Processo nº 44/2023
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), A., propôs, no Tribunal Judicial de Base, acção declarativa de condenação em processo comum ordinário – CV2-17-0100-CAO – contra “B”, (“乙”), “C”, (“丙”), e D (丁), (1ª, 2ª e 3°) RR., e alegando que comprou à 1ª R. um automóvel que esta não lho entregou, (nem pode entregar porque tal automóvel acabou por ficar destruído por culpa da dita 1ª R., pois enquanto ainda estava à sua guarda, esta não tomou as providências adequadas para proteger o automóvel durante a passagem de um tufão), pedindo a sua condenação no pagamento a seu favor de HKD$1.186.500,00 e juros; (cfr., fls. 2 a 11-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente – após indeferimento liminar do pedido no que toca aos 2ª e 3° RR. por serem “partes ilegítimas”; (cfr., fls. 70 e 71) – proferiu o Mmo Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base decisão absolvendo a 1ª R. do pedido pelo A. deduzido; (cfr., fls. 279 a 287-v).
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Tempestivamente, do assim decidido recorreu o A. A com este “recurso da sentença” do Tribunal Judicial de Base subindo o outro “recurso interlocutório” antes interposto relativamente à decisão de ilegitimidade dos 2ª e 3° RR.; (cfr., fls. 84 a 86-v e 336 a 354-v).
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Em apreciação dos ditos recursos, proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão de 07.12.2022, (Proc. n.° 659/2022), onde se concluiu que:
“I – Dos factos assentes resultam que entre o Autor e a Ré foi celebrado um contrato de compra e venda que tem por objecto a aquisição pelo Autor dum veículo de luxo devidamente identificado nos autos, e também um acordo de prestação de serviços, traduzido em a Ré ajudar o Autor “obter” uma matrícula do Interior da China (popularmente designado por “chapas para duas terras” (Interior da China e Macau) para ser colocada no mesmo veículo para transitar no Interior da China.
II – Resulta igualmente provado que a intenção foi Autor foi bem conhecida pela Ré e esta conseguiu satisfazer o objectivo do Autor mediante a intervenção do empregado da Ré. Este complexo de relações jurídicas é regido por vários regimes previstos no CC, a saber: o de contrato de compra e venda, o de prestação de serviços (mandato) e também o de depósito, uma vez que antes de o objecto de venda ser entregue definitivamente ao seu adquirente/Autor, foi a Ré que através do seu empregado continuou a guardar o veículo vendido, que entretanto veio a ser inundado num silo (que não foi aquele que tinha sido expressamente indicado pelo representante do Autor e sem causa justificativa).
III – Por força do disposto no artigo 785º do CCM, enquanto o objecto vendido estivesse na mão do alienante, o risco corria por conta do alienante, e como tal é a Ré que suporta a respectiva consequência resultante da inundação do veículo.
IV – A mesma conclusão impõe-se fazendo-se apelo ao artigo 1116º do CCM, uma vez que o empregado da Ré, sem cumprir as instruções dadas pelo representando do Autor, estacionou o veículo num silo diferente do expressamente indicado por aquele representante e o veículo acabou por vir a apanhar inundações, já que na altura já estava içado o sinal de tufão.
V – O conceito de caso fortuito ou de força maior não é um conceito naturalístico, mas normativo. Na verdade, quando se diz que ele ocorre quando alguém, colocado na situação concreta do devedor ou agente, não podia tê-lo previsto ou não podia tê-lo evitado, pensa-se numa pessoa normalmente diligente, com a diligência média do bonus pater familias. A imprevisibilidade reporta-se ao curso normal dos acontecimentos: não se trata duma imprevisibilidade em absoluto, pois então raros seriam os casos fortuitos ou de força maior, mas sim da imprevisibilidade que resulta da improbabilidade, o que envolve um juízo de apreciação e não mero juízo de facto”.
E, a final, deliberou:
“1) - Julgar improcedente o recurso interlocutório interposto pelo Autor, mantendo-se a decisão recorrida.
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2) - Conceder provimento ao recurso final interposto pelo Autor/Recorrente, revogando-se a decisão recorrida, passando-se a sentenciar nos seguintes termos:
a) – Declarar-se resolvido o contrato celebrado entre o Autor e a Ré por impossibilidade de cumprimento imputada à Ré.
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b) – Condenar-se a Ré a restituir ao Autor a quantia de MOP$1,223,874,75, acrescida de juros vencidos e vencendos, calculados à taxa legal, desde a citação até integral pagamento”; (cfr., fls. 390 a 417-v).
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Do assim decidido, traz agora a (1ª) R. “B” o presente recurso para este Tribunal de Última Instância pedindo a revogação do dito Acórdão do Tribunal de Segunda Instância; (cfr., fls. 428 a 452).
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Por deliberação do Conselho dos Magistrados Judiciais de 26.03.2025, foram-nos estes autos redistribuídos.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
Dos factos
2. O Tribunal Judicial de Base deu como provada a “matéria de facto” elencada na sua sentença, (cfr., fls. 281 a 284), e que, oportunamente, se fará adequada referência.
Do direito
3. Como se deixou relatado, com o presente recurso pela (1ª) R. “B” interposto, pretende a mesma a revogação do segmento Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que a condenou a pagar ao A. MOP$1.223.874,75, para que em sua substituição fique a valer a decisão pelo Tribunal Judicial de Base proferida.
Ponderado o decidido e agora (novamente) alegado, cremos que não se pode reconhecer razão à (1ª) R., ora recorrente, passando-se a expor o porque deste nosso entendimento.
–– Da alegada “nulidade do Acórdão recorrido ao abrigo do art. 571°, n.° 1, alínea d) do C.P.C.M.”.
Ao longo das suas alegações de recurso, sustenta repetidamente a 1ª R., ora recorrente, que o Acórdão recorrido padece de um vício de “excesso de pronúncia”.
Para a recorrente, o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância encontra-se assim viciado porque, supostamente, aquela Instância desconsiderou o julgamento do Tribunal Judicial de Base que recaiu sobre a matéria de facto, (julgamento esse que não fora impugnado e que, por isso, faria “caso julgado”), para então resolver as questões de direito colocadas no processo com recurso a factos que não estariam provados.
Porém, evidente se nos apresenta que o Acórdão impugnado não padece do vício que lhe é apontado, visto que ali não se decidiram pretensões processuais que não tivessem sido formuladas, nem tão pouco se conheceu de “matéria de facto”, (que não foi “impugnada”), sendo aliás, manifesto que o Tribunal de Segunda Instância “não mexeu” na decisão da matéria de facto.
Com efeito, o que verdadeiramente se retira da argumentação deduzida pela ora recorrente, é que imputa “erros de julgamento” ao Acórdão recorrido, (ou seja, “erros na apreciação e aplicação do direito aos factos” que se deram como “provados”, e que, como se referiu, não foram alterados), o que não é o mesmo que um alegado “erro de actividade”, que pode implicar a nulidade da decisão assim viciada.
Como com a clareza que lhe é habitual já referia José Alberto dos Reis:
“Importa, na verdade, distinguir cuidadosamente as duas espécies: erros de actividade e erros de juízo.
O magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afectam o fundo ou o mérito da decisão; os da segunda categoria são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua actividade de julgador.
Assentemos, pois, nisto: por vícios da sentença entende a lei os erros materiais e os erros formais, que se corrigem pelos meios facultados pelos arts. 667.º e 669.º. Contrapõem-se aos erros substanciais, contra os quais se há-de reagir por via de recursos (arts. 677.º e segs.)”; (in “C.P.C. Anotado”, Vol. V, Reimpressão, pág. 124 e 125).
Por outras palavras, e o que em boa verdade alega a recorrente é que o “juízo” feito pelo Tribunal a quo foi equivocado porque a matéria de facto dada como provada não permitia as “conclusões jurídicas” adoptadas por aquela Instância, (e, nesse sentido, e em sua opinião, a decisão do Tribunal de Segunda Instância teria ido “além do que ficou provado”), o que não se confunde com um assacado, mas inexistente, “excesso de pronúncia”.
Dest’arte, são totalmente improcedentes os vícios de “excesso de pronúncia” imputados.
–– Da alegada “inexistência de relação contratual entre a recorrente e o recorrido”.
Nas suas alegações de recurso, a recorrente começa por notar que não há quaisquer elementos factuais dos quais se possa extrair a “existência de uma relação jurídica contratual” entre si e o A., ora recorrido.
Pelo que, ao contrário do que considerou o Tribunal de Segunda Instância, não se poderia concluir pela existência de um contrato, “sui generis”, abarcando a compra e venda do automóvel e, o serviço de aquisição de uma matrícula, (ou por qualquer outro pacto convencional entre aquelas partes: seja a compra e venda do automóvel, seja a prestação do serviço de aquisição de matrícula ou um depósito).
Posição que a 1ª R. extrai das respostas limitativas dadas aos quesitos 5°, 10°, 13°, 14°, 41° e 42°, e que, em sua opinião, afastam a possibilidade de se considerar que a teve uma relação contratual com o recorrido.
Recorde-se que naqueles quesitos se perguntava o seguinte:
“ 5º
Como o Autor não levava consigo tanto dinheiro em numerário nem o livro de cheques, a 1ª Ré pediu-lhe para efectuar primeiro o pagamento de cem mil dólares de Hong Kong (HKD100,000.00) em numerário, a título de sinal, podendo o remanescente ser pago até ao final do mês?
(…)
10º
Conforme o pedido do 3º Réu, o Autor emitiu à 1ª Ré um cheque do Banco da China (Macau) no valor de um milhão e oitenta e seis mil e quinhentos dólares de Hong Kong (HKD1,086,500.00) a favor da 2ª Ré, como pagamento do remanescente do preço do referido automóvel?
(…)
13º
No dia 22 de Agosto de 2017, pelas 10 horas da manhã, a 1ª Ré, na pessoa do 3º Réu, informou ao Autor, que o pedido da dupla matrícula foi autorizado e que, nessa tarde, podiam deslocar-se juntos a Zhuhai para o tratamento das formalidades de colocação da placa de matrícula?
14º
Porque o referido automóvel BENTLEY só podia atravessar pelas fronteiras de Zhuhai quando conduzido por uma pessoa registada como condutor desse mesmo automóvel e porque o Autor foi informado pela 1ª Ré em cima da hora, não lhe foi possível chamar o(s) condutor(es) registado(s), que se encontrava(m) em Shenzhen, para se deslocar(em) a Zhuhai e pediu ao 3º Réu para marcar uma outra data com E, um dos condutores registados?
(…)
41º
Conforme combinado, a 1ª Ré e a 2ª Ré requereram o registo do automóvel a favor do Autor?
42º
Até à presente data, a 1ª Ré e a 2ª Ré ainda não entregaram o automóvel em causa para o Autor?”; (cfr., fls. 152 a 157).
Do ponto de vista da recorrente, o facto de o Tribunal ter dado “respostas restritivas” aos referidos quesitos, omitindo sempre a referência à 1ª R., resultaria que, ao contrário do que defendeu o Tribunal de Segunda Instância, elementos não existem que permitissem concluir pela existência da alegada “relação contratual”.
Ora, é uma leitura que tem apoio na sentença do Tribunal Judicial de Base, onde sobre a “questão” se consignou o que segue:
“Após a audiência de julgamento, por não se ter provado que a transacção das viaturas objecto do processo ou a co-gestão de matrículas entre Guangdong e Macau pertenciam à actividade da Ré, estando D a actuar por conta da Ré na condição do poder de agenciamento (ver especialmente os factos a provar n.º 5, 10, artigos 13.º, 14.º, 41.º e 42.º referem-se ao facto de a Ré ser a entidade relevante envolvida na venda de veículos envolvidos no processo ou em co-gestão das matrículas de Guangdong e Macau, mas esta parte não foi provada no final), o argumento do Autor baseado na responsabilidade contratual não pode ser estabelecido”; (cfr., fls. 285, tradução livre por nós efectuada).
Porém, não se nos mostra de acolher esta “interpretação”, pois que nos parece – excessivamente – “formalista”, (apoiando-se, essencialmente, no facto de estar em causa uma “pessoa colectiva” que, como tal, não age “directamente”), e que desconsidera totalmente a (verdadeira) realidade da “vida comercial” e a “actuação negocial” (tantas vezes) levada a cabo através de “prepostos”, agarrando-se, (indevidamente), a argumentos de direito (puramente) civil, (e não comercial), para afastar a existência da aludida “relação jurídica com o A.”.
Com efeito, adequado não se nos apresenta considerar, (v.g.), que a 1ª R., ora recorrente, não é “parte” no contrato porque não se provou que fosse “proprietária do automóvel”, como se não fosse possível a um “stand de automóveis” ter um “mandato” para a sua venda, efectuando “vendas à consignação” ou por outra forma, questões às quais, aliás, os terceiros compradores são – naturalmente – alheios, (nem têm forma de saber).
E, dest’arte, e a nosso ver, o que (realmente) importa é o que – efectivamente – consta das “respostas” dadas à matéria de facto, e não os “juízos” e “considerações” a propósito dessa matéria; (de resto, sem prejuízo dessas considerações, o Tribunal Judicial de Base acabou ainda por considerar a possibilidade de uma “representação aparente”, similar a uma situação de “agência”, descartando-a por entender que não se incluía na “causa de pedir”).
Daí que se nos apresente “essencial” efectuar uma leitura “global” (e compreensiva) da matéria de facto dada como provada para se alcançar, cabalmente, a “concreta situação em apreço”, valendo a pena começar assim pela “actividade comercial” levada a cabo pela 1ª R., ora recorrente.
E, nesta conformidade, imprescindível é atentar desde logo e em primeiro lugar que da “alínea A) dos factos assentes” resulta que “A 1.ª Ré é uma sociedade comercial registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º XXXXX (SO) e exerce actividades de importação, exportação, compra e venda de automóveis”, retirando-se, igualmente, da “alínea C) dos ditos factos assentes” que “O 3.º Réu é um vendedor de automóveis empregado da primeira Ré”.
Constata-se ainda que da mesma matéria de facto provada se retira também que “Em 14 de Julho de 2017, o Autor deslocou-se a uma loja de automóveis da B (乙) e pediu a D (丁) que lhe recomendasse um automóvel de luxo e tratasse, posteriormente, das formalidades do requerimento de dupla matrícula de Guangdong e de Macau”, (cfr., resposta ao “quesito 1°” da base instrutória), e, (seguidamente), que “D (丁) recomendou ao Autor um automóvel de segunda mão que estava na loja, de modelo CONTINENTAL FLYING SPUR A/T de BENTLEY, com a matrícula n° XX-XX-XX”; (cfr., resposta ao “quesito 2°” da base instrutória).
Por sua vez, “O Autor decidiu comprar o referido automóvel pelo preço de HKD1.186.500,00 (com comissões incluídas)”, (cfr., resposta ao “quesito 4°” da base instrutória), e “Como o Autor não levava consigo o dinheiro em numerário suficiente nem o livro de cheques, D (丁) pediu-lhe para efectuar primeiro o pagamento do montante de HKD100.000,00 em numerário, a título de sinal, podendo o remanescente ser pago posteriormente”, (cfr., resposta ao “quesito 5°” da base instrutória), sucedendo depois que “Em 25 de Julho de 2017, o Autor deslocou-se à loja da Ré e efectuou o pagamento do remanescente”, (cfr., resposta ao “quesito 6°” da base instrutória), sendo que “Na altura, o referido automóvel BENTLEY encontrava-se na loja em causa”; (cfr., resposta ao “quesito 7°” da base instrutória, a fls. 400-v a 401 e 4 a 5 do Apenso).
E, tendo-se em consideração esta (clara e demonstrativa) “matéria de facto dada como provada”, será que da mesma se pode concluir que inexiste qualquer “relação contratual entre o A. e a 1ª R.”?
Será normal e razoável crer que o A. se deslocou à loja da 1ª R., (que se dedicava à “importação, exportação, compra e venda de automóveis”), discutiu a compra de um automóvel que se encontrava estacionado naquela loja com um empregado desta, chegou a um acordo sobre a compra de tal automóvel e a obtenção de uma matrícula de Guangdong e Macau, pagou, integralmente, o “preço acordado”, e, ainda assim, não existe qualquer “contrato” entre a 1ª R. e o A.?
Ora, ressalvando sempre melhor opinião, julga-se que tal posição só pode ser defendida – com base em regras de direito civil e – com total descaso da “realidade das práticas, usos e costumes da vida comercial”, assim como da figura (comercial) da “Preposição”, (ou da “actio institoria”), a qual dá segura e adequada resposta a todos os problemas que a 1ª R., ora recorrente, procura suscitar através do presente recurso; (sobre a matéria, e com algumas referências da doutrina, cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 08.11.2024, Proc. n.°19/2024 que aqui se tem como reproduzido).
Como sobre a questão e de forma exemplar considera Pedro Leitão Pais de Vasconcelos:
“Uma pessoa dirige-se a um estabelecimento de restauração para tomar um café e comer um pastel de nata. Alguém que estava ao balcão e que atendeu o cliente entregou o café e o pastel de nata, recebeu o preço e passou o recibo, tudo sem invocar o nome de qualquer pessoa. Em especial, sem invocar que o estabelecimento de restauração era pertença do seu Pai, com quem vivia em economia comum.
Uma pessoa dirige-se a um grande armazém onde compra um computador numa banca situada nesse grande armazém e que estava decorada com toda a imagem de marca de uma conhecida empresa de produtos informáticos. A pessoa que tratou da venda, nunca invocou o nome de qualquer pessoa, embora usasse a farda do grande armazém. O pagamento foi efectuado a outra pessoa, na caixa do grande armazém de comércio, tendo a factura sido passada em nome de uma sociedade cuja firma é semelhante ao nome do grande armazém. A banca, no entanto, era pertença da conhecida empresa de produtos informáticos, que havia locado o espaço nesse grande armazém de comércio, sendo que a pessoa estava na banca era um funcionário dessa conhecida empresa de produtos informáticos, apesar de usar a farda do grande armazém. Ao longo de todo o negócio, nas conversas tidas, ninguém afirmou agir em nome de qualquer pessoa.
Uma pessoa precisa de se deslocar para casa. Para tanto, pega no seu smartphone e usa uma app para chamar um carro que o transporte ao seu destino. Essa pessoa limitou-se a preencher o formulário online dessa app, tendo o pagamento sido efectuado através do cartão de crédito directamente a favor da app. No entanto, a empresa dona da app, não é a empresa que recebeu o preço, e não é a dona do carro, nem é empregadora do condutor do mesmo. Também não informou que agia em representação do condutor do carro que transportou o cliente, ou do proprietário do carro, ou do explorador do carro.
Uma pessoa entra num restaurante de uma cadeia internacional que opera sob uma determinada marca e está decorado com todo o branding inerente a essa marca. Toma a sua refeição e paga o preço. Foi atendida por pessoas vestindo uma farda com a imagem correspondente a essa marca, que lhe desejaram as boas vindas ao estabelecimento, identificando-o através da marca. Mas nunca invocaram agir em nome da sociedade comercial que explorava esse estabelecimento comercial em regime de franchise, nem disseram que eram franquiados, nem disseram quem era o franqueador, nem qual o nível de integração empresarial dessa franquia.
Assim é o Comércio.
Em todos estes casos, os negócios foram realizados pela pessoa referida sem qualquer preocupação com a identidade jurídico-formal da outra parte. Do ponto de vista dessa pessoa, o negócio foi feito com o restaurante, ou com a marca de produtos informáticos ou com a app, sendo-lhe indiferente quem se apresentava técnico-juridicamente do outro lado. Por outro lado, nunca foi informada a identidade da contraparte, nem qual o título que ligava a contraparte a quem o atendeu. As pessoas que a atenderam nem sequer disseram em nome de quem estavam a agir.
O único facto que a pessoa se apercebeu foi que essas pessoas estavam à frente desta actividade, deste comércio, agindo por conta do “restaurante”, da “marca de produtos informáticos” ou da “app””; (in “A Preposição – Representação Comercial”, 2ª ed., pág. 9 e 10).
Considerando o que se deixou exposto, sem esforço se mostra até de concluir que um dos “exemplos típicos” de um “preposto”, é, precisamente, o “vendedor de automóveis”.
Na verdade, e como igualmente aponta o referido autor, “Uma das actividades nas quais se observa com maior clareza o funcionamento do regime dos prepostos é no vendedor de automóveis. Assim sucede na prática, porquanto os compradores de automóveis nunca, ou quase nunca, se preocupam com os poderes de representação dos vendedores de automóveis. Entrando um terceiro num stand de automóveis, este irá identificar como vendedor qualquer pessoa que no mesmo se encontre, e que adopte o comportamento típico de um vendedor. Mostrando o automóvel, apresentando propostas de preço e negociando as mesmas. Contudo, é extremamente raro que alguém peça a comprovação dos poderes de representação a essa pessoa, quer para negociar a venda, quer mesmo para celebrar a venda. É ainda mais raro que os terceiros saibam se estão a tratar com o “dono” do stand, ou com um seu trabalhador, com um comissionista, ou com qualquer pessoa. Nem sequer sabem se o stand é proprietário do automóvel, se o está a vender à consignação, se está mandatado para vender, autorizado a vender, ou qualquer outro esquema negocial.
Assim, como regra, qualquer pessoa que, com a vontade ou mera tolerância do titular do stand, desempenhe actividades típicas de vendedor de automóveis, é um preposto do stand, vinculando o respectivo titular. Como tal, vendendo o automóvel vincula o titular do stand, independentemente de ser um bom ou mau negócio”; (in ob. cit., pág. 564 e 565).
Nestes termos, as observações feitas pela 1ª R. ao Acórdão do Tribunal de Segunda Instância não têm qualquer fundamento válido e adequado, pois que a matéria de facto dada como assente implica, natural e necessariamente, a conclusão que se está perante uma clara e manifesta “actuação da 1ª R. através de um preposto” – aplicável sendo assim o regime da “gerência” previsto nos art°s 64° e segs. do C. Comercial, ou, no que iria dar ao mesmo, o regime dos seus art°s 77° e segs., visto que o regime da gerência é também supletivamente aplicável aos “auxiliares do empresário” – donde não poderia deixar de resultar a manifesta “vinculação da 1ª R., ora recorrente”, aos actos praticados pelo seu empregado, o 3° R., (D), que foi, exactamente, quem recebeu o A. no seu stand de automóveis, conduziu e efectivou o negócio da venda do automóvel ao A., recebendo, até integralmente, o seu preço.
Nesta conformidade, verificada e constatada a existência de uma “relação contratual entre o A. e a 1ª R.” (nos termos acima descritos), impõe-se igualmente ter por totalmente prejudicados os restantes “argumentos” nas alegações de recurso pelo ora recorrente avançados.
Na verdade, a alegação da ora recorrente incide apenas sobre os “pressupostos” subjacentes à “solução jurídica” encontrada pelo Coletivo do Tribunal de Segunda Instância, mormente, quanto à “existência de uma relação jurídica contratual com o A.”, não contestando a ponderação e aplicação que o Tribunal de Segunda Instância fez das regras de “distribuição do risco”, previstas no art. 785° do C.C.M..
Pelo que o raciocínio que se deixou exposto, seria suficiente para manter intocada a decisão recorrida.
Em todo o caso, e seja como for, não se deixa de aqui fazer uma (breve) referência à dita questão da “distribuição do risco” no âmbito do presente contrato.
Antes de mais, cabe recordar que, conforme se deixou claro, a matéria de facto dada como provada nos autos revela que entre a ora recorrente e o A. foi acordada a compra e venda do automóvel da marca Bentley Continental Flying Spur, com a matrícula XX-XX-XX.
Da mesma matéria de facto resulta também que o A. pretendia obter as “matrículas de Guangdong-Macau”, (cfr., respostas aos “quesitos 3° e 12°” da base instrutória), e que o empregado da 1ª R. se disponibilizou para prestar esse serviço; (cfr., resposta ao “quesito 3°” da base instrutória).
Ora, se é certo que a “compra e venda de um automóvel” não se confunde com a “prestação de um serviço” de obtenção das pretendidas matrículas, também não se pode deixar de considerar como possível que as partes acordem num “conjunto de obrigações” com apoio em tipos contratuais distintos: seja através de “contratos mistos”, seja através de uma “união de contratos”.
Nessa linha, “Os contratos mistos combinados são aqueles em que a prestação global de uma das partes se compõe de duas ou mais prestações, integradoras de contratos (típicos) diferentes, enquanto a outra se vincula a uma prestação unitária. Apontam-se como exemplos os casos do contrato realizado entre o campista e a entidade titular do parque de campismo e o contrato entre o passageiro, com instalação reservada no wagon-lit, e a empresa ferroviária transportadora. Nestes contratos há, de um lado, uma prestação correspondente a mais de um tipo contratual e, do outro, uma prestação pecuniária unitária. (…)”; (cfr., v.g., Pedro Pais de Vasconcelos in, “Teoria Geral do Direito Civil”, 2005, 3ª ed., pág. 372).
A nosso ver, estamos perante um “contrato misto” de compra e venda e prestação de serviços, dado que há uma “unidade de função e de interesse negocial”.
Com efeito, as partes negociaram um “único contrato”, incluindo a “obtenção de matrículas” como parte do mesmo, (e não como parte contratual “autonomizável”, tanto assim que nenhuma referência existe relativamente ao “preço” por esse serviço, tudo indicando até que estava incluído na prestação pelo A. já efectuada).
Questiona-se, então, como operam as “regras de distribuição do risco” no âmbito de um contrato (atípico misto) que envolve uma alienação.
Ora, do regime previsto no n.° 1 do art. 785° do C.C.M. resulta que “O momento crucial da transferência do risco coincide com a aquisição do direito real sobre a coisa, o que, no exemplo paradigmático da compra e venda de coisa certa e determinada, opera no momento da celebração do contrato, independentemente da entrega da coisa e do pagamento do preço. (…)”; (in “Comentário ao C.C.M., Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral”, Universidade Católica Portuguesa, pág. 1096).
Porém, importa atentar que, “Se, transmitida a propriedade, o alienante ainda dispuser de prazo para entrega, o risco só passa para o adquirente com a entrega, a não ser que o adquirente se constitua em mora, porque então a transferência do risco dá-se a partir da mora (…)”; (cfr., v.g., Inocêncio Galvão Telles in, “Direito das Obrigações”, 7ª ed., pág. 474).
Por sua vez, e, como aponta Nuno Aureliano, “A obtenção de soluções relativas à distribuição do risco contratual pressupõe necessariamente a consideração da integralidade do vínculo contratual assumido pelas partes, no qual pontificam as regras relativas ao tempo e ao lugar de cumprimento das obrigações contratuais, maxime da obrigação de entrega da coisa alienada.
Encontrando o fenómeno expressão nas situações em que os momentos de produção do efeito real e de entrega da coisa não são coincidentes, cumpre desde logo inquirir o fundamento da sua dissociação, sendo fundamental determinar o momento e o lugar em que a coisa alienada deve ser entregue pelo alienante ao adquirente”; (in “O Risco nos Contratos de Alienação – Contributo para o Estudo do Direito Privado Português”, pág. 318 e 319).
Nestes termos, “A distribuição do risco não se reconduz, todavia, apenas ao brocardo «res suo domino perit», como se apreende da leitura do n.º 2 e da primeira parte do n.º 3, em que a assunção do risco surge associada à entrega da coisa. Desde logo, em todas as situações em que o momento da produção do efeito real não coincide com o momento da entrega da coisa é necessário apurar o tempo e o lugar de cumprimento da obrigação de entrega da coisa: a aplicação do regime do risco não se dissocia completamente do conteúdo das obrigações que compõem o vínculo contratual (…). Assim, nomeadamente, o risco não se transfere para o adquirente, continua a impender sobre o alienante, apesar da transferência da propriedade, quando o cumprimento da obrigação de entrega fique sujeito a um termo que tenha sido estabelecido a favor do alienante – benefício que, aliás, conforme regra geral supletiva do artigo 779.º, se considera atribuído ao devedor, ou seja, ao alienante como devedor do cumprimento da obrigação de entrega (…)”; (in “Comentário ao C.C.M., Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral”, Universidade Católica Portuguesa, pág. 1096).
Postas assim as coisas, voltemos ao caso dos autos.
Como se viu, as partes celebraram um “contrato misto”, onde por um lado acordaram na “compra e venda de um automóvel” e, por outro, na “prestação de um serviço de aquisição ou obtenção de matrículas” para o mesmo veículo automóvel que foi objecto da compra e venda.
Da resposta ao “quesito 12°” da base instrutória resulta que o automóvel não foi (de imediato) entregue ao A. porque foram solicitadas as matrículas de Guangdong e Macau aguardando-se pela sua obtenção.
E, desta forma, considerando-se a “integralidade” do vínculo contratual assumido pelas partes, claro e evidente é que “o automóvel se manteve no poder da 1ª R.” para que lhe fosse possível cumprir com a obrigação contratual de obtenção de matrículas, e que só seria entregue ao A. após o cumprimento da referida acordada prestação de serviços, mostrando-se assim aplicável, (directamente ou por maioria de razão), o regime legal do pelo Tribunal de Segunda Instância invocado n.° 2 do art. 785° do C.C.M., (conjugado ou não com o art. 768° do C.C.M. para determinação do beneficiário do prazo), vista estando a solução para o presente recurso, (pois que quanto às demais questões pela 1ª R. invocadas, as mesmas não têm qualquer impacto na “solução” da situação).
Na verdade, apresenta-se-nos claro que não se chegou a celebrar qualquer “contrato de depósito”, (evidente sendo que a sua referência se tratou de um mero exercício hipotético do Tribunal de Segunda Instância para demonstrar que a mesma solução seria obtida ainda que outro fosse o entendimento quanto ao tipo de contrato celebrado), cabendo aqui consignar também e finalmente que, se é certo que não há “responsabilidade civil extracontratual”, a verdade é que tal, como parece evidente, se deve ao facto de se ter celebrado um “contrato”, (e não como defende a ora recorrente).
Dest’arte, necessária é a decisão que segue.
Decisão
4. Nos termos de todo o expendido, em conferência, acordam negar provimento ao presente recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 15 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 20 de Junho de 2025
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Song Man Lei
Choi Mou Pan
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