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Processo nº 25/2022
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), e seu cônjuge B (乙), (1° e 2ª) AA., casados no regime da comunhão de adquiridos, propuseram, no Tribunal Judicial de Base, acção declarativa de condenação com processo ordinário – CV2-18-0062-CAO – contra a “C”, (“丙”), R., todos com os sinais dos autos, pedindo, a final, que:
- fosse declarada a aquisição por usucapião pelos AA. do direito de propriedade da “Construção” sita na parte de trás do imóvel descrito sob o n.º 34 na [Rua(1)], e que seja feita a desanexação da “Construção” do imóvel descrito sob o n.º XXXX, juntando-a ao imóvel descrito sob o n.º XXXX;
- fosse a R. condenada a reconhecer o seu direito de propriedade sobre a “Construção” e a restituir a mesma aos AA. após a sua restauração para o estado prévio à demolição, com a reparação das suas instalações internas; e que,
- fosse ordenado à R. que ao construir um prédio no [Rua(2)], no local onde originalmente se localizavam os imóveis n.º 8 e n.º 8A, deva reservar uma distância de um metro e meio entre a fachada do imóvel virada para o [Rua(2)] e o novo prédio; (cfr., fls. 2 a 8 e 25 a 35 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Citada, a R. contestou e apresentou pedido reconvencional, requerendo fosse ela reconhecida como proprietária da aludida “Construção” em questão, requerendo o pagamento de uma indemnização pela privação do seu uso; (cfr., fls. 49 a 94, suscitando também o incidente de “intervenção de terceiros” que foi oportunamente indeferido por despacho de fls. 224 a 225).

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Oportunamente, por sentença de 27.01.2021, a Mma Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base julgou improcedente a acção, e parcialmente procedente a reconvenção, decidindo:
- absolver a R. do pedido apresentado pelos AA. A e B;
- condenar os AA. a reconhecer que o terreno onde se situa a “Construção” em questão nos autos, situado junto à moradia n.º 34 da [Rua(1)], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° XXXX, pertence à R., sendo esta a sua única e legítima proprietária;
- condenar os AA. a reconhecer a R. como a única e legítima proprietária da “Construção” localizada nas costas da moradia n.º 34 da [Rua(1)];
- condenar os AA. a esvaziar o R/C do referido “edifício” e restituí-lo à R. no prazo de um mês a contar do trânsito em julgado da sentença;
- condenar os AA. a indemnizar à R. o montante diário de MOP$1.000,00, contado a partir de 09.08.2018 até que os AA. restituam a “construção” em causa e não impeçam a respectiva demolição e construção; e,
- condenar os AA. a pagar uma sanção pecuniária compulsória no montante de MOP$1.000,00 por dia, a partir de 1 mês após o trânsito em julgado da sentença, até que os AA. restituam a “construção” em causa e não impeçam a respectiva demolição e construção; (cfr., fls. 420 a 434).

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Inconformados com o assim decidido, os AA. interpuseram recurso para o Tribunal de Segunda Instância, onde, por Acórdão de 15.10.2021, (Proc. n.° 604/2021), se decidiu “conceder PARCIALMENTE provimento ao recurso, alterando-se a decisão recorrida na parte respeitante à indemnização”, condenando-se, nesta conformidade, os AA. (recorrentes) a pagar à R. uma “indemnização” à taxa diária de MOP$1.000,00, contada desde o dia de citação (09.08.2018) até 24.06.2019, sendo o seu valor liquidado em sede de execução da sentença, mantendo-se o restante decidido pelo Tribunal Judicial de Base; (cfr., fls. 493 a 516-v).

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Deste Acórdão trazem agora tanto os AA., (cfr., fls. 539 a 556), como a R., (cfr., fls. 525 a 536), os presentes recursos para este Tribunal de Última Instância.

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Por deliberação do Conselho dos Magistrados Judiciais de 26.03.2025 foram estes autos redistribuídos ao ora relator.

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Adequadamente processados, e nada parecendo obstar, passa-se a conhecer.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal Judicial de Base deu como provados os factos seguintes (que foram confirmados pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância agora recorrido):

“- Em 03/12/1987, D no Cartório Notarial das Ilhas outorgou uma escritura pública de compra e venda através da qual adquiriu o domínio útil do imóvel sito no número 34 da [Rua(1)]. (al. A) dos factos assentes)
- Tal imóvel encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, e o respectivo domínio útil encontrava-se inscrito a favor de D pela inscrição n.º XXXX. (al. B) dos factos assentes)
- Em 02/03/2005, os Autores outorgaram a escritura pública de compra e venda que consta de fls. 108 a 112 do apensa “A”, cujo teor aqui se dá por reproduzido, na qual declararam compra o imóvel referido em A) e B) a D e respectiva esposa, os quais declararam vender. (al. C) dos factos assentes)
- Actualmente, o domínio útil de tal imóvel está inscrito a favor dos autores na Conservatória do Registo Predial sob a inscrição número XXXXXXG. (al. D) dos factos assentes)
- A Ré tem registado a seu favor no Registo Predial a aquisição por compra do direito de propriedade dois imóveis sitos no [Rua(2)] n.ºs 8 e 8A. (al. F) dos factos assentes)
- O imóvel sito no [Rua(2)] n.º 8 encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX e em 13/07/2012 foi inscrito a favor da Ré através da inscrição número XXXXXXG. (al. G) dos factos assentes)
- O imóvel sito no [Rua(2)] n.º 8-A encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXXX e em 13/07/2012 foi inscrito a favor da Ré através da inscrição número XXXXXXG. (al. H) dos factos assentes)
- Os prédios dos números 30, 32 e 34 da [Rua(1)] confinam com o prédio do nº 8 do [Rua(2)], situando-se este nas traseiras daqueles, considerando como parte da frente a que dá para a [Rua(1)]. (al. I) dos factos assentes)
- Os Autores viviam habitualmente na China e encarregaram sua irmã mais velha E de administrar o seu prédio situado no número 34 da [Rua(1)]. (al. J) dos factos assentes)
- E em nome dos Autores, deu de arrendamento o imóvel dos autores a um terceiro para a exploração de uma empresa de engenharia e de venda de obras de caligrafia e pintura. (al. K) dos factos assentes)
- Com uma chapa de ferro, a ré obstruiu a passagem localizada no piso térreo do imóvel dos autores que dá acesso a uma “Construção” existente no prédio nº 8 da ré, na zona em que este confina com o prédio dos autores (nº 34), fazendo com que os Autores não consigam entrar na “Construção”, nem aceder e continuar a utilizar a cozinha e casa de banho existente dentro de tal “Construção”. (al. L) dos factos assentes)
- A “Construção” foi parcialmente demolida pela ré, restado apenas uma parte das paredes e a casa de banho. (al. M) dos factos assentes)
- Nos seus prédios dos números 8 e 8A, a Ré pretende construir um novo edifício rente ao imóvel dos autores do nº 34, sem reservar qualquer distância designadamente onde se encontra a referida “construção”. (al. N) dos factos assentes)
- Os Reconvindos estão a ocupar o r/ch da “Construção” situada no prédio nº 8 da ré por trás do prédio nº 34 da [Rua(1)], recusam-se a restituí-la à Reconvinte e impedem que a Reconvinte proceda à sua demolição a fim de iniciar a construção do novo prédio. (al. O) dos factos assentes)
- Na sequência da aprovação, pela DSSOPT, do projecto de arquitectura da Reconvinte, para a construção de um novo prédio no terreno dos velhos prédios nº 8 e 8-A do [Rua(2)], e nº 7 da [Rua(3)], a Reconvinte apresentou o projecto de obra de demolição dos velhos prédios que também foi aprovado pela DSSOPT. (al. P) dos factos assentes)
- Quando a Reconvinte se preparava para realizar a demolição dos velhos prédios foi impedida de o fazer, em 24.03.2018, por F, cunhado dos Reconvindos, que embargou extrajudicialmente a obra de demolição e chamou a Polícia, declarando, em nome dos Autores, que ocupava e lhe pertencia a “Construção” situada por trás do prédio nº 34 da [Rua(1)]. (al. Q) dos factos assentes)
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Base Instrutória:
- O imóvel dos autores identificado nas alíneas A) a D) dos factos assentes é um edifício com três pisos, sendo que uma janela do segundo piso está virada para o prédio da Ré sito em Macau no [Rua(2)] n.º 8. (resposta ao quesito 1A° da base instrutória)
- Em data não apurada mas anterior a 3 de Dezembro de 1987, o pai do D explorava no rés-do-chão do prédio do nº 34 da [Rua(1)] o negócio de compra e venda de relógios cujo estabelecimento comercial denominava “[Loja]”. (resposta ao quesito 1° da base instrutória)
- Posteriormente, em 3 de Dezembro de 1987, D adquiriu o domínio útil do referido prédio e continuou a explorar aí o negócio de compra e venda de relógios. (resposta ao quesito 2° da base instrutória)
- D usava a “Construção” referida em L) dos factos assentes como cozinha e casa de banho. (resposta ao quesito 3° da base instrutória)
- Enquanto D usava a “Construção”, ninguém manifestou oposição. (resposta ao quesito 7° da base instrutória)
- Antes de celebrarem a escritura referida em C) dos factos assentes, o Autor foi inspecionar as condições reais do prédio do nº 34 da [Rua(1)] e existia já a “Construção” que servia como cozinha e casa de banho para o edifício construído no referido nº 34. (resposta ao quesito 8° da base instrutória)
- Até à demolição da “Construção”, os Autores e os inquilinos do imóvel do nº 34 da [Rua(1)] utilizavam-na como cozinha e casa de banho. (resposta ao quesito 10° da base instrutória)
- Depois de adquirirem o nº 34 até 24 de Março de 2018, os Autores têm usado a “Construção” ininterruptamente e ninguém manifestou oposição. (resposta ao quesito 15° da base instrutória)
- O prédio a construir pela Ré cobriria a janela do segundo andar referido na resposta ao quesito 1ºA. (resposta ao quesito 18° da base instrutória)
- Em 24 de Março de 2018, a Ré iniciou a demolição da “Construção”, sem que tivesse notificado os Autores nem tivesse obtido o consentimento destes. (resposta ao quesito 19° da base instrutória)
- Depois da demolição, a “Construção” ficou com apenas parte das paredes e a casa de banho intactas. (resposta ao quesito 20° da base instrutória)
- Na altura da demolição da “Construção”, a Ré também destruiu as lâmpadas, os fios e os canos de água dentro da “Construção”. (resposta ao quesito 21° da base instrutória)”; (cfr., fls. 421 a 423 e 503 a 504-v).

Do direito

3. Dois são os recursos que nestes autos importa apreciar e decidir.

Comecemos, para já, pela identificação dos “vícios” suscitados nos ditos recursos.

Pelos AA., vem suscitados os seguintes vícios:
- “erros na interpretação e aplicação do direito”, (quanto à sua posse e usucapião);
- “violação de disposições contidas na Circular n.º 01/DSSOPT/2009”;
- “abuso de direito”; e,
- “erro na determinação (do montante) da indemnização”.

Pela R., vem (também) afirmado que o Acórdão padece de “erro na determinação da indemnização e da sanção pecuniária compulsória”.

Sem mais demoras, debrucemo-nos sobre os vícios pelos AA. suscitados.

–– Dos alegados “erros na interpretação e aplicação do direito”.

Pois bem, como se colhe do que se deixou relatado, o pedido principal dos AA., (ora simultaneamente recorrentes e recorridos), passa pelo reconhecimento do seu reclamado “direito de propriedade” sobre uma “Construção” adjacente a um prédio que legalmente possuem.

Entendem que a sua “posse” desta “Construção” em termos conducentes à sua aquisição por efeito da “usucapião” encontra-se plenamente demonstrada, sustentando que a fundamentação expendida pelas Instâncias recorridas está em “contradição com a factualidade dada como provada”, impondo-se corrigir a decisão tomada com a consequente procedência do pedido principal que formularam, salientando, também, que a relação entre a dita “Construção” e o imóvel legalmente registado em seu nome é de aquela ser “parte componente ou integrante deste último”, nos termos e para os efeitos previstos no art. 200° do C.C.M..

Por fim, entendem ainda que estando demonstrado o seu exercício do “poder de facto” sobre o imóvel em questão, sempre seria de “presumir a sua posse”, nos termos do art. 1176°, n.° 2 do C.C.M..

Aqui chegados, e em face das questões pelos recorrentes colocadas, vejamos então se lhes assiste razão quando reiteram que devem ser reconhecidos como “possuidores”, e “legítimos proprietários” da “Construção” em apreço.

Ora, como resulta da matéria de facto dada como assente (e não contestada), a reivindicada “Construção” incorpora uma estrutura rudimentar, anexa ao imóvel pertencente aos AA., à qual se pôde em tempos ter acesso através deste.

Entretanto, esta “estrutura” terá sido praticamente destruída após obras de demolição promovidas pela R., que pretende edificar um novo prédio no terreno (onde esta “Construção” se encontra), obras estas para as quais detêm a necessária aprovação da entidade pública competente, sendo ainda de notar que, por apenso à presente acção, os AA. requereram duas “providências cautelares” tendo em vista o “embargo da obra” iniciada pela R., assim como a “restituição da posse” sobre a referida “Construção”, não tendo obtido sucesso em qualquer uma delas, visto que se veio a entender, (em ambos os procedimentos), que demonstrada não estava a “posse” dos AA., pressuposto incontornável para o decretamento de qualquer uma das duas providências; (cfr., Procs. n°s CV2-18-0062-CAO-A e CV2-18-0062-CAO-B, os Acs. do T.S.I. de 17.01.2019, Proc. n.° 844/2018 e de 31.01.2019, Proc. n.° 56/2019, assim como o Ac. deste T.U.I. de 06.06.2019, Proc. n.° 53/2019).

E, de facto, cremos ser (efectivamente) esta a “situação”.

Na verdade, em sede dos presentes autos, e no que respeita – directamente – a tal “Construção”, estão dados como provados os seguintes factos:
- “D usava a “Construção” referida em L) dos factos assentes como cozinha e casa de banho”, (cfr., resposta ao quesito 3° da base instrutória);
- “Enquanto D usava a “Construção”, ninguém manifestou oposição”, (cfr., resposta ao quesito 7° da base instrutória);
- “Antes de celebrarem a escritura referida em C) dos factos assentes, o Autor foi inspecionar as condições reais do prédio do nº 34 da [Rua(1)] e existia já a “Construção” que servia como cozinha e casa de banho para o edifício construído no referido nº 34”, (cfr., resposta ao quesito 8° da base instrutória);
- “Até à demolição da “Construção”, os Autores e os inquilinos do imóvel do nº 34 da [Rua(1)] utilizavam-na como cozinha e casa de banho”, (cfr., resposta ao quesito 10° da base instrutória);
- “Depois de adquirirem o nº 34 até 24 de Março de 2018, os Autores têm usado a “Construção” ininterruptamente e ninguém manifestou oposição”, (cfr., resposta ao quesito 15° da base instrutória);
- “Com uma chapa de ferro, a ré obstruiu a passagem localizada no piso térreo do imóvel dos autores que dá acesso a uma “Construção” existente no prédio nº 8 da ré, na zona em que este confina com o prédio dos autores (nº 34), fazendo com que os Autores não consigam entrar na “Construção”, nem aceder e continuar a utilizar a cozinha e casa de banho existente dentro de tal “Construção””, (cfr., al. L) dos factos assentes);
- “A “Construção” foi parcialmente demolida pela ré, restado apenas uma parte das paredes e a casa de banho”, (cfr., al. M) dos factos assentes);
- “Os Reconvindos estão a ocupar o r/ch da “Construção” situada no prédio nº 8 da ré por trás do prédio nº 34 da [Rua(1)], recusam-se a restituí-la à Reconvinte e impedem que a Reconvinte proceda à sua demolição a fim de iniciar a construção do novo prédio”, (cfr., al. O) dos factos assentes);
- “Em 24 de Março de 2018, a Ré iniciou a demolição da “Construção”, sem que tivesse notificado os Autores nem tivesse obtido o consentimento destes”, (cfr., resposta ao quesito 19° da base instrutória);
- “Depois da demolição, a “Construção” ficou com apenas parte das paredes e a casa de banho intactas”, (cfr., resposta ao quesito 20° da base instrutória); e que,
- “Na altura da demolição da “Construção”, a Ré também destruiu as lâmpadas, os fios e os canos de água dentro da “Construção”; (cfr., resposta ao quesito 21° da base instrutória).

E, como se vê, resulta da transcrita “matéria de facto provada” o “acesso desobstruído” dos AA., do seu inquilino e do anterior proprietário do n.° 34 da [Rua(1)], à “Construção” em apreço – nomeadamente, ao R/C da mesma – até ao momento em que a R. colocou uma barreira de acesso entre ambos os imóveis e, posteriormente, promoveu a sua demolição, (em 24.03.2018).

Resulta também que os AA. “ocupam” ainda o R/C da dita “Construção”, recusando-se a restituí-la à R., impedindo que ela proceda à sua total demolição a fim de iniciar a construção do novo prédio, (para a qual já está autorizada).

E, em bom rigor, pouco mais do que isto está provado quanto aos “poderes” pelos AA. (efectivamente) exercidos sobre o aludido imóvel.

Ora, como sabido é, “Posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real (rectius: do direito real correspondente a esse exercício). Envolve, portanto, um elemento empírico – exercício de poderes de facto – e um elemento psicológico-jurídico – em termos de um direito real. Ao primeiro é o que se chama corpus e ao segundo animus. Elementos, como se disse, interdependentes ou em relação biunívoca. O poder de facto, como já acentuámos, é menos um contacto com a coisa do que uma imissão desta na zona de disponibilidade empírica do sujeito”; (cfr., v.g., Orlando de Carvalho in, “Direito das Coisas”, 1ª ed., 2012, pág. 268).

Também sobre o tema de “posse” aqui e agora em apreciação, e, nomeadamente, em sede do Acórdão de 19.02.2020, (Proc. n.° 83/2018), já teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de considerar que:

«(…) o conceito de “posse” é nos fornecido pelo art. 1175° do C.C.M., nos termos do qual, “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
Perante o assim preceituado, tem-se (tradicionalmente) entendido que na análise de uma “situação de posse” distinguem-se dois elementos. Um, “material” – o “corpus” – que se identifica com os actos materiais, (tais como, a detenção, fruição ou ambos conjuntamente), praticados sobre a coisa com o exercício de certos poderes sobre a coisa, o também chamado “domínio de facto sobre a coisa”, e, um outro, o “elemento psicológico” – “animus” – que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados; (cfr., v.g., Henrique Mesquita, in “Dtos Reais”, pág. 66 e segs. e Mota Pinto em obra com o mesmo título, pág. 195 e segs.).
É, na essência, a posição (subjectivista) em tempos adoptada por Savigny, segundo a qual, “a detenção que se queira fazer valer como posse deve ser intencional, isto é, deve-se, para ser possuidor, não ter apenas a mera detenção, mas antes querer tê-la (…). Quando se tenha a intenção de exercer propriedade alheia, a qual, portanto, assim é reconhecida, não há qualquer animus possidendi, pelo qual a detenção seja elevada a posse”; (cfr., A. Menezes Cordeiro, in “A posse: perspectivas dogmáticas actuais”, pág. 24).
Por sua vez, e como se deixou adiantado, da “posse”, distingue-se a “simples detenção”.
Nos termos do art. 1177° do mesmo C.C.M.:
“São havidos como detentores:
a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;
b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;
c) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem”.
Englobam-se assim as situações em que, embora haja exercício de facto, não se constitui a relação jurídica da posse.
Como ensina O. Ascensão: “Há detenção nos casos em que o exercício é desacompanhado da intenção de agir como beneficiário do direito, a posse em nome de outrém, e quando alguém exerce indevidamente poderes sobre a coisa do domínio público”; (in “Dto Reais”, pág. 254 e segs.).
Por sua vez, para Henrique Mesquita, “deve considerar-se como simples detenção – e não como posse – todo o poder de facto que se exerce sobre as coisas sem o animus possidendi”; (in ob. e local citado).
Também em recente Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 06.06.2019, e apreciando-se se o aí recorrente (nos Autos de Recurso n.° 53/2019) tinha a invocada “posse” de um determinado prédio para efeitos de poder requerer a imediata suspensão de uma obra em sede da providência de “embargo de obra nova”, consignou-se (nomeadamente), o que segue:
“(…)
Como se sabe, no regime jurídico vigente na RAEM, a posse é composta necessariamente por um elemento objectivo e um subjectivo, que são respectivamente o corpus e o animus, consistindo o primeiro numa situação de facto, nos actos materiais praticados sobre a coisa e o segundo num elemento psicológico, na intenção de agir como titular do direito a que o exercício do poder de facto se refere.
(…)
A actuação de facto correspondente ao exercício do direito, por parte do possuidor, constitui o corpus da posse.
O elemento objectivo é constituído pelo animus, a intenção de exercer o direito real em causa, elemento esse que se retira do art.° 1253.°, alínea a), do Código Civil, pois não são havidos como possuidores, mas como meros detentores ou possuidores precários “os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito”, situação que também se verifica nas duas outras alíneas do mesmo artigo.
(…)
Para ANTUNES VARELA, “A posse não se esgota no corpus da actuação de quem materialmente detém a coisa; compreende ainda, como logo transparece no texto legal introdutório do instituto (art.° 1251.°), apesar, da secura sintética dos seus termos, o animus com que a exploração económica da coisa é exercida.
E que esse animus pressupõe na posse a intenção de agir como titular da propriedade ou de outro direito real sobre a coisa resulta, não só da definição lapidar da posse contida no referido artigo 1251.° do Código Civil, mas principalmente do modo como o artigo 1253.° expurga o conceito legal (da posse) de todas as situações em que o detentor de facto da coisa procede sem intenção de agir como beneficiário do direito (direito de propriedade ou outro direito real sobre a coisa, como se depreende do texto do mencionado art.° 1251.°).”
E como ensina M. HENRIQUE MESQUITA, “… não basta fazer a prova do corpus para beneficiar do regime possessório. É necessário, além disso, comprovar a existência do animus”.
(…)”»; (podendo-se também sobre o tema ver a Decisão Sumária de 08.06.2022, Proc. n.° 68/2022, e, mais recentemente, o Ac. de 14.02.2025, Proc. n.° 21/2024).

Ora, adoptando o C.C.M. a “teoria subjectivista” – diversamente do que v.g. sucede com o C.C. brasileiro, tanto o de 2002, como o anterior de 1916, que aderiu à teoria objectivista; cfr., v.g., Sérgio Júnior in, “A posse e sua vinculação com a propriedade no C.C. brasileiro de 1916”, 2012 – e necessário sendo assim a presença do “corpus” e do “animus” para se dar como verificada a agora reclamada “posse”, vista cremos estar a solução para a situação em questão.

Com efeito, quanto ao “animus possidendi” dos AA., não se demonstrou a sua “intenção jurídico-real”, ou seja, a sua “vontade de agir enquanto proprietários”, nem tão pouco se desvendam comportamentos que a revelem, pois que não nos deparamos com um “substrato factual” que desvele uma actuação dos AA. enquanto “verdadeiros donos do imóvel” em apreço, nem tão pouco a nível da exteriorização dessa convicção.

Tampouco podemos descortinar um “reconhecimento público”, mais ou menos consensual, de tal “qualidade”.

Os actos que resultam comprovados revelam, tão só, uma “contínua utilização” do espaço contíguo à propriedade do n.° 34 da [Rua(1)], ou, mais concretamente, um “aproveitamento” do espaço enquanto zona de lavabos e de cozinha, sem qualquer “domínio” sobre o mesmo imóvel.

E, sendo – realmente – muito parca a matéria de facto dada por provada no que respeita ao exercício de “poderes de facto sobre a propriedade”, não merecem censura as decisões das Instâncias recorridas por terem recusado as pretensões principais dos AA., (e, igualmente, que não tenha sido anteriormente reconhecida a sua reclamada posse no âmbito das aludidas providências cautelares).

Como já notava Orlando de Carvalho, “a usucapião requer que a posse tenha certas características, que seja, de algum modo, «digna» do direito a que conduz. O que nela se homenageia, digamos, é menos a posse em si do que o direito que a mesma indicia, que a prefiguração do direito a cujo título se possui. Donde a exigência, em qualquer sistema possessório, de uma posse em nome próprio, de uma intenção de domínio – e uma posse que não deixe dúvidas sobre a sua autenticidade”; (in ob. cit., pág. 263).

E, na situação em questão, tudo se torna – ainda – mais nítido se atentarmos na matéria da base instrutória que os AA. alegaram e não lograram provar, designadamente, a que a seguir se transcreve:

“QUESITO 4°: Os canos de esgoto do prédio do nº 34 da [Rua(1)] passavam pelo sumidouro de lajes localizado debaixo da “Construção” até chegarem às vias públicas?
NÃO PROVADO.
QUESITO 5°: Desde que adquiriu o domínio útil do nº 34 da [Rua(1)], D sempre entendeu que a “Construção” fazia parte do seu prédio, estando convicto que era o proprietário dela?
NÃO PROVADO.
QUESITO 6°: Tanto os proprietários, usuários dos imóveis adjacentes, como o então proprietário do nº 8 do [Rua(2)] sabiam que D usava a “Construção” na qualidade de proprietário?
NÃO PROVADO.
QUESITO 9°: Depois de adquirirem o domínio útil do prédio do nº 34, os Autores efectuaram obras de remodelação no edifício ali existente e na “Construção” em litígio?
NÃO PROVADO.
QUESITO 11°: Ao adquirir o seu prédio, os Autores entenderam que a “Construção” fazia parte dele e consideraram que já tinham adquirido o direito de propriedade da “Construção”?
NÃO PROVADO.
QUESITO 12°: Os Autores, sempre na qualidade de proprietários, usavam a “Construção” como cozinha e casa de banho do seu prédio?
NÃO PROVADO.
QUESITO 13°: Tanto os proprietários, usuários dos imóveis adjacentes, como o então proprietário do prédio do nº 8 do [Rua(2)] sabiam que os Autores usavam a “Construção” na qualidade de proprietários?
NÃO PROVADO.
QUESITO 14°: Como os vizinhos sabiam que os Autores eram proprietários do nº 34 da [Rua(1)] e, sempre que no prédio, nomeadamente na parte da “Construção” acontecesse alguma situação, os vizinhos iam prestar ajuda?
NÃO PROVADO.
QUESITO 16°: Os Autores referiram à R. que a “Construção” existia há mais de 20 anos e era parte integrante do prédio pertencente aos Autores e que os canos de esgoto do prédio 1 necessitavam de passar pelo sumidouro de lajes localizado na “Construção” para chegar às vias públicas?
NÃO PROVADO.
QUESITO 17°: Para a preservação da “Construção”, os Autores tentaram negociar com a R. mas esta negou o direito dos Autores, tendo proposto a demolição da “Construção” e afirmando que ia construir nos números 8 e 8A do [Rua(2)] um novo prédio rente ao prédio dos Autores?
NÃO PROVADO”; (cfr., fls. 234 a 236 e 393-v a 394-v).

Ora, nesta conformidade, e em face do que se deixou exposto sobre os “elementos da posse”, cabe pois afirmar que não foi levianamente que se atingiu a conclusão de que os AA. nunca exerceram uma “verdadeira posse sobre o imóvel”.

Aliás, é evidente que o antecedente dos AA. jamais equacionou a possibilidade de exercer “poderes comparáveis aos de proprietário” sobre a “Construção” em apreço, e que muito menos se arrogou como titular de tal “qualidade”.

Este, (o antecedente), que depôs como “testemunha” em sede de audiência, esclareceu mesmo que nunca deu a entender aos seus sucedâneos que a venda do imóvel situado no n.° 34 da [Rua(1)] implicaria de algum modo a “transmissão de qualquer direito sobre a disputada «Construção»”.

Por outro lado, assente está também que a “Construção” em apreço não só configura uma “edificação perfeitamente autonomizável do imóvel dos AA.”, mas que incluía também um primeiro andar a que estes não tinham sequer acesso, (não sendo por acaso que todos os factos que indiciavam qualquer “animus possidendi” por parte do AA. receberam resposta “negativa”).

No fundo, o que está demonstrado é, tão só e apenas, a continuação da “utilização” da “Construção” por parte dos AA. nos mesmos moldes que terá sido feita pelo seu antecessor, unicamente, ao abrigo da “conveniência” e da “oportunidade”.

E, nada apontando também para a “unicidade” ou para a “incindibilidade” da “Construção” relativamente ao edifício que se situa no n.° 34 da [Rua(1)], manifestamente inviável é reconhecer qualquer razão aos AA. quando afirmam que a “Construção” configuraria uma parte “componente” ou “integrante” do imóvel que legitimamente possuem, nos termos do art. 200° do C.C.M., desde logo porque nenhum facto provado aponta nesse sentido.

Os recorrentes apelam ainda à letra do n.° 2 do art. 1176° do C.C.M. para consubstanciar uma alegada “presunção da sua posse”, que se deve fundar nos factos que demonstram o seu “acesso” e “utilização”.

Como já se teve oportunidade de deixar consignado – cfr., Ac. deste T.U.I. de 06.06.2019, Proc. n.° 53/2019, proferido no âmbito da providência cautelar para “embargo de obra” – “é de afastar a alegada aplicação do disposto no art.º 1176.º do Código Civil, que regula o assunto de “exercício da posse por intermédio”, segundo o qual a posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem (n.º 1) e, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto.
A aplicação da presunção prevista no n.º 2 do art.º 1176.º pressupõe que há dúvida sobre se a posse foi exercida pessoalmente ou por intermédio de outrem.
No caso vertente, não há posse exercida pelo recorrente nem por terceiro, não estando em causa a questão de saber se a posse é exercida pessoalmente ou por intermédio de outrem”.

Com efeito, a presunção estabelecida no n.° 2 do art. 1176° do C.C.M. só funciona nos casos de “dúvida”.

Não basta pois invocar a “posse” para que esta seja reconhecida, devendo antes esta consubstanciar-se na “realidade dominial” traduzida em “actos” que revelem uma “verdadeira posse”.

A mera “utilização” de (tão só uma) parte da “Construção”, desacompanhada de outros actos que manifestem uma relação dominial sobre o bem imóvel, não é, de forma alguma, suficiente e eficaz para com base nela se reconhecer aos AA. uma “actuação correspondente ao exercício de um direito de propriedade”.

Por fim, mostra-se de acrescentar que mesmo que se viesse a reconhecer a posse dos AA., nunca esta poderia conduzir à “usucapião” nos termos pretendidos, pois que não teria durado o período de tempo suficiente para facultar a estes a aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel.

Como é consabido, a “usucapião” é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade que se estriba na posse do direito de propriedade sobre determinado bem pelo decurso de certo tempo, nos termos dos art°s 1212° e segs., e 1242°, alínea c), todos do C.C.M..

De facto, os AA. invocaram na petição inicial o facto de terem sucedido na posse do anterior proprietário do prédio situado no n.° 34 da [Rua(1)], tese que se impõe rejeitar (liminarmente) porque, como se viu, o próprio esclareceu – expressamente, em sede de audiência de julgamento – que jamais teve (sequer) a presunção de actuar enquanto proprietário da “Construção” em discussão.

E, se fizéssemos retrotrair a posse dos AA. à data da sua aquisição do bem imóvel contíguo à “Construção”, em 02.03.2005, na mesma não se teriam ainda completado “15 anos” quando, inevitavelmente, a perderam, aquando da demolição promovida pela R., em 24.03.2018.

Por sua vez, não se podendo igualmente falar de “posse titulada”, (cfr., art. 1183° do C.C.M.), sempre se deverá presumir a “má fé” da posse, (cfr., art. 1184°, n.° 2 do mesmo Código), pelo que o prazo a ter em conta para os efeitos de aquisição por via da “usucapião” seria, no mínimo, o de “20 anos”; (cfr., art. 1221° do C.C.M.).

Dest’arte, acertado é o entendimento no sentido de que não foi demonstrada, (convincentemente), a “posse dos AA.”, e, muito menos, uma posse que pudesse conduzir à aquisição do imóvel em questão por via da reclamada “usucapião”.

Continuemos.

–– Da violação de disposições da Circular n.° 01/DSSOPT/2009.

Os AA. formularam na sua petição inicial pedido subsidiário para que o Tribunal intimasse a R. a respeitar uma “distância mínima” (de metro e meio) entre o novo prédio que vai erigir e o edifício que lhes pertence, uma vez que a traseira do seu prédio actual tem uma janela que deita directamente sobre o terreno da R..

E, embora inicialmente tenham feito apelo ao preceituado no art. 1278°, n.° 1 do C.C.M. para sustentar esta sua pretensão, nas suas alegações fazem referência a uma eventual “violação das disposições contidas na Circular n.° 01/DSSOPT/2009”, que “estabelece a regulamentação relativa à altura dos edifícios, a edificabilidade admissível dos lotes destinados à construção e às condições de salubridade a observar no seu interior”; (cfr., n.° 1 da dita “Circular”).

Porém, também aqui, não parece assistir razão aos ora recorrentes.

Com efeito, e como é sabido, a “vizinhança imobiliária” é uma situação jurídica com certa propensão para criar conflitos entre particulares, e, por esse motivo, o C.C.M. prevê normas específicas para tentar preveni-los ou solucioná-los, consoante a necessidade.

O seu art. 1278°, n.° 1, (a que se fez alusão na petição inicial), poderia eventualmente servir de base para impedir que a R. abrisse no seu edifício “janela” ou “porta” que deitasse directamente sobre o prédio dos AA., mas já não para impedir que esta construísse o seu edifício, levando a cabo obra que, aliás, já está até mesmo aprovada pela entidade legalmente competente para o efeito; (D.S.S.O.P.T.).

Por se terem apercebido da inoperância do citado preceito legal (do C.C.M.). para os efeitos que pretendiam, nas suas alegações de recurso vem os ora recorrentes invocar uma violação de disposições contidas na aludida “Circular n.° 1/DSSOPT/2009” que, como se referiu, estabelece critérios para a aprovação de projectos de construção civil.

Porém, importa ter presente que os “critérios” a que os AA. fazem apelo tem por fim “orientar a Administração na sua actividade”, e, então, como parece evidente, será nesse âmbito que os recorrentes deverão (eventualmente) impugnar tal actuação, ou seja, através dos “meios e canais próprios”…

De facto, a competência para “licenciar e fiscalizar todas as edificações urbanas, designadamente particulares, municipais ou de entidades autónomas” recaía anteriormente sobre a D.S.S.O.P.T., nos termos da al. j) do art. 2° do Decreto Lei n.° 27/97/M.

Hoje em dia, recai sobre a D.S.S.C.U. a competência para “Licenciar e fiscalizar obras de construção civil particulares”; (cfr., art. 2°, alínea 6) do Regulamento Administrativo n.° 14/2022).

A obra da R., agora impugnada pelos recorrentes, foi “aprovada” pela entidade então competente para o seu licenciamento, não sendo – obviamente – este o “meio processual” próprio e adequado para pôr em causa tal “acto administrativo”.

Por sua vez, a referida “Circular” a que os AA. fazem referência não constitui “fonte de direito”, não vinculando, nesse aspecto, o Tribunal que, como parece claro, não pode “transformar” o preceituado nessa “Circular” em “Lei”, impondo os critérios nela ínsitos.

Atente-se pois que as “circulares administrativas” não vêm previstas como “fontes normativas” internas na Lei n.° 13/2009, (nem tampouco a Lei n.° 3/1999, prevê a sua publicação obrigatória no B.O. da R.A.E.M., onde, efectivamente, a dita Circular n.° 1/DSSOPT/2009 não foi publicada, por não se tratar de diploma com força de Lei; cfr., art°s 1° e 4° do C.C.M.).

–– Do “abuso de direito”.

Os recorrentes alegam que a possibilidade de a R. levar adiante a construção do edifício aprovado pela entidade licenciadora implicará que fique tapada uma das janelas do seu imóvel, o que para si representará uma “perda” e lhe causará “prejuízos consideráveis e injustos”.

Recorrendo à figura do “abuso do direito”, prevista no art. 326° do C.C.M., apelam à intervenção deste Tribunal para impedir que esta situação se concretize.

Vejamos.

Reza o art. 326° do C.C.M., sob a epígrafe “Abuso do direito”, que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Como nota Almeida Costa:

“(…)
Cada direito possui uma função instrumental própria, que justifica a sua atribuição ao titular e define o seu exercício. Em não raros preceitos do Cód. Civ. transparece a importância reconhecida, na disciplina dos diversos institutos, ao fim social ou económico que se lhes confere. A mesma ideia sobressai aqui. O titular de um direito deve exercê-lo nos limites do seu fim social ou económico. Ultrapassadas estas fronteiras, o exercício será abusivo.
E passemos às consequências do abuso de direito. O legislador não as indica. Somente declara ilegítimo, no art. 334°, o comportamento qualificado como tal. Verificar-se-ão, em decorrência, os efeitos de qualquer acto dessa natureza, cuja multiplicidade de configurações foi salientada.
Conclui-se, sintetizando, que pertence ao juiz determinar, caso por caso, segundo os referidos critérios, não apenas se existe um acto abusivo, mas ainda as consequências sancionatórias que dele derivam. Algumas vezes, haverá lugar à restauração natural, nomeadamente através da remoção do que se fez com abuso do direito; ao passo que, outras vezes, ocorrerá tão-só indemnização pecuniária dos danos. Além desta responsabilidade civil, poderão verificar-se sanções de vária ordem, visando impedir que o autor do acto abusivo obtenha ou conserve as respectivas vantagens. Exemplifica-se: por um lado, com a nulidade, a anulabilidade, a inoponibilidade ou a resolubilidade, nos termos gerais, do próprio acto ou negócio abusivo; por outro lado, com o restabelecimento de actos ou negócios conexionados, recusando-se a acção de anulação, concedendo-se a excepção de dolo («exceptio doli»), etc.”; (in “Direito das Obrigações”, 10ª ed., págs. 80 a 90).

Com efeito, “Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”; (cfr., v.g., Coutinho de Abreu in, “Do Abuso de Direito”, 2006, pág. 43).

Da mesma forma, importa ter presente que o “abuso do direito” é uma expressão consagrada para traduzir, hoje, um “instituto multifacetado”, e que prossegue, os “objectivos últimos do sistema”, cabendo salientar que o “princípio da boa fé” tem de ser muito mais que (mero) idílico verbalismo jurídico, implicando, sempre, uma ponderação global da “situação em jogo”, sob pena de se descambar em puro formalismo de que se pretende fugir…; (sobre o tema, sua origem, evolução e concretização, cfr., v.g., A. M. Cordeiro in, “Do Abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, e Hugo R. Galdino Araújo in, “Venire contra factum proprium: sua aplicabilidade, amplitude e delimitações”, com abundante referência doutrinal e jurisprudencial, podendo-se, também, entre outros, ver o Ac. deste T.U.I. de 08.04.2022, Proc. n.° 127/2021).

In casu, alegam os AA. que se a R. construir um prédio novo anexo ao seu, desrespeitando a distância mínima de metro e meio, acabam por ser prejudicados excessivamente, e ainda que o exercício de tal faculdade equivalerá a um abuso de direito, pelo que o Tribunal deverá intervir para evitar tal injustiça.

Ora, como se viu, a R. tem (efectivamente) o direito de construir um edifício no terreno de que é proprietária.

No exercício desse direito, requereu uma licença de obra perante a “entidade para o efeito competente”, que (até já) a concedeu.

E, sem prejuízo do demais, apresenta-se-nos de não perder de vista que estando a figura do “abuso de direito” reservada a corrigir situações em que sejam manifestamente excedidos os limites consagrados pela ordem jurídica, não nos parece que, por esta via, e em face do que provado está, se possa tutelar o sentimento de insatisfação dos AA..

A edificação do prédio nos termos propostos, aprovados pela entidade pública licenciadora, não representa, em nossa opinião, uma “ofensa clamorosa à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito da R.”.

De resto, (e como os próprios recorrentes admitem), nem os “factos” em que se podia consubstanciar um eventual “abuso do direito” – os “prejuízos” e as demais “consequências nefastas” que resultariam para os AA. – estão “provados”, (e nem foram, oportunamente, alegados).

Com efeito, não consta da matéria de facto provada que da construção do futuro prédio por parte da R. resultará, (v.g.), uma “perda de iluminação natural, de arejamento ou de vista, ou que a distância de metro e meio pudesse assegurar qualquer um desses privilégios”.

E, desta forma, não pode – nem deve – este Tribunal “presumir” a existência de quaisquer “danos ou prejuízos”.

Finalmente, sempre se mostra de acrescentar que nem sequer provado ficou no presente processo que o novo prédio da R., projectado para os terrenos em causa, desrespeitaria essa “distância mínima de metro e meio” para a janela do prédio dos AA..

–– Da “indemnização” e da “sanção pecuniária compulsiva”.

Quanto a estas questões, mostra-se adequado abordá-las simultaneamente porque, para além de interrelacionadas, foram suscitadas tanto pelos AA. como pela R..

Neste aspecto, a sentença proferida pelo Tribunal de Segunda Instância havia condenado os AA. a reconhecerem o direito de propriedade sobre a “Construção” da R. e, ainda, a:
- esvaziar o R/C da “Construção” e a restitui-lo à R. no prazo de um mês após o trânsito em julgado da sentença;
- indemnizar a R. no montante diário de MOP$1.000,00, contado desde o dia 09.08.2018, (data da citação da R. nos presentes autos), até que a “Construção” em causa seja efectivamente restituída; e a
- pagar uma “sanção pecuniária compulsória”, no montante diário de MOP$1.000,00, contado desde o termo do prazo fixado para os AA. esvaziarem e restituírem a “Construção”, até que efectivamente o venham a fazer.

Em sede do recurso do assim decidido, o Tribunal de Segunda Instância entendeu que os AA. deviam ser condenados a pagar a indemnização apenas até à data em que transitou em julgado o Acórdão do Tribunal de Última Instância que indeferiu definitivamente a “providência cautelar de embargo de obra nova”, ou seja, até 24.06.2019, pois que considerou que a partir dessa data, já nada impediria a R. de levar adiante as obras de demolição da “Construção” e a subsequente edificação da nova obra.

Assim ponderou:

“Ora, nesta parte os Recorrentes/Autores têm razão, pois, quando o TSI proferiu o acórdão de revogar a decisão de 1ª instância que tinha julgado procedente o pedido de embargos à obra nova, e tal acórdão do TSI veio a ser confirmado pelo acórdão do TUI, que transitou em julgado em 24/06/2019, é de entender que a partir daquele momento, a Ré já podia reiniciar a sua obra de demolição, por isso, a indemnização não deve ser calculado nos termos fixados pelo Tribunal recorrido, mas sim, até ao dia de trânsito em julgado do acórdão do TUI, ou seja, até 24/06/2019, momento em que já não existe obstáculo de demolição da “construção” em causa e a Ré podia prosseguir o seu plano de trabalho de construção. E a partir daí cessa a responsabilidade dos Autores/Recorrentes.
Pelo que, é de julgar procedente esta parte do recurso, alterando-se a decisão do Tribunal recorrido para: condenar os Autores a pagar à Ré uma indemnização à taxa diária de MOP$1000.00, contada desde o dia de citação (9/8/2018) até 24/06/2019, dia em que transitou em julgado o acórdão do TUI, sendo o seu valor liquidado em sede da execução da sentença”; (cfr., fls. 515-v).

Defendem agora os AA. que não deviam ser condenados a pagar qualquer indemnização ou sanção pecuniária compulsória, porque desde a data em que a R. colocou um obstáculo ao acesso à “Construção”, deixaram de ter acesso ou controlo sobre a mesma.

Nessa medida, entendem que qualquer condenação será “ilógica ou contraditória” com os factos dados como provados.

Por outro lado, são também de opinião que sempre se opuseram licitamente a que a R. levasse adiante a construção do novo edifício, tendo-se limitado a recorrer às faculdades que lhe eram reconhecidas e conferidas pela Lei.

E, assim, tendo a sua actuação sido “lícita”, não devem responder, de qualquer forma, perante a R..

Por seu turno, entende a R. que se deve manter na íntegra a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base, visto que “ainda se mantém” – ou, pelo menos, mantinha, na data em que apresentaram as alegações do seu recurso – a impossibilidade de levar adiante o resto da demolição, por culpa da ocupação ilegal levada a cabo pelos AA..

Vejamos, então, que solução adoptar.

Pois bem, com maior relevância para a matéria que se discute, vale a pena salientar os seguintes factos dados como provados:
- “Até à demolição da “Construção”, os Autores e os inquilinos do imóvel do nº 34 da [Rua(1)] utilizavam-na como cozinha e casa de banho”, (cfr., resposta ao quesito 10° da base instrutória);
- “Com uma chapa de ferro, a ré obstruiu a passagem localizada no piso térreo do imóvel dos autores que dá acesso a uma “Construção” existente no prédio nº 8 da ré, na zona em que este confina com o prédio dos autores (nº 34), fazendo com que os Autores não consigam entrar na “Construção”, nem aceder e continuar a utilizar a cozinha e casa de banho existente dentro de tal “Construção””, (cfr., al. L) dos factos assentes);
- “Em 24 de Março de 2018, a Ré iniciou a demolição da “Construção”, sem que tivesse notificado os Autores nem tivesse obtido o consentimento destes”, (cfr., resposta ao quesito 19° da base instrutória);
- “Depois da demolição, a “Construção” ficou com apenas parte das paredes e a casa de banho intactas”, (cfr., resposta ao quesito 20° da base instrutória);
- “Na altura da demolição da “Construção”, a Ré também destruiu as lâmpadas, os fios e os canos de água dentro da “Construção”, (cfr., resposta ao quesito 21° da base instrutória);
- “A “Construção” foi parcialmente demolida pela ré, restado apenas uma parte das paredes e a casa de banho”, (cfr., al. M) dos factos assentes); e que,
- “Os Reconvindos estão a ocupar o r/ch da “Construção” situada no prédio nº 8 da ré por trás do prédio nº 34 da [Rua(1)], recusam-se a restituí-la à Reconvinte e impedem que a Reconvinte proceda à sua demolição a fim de iniciar a construção do novo prédio”, (cfr., al. O) dos factos assentes).

Ora, tendo-se em conta os “factos” que se acabaram de elencar, não nos parece que o Tribunal de Segunda Instância tivesse base fáctica para alterar a decisão tomada pelo Tribunal Judicial de Base.

Ressalvando douto entendimento em contrário, afigura-se-nos que apenas se poderia aceitar a decisão do Tribunal de Segunda Instância com recurso a uma leitura e interpretação da “alínea O)” da matéria de facto que se apartasse, irremediavelmente, do seu verdadeiro sentido literal.

Porém, o que (literalmente) resulta deste facto é que os AA.:
- ocupam o R/C da “Construção”;
- recusam-se a restituir a “Construção” à R.; e
- impedem que a R. proceda à demolição da “Construção”.

Nenhum outro “facto provado” nos revela que esta “situação” se tenha alterado, ou seja que os AA. deixaram de oferecer resistência a que a R. levasse a cabo a demolição da “Construção”, (aspecto que foi aliás salientado na sentença proferida em 1ª Instância).

Por sua vez, não é igualmente de perder de vista que o trânsito em julgado da decisão de indeferimento da “providência de embargo à obra nova”, (em 24.06.2019), não provocou qualquer (efectiva) alteração dos factos em que se terá de fundamentar (obrigatoriamente) a decisão final a proferir nos presentes autos.

Aliás, a referida “alínea O)” da matéria de facto ficara já assente aquando da prolação do despacho-saneador, (em 10.04.2019), sem que se vislumbre uma correlação (necessária) entre tal facto e a pendência do procedimento cautelar.

Com efeito, os AA. não alegam factos que contrariem a situação demonstrada na dita “alínea O)” da matéria de facto, (nos termos nomeadamente permitidos pelos art°s 425° e 426° do C.P.C.M.), pelo que também não se mostra possível ou adequado “presumir” que a sua resistência tenha cessado.

As fases de instrução e julgamento decorreram após o seu decaímento na aludida providência cautelar, sem que estivessem provados factos que apontassem para uma alteração do status quo.

Por outro lado, este Tribunal de Última Instância não dispõe de elementos para saber (ou esclarecer) o que se terá passado após o encerramento da audiência de discussão e julgamento, designadamente, se de facto os AA. ainda oferecem qualquer tipo de resistência ao desenvolvimento das obras.

E, nesta conformidade, (em face também desta impossibilidade de presumir, ou ficcionar, a situação actual), parece-nos que a solução mais justa, adequada e apropriada, passará por relegar para a fase de execução de sentença o apuramento de, se e quando, os AA deixaram de obstaculizar a conclusão das obras.

Dever-se-á pois em sede de execução de sentença apurar se a condenação de restituição proferida em 1ª Instância – da qual depende não só a fixação do “montante indemnizatório”, como também a da eventual “sanção pecuniária compulsória” – terá sido, efectivamente, respeitada, (ou não, notando-se, que tendo em conta os factos neste momento dados como provados, e o teor da sentença do Tribunal Judicial de Base, é sobre os AA. que recai o ónus da prova do cumprimento da sua obrigação, não se devendo alterar a decisão sem que o mesmo suceda com a factualidade subjacente).

Com base no exposto, impõe-se-nos a revogação do Acórdão recorrido, “repristinando-se” a decisão original fixada pelo tribunal de primeira instância no que respeita à “indemnização” atribuída à R. e à fixação da “sanção pecuniária compulsória”.

Vindo-se a comprovar em execução de sentença o facto de que os AA. deixaram de oferecer resistência à conclusão das obras, tal reflectirá não só a obediência ao comando ínsito na sentença do Tribunal Judicial de Base, como limitará correspondente e proporcionalmente o montante indemnizatório.

Pelo contrário, comprovando-se que ainda não o fizeram, salvaguardar-se-á o pagamento de uma justa indemnização à R., de forma a se compensar o tempo durante o qual foi privada do aproveitamento do seu terreno.

Por outro lado, e neste último caso, através da “sanção pecuniária compulsória”, assegurar-se-á também, cremos nós, adequadamente, que os AA. tetão um “incentivo” para cumprir o que decidido foi.

Decisão

4. Em face de tudo o que se deixou exposto, em conferência, acordam:
- negar provimento ao recurso dos AA. A e B;
- conceder provimento ao recurso da R. “C”.

Custas pelos AA. com taxa de justiça que se fixa em 20 UCs.

Registe e notifique.

Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 18 de Julho de 2025


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Song Man Lei
Choi Mou Pan

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