma reapreciação autónoma dos meios de prova, corrigindo o erro decisório e reflectindo em nova decisão o resultado da sua convicção, nos termos do art. 655.º. (…)”.
Com efeito, reconhecendo a existência de “limitações” na reapreciação da prova por parte do Tribunal de recurso, (nomeadamente no que à “prova testemunhal” gravada diz respeito), este autor acaba por ser bastante crítico de uma – chamamos – “leitura restritiva” (ou “minimalista”) dos poderes do Tribunal de Recurso em sede de alteração da matéria de facto.
Considera, pois, que:
“A partir de 1995, para além de se assegurar a possibilidade de gravação dos depoimentos com vista à sua futura utilização, atribuiu-se à Relação o poder de proceder à sua reapreciação e conjugação com outros meios de prova. (…)
Conforme o expressámos noutro local, a gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (vídeo) não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Além disso, sem embargo da possibilidade de a Relação proceder à renovação dos meios de prova, nos termos do n.º 3, a mera audição dos registos gravados impede o confronto dos depoentes com pedidos de esclarecimento sobre determinadas afirmações que seriam proporcionados por uma efectiva mediação. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da primeira instância. Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores. (…)
De facto, o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1.ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam com razoável segurança credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização do processo decisório aquando da motivação da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou verbalizar mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos.
Porém, estas circunstâncias e as correspondentes dificuldades não legitimam que se faça tábua rasa das modificações operadas, seguindo um caminho em que, através de juízos meramente abstractos, se esvazie por completo o regime que, depois de sucessivas reivindicações, o legislador acabou por instituir, tendo em vista alcançar uma efectiva reapreciação da decisão da matéria de facto.
Por certo que as circunstâncias anteriormente apontadas e outras que poderiam ser enunciadas terão de ser ponderadas na ocasião em que a Relação proceda à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações na decisão da matéria de facto quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados. Todavia, a constatação das diferentes circunstâncias em que actua um e outro dos tribunais não autoriza que, com base em puras justificações lógico-formais, que não tenham subjacentes sequer a audição dos depoimentos ou uma efectiva e séria reapreciação e valoração dos depoimentos e demais meios de prova, se recuse pura e simplesmente a modificação da decisão.
Acontece que foi precisamente esta uma das correntes jurisprudenciais que surgiu nas Relações, onde em diversos arestos se assumiu sempre que a posição do julgador se centralize nos elementos que se prendem directamente com a imediação da prova testemunhal o tribunal de recurso não tem possibilidade de sindicar tal convicção, excepto se a mesma se mostrar contrária às regras de experiência, da lógica ou dos conhecimentos científicos. Assevera-se ainda, dentro da mesma linha, que na reapreciação das provas em 2.ª instância não se procura uma convicção diferente da formulada em 1.ª instância, nos termos do art. 655.º, mas tão só verificar se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos.
Trata-se de uma tese restritiva relativamente aos poderes conferidos ao tribunal de 2.ª instância que teima em manter-se em alguns acórdãos, apesar da doutrina que em sentido oposto vem sendo assumida pelo STJ, e que não corresponde aos desígnios do legislador.
(…) Na execução desta tarefa de modo algum a Relação pode ser dispensada da reapreciação efectiva dos meios de prova invocados pelo recorrente e pelo recorrido, com o pretexto formal da inexistência das mesmas condições que estiveram presentes na 1.ª instância, sob pena de não se dar seguimento aos objectivos projectados pelo legislador que, ciente da diversidade de circunstâncias, ainda assim admitiu a modificação da decisão da matéria de facto pela Relação. (…)
Assim, desde que não existam motivos para rejeitar o recurso de impugnação oda decisão da matéria de facto, nos termos do art. 685.º-B, a solução que correctamente dá sequência aos objectivos projectados pelo legislador no que concerne ao duplo grau de jurisdição, quando se tenha verificado o registo de meios de prova oralmente produzidos, determina o seguinte:
(…) e) Consequentemente não temos como verdadeira a asserção de que a modificação na decisão da matéria de facto apenas deva operar em casos de erros manifestos de reapreciação. Ao invés, sem embargo dos naturais condicionalismos que rodeiam a tarefa de reapreciação de meios de prova oralmente produzidos, desde que a Relação acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados deve reflectir em nova decisão esse resultado”; (in “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 3ª ed., 2010, pág. 309 a 323).
E, se bem ajuizamos, no mesmo sentido, pode-se também atentar na igualmente muito meritória reflexão que Fernando Amâncio Ferreira faz sobre a mesma matéria, sustentando, (nomeadamente), que:
“(…)
Num quadro destes, à Relação deparam-se os mesmos elementos de prova com que se confrontou a 1.ª instância; daí, poder julgar a questão de facto com a mesma liberdade com que aquela o fez e, se entender que ela errou, quando procedeu à valoração dos meios probatórios, deve alterar a decisão de facto proferida.
Verificando-se a segunda situação, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, levando em conta as alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados (art. 712.º, n.º 2). Tal como na situação anterior, e por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1.ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu. Também aqui a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a da 1.ª instância. (…)”; (in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9ª ed., pág. 226 e 227).
Na jurisprudência comparada, (e tanto quanto nos foi possível apurar), afigura-se-nos que, num momento inicial, verificou-se alguma divergência, com o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, defendendo, em certas situações, uma “posição minimalista”, e noutras, pugnando por uma “maior amplitude” dos poderes de reapreciação da matéria de facto por parte das Relações, apresentando-se-nos de concluir que, (posteriormente, e, recentemente, de forma cada vez mais firme), esta última posição terá acabado por prevalecer, passando a ser a “tese predominante”; (cfr., v.g., os Acs. de 19.10.2004, Proc. n.° 2637/04, in C.J.S.T.J., n.° 179, Ano XII, Tomo III, 2004, pág. 72 a 74; de 14.03.2006, Proc. n.° 49/06, in C.J.S.T.J., n.° 189, Ano XIV, Tomo I, 2006, pág. 130 a 131; de 20.09.2007, Proc. n.° 2411/07, in C.J.S.T.J., n.° 203, Ano XV, Tomo III, 2007, pág. 58 a 60; e de 24.09.2013, Proc. n.° 1965/04, Cadernos de Direito Privado, n.° 44, pág. 29 a 33, com muito interessante anotação de M. Teixeira de Sousa a fls. 33 a 36).
Ora, da reflexão que sobre o tema nos foi possível efectuar, temos como acertado este entendimento.
Com efeito, e com o devido respeito por opinião em sentido diverso, somos de opinião que o Tribunal de Segunda Instância não deve limitar-se a verificar se algum erro – “manifesto” – no procedimento probatório inquina a convicção do Juiz da 1ª Instância, devendo, antes, analisar e reflectir sobre (todo) o “processo” que levou àquela “convicção” que vem impugnada, e, em face do que alegado vem, formar uma “nova convicção” sobre as provas produzidas na 1ª Instância.
Isto é, em vez de se limitar a controlar (tão só) a “legalidade” (formal) da produção da prova realizada na Instância a quo – ou seja, se a decisão foi proferida com a invocação do “princípio da livre apreciação da prova”, (abstractamente) violadas não estando qualquer regra sobre a prova tarifada ou legal – deve ponderar e (acabar por) formar uma “convicção própria”, (sua), fruto de uma “efectiva análise do mérito da apreciação efectuada” e cujo “controlo” lhe é pedido.
Na verdade, a chamada “2ª Instância em matéria de facto”, para ser (verdadeiramente) “efectiva”, implica – ou melhor, impõe – uma (também efectiva) “reapreciação das provas”, assente numa “(re)análise crítica” da prova em que se fundamenta a decisão (ou a parte da decisão) de facto impugnada assim como da “prova” pelo recorrente indicada para a contrariar ou alterar, com a formação de uma “convicção (nova e) própria”, não bastando pois uma mera apreciação (abstracta) do julgamento efectuado.
Poder-se-á dizer que com o que se deixou considerado se estará a pugnar (ou sugerir) por um “2° – ou novo – julgamento” da matéria de facto pelo Tribunal de recurso.
Compreende-se – e respeita-se – este ponto de vista.
Porém, a “reapreciação da prova” e a “nova – ou própria – convicção” em 2ª Instância não constitui, nem significa, um “2° julgamento”.
Para já, tem tão só como “objecto” a “matéria de facto impugnada”, e ainda que, por hipótese, seja “toda” a decisão da matéria de facto, a (re)ponderação também tem como ponto de partida os “concretos meios probatórios” indicados pelo recorrente.
A não se entender assim, e como atrás se disse, facilmente se faz da “previsão legal” em questão mera “letra morta”, bastando para o efeito avançar-se com “considerações abstractas e genéricas”, sem qualquer densidade, individualidade, ou concreta referência ao caso em questão, comprometendo-se a verdade (e a justiça) material com um (mero) duplo grau de jurisdição em matéria de facto (meramente) formal, o que, com todo o respeito por diversa opinião, não se mostra de ter como adequado.
In casu, para manter inalterada a decisão do Tribunal Judicial de Base que recaiu sobre a matéria de facto, apresentou o Tribunal de Segunda Instância a seguinte argumentação:
“Ora bem, dispõe o artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida. (…)
A convicção do Tribunal alicerça-se no conjunto de provas produzidas em audiência, sendo mais comuns as provas testemunhal e documental, competindo ao julgador valorar os elementos que melhor entender, nada impedindo que se confira maior relevância ou valor a determinadas provas em detrimento de outras, salvo excepções previstas na lei.
Não raras vezes, pode acontecer que determinada versão factual seja sustentada pelo depoimento de algumas testemunhas, mas contrariada pelo depoimento de outras. Neste caso, cabe ao Tribunal valorá-las segundo a sua íntima convicção.
Ademais, não estando em causa prova plena, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração e decidir segundo a sua prudente convicção acerca dos factos controvertidos, em função das regras da lógica e da experiência comum.
Assim, estando no âmbito da livre valoração e convicção do julgador, a alteração das respostas dadas pelo tribunal recorrido à matéria de facto só será viável se conseguir lograr de que houve erro grosseiro e manifesto na apreciação da prova.
Analisada a prova produzida em primeira instância, a saber, a prova documental junta aos autos e o depoimento das testemunhas, entendemos não assistir razão à ré recorrente.
De facto, tanto os documentos apresentados pela autora, que são meros documentos particulares, não fazendo, em princípio, prova plena, assim como os depoimentos das testemunhas, estão sujeitos à livre apreciação do tribunal, sendo verdade que a ré recorrente pretende apenas sindicar a íntima convicção do tribunal recorrido formada a partir da livre apreciação e valoração global das provas produzidas nos autos.
Sinceramente, se atentarmos na fundamentação da matéria de facto bem elaborada pelo tribunal recorrido que a seguir se transcreve, não restam dúvidas de que nenhuma censura merece a decisão quanto à matéria de facto questionada por aquela recorrente: (…)
Analisada toda a prova produzida, não vislumbramos, a nosso ver, qualquer erro grosseiro e manifesto por parte do tribunal recorrido na análise da prova nem na apreciação da matéria de facto controvertida, sendo que os dados trazidos aos autos permitam chegar à mesma conclusão a que o tribunal a quo chegou, pelo que improcede o pedido de impugnação da matéria de facto”; (cfr., fls. 625-v a 628).
Como é bom de ver, em causa está uma “fundamentação” efectuada através de juízos (meramente) “abstractos”, assente em (puras) justificações “lógico-formais”, (o que até se demonstra pelo facto de grande parte do aí referido se encontrar também consignado em outros veredictos, nomeadamente, nos Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância proferidos nos Procs. n°s 788/2019, 68/2020, 39/2021 e 240/2021, onde se abordou questões totalmente díspares, e embora se detectem “alterações”, estas envolvem, apenas, pequenos ajustamentos que não afectam a substância e identidade da argumentação, como sucede, por exemplo, com a substituição do “recorrente”, por “autores”, assim como de outros ligeiros acertos similares dependentes da situação concreta).
Dest’arte, sendo nós de opinião que sobre a matéria em questão se deve adoptar a “tese ampla” sobre os poderes conferidos ao Tribunal de Segunda Instância pelo art. 629° do C.P.C.M., vista está a solução para esta questão, pois que não houve uma “efectiva reapreciação e reponderação da matéria de facto”, não se tendo assim assegurado o “duplo grau de jurisdição em matéria de facto”.
E, nesta conformidade, em face do que se deixou consignado, imperativa é a devolução dos presentes autos ao Tribunal de Segunda Instância para, nada obstando, e após nova decisão sobre as “questões” pela R. suscitadas relativamente à decisão da matéria de facto do Tribunal Judicial de Base (e que atrás se deixarem identificadas), profira nova decisão sobre os “pedidos” pela A. e R. deduzidos.
*
Por fim, cabe decidir a questão pelo Exmo. Patrono colocada relativamente aos seus “honorários”.
E, atento a todo o processado e à intervenção do Exmo. Patrono nos presentes autos, tem-se efectivamente como algo reduzidos os honorários que lhe foram atribuídos, fixando-se em sua substituição a quantia de MOP$20.000,00.
Decisão
3. Em face de tudo o que se deixou exposto, em conferência, acordam decretar a devolução dos presentes autos ao Tribunal de Segunda Instância para os exactos termos consignados.
Custas pelo vencido a final.
Registe e notifique.
Macau, aos 06 de Junho de 2025
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Ho Wai Neng [Mantendo o entendimento que consignei no “ponto 3” do despacho proferido em sede de exame preliminar quanto à possibilidade de julgamento do presente recurso em audiência].
Song Man Lei
1 ALBERTO DOS REIS, obra citada, III volume, p. 197 e 198, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 79.º, p. 94 e nas Actas da Comissão Revisora do Código de Processo Civil, sessão de 23 de Novembro de 1937, em Boletim do Ministério da Justiça, n.º 116, p. 202.
2 A. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, Livraria Almedina, Coimbra, 1982, volume III, p. 279 e 280, que não se acompanha, no entanto, na parte em que considera que todas as questões concernentes à especificação e questionário são questões de direito.
3 ANTUNES VARELA, em anotação a decisão judicial na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 125.º, p. 331.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
Proc. 18/2022 Pág. 24
Proc. 18/2022 Pág. 25