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Processo nº 245/2025
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)

Data do Acórdão: 24 de Julho de 2025

ASSUNTO:
- Direito à livre escolha de profissão
- Normas reguladoras do acesso à profissão

SUMÁRIO:
- A norma legal habilitante que confere a determinada associação o poder de regulamentar o acesso a determinada profissão podendo prever provas de admissão, não habilita essa mesma associação a impedir a realização dessas mesmas provas por um determinado período temporal na sequência de não se ter obtido aproveitamento nessas mesmas provas em determinado número de vezes, traduzindo-se numa limitação do direito à livre escolha de uma profissão consagrado no artº 35º da Lei Básica.



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Rui Pereira Ribeiro


Processo nº 245/2025
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)

Data: 24 de Julho de 2025
Recorrente: Assembleia Geral da Associação dos Advogados de Macau
Recorrido: A
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO

  A, com os demais sinais dos autos,
  veio instaurar o presente recurso contencioso administrativo contra,
  Assembleia Geral da Associação dos Advogados de Macau que, pela sua deliberação de 23.04.2024, indeferiu o recurso hierárquico necessário interposto pelo Recorrente da Deliberação de 30.12.2020 tomada pela Direcção da Associação dos Advogados de Macau.
  Pede o Recorrente e agora Recorrido que seja anulada a deliberação recorrida.
  Foi proferida sentença a julgar procedente o recurso contencioso interposto, com a anulação do acto recorrido.
  
  Não se conformando com a decisão proferida veio a Entidade Recorrida e agora Recorrente recorrer da mesma, apresentando as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fis. 159 a 171 proferida nos autos de Recurso Contencioso de Anulação referenciados em epígrafe, na medida em que o julgou procedente, para o efeito, anulando o acto em causa - deliberação da ora Recorrente, de 23 de Abril de 2024 que indeferiu o Recurso Hierárquico Necessário interposto da Deliberação de 30 de Dezembro de 2020 tomada pela Direcção da AAM - que, recorde-se, decidiu suspender a inscrição como advogado estagiário, do Dr. A (doravante o “Estagiário”), pelo período de um ano, com efeitos a partir de 11 de Janeiro de 2021.
2. Esta suspensão foi decidida ex vi da aplicação do disposto no n.º 10 do Art.º 35.º do Regulamento do Acesso à Advocacia (doravante o “RAA”), norma esta aprovada nas sessões de 11 e 16 de Maio de 2017, pela Assembleia Geral da Associação Pública dos Advogados de Macau e, ulteriormente publicado no Boletim Oficial da RAEM n.º 25, II Série, de 21 de Junho de 2017.
3. Para tal, invocou o douto Tribunal a quo que “Em síntese: a norma em apreço ao proceder a uma ampliação inovadora do elenco das causas restritivas da liberdade de escolha da profissão, sem ter sido legitimada pela norma habilitante prévia constante do artigo 19.º, n.º 3 do Estatuto do Advogado, intrometeu-se no domínio da reserva da lei da Assembleia Legislativa, definido pelas normas do Artigo 35.º e o segundo parágrafo do Artigo 40.º da Lei Básica e o artigo 6.º alínea 1) da Lei n.º 13/2009, o que inquinou, por consequência, o acto impugnado que naquela se fundou.”.
4. Estamos em crer, no entanto, que a sentença recorrida enferma do vício errada aplicação de Lei Substantiva, pelas razões que passamos a expor.
5. A habilitação de competência para a aprovação deste regulamento consta de norma legal formal, a saber, os artigos 30.º e 31.º do Estatuto do Advogado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 31/91/M, de 6 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 26/92/M e pelo Decreto-Lei n.º 42/95/M que revestem forma de Lei, sendo mister destacar, também, o que vem estabelecido no Art.º 48.º do denominado Estatutos da Associação Pública dos Advogados de Macau.
6. Em suma, face ao normativo legal acima descrito, jurisprudencialmente e doutrinariamente confirmado, só se poderá concluir pela legitimidade da AAM para a elaboração, aprovação e execução do referido Regulamento do Acesso à Advocacia.
7. O Decreto-Lei n.º 31/91/M, de 6 de Maio, o qual Aprova o Estatuto do Advogado, logo no seu preâmbulo e após destacar o relevo da Declaração Conjunta na matéria, afirma, «Constitui-se, assim, a Associação dos Advogados de Macau que, enquanto pessoa colectiva pública, não só representa a profissão e assegura a participação dos profissionais na organização e regulação da profissão duma forma autónoma, como lhe compete elaborar um código deontológico, e regulamentar e dirigir o estágio profissional.».
8. Ou seja, a AAM é uma associação pública, o que resulta tanto da própria qualificação directamente conferida por diploma legal, como também do conteúdo que perpassa o seu regime legal, designadamente, mas não apenas das suas atribuições, e também das suas competências e poderes que são atribuídos aos seus órgãos.
9. Recorde-se, porque deveras importante, a Lei Básica, no artigo 92.º «Com base no sistema anteriormente vigente em Macau», e no artigo 129.º «O Governo da Região Administrativa Especial de Macau reconhece, nos termos dos respectivos regulamentos, as profissões e as associações profissionais que tenham sido reconhecidas antes do estabelecimento da Região ...».
10. Como muito bem se afirma na decisão ora posta em crise, a propósito de um concreto poder mas facilmente aplicável em geral à AAM e seus traços fundamentais caracterizadores, «Mesmo após a reassunção do exercício do poder soberano pela república Popular da China (...) tal poder regulamentar que fora pelo Estatuto do Advogado conferido à AAM, sempre mantém-se na sua esfera, por força do princípio da continuidade da vigência da legislação que anteriormente vigorava em Macau, consagrado no artigo 92.º da Lei Básica da RAEM».


11. Pois bem, o Estatuto do Advogado criou, por conversão, uma associação pública profissional: a Associação dos Advogados de Macau. Vejam-se os artigos 3.º e 37.º do Estatuto do Advogado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 31/91/M, de 6 de Maio.
12. E no mesmo sentido vai a jurisprudência da RAEM. Por exemplo, no mui bem fundamentado Acórdão do TUI, exarado no processo n.º 129/2020 «apresenta-se-nos de ter como mais adequado considerar a “Associação de Advogados de Macau”, (A.A.M.)., (da qual faz parte o ora recorrente), uma “associação pública” com a natureza de “pessoa colectiva pública” – “sui generis” - que, no âmbito do exercício de atribuições e competências (públicas) por Lei atribuídas, deve ser considerada como integrante da Administração da R.A.E.M.;».
13. Pois bem, se resulta da lei vigente, incluindo a Lei Básica - enlaçada com o sumo princípio da continuidade jurídica -, da jurisprudência e da doutrina locais que a AAM é uma associação pública profissional, isto é, por conseguinte, uma pessoa colectiva pública autónoma, daí resultam, pois, necessariamente, determinados caracteres que lhe são incindíveis nomeadamente a prossecução de fins públicos e de interesses próprios dos profissionais, a existência e exercício de competências jus-públicas, v.g., regulamentares, deontológicos, disciplinares.
14. «A advocacia colegiada é a predominante na Europa ocidental e define-se pela existência de um ou mais organismos em que é obrigatória a inscrição dos advogados. Caracteriza-se pela sua independência e autonomia face ao Estado, pertencendo à Ordem (...) o poder disciplinar e a organização jurídica da profissão.».
15. Resulta sem mácula de dúvida que o sistema de organização profissional dos advogados em Macau e, correspondentemente, a AAM, insere-se na sobredita advocacia colegiada cujos caracteres essenciais e co-naturais à sua especial natureza jurídica - de ordem constitucional, legal, jurisprudencial e doutrinária - representam uma opção clara e fundada não, podendo, destarte, ser objecto de alteração essencial, menos ainda de simples extinção, sob pena de tal representar uma desconformidade com a Lei Básica e com a Declaração Conjunta e um desafio frontal ao princípio da continuidade.
16. A Lei Básica de Macau (aprovada em 31 de Março de 2993, para entrar em vigor em 20 de Dezembro de 1999), na sequência da Declaração Conjunta de 13 de Abril de 1987, contém um catálogo substantivo de direitos fundamentais, entre os quais o da liberdade de escolha de profissão e de emprego, donde se salientam os preceitos normativos jus-constitucionais enunciadores de importantes princípios definidores do sistema de direitos fundamentais em Macau que constam dos Art.ºs 4.º ,11.º e 25.º.
17. Pois bem, um desses princípios é, precisamente, o da reserva de lei, rectius, da reserva de lei quanto às restrições dos direitos fundamentais. Com efeito, determina o segundo parágrafo do artigo 40.º da Lei Básica: «Os direitos e as liberdades de que gozam os residentes de Macau, não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei.».
18. A restrição a um direito fundamental pode ser brevemente descrita como uma actuação que atinge ou afecta o conteúdo dos direitos e liberdades fundamentais gozados pelos residentes de Macau, uma compressão ou diminuição do âmbito material ou pessoal destas posições jurídicas subjectivas fundamentais.
19. Fácil de ver, portanto, que no caso concreto que ditou a prolação da sentença do Tribunal a quo, será, precisamente, esta linha e raciocínio que, prima facie, esteve subjacente à decisão ora posta em crise.
20. Isto é, no entendimento do Tribunal, a actuação de uma entidade que é pessoa colectiva pública integrante da Administração autónoma, dotada de poderes públicos, por via normativa - o RAA -, normação esta que não reveste forma de lei, e que veio comprimir o conteúdo de direito fundamental consagrado na Lei Básica - impondo, em determinada situação fáctica uma suspensão da inscrição como advogado estagiário, pelo período de um ano. Suspensão esta que não se acharia prevista nem pela Lei Básica, nem por qualquer outra norma de estalão hierárquico Lei - particularmente o Estatuto do Advogado.
21. Tendo o douto Tribunal a quo adoptado a tese de que o referido regulamento, aparentemente de uma forma inovadora, teria, pois, ampliado o elenco das causas restritivas da liberdade de escolha de profissão, sem ter sido, portanto, legitimado por qualquer norma legal ou constitucional habilitante prévia donde terá, então, invadido o perímetro sujeito a reserva de lei da Assembleia Legislativa.
22. Ora, ressalvado o devido respeito que nos merece, ao enveredar pela linha de raciocínio acima exposta, equivocou-se o douto Tribunal a quo, na medida em que fez um enquadramento errado da aludida norma do RAA, assim como dos vastos e necessários poderes Regulamentares que são conferidos à AAM.
23. A figura da intervenção restritiva, afinal, a principal modalidade de afectação de um direito fundamental concretamente considerado numa determinada pessoa significa que se afecta o conteúdo de posição individual, mas, deixando intocada a norma e os efeitos gerais da norma de direito fundamental, ou seja, se se considerasse ou valorasse primacialmente a decisão concreta da aplicação da suspensão de inscrição, sem contudo observar as normas que fundamentam tal decisão, somos a concordar que faltaria sempre o requisito do prévio apoio numa norma legal - havendo, somente, apoio numa norma infralegal - mas, decididamente, este não é o caso.
24. O legislador ao estatuir «regulamentar o acesso à profissão e o estágio» estaria a pressupor, de forma imanente, dir-se-á, que, dessa regulamentação poderão brotar, naturalmente, limitações, condicionantes, configurações conaturais ao processo de acesso à profissão - isto é, para lá do que vem disposto nos números precedentes do artigo 19.º do Estatuto do Advogado.
25. Ao dispor-se, por concessão legislativa expressa, do poder de regulamentar o acesso á profissão e o estágio, então, terá de conceber-se a possibilidade de, nessa regulamentação, serem previstas causas que possam suster esse processo e interromper o estágio.
26. Desde logo, a possibilidade de identificar causas de reprovação, mas não apenas.
27. De contrário, seria assumir o acesso e o estágio como mera formalidade destituída de qualquer substância.
28. Se assim fosse, seria colocado em crise um elemento essencial e que se enlaça decididamente com a prossecução de um interesse público, qual seja, a de garantir que serão advogados somente aqueles que se achem devidamente preparados técnica e deontologicamente. De resto, é sobretudo este interesse público - e não os interesses de índole privada que coexistem - que justifica a criação de uma associação pública profissional.
29. Nestes vários preceitos estatuídos em forma de lei é recorrente a ideia pressuposta, ou imanente, que à AAM é disponibilizada uma ampla e necessária competência regulamentar genérica com vista a dar concretização prática à exigência plasmada no artigo 11.º.
30. Em síntese, ainda que seja verdadeiro que não poderá um regulamento de carácter administrativo restringir um direito fundamental, ou sequer condicionar, limitar ou configurar esse direito fundamental, sem prévia habilitação legal, na realidade, esta habilitação legal existe verdadeiramente
em diversos preceitos do Estatuto do Advogado.
31. Admite-se, pois, a possibilidade de algumas nuances, por exemplo, quanto à natureza material da matéria concretamente considerada, nomeadamente a sua essencialidade, ou o facto de haver domínios onde, objectivamente, «o legislador não deve desenvolver todo o regime, em ordem a dar a devida relevância às circunstâncias particulares em que a Administração vai exercer os seus poderes».
32. Estamos, assim, perante uma colisão entre um direito de quem quer permanecer inscrito como advogado estagiário e um bem digno de protecção jurídica, nomeadamente a promoção e defesa da dignidade e prestígio da profissão e, mais ainda, a defesa dos interesses da comunidade em geral e daqueles que, potencialmente, poderão recorrer aos serviços destes advogados estagiários, os quais, dado terem falhado por três vezes consecutivas a conclusão do estágio, não estarão dotados das competências técnicas mínimas que lhe permitam exercer a preceito as funções e, não apenas não conseguirão representar devidamente os interesses dos seus clientes, como estarão a colocar em causa o interesse geral da comunidade.
33. É linear que a norma colocada em crise detém um objectivo claro de garantir a eficácia da formação e a valorização profissional do estágio, estando em causa a boa formação profissional dos futuros Advogados, associadas à dignidade funcional e ao prestígio social da profissão de advogado e, concomitantemente, ao interesse público.
34. Como bem se sabe, em casos de colisões de direitos e de colisões entre direitos e bens públicos dignos de protecção jurídica poderá haver lugar a um sacrifício adequado e proporcional do direito para, deste modo, se salvaguardar o superior interesse público e genérico da sociedade. Este é, precisamente, o caso dos autos.
35. Atente-se no seguinte: «Há inúmeras situações em que essa consequência seria absurda ou totalmente injustificada à luz das razões substanciais que fundamentam as exigências de reserva de lei. É assim quando a intervenção restritiva, ainda que legalmente não prevista, tem um carácter de necessidade tão óbvia e pacífica que se pode inferir, com segurança, que o legislador teria habilitado a Administração a intervir com o sentido e alcance restritivos com que esta o faz caso tivesse previsto ou podido prever a ocorrência da colisão que a Administração procura resolver».
36. Aliás refira-se, tal actuação da Administração não é de todo desconhecida na RAEM, veja-se meramente a título exemplificativo, em virtude do combate à pandemia do Covid-19, as várias ordens executivas, avisos, regulamentos administrativos, etc. que encerram decisões que, salvo melhor apreciação, estando embora respaldados em geral pelo bem público defesa da saúde pública, não deixam de interferir restritivamente em vários direitos fundamentais e, ao que se saiba, ao menos em alguns desses casos, poderão não estar dotados de qualquer habilitação legal prévia exposta de um modo expresso e inequívoco.
37. Afirmou o douto Tribunal a quo, que a norma do RAA viola o direito fundamental de livre escolha da profissão consagrado na Lei Básica, no entanto, ressalvado o devido respeito, está igualmente equivocado, na medida em que tal direito fundamental não é, de todo, violado.
38. Ou seja, no caso em apreço, o que está em causa não é a liberdade de escolha de profissão em sentido nuclear, mais estrito e cuja dimensão se acha expressamente vertida na Lei Básica, mas, diferentemente, a liberdade de exercício da profissão, uma dimensão distinta, que goza de menor intensidade de protecção, e não está sequer, expressamente ali inscrita.
39. Isto é, o exercício de uma profissão ou actividade profissional regulamentada pode, naturalmente, estar sujeito à verificação de alguns requisitos profissionais, que devem estar definidos em legislação sectorial, designadamente: incompatibilidades ou impedimentos; sigilo profissional; regras deontológicas ou técnicas; verificação periódica de conhecimentos, capacidades ou aptidões, etc.
40. Tal como acontece com a Advocacia, nem todos os Residentes, mesmo que licenciados nas áreas específicas, podem exercer a profissão de Médico, Enfermeiro, Farmacêutico, Engenheiro, Arquitecto ou Juiz, pois o acesso a todas estas profissões está, naturalmente e por razões de ordem e interesse público, condicionado à satisfação de requisitos adicionais para além da obtenção de um grau académico.
41. De outra banda, o que sucede in casu, é meramente, um postergar de um dado índice de acesso. Está em causa uma suspensão, por tempo curto e determinado e que mais não faz do que, no fundo, transferir um ónus para o interessado - vir mais bem preparado tecnicamente com vista a poder, finalmente, ao cabo de três tentativas goradas, passar os exames. Suspende-se por forma a habilitar o candidato um período de estudo mais dedicado e concentrado.
42. Acresce, igualmente, que advogado estagiário não é uma profissão em si mesma, mas sim um iter legalmente exigível de um procedimento, o qual, depois de concluído, abre as portas para o cabal exercício da profissão de Advogado. É um tirocínio, por regra necessário para lograr algo mais - de, através do estudo das matérias e da obtenção da aprovação nos exames realizados para o efeito, se chegar ao exercício da Profissão de Advogado - mas não é uma profissão; é algo transitório por natureza.
43. Ora, por maioria de razão, se não é uma profissão, se é algo transitório por natureza, então, precisamente pela sua natureza nunca se poderia reconduzir a uma profissão, sendo-lhe inaplicável o preceito constitucional que cura de tutelar a liberdade de escolha de profissão.
44. Isto é, não está aqui em causa um direito fundamental, logo não há que se atender à reserva de lei em matéria de restrições a direitos fundamentais.
45. Pelo que, ao ter considerado que a norma contida no n.º 10 do Art.º 35.º do RAA não se encontra habilitada pelo disposto no n.º 3 do Art.º 19.º do Estatuto do Advogado o que, alegadamente, violara o disposto nos Art.ºs 35.º e 40.º (segundo parágrafo) da Lei Básica e a alínea 1) do Art.º 6.º da Lei n.º 11/2009, o douto Tribunal a quo incorreu no vício de errada aplicação de Lei Substantiva. Termos em que, e nos mais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-se procedente o vício de errada aplicação de Lei Substantiva.
  
  Contra-alegando veio o Recorrido apresentar as seguintes conclusões:
1. Os vícios que enferma a deliberação em causa da ora Recorrida Assembleia Geral da Associação dos Advogados de Macau são os que decorrem da ilegalidade da norma do n.º 10 do artigo 35.º do Regulamento de Acesso à Advocacia (RAA), ao abrigo da qual foi deliberada a suspensão de estágio do Recorrente para acesso à profissão de advogado.
2. Tal norma regulamentar é inválida por violação do princípio da legalidade ínsito, nomeadamente, nas normas dos artigos 35.º e 40.º da Lei Básica da RAEM e nos artigos 6.º, al. 1), e 7.º, n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 13/2009 e no artigo 19.º, n.º 3, do Estatuto do Advogado, como a seguir se especifica.
3. É verdade que o Estatuto do Advogado - a lei reguladora do exercício da advocacia em Macau - confere à AAM o poder de “regulamentar o acesso à advocacia e o estágio, podendo prever eventuais provas de admissão” (art. 19.º, n.º 3).
4. Mas é igualmente verdade que, em nenhuma norma do Estatuto do Advogado se inclui a permissão de se editarem normas, como a do n.º 10 do artigo 35.º do Regulamento de Acesso à Advocacia (RAA), a conferir à Direcção da AAM o poder de deliberar a suspensão da inscrição de advogados estagiários, nomeadamente, por não lograram aprovação em três provas de avaliação final.
5. Isto porque tal suspensão (e do mesmo modo, no seu seguimento, o cominado cancelamento da inscrição obrigando à admissão a novo estágio) restringe - podendo mesmo coarctar injustamente - o acesso à profissão de advogado, violando o direito fundamental garantido pelo artigo 35.º da Lei Básica da RAEM: “Os residentes de Macau gozam da liberdade de escolha de profissão e de emprego”;
6. Em defesa desta liberdade de escolha da profissão, determina ainda o artigo 40.º da mesma Lei Básica: “Os direitos e as liberdades de que gozam os residentes de Macau, não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei”.
7. Ora, pela intensidade das restrições que determina, é indubitável que a norma em causa do Regulamento de Acesso à Advocacia, ao abrigo da qual a Assembleia ora Recorrida deliberou confirmar a suspensão do Recorrente deliberada pela Direcção da mesma Associação, viola ainda, de forma flagrante, o princípio da reserva do poder legislativo em matéria dos “direitos e liberdades de que gozam os residentes de Macau” determinado pelo artigo 40.º da Lei Básica e reafirmado pelo artigo 6.º, 1), da Lei n.º 13/2009, de 27 de Julho.
8. Sendo certo que nem à própria lei é permitido, contrariando os citados princípios, restringir - e muito menos coarctar - o exercício de um direito fundamental como é a liberdade de escolha da profissão a que, no caso, o Recorrente pretende aceder tornando-se advogado.
9. A norma do n.º 10 do artigo 35.º do RAA é ainda ilegal por violar o princípio de razoabilidade (art. 21.º, n.º 1, al. d) do CPAC), imposto pelo artigo 129.º da Lei Básica da RAEM na definição dos regulamentos respeitantes à avaliação e à atribuição de qualificação profissional do sistema relativo às profissões.
10. Nomeadamente, é patente a falta de razoabilidade, adequação e coerência, de uma norma como a do n.º 10 do artigo 35.º do RAA, que, por um lado, impõe a interrupção da aprendizagem dada pelo estágio para prestação das provas de avaliação final e, do mesmo jeito, determina a sujeição à prestação dessas provas no termo do período de privação da mesma aprendizagem causada pela suspensão do estágio.
11. Consequentemente, pelas razões expostas, deve ser confirmada a anulação decretada pela douta sentença recorrida da deliberação em causa da Assembleia Geral da Associação dos Advogados de Macau.
  
  Foram os autos ao Ilustre Magistrado do Ministério Público o qual emitiu o seguinte parecer:
  «1.
  A, melhor identificado nos presentes autos, interpôs recurso contencioso da deliberação da Assembleia Geral da Associação dos Advogados de Macau datada de 23 de Abril de 2024 que decidiu suspender a inscrição do Recorrente como advogado estagiário pelo período de um ano, com efeitos a partir de 11 de Janeiro de 2021.
  Por douta sentença que se encontra a fls. 159 a 171 dos presentes autos foi o recurso contencioso julgado procedente com a consequente anulação do acto recorrido.
  Inconformada com o assim decidido, veio a Assembleia Geral da Associação dos Advogados de Macau interpor o presente recurso jurisdicional, pugnando pela respectiva revogação.
  2.
  (i)
  A questão que aqui se discute é unicamente a de saber se a norma regulamentar contida no n.º 10 do artigo 35.º do Regulamento de Acesso à Advocacia, que serviu de fundamento jurídico ao acto recorrido é ela própria ilegal por restringir sem autorização legislativa e, portanto, em violação do princípio da reserva de lei, o direito fundamental de livre escolha de profissão consagrado no artigo 35.º da Lei Básica, implicando, desse modo, a ilegalidade daquele acto.
  Apesar do muito respeito que nos merece o entendimento sufragado pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo, parece-nos, ainda assim, que a douta sentença recorrida, sem prejuízo da densidade e da sageza da respectiva fundamentação, enferma do erro de julgamento que a Recorrente lhe imputa.
  Em síntese, pelo seguinte.
  (i.1)
  
  A Associação dos Advogados de Macau é uma pessoa colectiva de Direito Público (cfr. artigo 27.º, n.º 1 do Estatuto do Advogado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 31/91/M) que prossegue um interesse público na medida que a advocacia é entendida como um instrumento essencial na realização da justiça, que foi criada por um acto autoritário do poder público e à qual são reconhecidas, portanto, tarefas administrativas.
  Na verdade, tendo considerado que o exercício da advocacia desempenha um papel fundamental na administração da justiça, a Região, porque não estabelece com os advogados uma relação especial de poder (ao contrário do que sucede, por exemplo, com os magistrados) «devolve os poderes públicos indispensáveis ao controlo da sua actividade para uma figura da Administração mediata», justamente a Associação dos Advogados de Macau. Uma vez operada essa devolução de poderes por um acto autoritário do poder público, a Associação «há-de dispor de poderes de que não gozaria como associação privada – o de exigir a inscrição para o exercício da advocacia; o de determinar as relações dos membros com o funcionamento da organização: colaboração financeira e pessoal; o da sujeição à disciplina; o de emitir regulamentos obrigatórios» (cfr. ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, A Ordem dos Advogados – Uma Corporação Pública, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 124.º, pp 164-165).
  Cremos, pois, como bem salientou a douta sentença recorrida, que não há razão constitucional válida, em face ao disposto nos artigos 92.º e 126.º da Lei Básica, para questionar, em si mesma, a legitimidade da actividade normativo-regulamentar desenvolvida por aquela Associação, nomeadamente no que tange ao acesso à profissão.
  (ii.2)
  O artigo 35.º da Lei Básica, estabelece uma liberdade fundamental de todos os residentes de Macau, a de escolha de profissão e de emprego.
  É pacífico, no entanto, que, sobretudo quando esteja em causa o exercício de certas actividades profissionais, como é caso da advocacia, o ingresso nas mesmas pode estar sujeito a determinadas restrições de índole subjectiva com o objectivo de garantir que o respectivo exercício é concretizado segundo determinados padrões de qualidade.
  Tais restrições a essa liberdade, dada a jusfundamentalidade desta, só podem ser ocorrer nos casos previstos na lei, tal como decorre do parágrafo 2.º do artigo 40.º da Lei Básica. A legitimidade de qualquer intervenção restritiva sobre a dita liberdade fundamental, por exigência decorrente do princípio da reserva de lei em matéria de direitos fundamentais que se extrai também do artigo 6.º, alínea 1) da Lei n.º 13/2009, depende, pois, de a mesma ser feita directamente por via legislativa ou, então, da existência de autorização legislativa.
  Este último ponto parece-nos de assinalável relevância.
  A reserva de lei neste contexto, não significa que a outras entidades «esteja constitucionalmente vedada qualquer intervenção normativa regulamentar no domínio dos direitos fundamentais. Simplesmente, nessa actividade regulamentar essas entidades não acedem directamente à Constituição como fundamento autónomo da habilitação, só podendo actuar as competências que lhe forem expressamente atribuídas por lei com suficiente densidade normativa» (assim, JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2.ª edição, Coimbra, 2010, pp. 864-865).
  Significa isto, portanto, que a legitimidade da actuação administrativa por via de regulamento que, de alguma forma se configure como restritiva de direitos ou liberdades fundamentais, dependerá sempre da existência de habilitação legal prévia.
  (ii.3)
  (ii.3.1)
  De acordo com o falado n.º 10 do artigo 35.º do Regulamento de Acesso à Advocacia, «a reprovação em três avaliações finais determina a suspensão da inscrição como advogado estagiário, pelo período de um ano, após o qual o advogado estagiário deverá sujeitar-se à avaliação final de estágio que venha a ter imediatamente lugar».
  Para o Meritíssimo Juiz a quo «a norma em apreço ao proceder a uma ampliação do elenco das causas restritivas da liberdade da escolha da profissão, sem ter sido legitimada pela norma habilitante prévia constante do artigo 19.º, n.º 3 do Estatuto do Advogado, intrometeu-se no domínio da reserva da Lei da Assembleia Legislativa, definido pelas normas do artigo 35.º e o segundo parágrafo do artigo 40.º da Lei Básica e o artigo 6.º, alínea 1) da Lei n.º 13/2009, o que inquinou, por consequência, o acto impugnado que nela se fundou» (cfr. p. 23 da douta sentença recorrida a fls. 170 dos presentes autos).
  O ponto essencial da nossa divergência com o que foi doutamente decidido em primeira instância reside nisto: para nós, a norma regulamentar contida no n.º 10 do artigo 35.º do Regulamento de Acesso à Advocacia encontra suficiente respaldo habilitante na norma legal habilitante, correspondendo a uma mera densificação ou desenvolvimento dessa norma.
  Procuraremos, em linhas breves, justificar.
  (ii.3.2)
  De acordo com o estatuído no n.º 3 do artigo 19.º do Estatuto do Advogado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 31/91/M, de 6 de Maio, «cabe à Associação dos Advogados de Macau regulamentar o acesso à profissão e o estágio, podendo prever eventuais provas de admissão» (o destacado é nosso).
  Como se vê, esta norma atribui à Associação dos Advogados de Macau um amplo poder regulamentar sobre a matéria de acesso à profissão de advogado, incluindo o estágio.
  Inclui-se nesse poder, aspecto que se nos afigura de particular relevância neste concreto contexto decisório, o de prever no regulamento de acesso à profissão, incluindo ao próprio estágio, a existência de provas de admissão que condicionem tal acesso.
  O âmbito desta expressa habilitação legal no sentido da possibilidade da previsão de provas de admissão, incluindo ao estágio, é, segundo cremos, o seguinte: a Associação está legalmente autorizada não só a prever no regulamento de acesso à profissão a existência de provas de admissão, é esse o sentido literal, imediato e incontroverso da autorização, mas, mais do que isso, a definir as consequências que considere adequadas em caso de insucesso dos candidatos nessas provas. A não ser assim, isto é, a não ser este o âmbito da autorização legal, esta não faria sentido, uma vez que a existência de provas de admissão destina-se, justamente, a aferir conhecimentos e competências, sendo normal, por isso, que ao insucesso nas provas de admissão esteja associada uma consequência desfavorável que possa constituir um obstáculo ao acesso à condição profissional pretendida, seja de estagiário, seja de advogado.
  Daí que se nos afigure de legitimidade inquestionável face à habilitação legal decorrente do n.º 3 do artigo 19.º do Estatuto do Advogado que o Regulamento de Acesso à Advocacia:
  - condicione a admissão ao estágio à aprovação nos respectivos exames nos termos que resultam dos artigos 19.º e 20.º do Regulamento de Acesso à Advocacia,
  - condicione a inscrição como advogado à aprovação na avaliação final de estágio nos termos que decorrem do artigo 35.º do Regulamento de Acesso.
   Ainda que a norma habilitante não preveja expressamente tais condicionamentos, indubitavelmente restritivos do direito de acesso à profissão, tão ou mais intensamente restritivos, aliás, do que aquele que nos presentes autos se controverte.
  Afirmamos a legitimidade inquestionável dos enunciados condicionamentos em função, precisamente, da previsão expressa, na norma do n.º 3 do artigo 19.º do Estatuto do Advogado, da possibilidade de existência de provas de admissão, a qual, desse modo, autoriza a intervenção regulamentar restritiva do direito fundamental previsto no artigo 35.º da Lei Básica que resulta dos referidos artigos 19.º e 20.º e do artigo 35.º do Regulamento de Acesso à Advocacia.
  Mas, se é assim, se as normas regulamentares contidas nestes artigos se mostram em conformidade com o princípio da reserva de lei em matéria de intervenções restritivas de direitos fundamentais, parece-nos, que tal também sucede com a norma do n.º 10 do artigo 35.º do mesmo Regulamento.
  O que aí se prevê, substantivamente, é uma consequência resultante da reprovação em três avaliações finais que se consubstancia, é certo, numa limitação temporária à manutenção do estatuto de advogado estagiário. Mas voltamos ao nosso ponto, se é legítimo, e vimos que é, o condicionamento do acesso ao estágio através da previsão no Regulamento de uma prova de admissão ao mesmo, também nos parece legítimo limitar esse acesso, através de uma suspensão por um período de um ano, em caso de reprovação na avaliação final do estágio.
  Justifica-se bem, aliás, que assim seja. A presunção de que um licenciado em direito que obteve aproveitamento no exame de admissão ao estágio reúne os requisitos mínimos para exercer a «profissão» de advogado estagiário, cede se o estagiário reprova em três avaliações finais, implicando a suspensão da sua inscrição como advogado estagiário.
  A nosso ver, estamos num domínio onde, objectivamente, o legislador sem prescindir da suficiente densidade normativa da autorização, deve, no entanto, abster-se de desenvolver todo o regime, «em ordem a dar a devida relevância às circunstâncias particulares em que a Administração vai exercer os seus poderes» (cfr. JORGE REIS NOVAIS, As restrições…, p. 865). Assim sendo, bastará, segundo pensamos, a previsão legislativa quanto à existência de provas de admissão como condicionamentos ao acesso à profissão de advogado para que se mostre legítima uma norma regulamentar da qual resulte a aprovação em provas de admissão como requisito de acesso ao estágio e bem assim um procedimento de avaliação no estágio que tenha em provas de avaliação um dos seus elementos nucleares, incluindo nesse procedimento as consequências associadas à reprovação nas mesmas.
  É pois legítimo, a nosso ver e como antes salientámos, que por regulamento, se estabeleça que a reprovação em prova de avaliação pode implicar, em determinadas circunstâncias, a suspensão da inscrição e o cancelamento da inscrição como advogado estagiário, justamente porque o sentido da autorização legislativa resultante do n.º 3 do artigo 19.º do Estatuto do Advogado é exactamente esse: o de permitir à Associação dos Advogados de Macau condicionar o acesso à profissão à prévia aprovação em provas de admissão (ponto é, em todo o caso, o de que se não elimine a possibilidade de, mesmo após o cancelamento da inscrição, o licenciado em direito voltar a submeter-se a novas provas de admissão ao estágio e a frequentar novo curso de estágio e a verdade é que o Regulamento de Acesso à Advocacia, prudentemente, acautelou essa situação).
  Concluímos, deste modo, que a restrição ao direito fundamental consagrado no artigo 35.º da Lei Básica que resulta da norma regulamentar contida no n.º 10 do artigo 35.º da Regulamento de Acesso à Advocacia e que serviu de fundamento legal ao acto administrativo recorrido, está autorizada por lei e, por isso, não enferma da ilegalidade que lhe foi apontada pela douta decisão recorrida.
  (ii.3.3)
  Uma última referência. Tem que ver com a jurisprudência do Tribunal Constitucional invocada na douta sentença recorrida, nomeadamente o acórdão n.º 89/2012.
  Na verdade, nessa decisão, o Tribunal Constitucional português declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade das normas constantes dos n.ºs 3 e 4 do artigo 24.º, da 2.ª parte do n.º 2 do artigo 36.º e da 2.ª parte do n.º 5 do artigo 42.º, todos do Regulamento Nacional de Estágio da Ordem dos Advogados na redacção que lhes foi conferida pela Deliberação n.º 3333-A/2009, de 16 de Dezembro, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados.
  As normas regulamentares em causa previam uma suspensão temporária da faculdade de acesso ao estágio em resultado da obtenção de classificação negativa na prova de aferição realizada no âmbito da repetição da fase de formação inicial ou falta reiterada ao teste escrito que a integra; verificação de falta de aproveitamento no âmbito da repetição da fase de formação complementar e reprovação na prova oral de repetição realizada no âmbito da repetição da fase de formação complementar, sendo detectável, portanto, uma semelhança com a norma do n.º 10 do artigo 35.º do Regulamento de acesso à Advocacia.
  Todavia, importa ter em conta uma especificidade do contexto normativo português que o próprio Tribunal Constitucional assinala no seu acórdão. Essa especificidade é a seguinte. Em Portugal, a lei não previa que o ingresso no estágio fosse condicionado à aprovação em prova de admissão. Foi por isso, aliás, que o tribunal Constitucional português, no seu acórdão n.º 3/2011, declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do artigo 9.º-A, n.º 1 e 2, do Regulamento Nacional de Estágio, da Ordem dos Advogados, na redacção aprovada pela Deliberação n.º 3333-A/2009, de 16 de Dezembro, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, no qual se previa um exame nacional de acesso ao estágio.
  Ora, como antes procurámos demonstrar, entre nós, a situação é diferente. O legislador autorizou a Associação dos Advogados de Macau a prever a existência de provas de admissão, incluindo de admissão ao próprio estágio. Esta significativa diferença, inviabiliza, a nosso modesto ver e pelo que antes expendemos, o transplante do juízo de inconstitucionalidade feito no acórdão do Tribunal Constitucional português para a situação que agora está em dissídio.
  3.
  Face ao exposto, o presente recurso jurisdicional deve ser provido e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida.
  É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público.».
  
  Foram colhidos os vistos.
  
  Cumpre, assim, apreciar e decidir.
  
II. FUNDAMENTAÇÃO

a) Dos Factos
  
  Na decisão recorrida foi dada por assente a seguinte factualidade:
  - O ora Recorrente é advogado estagiário inscrito na Associação dos Advogados de Macau desde 11 de Março de 2008, com a Cédula Profissional n.º 6/2008 (conforme o doc. junto a fls. 11 do processo administrativo).
  - Em 30/12/2020, a Direcção da Associação dos Advogados de Macau tomou a seguinte deliberação:
  “1. (...)
  2. Tendo sido deliberado por esta Direcção suspender as inscrições, como advogados estagiários, da Dra. (...), do Dr. (...), da Dra. (...), do Dr. (...), do Dr. Paulo José Fernandes (C.P. n.º 6/2008), e do Dr. (…), nos termos do disposto no art.º 35.º, n.º 10, do Regulamento do Acesso à Advocacia, estes não chegaram a ser notificados de tal suspensão em virtude da pendência de pedidos de revisão das provas escritas do 28.º Exame Final de Estágio. Não obstante continuarem pendentes outros pedidos de revisão, não respeitando tais pedidos aos advogados estagiários acima referidos, é deliberado notificar os mesmos da suspensão das respectivas inscrições, com efeitos a partir de 11 de Janeiro de 2021. Nos termos do disposto na norma referida, tais inscrições serão suspensas pelo período de um ano, findo o qual deverão os seus titulares sujeitar-se ao exame final de estágio que tiver lugar imediatamente a seguir;
  (...)”
  (conforme o doc. junto a fls. 121 do processo administrativo).
  - Contra a referida deliberação da Direcção da AAM, interpôs o Recorrente para o Tribunal Administrativo o recurso contencioso que foi julgado procedente pela sentença de 16/12/2021 (conforme o doc. junto a fls. 13 a 29v dos autos).
  - Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 18/1/2024, proferido no recurso jurisdicional interposto contra a suprarreferida sentença, foi a Direcção absolvida da instância com a revogação daquela sentença (conforme o doc. junto a fls. 30 a 35 dos autos).
  - Seguidamente, foi interposto o recurso hierárquico necessário para a Assembleia Geral da AAM, ora Entidade recorrida (conforme o doc. junto a fls. 41 a 50 dos autos).
  - Em 23/4/2024, a Assembleia Geral da Associação dos Advogados de Macau tomou a seguinte deliberação:
  “Ponto quatro: Apreciação do recurso interposto pelo Dr. Paulo Fernandes, cuja inscrição está suspensa;
  O Sr. Presidente da Mesa procurou verificar se o Recorrente estava presente ou algum representante, ou alguém que pretende desse usar da palavra em prol do recurso do Recorrente.
  Não havendo quem pretendesse usar da palavra, foi colocada à votação o recurso, ao qual não foi provimento com 140 votos contra, 34 abstenções e nenhum voto a favor.”
  (...)
  (conforme o doc. junto a fls. 176 do processo administrativo).
  - Recurso interposto foi indeferido pela deliberação datada de 23/4/2024, com a manutenção da deliberação antes tomada pela Direcção da AAM, cujo teor foi comunicado nos seguintes termos:
  “Assunto: Resultado do vosso recurso interposto no dia 20 de Fevereiro de 2024
  Com referência ao assunto em epígrafe, vimos, pelo presente, informar que, por votação na reunião da Assembleia Geral da Associação dos Advogados de Macau, de 23 de Abril corrente, foi determinado improcedente o respectivo recurso interposto no dia 20 de Fevereiro de 2024.
  (…)”
  (conforme o doc. junto a fls. 173 do processo administrativo).
  - Em 9/5/2024, o Recorrente interpôs o presente recurso contencioso.
  
b) Do Direito
  
  Decidiu-se na decisão recorrida nos seguintes termos:
  «Tal como se encontra configurada pelo Recorrente, a ilegalidade do acto recorrido decorreu, em primeira linha, de ter sido aplicada a norma regulamentar ilegal do artigo 35.º, n.º 10 do Regulamento do Acesso à Advocacia (RAA), introduzida ao dito Regulamento mediante deliberação da Assembleia Geral da Associação dos Advogados de Macau tomada em 16/5/2017, por exorbitar os limites para a intervenção normativa da Associação dos Advogados de Macau (AAM), definidos pelas normas do artigo 40.º da Lei Básica, dos artigos 6.º, alínea 1) e 7.º, n.º 1, alínea 7) da Lei n.º 13/2009 e do artigo 19.º, n.º 3 do Estatuto do Advogado, e além do mais, por violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, em caso da emanação normativa ter sido autorizada por aquela norma legal.
  Importa ver, desde logo, a questão da ilegalidade da norma regulamentar suscitada pelo Recorrente. Tal como se refere no Acórdão do Tribunal de Última Instância n.º 28/2006, de 18/7/2007, o conhecimento da ilegalidade da norma em sede do recurso contencioso do acto administrativo como aqui sucedeu procede-se a título incidental e com fundamento no princípio da hierarquia das normas, e a pronúncia do tribunal quanto à questão apenas tem efeitos no processo em causa.
  A norma impugnada, constante do Regulamento do Acesso à Advocacia aprovado em sessões de 11 e 16 de Maio de 2017 pela Assembleia Geral da Associação Pública dos Advogados de Macau, tem o seguinte teor:
“Artigo 35.º
Avaliação final de estágio
  …
  10. A reprovação em três avaliações finais determina a suspensão da inscrição como advogado estagiário, pelo período de um ano, após o qual o advogado estagiário deverá sujeitar-se à avaliação final de estágio que venha a ter imediatamente lugar.
  …”1
  O ora Recorrente começou por fundar a ilegalidade da citada norma regulamentar com base na inexistência da autorização legal prévia. Vejamos se lhe assiste razão.
*
  A AAM, “é uma associação pública representativa dos licenciados em Direito que, de acordo com este Estatuto e demais disposições legais, exercem a advocacia em Macau” – ao abrigo da norma do artigo 3.º do Estatuto do Advogado aprovado por DL n.º 31/91/M, de 6 de Maio. E nos termos definidos pelo Acórdão do Tribunal de Última Instância no processo n.º 129/2020, de 3/3/2021, trata-se de uma “ ‘pessoa colectiva de direito público’ com ‘competências’ que lhe são (especialmente) reconhecidas no âmbito de uma dinâmica de descentralização administrativa”, independentemente de saber se a mesma integra ou não a “Administração indirecta”.
  À partida, a controvérsia não subsiste quanto à fonte legitimadora do poder regulamentar da AAM, por ser imanente ao seu modelo organizativo “mais adequado à característica de profissão livre e ao concomitante auto-governo da profissão” que fora adoptado desde 6/5/1991 com a aprovação do Estatuto do Advogado. Constituiu-se, por esta forma, a AAM “que, enquanto pessoa colectiva pública, não só representa a profissão e assegura a participação dos profissionais na organização e regulação da profissão duma forma autónoma, como lhe compete elaborar um código deontológico, e regulamentar e dirigir o estágio profissional.”, conforme se alude no preâmbulo do dito diploma legal.
  Assim, de acordo com o que fica definido naquele Estatuto, constituem atribuições da AAM, “a) Regulamentar o exercício da profissão; b) Atribuir o título profissional de advogado e de advogado estagiário;…” – nos termos do artigo 30.º, n.º 1, alíneas a) e b) do referido Estatuto. E na prossecução dessas atribuições suas, compete à AAM, “a) Elaborar e alterar os estatutos;…c) Elaborar outros regulamentos profissionais;…e) Organizar e dirigir o estágio profissional;…” ao abrigo do artigo 31.º, alíneas a), c) e e).
  Mesmo após a ressunção do exercício do poder soberano pela República Popular da China a partir de 20 de Dezembro de 1999, tal poder regulamentar que fora pelo Estatuto de Advogado conferido à AAM, sempre mantém-se na sua esfera, por força do princípio da continuidade da vigência da legislação que anteriormente vigorava em Macau, consagrado no artigo 92.º da Lei Básica da RAEM, nos termos do qual “Com base no sistema anteriormente vigente em Macau, o Governo da Região Administrativa Especial de Macau pode estabelecer disposições para o exercício da profissão forense, na Região Administrativa Especial de Macau, por advogados locais e advogados vindos do exterior de Macau” (sublinhado nosso).2
  Enquanto uma das formas de actividade administrativa, o exercício do poder regulamentar está sujeito ao princípio da legalidade, quer na sua dimensão de preferência de lei – no sentido de não poder contrariar os actos normativos de força hierárquica superior, quer na sua dimensão de reserva de lei – no sentido de não poder desenvolver nas áreas constitucionalmente reservadas à lei – conforme se alude o referido Acórdão do Tribunal de Última Instância n.º 28/2006, de 18/7/2007, a propósito dos limites do poder da emanação do regulamento independente do Chefe do Executivo.
  A questão concreta que se põe aqui é a de saber se a AAM, ao determinar por via regulamentar a suspensão da inscrição dos estagiários pelo período de 1 ano na sequência da reprovação em três avaliações finais, excedia ou não os limites inerentes ao seu poder regulamentar, em termos mais concretos, se emanou ou não das normas restritivas do direito à livre escolha da profissão tal como consagrado no disposto do artigo 35.º da Lei Básica, matéria que se encontra sob reserva da lei da Assembleia Legislativa, ao abrigo dos artigos 40.º, 2.º parágrafo e 71.º, n.º 1 dessa lei fundamental, e do artigo 6.º, alínea 1) da Lei n.º 13/2009 (Regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas).
*
  Como é consabido, a liberdade de escolha de profissão e de emprego encontra-se assegurada a todos os residentes de Macau pela norma do artigo 35.º da Lei Básica da RAEM, tratando-se do direito fundamental inscrito no respectivo Capítulo III – “Direitos e deveres fundamentais dos residentes” – comporta as duas dimensões, uma negativa, no sentido de não ser forçado a escolher ou exercer uma determinada profissão, ou ser impedido de escolher ou exercer qualquer profissão para a qual se tenham os necessários requisitos, bem como de obter este mesmos requisitos; e uma positiva, que consiste em direito à obtenção dos requisitos legalmente exigidos para o exercício de determinada profissão, nomeadamente as habilitações escolares e profissionais, e direito às condições de acesso em condições de igualdade a cada profissão.3
  Salienta-se, além do mais, que o preceito não pode pretender proteger apenas a escolha da profissão propriamente dita, mas também a vertente do exercício profissional (no sentido de regular o como exercer uma determinada profissão), tal como afirmavam os autores portugueses a propósito da norma do artigo 47.º, n.º 1 da Constituição portuguesa.4
  É certo que esta não é – como nenhuma outra – uma liberdade irrestringível, considerando em especial a hipótese da respectiva restrição legal expressamente autorizada pela norma do segundo parágrafo do artigo 40.º da Lei Básica, o que poderia ainda resultar da aplicação da norma do artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º 4/98/M, de 29 de Julho (“Os residentes de Macau gozam da liberdade de escolha de profissão ou de género de trabalho, salvas as restrições legais.”). Nesta linha, atento o relevo social de certas actividades profissionais especializadas (e.g. advogado, médico, arquitecto, notário privado, mediador imobiliário etc.), a escolha da profissão, designadamente, o respectivo ingresso encontra-se sujeita a determinadas restrições de índole subjectiva, com o objectivo de assegurar que o respectivo exercício ocorra segundo padrões de qualidade e de idoneidade5.
  As restrições legais, impostas em função de salvaguardar o interesse público6, não devem revestir uma natureza discriminatória que prejudique a igualdade de acesso ao emprego – conforme o disposto no artigo 4.º, n.º 2 da dita Lei, podendo dizer respeito aos requisitos subjectivos com efeito de delimitar positiva (naquele sentido de exigir a posse da determinada qualificação profissional ou académica para o exercício da determinada profissão) ou negativamente (quando se exige a não verificação das circunstâncias taxativamente previstas relativamente ao candidato, sob pena da denegação do seu direito de acesso à profissão – e.g. não pode solicitar a acreditação aquele que tenham sido condenados pela prática do crime de usurpação de funções previsto na alínea b) do artigo 322.º do Código Penal, com a presunção da falta da idoneidade para exercício de actividade dos profissionais de saúde – nos termos do artigo 13.º, n.º 1, alínea 5) e n.º 3, alínea 1) da Lei n.º 18/2020 (Regime da qualificação e inscrição para o exercício de actividade dos profissionais de saúde)) o universo das pessoas que podem exercer determinada profissão.
  O que fica dito até aqui parece ser pacífico.
*
  Entretanto, pode-se questionar se a previsão da restrição à liberdade de escolha de profissão protegida pela norma do artigo 35.º da Lei Básica encontra-se reservada à lei formal emanada pela Assembleia Legislativa, face ao disposto no primeiro parágrafo do artigo 129.º da Lei Básica, que parece ter reconhecido ao poder executivo o poder de normação originária sobre a matéria em causa, nos termos do qual “O Governo da Região Administrativa Especial de Macau determina, por si próprio, o sistema relativo às profissões e define, com base no princípio da imparcialidade e da razoabilidade, os regulamentos respeitantes à avaliação e à atribuição de qualificação profissional nas várias profissões e de qualificação para o seu exercício.” Aliás, o mesmo poderia afirmar-se perante a letra da norma do artigo 92.º da Lei Básica, onde se aborda especificamente a matéria da regulamentação profissional da advocacia.
  No ordenamento jurídico de Macau, o princípio da reserva de lei, ou melhor dizendo, reserva de competência legislativa da Assembleia, significa que há matérias que estão reservadas à assembleia representativa e que não se reconhece qualquer poder regulamentar originário ao poder executivo7.
  Como se admite, inexiste, a este respeito, qualquer preceito da Lei Básica que estatua sobre o que é matéria de lei e sobre o que é matéria de regulamento, nem norma geral que estabeleça uma competência normativa reservada da Assembleia Legislativa ou do poder executivo – Chefe do Executivo e do Governo. O que temos são apenas as separadas normas que determinam que certas matérias devem constar de lei (quando se refere, e.g. “nos termos previstos da lei”, “regulados por lei”, “são legalmente protegidos” etc.) Porém, a ideia da reserva da lei, com a entrada em vigor da Lei n.º 13/2009, veio a ser melhor definida, com a previsão do artigo 6.º, “A normação jurídica das seguintes matérias é feita por leis:…”, além disso, do artigo 4.º que autoriza a normação do poder executivo a “criar disciplina primária e originária relativamente a matérias não disciplinadas por lei” – (a precedência da lei), e do artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 “A validade das leis, dos regulamentos administrativos independentes, e dos regulamentos administrativos complementares e demais actos normativos internos da RAEM depende da sua conformidade com a Lei Básica” e “As leis prevalecem sobre todos os demais actos normativos internos, ainda que estes sejam posteriores.” – (a prevalência da lei).
  Neste sentido, é incontroverso8 que a restrição da liberdade de escolha de profissão, assim como sucede com a dos outros direitos fundamentais, constitui uma matéria reservada à lei da Assembleia Legislativa, o que se impõe expressamente pelo artigo 35.º e o segundo parágrafo do artigo 40.º da Lei Básica (“Os direitos e as liberdades de que gozam os residentes de Macau, não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei”) e artigo 6.º, alínea 1) da Lei n.º 13/2009 (“A normação jurídica das seguintes matérias é feita por leis: 1) Regime jurídico dos direitos e liberdades fundamentais, e suas garantias, previstos na Lei Básica e em outros actos legislativos”).
  Em boa verdade, o citado primeiro parágrafo do artigo 129.º da Lei Básica parece ter apontado para o sentido diverso – a reserva de regulamento administrativo – de que as matérias relativas ao acesso e ao exercício das certas profissões estariam reservadas à normação do Governo, com exclusão do poder legislativo da Assembleia Legislativa.9 Tal ideia, contudo, não chegou a ser concretizada através dos preceitos legais adoptados pela Lei n.º 13/2009, em que se referiu, no respectivo artigo 7.º, que “Podem ser objecto de regulamentos administrativos independentes...”, o que parece não pretender excluir o possível exercício concorrencial da competência normativa, também originária da Assembleia Legislativa.
  Assim, é duvidosa a existência da reserva de regulamento com exclusão da intervenção do poder de normação originária legislativa face às normas constantes da Lei Básica e da Lei n.º 13/2009. Tal questão, para nós, permanece aberta.
  Mas o que se pode concluir já com segurança é que a “reserva de regulamento” ainda supostamente existente não poderá derrogar a reserva da lei, naquele sentido de habilitar o poder executivo para regulamentar a matéria que se encontre reservada à lei da Assembleia Legislativa, por exemplo, em matéria da liberdade da escolha e do exercício da profissão, se isso implicar a imposição das novas restrições a esse direito fundamental.
  Recorda-se, foi tal posição assumida no douto Acórdão do Tribunal Última Instância n.º 28/2006, de 18/7/2007, no seguinte segmento, “Também não resulta de nenhum preceito da Lei Básica que os regulamentos administrativos não possam estabelecer deveres ou restrições sobre os particulares. De acordo com o artigo 40.º, o que os regulamentos não podem é impor restrições aos direitos fundamentais, a que se refere o Capítulo III da Lei Básica e aos direitos previstos nos Pactos mencionados naquele artigo 40.º, matéria que deve constar de lei. Assim, desde que a matéria não esteja reservada à lei da Assembleia Legislativa, nada obsta a que regulamentos possam estabelecer deveres ou impor restrições sobre os particulares…”.
  Portanto, o que o Governo está autorizado ao abrigo da norma do primeiro parágrafo do artigo 129.º da Lei Básica, seria, sem invadir o âmbito dos direitos fundamentais reservado à lei formal, definir os regimes e procedimentos de gestão dos assuntos públicos, tendo em conta que a avaliação e a atribuição de qualificação profissional nas várias profissões podem integrar o âmbito da gestão dos assuntos públicos, a que se refere no artigo 7.º, n.º 1, alínea 2) da Lei n.º 13/200910.
  O raciocínio até aqui exposto tem inteira aplicação ao caso em que o poder normativo é exercido por uma associação pública autónoma encarregada da atribuição da auto-regulação da profissão, em que “o regulador e os regulados são uma e a mesma coisa”, como sucedeu no caso dos autos. É certo que através do Estatuto do Advogado, foi atribuído à AAM o poder de se autorregular, emitindo as normas regulamentares sobre o acesso à profissão da advocacia e ao estágio, sendo tal reconhecido nos termos do artigo 92.º da Lei Básica, mas evidentemente, o exercício desse poder não deve deixar de se sujeitar às condicionantes próprias, como já afirmou em sede do direito comparado, o Professor Vital Moreira, “esse poder nunca poderá ser utilizado para invadir o núcleo duro do direito à livre escolha de uma profissão que abrange a definição das condições essenciais subjectivas de acesso ao exercício da respectiva actividade. Essa é uma matéria que pertence às políticas primárias da comunidade nacional, pelo que só a Assembleia da República, ou o Governo por ele autorizado, tem competência para legislar nesse domínio.”11.
*
  Voltamos à actuação regulamentar concreta da AAM e ao direito à livre escolha da profissão que aqui está em causa.
  O acesso ao exercício da actividade profissional de advogado está dependente da inscrição na AAM (artigo 11.º, n.º 1 do Estatuto do Advogado).
  Nos termos do artigo 19.º, n.º 1 do Estatuto, podem requerer a sua inscrição como advogado os licenciados em Direito por universidade de Macau ou qualquer outro licenciado em Direito reconhecido na RAEM, que tenham frequentado o estágio de advocacia. Em relação a licenciados em Direito por universidade que não seja de Macau, exige-se ainda a frequência de um curso prévio de adaptação ao sistema jurídico de Macau (conforme o n.º 2 do preceito legal).
  Encontram-se dispensados do estágio “a) Os professores de Direito, qualificados com grau académico de mestrado ou superior, que tenham desempenhado funções docentes em universidade de Macau durante mais de dois anos”, “b) Os antigos magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público, conservadores e notários, com última classificação de «Bom», que tenham exercido essas funções em Macau durante mais de dois anos” e “Os licenciados em Direito já habilitados com estágio de advocacia nos termos a definir pela AAM”, conforme se prevê no n.ºs 4 e 5 do preceito legal.
  Por sua vez, encontram-se impedidos de se inscrever aqueles que, não obstante satisfazerem a condição prevista no artigo 19.º, n.º 1, – a) não possuam idoneidade moral para o exercício da profissão e, em especial, os que tenham sido condenados por qualquer crime gravemente desonroso; b) não estejam no pleno gozo dos direitos civis; c) os declarados incapazes de administrar as suas pessoas e bens por sentença transitada em julgado; d) estejam em situação de incompatibilidade ou inibição do exercício da advocacia; e) os magistrados e funcionários que, mediante processo disciplinar, hajam sido demitidos, aposentados ou colocados na inactividade por falta de idoneidade moral, f) não possuam as habilitações profissionais exigidas para o exercício da advocacia na RAEM – nos termos do artigo 23.º, n.º 1 do referido Estatuto.
  A ocorrência superveniente dessas circunstâncias às pessoas que já têm a qualidade de advogado ou estagiário determina suspensão ou cancelamento da respectiva inscrição – segundo o n.º 2 do dito preceito legal.
  Nos termos conjugados desses dois artigos, a inscrição na AAM para o acesso à profissão da advocacia, encontra-se legalmente condicionada pela verificação dos pressupostos tanto positivos – de exigência de determinada qualificação académica e habilitação profissional, – como negativos – não verificação das circunstâncias tipificadas para o efeito. E pela lógica das coisas, o preenchimento de todos os pressupostos legais de que depende a inscrição na AAM como advogado exige-se, com a excepção do artigo 19.º, n.º 1, alínea b) (frequência de estágio de advocacia), relativamente ao acesso a estágio, sem que a norma legal tenha especificado neste sentido.
  O poder regulamentar conferido pelo n.º 3 do artigo 19.º do Estatuto do Advogado incide sobre a matéria específica, permitindo à AAM “regulamentar o acesso à profissão e o estágio, podendo prever eventuais provas de admissão.” Pelo que foi dito atrás, a norma habilitante, na nossa óptica, apenas autoriza a AAM, por essa via, a densificar os critérios para o acesso à profissão já definidos pelo próprio Estatuto do Advogado. Ou seja, não se pode o regulamento a partir daí emitido fixar os novos pressupostos restritivos daquele acesso sob pena da violação da reserva da lei, mas tão-só, no que concerne à regulamentação do estágio, os termos concretos em que o curso deva ser organizado e estruturado (neste sentido, seria legítimo, por ainda se conter dentro do âmbito da norma habilitante, à entidade reguladora estruturar o curso de estágio de forma mais exigente).
  Foi, no âmbito do exercício deste poder “delegado” nos termos do Estatuto do Advogado, emitido o Regulamento do Acesso à Advocacia ora em apreço, em que o estágio se encontra disciplinado como tendente “à preparação do ingresso dos estagiários no exercício da advocacia, através da aprendizagem e da prática progressiva das regras técnicas e deontológicas da profissão” – sendo portanto uma fase preparatória necessária ao exercício da advocacia, com excepção dos casos da dispensa - de acordo com o disposto no artigo 18.º, n.º 1 do RAA.
  No seu artigo 20.º, n.º 1, foram reproduzidas as exigências subjectivas positivas e negativas, para a inscrição como advogado estagiário, com base nas previstas para a inscrição da AAM nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alíneas a), c) e d) do RAA, em correspondência aos requisitos contemplados no Estatuto do Advogado, nos seus artigos 19.º, n.º 1, alínea a), 21.º e 23.º, n.º 1, para além da exigência da frequência, com aproveitamento, do curso prévio de adaptação ou da respectiva dispensa, já previstas no dito artigo 19.º, n.ºs 2, 4 e 5 do Estatuto.
  Acrescentou-se, na mesma norma, a exigência adicional da aprovação nas provas de admissão ao estágio, nos termos autorizados pelo Estatuto.
  Em relação à regulamentação concreta do curso do estágio, determina-se, no artigo 20.º, n.º 2 do RAA, que os cursos se realizam duas vezes por ano, e com a duração mínima de 18 meses, de acordo com o artigo 21.º do RAA.
  O estágio integra duas componentes – uma escolar, comportando vários módulos, e no final de cada módulo, o advogado estagiário é sujeito à avaliação cuja reprovação obriga o estagiário à avaliação seguinte. A reprovação em três provas de avaliação do mesmo módulo determina um período de inibição de dois anos, após o estagiário poderá repetir o estágio – nos termos dos artigos 24.º, 25.º e 26.º, n.ºs 1, 2 e 5 do RAA.
  Outra componente prática efectua-se sob a orientação de um advogado patrono, no cumprimento da qual o estagiário pode exercer, de modo limitado, as funções próprias do advogado, de acordo com o disposto nos artigos 27.º, 28.º e 30.º do RAA.
  Mais estabeleceu no artigo 35.º do RAA que os estagiários após terem concluído com aproveitamento todos os módulos, devem requerer a sujeição à avaliação final de estágio, com as datas, a natureza e o conteúdo a definir pela AAM – n.ºs 1 e 4. A reprovação na avaliação final obriga o estagiário a sujeitar-se à avaliação final seguinte – n.º 9.
  Findo o estágio com a aprovação na respectiva avaliação final, os estagiários ficam obrigados a requerer a sua inscrição como advogado no prazo de 60 dias ou a pedir a suspensão da inscrição – ao abrigo do artigo 37.º, n.º 1 do RAA.
  A norma em apreço introduzida mediante as alterações procedidas em 16/5/2017 veio a trazer uma novidade, no sentido de associar à “reprovação em três avaliações finais” os efeitos da suspensão da inscrição como advogado estagiário pelo período de um ano, “após o qual o advogado estagiário deverá sujeitar-se à avaliação final de estágio que venha a ter imediatamente lugar”.
  Não se trata, no entanto, de uma operação normativa inteiramente nova da AAM que já tinha determinado no artigo 26.º, n.º 5 do RAA que a reprovação em três provas do mesmo módulo determina um período de inibição de 2 anos. Contudo, como é razoável entender-se, uma norma regulamentar poderia perfeitamente subsistir sem nunca ter sido impugnada, e tal facto não legitima a existência das outras normas que possam padecer do mesmo defeito.12 Interessante é saber se tal norma do artigo 35.º, n.º 10 do RAA considerada em si mesma, inquinou ou não da ilegalidade assacada pelo ora Recorrente com fundamento na violação da norma da hierarquia superior.
  Ou dito por outra forma, o essencial é determinar em que consiste a suspensão do estágio de advocacia aqui prevista. Para nós, trata-se de, através de uma norma regulamentar, estatuir uma medida com efeitos susceptíveis de projectar sobre o núcleo duro do direito à livre escolha da profissão dos estagiários, por impor em virtude da ocorrência daquelas reprovações, o seu afastamento da vida profissional pelo período de 1 ano, por modo a obstar a que aqueles, licenciados em Direito por universidade de Macau, concluíssem a fase estagiária, podendo finalmente obter acesso à respectiva profissão.
  Procuremos justificar melhor tal afirmação.
  A liberdade da escolha da profissão no caso aqui em causa foi comprometida pelo acto de suspensão da inscrição, na vertente do direito da obtenção dos requisitos legalmente exigidos para o exercício de determinada profissão – o requisito da frequência do estágio de advocacia – sendo isso um dos aspectos essenciais para garantir a realização daquela liberdade13, o que foi provocado pelo acto praticado com base na norma regulamentar que determina a suspensão do estágio pela reprovação em três avaliações finais. O interessado que se vê paralisado pela providência assim determinada, nada poderá fazer, ficando privado da qualquer oportunidade de, concluindo a fase do estágio indispensável, obter o acesso à profissão, por mais que se empenhe neste período de um ano.
  É verdade que para além da suspensão da inscrição como pena disciplinar, o regime do RAA não deixa de legitimar a tomada desta providência, designadamente, no artigo 22.º. Nos termos aí definidos, o estágio é suspenso pela verificação de qualquer das situações seguintes:
  - a pedido do interessado – artigo 12.º, n.º 1, alínea a) do RAA;
  - quando os estagiários não estejam no pleno gozo dos direitos civis, ou declarados incapazes de administrar as suas pessoas e bens por sentença transitada em julgado, ou estejam em situações de incompatibilidade ou inibição do exercício da advocacia – artigo 7.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), ex vi o artigo 12.º, n.º 1, alínea b) do RAA;
  - quando os estagiários sejam suspensos preventivamente ou condenados na pena de suspensão, por decisão transitada em julgado – artigo 12.º, n.º 1, alínea c) do RAA;
  - com a suspensão da inscrição do patrono do estagiário e a sua ausência da RAEM por mais de três meses por ano – artigo 30.º, n.º 2 do RAA.
  A suspensão nas primeira e quarta das situações acima indicadas, ou decorre da iniciativa do próprio estagiário, ou resulta da impossibilidade objectiva do prosseguimento do curso na sua componente prática, não constitui rigorosamente uma hétero-restrição imposta à liberdade da escolha da profissão do interessado.
  A suspensão determinada nas segunda e terceira situações impõe na realidade uma restrição ao direito fundamental, mas sem ter extravasado o âmbito elencado por artigo 23.º, n.º 1 do Estatuto do Advogado. Isto é, o que a norma regulamentar nesta parte diz é nada mais do que associar os efeitos suspensivos do estágio à falta dos pressupostos negativos, com a presunção da respectiva falta da idoneidade pela verificação das circunstâncias previstas na lei, a par da falta da idoneidade moral já indicada na alínea a), do n.º 1 do mesmo preceito legal. Como vimos atrás, se a falta do preenchimento desses requisitos negativos, quando verificada ao momento da inscrição, dá lugar à sua recusa, então naturalmente, se ocorrer na fase posterior, determinará a suspensão da qualidade do estagiário que fica vedado à inscrição como advogado. Em suma, trata-se de mera regulamentação complementar dos aspectos relativos a um universo dos estagiários cuja liberdade da escolha da profissão já se encontrava excluída ou suspensa nos termos previstos no Estatuto, pela ocorrência superveniente da falta do pressuposto negativo legal.
  Em relação à inclusão posterior da circunstância da “reprovação em três avaliações finais” como uma nova causa da suspensão do estágio, é, sem qualquer dúvida, patente a benevolência do respectivo autor que subjaz à emanação dessa norma, que se parte provavelmente do seu intuito de cumprir o dever do garante que lhe está incumbido, para que os estagiários possuam os conhecimentos técnicos-profissionais necessários ao exercício da profissão da advocacia, e que assim os cidadãos comuns que venham a recorrer aos seus serviços poderão confiar nas respectivas competências e capacidades.
  Porém, é fundamental ter em conta que tal “reprovação em três avaliações finais” que em entender do autor da norma, constituiria prova bastante da falta da necessária preparação científica dos estagiários, demonstrando a sua inaptidão profissional para assunção da respectiva tarefa, não se encontra tal falta configurada como um dos pressupostos negativos cuja verificação obsta à obtenção do requisito da frequência de estágio, e por conseguinte, ao acesso à profissão de advocacia, não constituindo uma causa de recusa da inscrição requerida. Não pode a mesma, por consequência, ser assumida como a causa legítima da suspensão de um estagiário já inscrito.
  Ou seja, naquele Estatuto do Advogado, além da falta da idoneidade moral, e os outros casos susceptíveis de revelar ainda a inaptidão do estagiário, nada se diz que a falta da preparação técnica científica demonstrativa da inaptidão profissional do candidato possa obstar também ao acesso à profissão ou à inscrição na AAM (Pode entender-se que tal exigência sobre a aptidão profissional esteja implícita no requisito legal da frequência do estágio, mas nesta linha, as reprovações nas avaliações finais do estágio já consubstanciam em si uma resposta negativa suficiente à inobservância dessa exigência por parte do candidato, não podendo as consequências dessa inaptidão se repercutir autonomamente para além da frequência do estágio). Agora, em vez de se afirmar que tal falta impediria a inscrição e de se confrontar assim, directamente com a proibição constitucional (da Lei Básica) tocante à reserva da lei (por exemplo, prevê-se que a reprovação em três avaliações finais determina o cancelamento da inscrição do advogado estagiário e além disso, a proibição do mesmo de reinscrever-se em novo curso pelo período de 1 ano – e.g. a norma do artigo 36.º, n.º 2 do Regulamento Nacional de Estágio da Ordem dos Advogados, na redacção que lhes foi conferida pela Deliberação n.º 3333-A/2009), dizer-se que a respectiva falta superveniente poderia levar à suspensão da inscrição, é continuar a actuar essencialmente no mesmo palco.
  Desse modo, estamos colocados perante uma ampliação normativa do elenco do artigo 23.º do Estatuto do Advogado, com a inclusão nele de uma categoria autónoma face às restantes já definidas, resultante da associação inovatória da reprovação nas avaliações finais à falta do pressuposto subjectivo negativo que nem sequer se encontra devidamente definido no Estatuto, mas determinante da suspensão da inscrição do estagiário, ainda que temporalmente limitada por período de apenas um ano, o que obviamente não foi consentido pela dita norma habilitante do artigo 19.º, n.º 3 do Estatuto.
  Deve-se sublinhar que com o que fica dito, não se pretende que a AAM se abstivesse de pôr quaisquer obstáculos à frequência do estágio: se esta pode regulamentar o curso de estágio, é óbvio que poderá reprovar os candidatos que não satisfaçam as exigências normativas por ela criadas. E além disso, pode sempre a mesma, se entender necessário, impor as novas exigências que se afiguram ser indispensáveis – e.g. acrescentar novos módulos na componente escolar, ou aumentar a exigência na correcção das provas, ou estender a duração mínima do curso – contudo, impor uma condição, associando à sua não verificação os efeitos que transcendem a simples reprovação do estagiário no exame realizado e que se repercutem no seu acesso à profissão é uma coisa bem diferente, é criar os novos pressupostos sem autorização legal.
  A que acresce o que se fala aqui é da liberdade da escolha da profissão em sentido restrito, e não o seu exercício livre, já que a actuação administrativa restritiva se projecta sobre o se “realização da substância” – “tocando o momento da escolha com a questão do se uma profissão é assumida, continuada ou abandonada, nomeadamente quando a lei faça depender o acesso a uma actividade profissional da posse de determinados requisitos14”, e não só o como “realização da modalidade” – onde ainda que fosse por via legislativa a ingerência, só podia existir para salvaguardar um bem colectivo particularmente importante – um “valor comunitário absoluto”, objecto de consagração constitucional. Muito menos admissível seria a respectiva restrição através da norma regulamentar como sucedeu no caso.
  Assim, a norma em apreço ao proceder a uma ampliação inovadora do elenco das causas restritivas da liberdade da escolha da profissão, sem ter sido legitimada pela norma habilitante prévia constante do artigo 19.º, n.º 3 do Estatuto do Advogado, intrometeu-se no domínio da reserva da lei da Assembleia Legislativa, definido pelas normas do artigo 35.º e o segundo parágrafo do artigo 40.º da Lei Básica e o artigo 6.º, alínea 1) da Lei n.º 13/2009, o que inquinou, por consequência, o acto impugnado que naquela se fundou.
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  Não obstante a procedência do primeiro fundamento do recurso, ainda veremos se a norma regulamentar considerada em si ainda violou os princípios fundamentais da proporcionalidade e da razoabilidade.
  O princípio da proporcionalidade encontra-se previsto no artigo 5.º, n.º 2 do CPA, sendo de cariz legal, e até constitucional, dado o seu carácter estruturante da noção de Estado de Direito ou de Região de Direito (conforme se entende na recente jurisprudência do Tribunal de Segunda Instância n.º 851/2021, de 3/3/2022), ou seja, da hierarquia supra-regulamentar, poderá ser mobilizado como parâmetro de controlo das actuações normativas dos órgãos administrativos. De acordo com o entendimento vertido na jurisprudência pacífica do direito comparado, o juízo de ilegalidade deve ser formulado sobre as normas regulamentares aplicadas, “quer no seu teor, quer na interpretação adoptada em eventual violação de normas ou princípios constitucionais” (ou de ordem supra-regulamentar) (cfr. a título de exemplo, no direito comparado, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 035590, de 13/3/2003).
  A norma regulamentar em apreço que estabelece a suspensão da inscrição dos estagiários pelo período de 1 ano na sequência da reprovação em três avaliações finais, emana do exercício do poder auto-regulatório de que a AAM dispõe, como referido atrás, poder esse conferido em concreto pelo n.º 3 do artigo 19.º do Estatuto do Advogado para “regulamentar o acesso à profissão e o estágio, podendo prever eventuais provas de admissão.”.
  Se consideramos, ao contrário do entendido anteriormente, que a medida de suspensão estatuída por aquela norma emitida ainda caiba no âmbito de autorização daquela norma habilitante, face à ampla liberdade que o legislador goza na auto-densificação dos critérios para o acesso à profissão definidos pelo Estatuto do Advogado, não se deve deixar de entender que apenas em caso de manifesta ou flagrante desproporcionalidade que surge por exemplo entre o sacrifício imposto ao particular pela dita medida e o benefício alcançado por ela para o interesse público, que o seu exercício esteja sujeito à fiscalização do tribunal.
  O que não ocorreu no caso dos autos, a suspensão da inscrição do estagiário pelo período de um ano, determinada pela norma regulamentar, para que este se prepare melhor para as provas de avaliação final a que terá de se sujeitar não é manifestamente desproporcional nem irrazoável em violação da exigência do artigo 5.º do CPA e do artigo 129.º da Lei Básica.».
  
  Do Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público e da Douta Sentença recorrida constam já em abundância todas as questões suscitadas relativamente à matéria dos autos e subsequente análise com base na Doutrina e Jurisprudência indicadas, ficando praticamente nada por dizer.
  Contudo, malogradamente a excelência técnica daquelas peças, concluíram os seus Dignos Autores em sentidos opostos.
  Pouco mais se poderá acrescentar, restando-nos sintetizar e concluir por uma das soluções apresentadas.
  
  A questão que importa responder limita-se a saber se a norma constante do nº 10 do artº 35º do Regulamento do Acesso à Advocacia aprovado em sessões de 11 e 16 de Maio de 2017 pela Assembleia Geral da Associação Pública dos Advogados de Macau, que impõe automaticamente a suspensão da inscrição como advogado estagiário pelo período de um ano como consequência da reprovação em três avaliações finais, cabe no âmbito da habilitação legal conferida pelo nº 3 do artº 19º do Estatuto do Advogado – aprovado pelo Decreto-Lei nº 31/91/M de 6 de Maio - à Associação dos Advogados de Macau de poder regulamentar o acesso à profissão e o estágio, podendo prever eventuais provas de admissão.
  Contrariamente ao sustentado no Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público pensamos que a resposta se encontra em jurisprudência comparada onde esta questão foi também objecto de estudo, a saber no indicado Acórdão nº 89/2012 do Tribunal Constitucional Português.
  Naquele arresto se concluiu nos seguintes termos:
  «Em suma: as normas regulamentares editadas pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados eliminam a faculdade de inscrição no curso de advogado estagiário pelo período de três anos em consequência da: i) obtenção de classificação negativa na prova de aferição realizada no âmbito da repetição da fase de formação inicial ou falta reiterada ao teste escrito que a integra (artigo 24.º, n.os 3 e 4); ii) verificação de falta de aproveitamento no âmbito da repetição da fase de formação complementar (artigo 36.º, n.º 2, 2.ª parte); e iii) reprovação na prova oral de repetição realizada no âmbito da repetição da fase de formação complementar (artigo 42.º, n.º 5, 2.ª parte). 
  Assim, estas normas, ao suspenderem temporariamente a faculdade de acesso ao estágio de advocacia a uma categoria de licenciados em Direito integrada no universo dos sujeitos candidatáveis à inscrição naquela associação tal como este se encontra configurado na lei estatutária, comprimem inovatoriamente projeções nucleares do direito à livre escolha de uma profissão (realce e sublinhados nossos), razão pela qual só poderiam constar de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei emitido ao abrigo de uma lei de autorização legislativa [cfr. artigo 165.º, n.º 1, alínea b), e artigo 47.º, n.º 1, da Constituição] e, não, como se verifica suceder, de Regulamento emitido por aquele Conselho, ainda que ao abrigo da previsão da alínea g) do n.º 1 do artigo 45.º do respetivo Estatuto.
  Deverá concluir-se, assim, pela inconstitucionalidade das normas constantes dos n.os 3 e 4 do artigo 24.º; 2.ª parte do n.º 2 do artigo 36.º e 2.ª parte do n.º 5 do artigo 42.º, todos do Regulamento Nacional de Estágio da Ordem dos Advogados (Regulamento n.º 52-A/2005, de 1 de agosto), na redação que lhes foi conferida pela Deliberação n.º 3333-A/2009, de 16 de dezembro, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados.».
  Contrariamente, também, ao que se sustenta no Douto Parecer entendemos que aquela conclusão não decorre da circunstância de em Portugal a lei não prever que o ingresso no estágio fosse condicionado à aprovação em prova de admissão, situação que levou a que aquele Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 3/2011 declarasse com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do artº 9ºA nº 1 e 2 do regulamento Nacional do Estágio, da Ordem dos Advogados, na redacção aprovada pela Deliberação nº 3333-A/2009, de 16 de Dezembro do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, Acórdão esse – o nº 3/2011 – que é citado neste outro nº 89/2012.
  A inconstitucionalidade declarada no citado Acórdão nº 89/2012 em jurisprudência comparada emerge claramente da violação do direito à livre escolha de uma profissão na medida em que “comprimem” esse direito impedindo-o por um período temporal de três anos.
  Tal direito – à livre escolha de uma profissão – é configurado nos mesmos termos no artº 35º da Lei Básica a qual é equiparada a Lei Constitucional
  Note-se que naquele mesmo Acórdão se alude ao decidido no Acórdão nº 3/2011 – também este de jurisprudência comparada do mesmo Tribunal Português - sendo que a questão da suspensão por 3 anos em nada decorre da antes declarada inconstitucionalidade quanto à exigência de prova de admissão para ingresso no estágio.
  Salvo melhor opinião pensamos que em face do entendimento preconizado na citada jurisprudência comparada pouco mais haverá a dizer.
  A possibilidade conferida pela habilitação legal à Associação dos Advogados de poder “prever provas de admissão” para o acesso à profissão não se confunde com a possibilidade legal de aplicar sanções a quem não obtiver aprovação nessas mesmas provas de admissão.
  Perante a erudição dos argumentos trazidos à colação nos autos, parece-nos que há um outro de excepcional simplicidade e que decorre da lógica de quem não obtiver aproveitamento nas provas de admissão sofre a consequência de não poder aceder à profissão, nada mais havendo a regular para além disso.
  
  Estabelecer-se um período durante o qual o candidato a determinado profissão não pode efectuar as provas de admissão de acesso à mesma em virtude de determinado facto consiste numa punição/castigo que não se confunde com a realização de provas de admissão e que, podendo em teoria ser prevista, tem de resultar de lei habilitante por quem tem competência para o efeito o que no caso não acontece.
  Destarte, face ao exposto e nada mais havendo a acrescentar, acrescido dos fundamentos constantes da decisão recorrida aos quais aderimos nos termos do nº 5 do artº 631º do CPC “ex vi” nº 1 do artº 149º do CPAC, impõe-se confirmar a decisão recorrida negando provimento ao recurso.
  
III. DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
  
  Sem custas por delas estar isenta a Recorrente.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 24 de Julho de 2025
  Rui Pereira Ribeiro
  (Relator)
  Seng Ioi Man
  (Primeiro Juiz-Adjunto)
  Fong Man Chong
  (Segundo Juiz-Adjunto)
  Mai Man Ieng
  (Procurador-Adjunto do Ministério Público)

1 Apesar de ser ainda incluída na impugnação deduzida pelo Recorrente a norma do artigo 35.º, n.º 11 do RAA (conforme se alega nos artigos 24.º e 25.º da petição inicial), a mesma não foi servida como fundamento normativo para o acto recorrido, cuja legalidade não se apreciará aqui.
2 No entanto, não podemos desconhecer que a pronúncia incidental foi emitida por douto Acórdão do Tribunal de Segunda Instância no processo n.º 775/2014, de 14/4/2016, designadamente, na nota de rodapé n.º 4, segundo a qual se deve entender ser tacitamente eliminada a competência regulamentar da AAM deferida pela norma do artigo 19.º, n.ºs 2 e 3 do Estatuto do Advogado, por ser incompatível com as normas dos artigos 92.º e 129.º da Lei Básica que tenham reservado tal competência ao Governo da RAEM, de cuja estrutura não faz parte a AAM. Em nosso entender, o legislador da Lei Básica não terá ido tão longe como pensou, ao ponto de retirar todo o poder regulamentar à AAM, por simples razão de ter já salvaguardo, na mesma norma, expressamente “Com base no sistema anteriormente vigente em Macau”(可參照原在澳門實行的辦法) – o que tornou ainda mais patente a ideia da continuidade da vigência da legislação anterior, tal como expressa no disposto do artigo 8.º da Lei Básica da RAEM (“As leis, os decretos-leis, os regulamentos administrativos e demais actos normativos previamente vigentes em Macau mantêm-se, salvo no que contrariar esta Lei ou no que for sujeito a emendas em conformidade com os procedimentos legais, pelo órgão legislativo ou por outros órgãos competentes da Região Administrativa Especial de Macau.”) e ainda do artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 1/1999 (Lei de Reunificação), sempre reiterada nos diversos artigos desta Lei (e.g. os artigos 18.º, 19.º, 98.º, 100.º e 129.º). Em obediência a tal ideia mestra, a não ser que haja alterações legislativas tendentes a abandonar o modelo anterior já adoptado pelo Estatuto de Advogado, deve impor-se o contínuo reconhecimento do estatuto da AAM que lhe fora conservado pela Lei Básica, com todos os poderes que lhe advenham desse estatuto, inclusivamente os de representação e de auto-regulamentação. Ainda mais pode afirmar-se que neste raciocínio, o Governo da RAEM por facto de ter optado por manutenção do regime anterior, em vez da sua alteração ou reformulação, não deixou de exercer aquela faculdade normativa conferida pelo artigo 92.º, no sentido de ter estabelecido “disposições para o exercício da profissão forense, na Região Administrativa Especial de Macau”. Aliás, parece ter feito a alusão no mesmo sentido – a conservação da tradição portuguesa anterior – o Professor Wang Yu(王禹)quando afirmou “本條是對澳門特別行政區律師制度的規定。澳門原有律師制度,是根據葡萄牙法律傳統建立起來的。《中葡聯合聲明》附件一第四小節對當地和外來律師的執業作了規定。本條規定澳門特區政府可參照原在澳門實行的辦法,對當地和外來律師在澳門特別行政區的執業作出規定,這與本法第129條有關澳門特區政府自行確定專業制度規定相銜接,也注意到了原有在澳執業律師的情況”(王禹,澳門基本法條文簡釋,澳門律師公會,第58頁至第59頁).
3 Cfr. neste sentido, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, pp. 261 a 262;蔣朝陽,《澳門基本法與澳門特別行政區法治研究》─職業自由、工作自由與澳門專業制度立法,澳門基金會,第221頁至第225頁.
4 Cfr. por exemplo, João Pacheco de Amorim, Direitos Fundamentais e Ordens Profissionais, em especial, Do Direito e Inscrição nas Ordens, pp. 295 a 296.
5 Veja-se Luo Weijian(駱偉建),《澳門特別行政區基本法概論》,第132頁至第133頁.
6 Neste sentido, a legitimidade das restrições impostas à liberdade de escolha do emprego decorre das diversas ordens – finalística (em razão do interesse público e do bom costume), axiológica (em razão da protecção dos outros direitos fundamentais), e económica, conforme o Professor Jiang Chaoyang(蔣朝陽), obra cit., pp. 230 a 231.
7 Veja-se quanto ao sentido e alcance desse princípio à luz das normas constantes da Lei Básica, Acórdão do Tribunal de Última Instância n.º 28/2006, de 18/7/2007.
8 Luo Weijian (駱偉建),《澳門特別行政區基本法概論》,第100頁至第102頁.
9 Conforme se alude no dito Acórdão do Tribunal de Última Instância, na nota de rodapé n.º 110, é aqui defensável a configuração da “reserva de regulamento ”.
10 Veja-se, Jiang Chaoyang(蔣朝陽), obra cit., pp. 234 a 239.
11 Cfr. Vital Moreira, Auto-Regulação Profissional e Administração Pública, Almedina, p. 130.
12 A norma essa que comporta um sentido semelhante àquele que resulta da norma constante do artigo 24.º, n.º 4 do Regulamento Nacional de Estágio da Ordem dos Advogados, na redacção que lhes foi conferida pela Deliberação n.º 3333-A/2009, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, onde se diz “O advogado estagiário que não passe à fase complementar, na sequência da repetição da fase de formação inicial, ficará impedido de se reinscrever em novo curso de estágio pelo período de três anos”, já foi declarada inconstitucional pelo Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 89/2012.
13 J.J. Gomes Canotilho Vital Moreira, obra cit., p. 262. “A liberdade de escolha de profissão tem vários níveis de realização, não podendo naturalmente consistir apenas na liberdade de poder escolher livremente a profissão desejada. Os principais momentos são os seguintes: a) obtenção das habilitações (académicas, técnicas, etc.) necessárias ao exercício da profissão; b) ingresso na profissão; c) exercício da profissão; d) progresso na carreira profissional. A liberdade de escolha de profissão garante constitucionalmente todos estes aspectos”.
14 João Pacheco de Amorim, Direitos Fundamentais e Ordens Profissionais, em especial, Do Direito e Inscrição nas Ordens, pp. 296 a 300.
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