REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA
Processo n.º:51/2024
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão:24 de Julho de 2025
Recorrente:(A)
Entidade Recorrida:Secretário para a Segurança
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I. RELATÓRIO
(A), Recorrente, melhor identificada nos autos, veio interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Segurança de 01 de Novembro de 2023 o qual determinou a revogação da autorização de residência que havia sido concedida a Recorrente, formulando as seguintes conclusões:
1. No dia 15 de Dezembro de 2023 foi a Recorrente notificada do despacho proferido em 1 de Novembro de 2023 pelo Exmo. Secretário para a Segurança, o qual determinou a revogação da autorização de residência que havia sido concedida a Requerente, nos termos da cláusula 1 da alínea 1) do n.º 2 do antigo 43.º da Lei n.º 16/2021.
2. Salvo o devido respeito, não pode a Recorrente conformar-se com a decisão recorrida por entender que a mesma incorre no vício de violação de Lei, previsto no artigo 21.º, n.º 1, alínea d) do CPAC.
3. De acordo com o douto despacho recorrido, a revogação da autorização de residência da Recorrente ficou a dever-se ao facto da mesma ter sido condenada á prática de crime em Macau e, por essa razão, ter ficado a confiança das autoridades administrativas abalada no que respeita ao compromisso a que a Recorrente se havia vinculado, relativamente, ao cumprimento das Leis da RAEM.
4. O que, por sua vez, alega a Entidade Recorrida, não afastam o receio de que a referida conduta se volte a repetir.
5. Nos termos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 113.º do CPA, a fundamentação deve sempre constar do acto administrativo, quando exigível.
6. Por sua vez, o n.º 1 do artigo 114.º do CPA impõe à Administração um dever de fundamentar os actos administrativos que restrinjam ou afectem por qualquer modo direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como os despachos que negam provimento a recursos hierárquicos, conforme as alíneas a) e b) do referido preceito.
7. Da leitura destes preceitos, retira-se a obrigatoriedade da Administração em fundamentar o despacho que decidiu pela revogação da autorização de residência da Recorrente.
8. O dever de fundamentação visa assegurar a legalidade dos actos administrativos no sentido em que, estando obrigada a fundamentar, a Administração pondera com mais cuidado os interesses em jogo - os factos ocorridos, as normas jurídicas aplicáveis, a justiça e a adequação da decisão a tomar -, de modo a evitar decisões desequilibradas e arbitrárias.
9. A fundamentação deve pois ser clara, congruente e suficiente, sob pena de se considerar a decisão não fundamentada e, consequentemente, anulável, nos termos do disposto no artigo
124.º do CPA.
10. Salvo o devido respeito, o douto despacho recorrido pese embora alegue a “a prática de crime por parte da Recorrente” nada diz sobre as razões de facto concretas que foram tidas na tomada de decisão da Entidade Recorrida e que, consequentemente, determinaram a revogação da autorização de residência da mesma.
11. A simples referência da “prática de crime” feito sobre o Recorrente pela Entidade Recorrida não identifica as razões de facto concretas, da decisão tomada! Igualmente, e salvo o devido respeito, não basta a mera referência ao conceito indeterminado de “perigosidade”, deixando-nos a Autoridade Administrativa sem saber a que perigosidade se referia e porquê tal perigosidade seria susceptível de nos fazer chegar à conclusão de que deveria ser revogada a autorização de residência da Recorrente na RAEM.
12. Nestes termos, e salvo o devido respeito, não podia a Administração concluir, sem mais, no douto despacho recorrido, pela perigosidade da Recorrente,
13. Era necessário justificar, apoiando-se em factos concretos e nas normas legais aplicáveis, porque é que o facto da Recorrente ser Ré primário não prejudicou o juízo de perigosidade feito sobre o Recorrente, bem como justificar porque é que avaliada a sua personalidade e condição pessoal se considerou o mesmo perigoso para a segurança e ordem públicas da RAEM. Este é, pois, um conceito indeterminado que carecia de concretização!
14. Donde que, salvo devido respeito, deveria a Entidade Recorrida, socorrendo-se de factos concretos e objectivos, ter procurado preencher o conceito indeterminado de perigosidade.
15. Não o tendo feito, estamos em crer que a decisão constante do douto despacho recorrido, para além de não se encontrar devidamente fundamentada, foi tomada de acordo com critérios subjectivos, de impressão ou emoção pessoal da Entidade Recorrida, e não de acordo com critérios objectivos.
16. Os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, princípios jurídicos fundamentais a que as actividades administrativas devem respeito, constituem limites internos da discricionariedade conferida pela Lei à Administração.
17. No que diz respeito ao princípio da proporcionalidade, encontra-se o mesmo previsto no n.º 2 do artigo 5.º do CPA, segundo o qual “As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar” - destacado nosso.
18. Deste modo, este princípio impõe a proibição do excesso e a necessidade de adequação entre o meio empregue e o fim a alcançar, numa tripla vertente: adequação, necessidade e equilíbrio.
19. No caso em apreço, se compararmos os interesses prejudicados da Recorrente com os interesses de ordem e tranquilidade públicas pretendidos pela Entidade Recorrida, verificamos, salvo o devido respeito, que existe uma manifesta violação do princípio da proporcionalidade, sendo a medida de revogação da autorização de permanência na RAEM aplicada à Recorrente desadequada, desnecessária e desproporcional.
20. De acordo com os (poucos) factos indicados no douto despacho recorrido, a Recorrente terá sido condenada na prática de crime em Macau. Só estes factos, sem o apoio de mais qualquer outros elementos que possam suscitar aspectos negativos da Recorrente, não são suficientes para considerar que a mesma constitui um perigo para a ordem e segurança públicas da RAEM.
21. Pelo que, salvo o devido respeito, revogar a autorização de residência da Recorrente na RAEM, com fundamento na sua perigosidade para a ordem e segurança públicas da RAEM, contraria manifestamente o equilíbrio entre os interesses prejudicados e o fim a prosseguir exigidos pelo princípio da proporcionalidade.
22. A revogação da autorização de residência da Recorrente na RAEM implica a limitação de todos os direitos a eles inerentes tais como a liberdade de se deslocar e fixar em qualquer parte da Região Administrativa Especial de Macau, de viajar, sair da Região e regressar a esta, da liberdade de emprego, da liberdade de exercer actividades de educação, investigação académica, assistência médica entre outras,
23. Bem como, tenha a Recorrente que permanecer no estatuto desempregada, por não lhe ser possível desempenhar a sua actividade profissional, único meio do seu sustento e do sustento do agregado familiar de cuja subsistência dela dependem
24. Isto sem olvidar que, tendo a Recorrente o seu centro de vida na RAEM, e constituir a única fonte de sustento do seu agregado familiar, composto pelo seu marido e animais de estimação.
25. A presença da Recorrente no território é pois essencial para que possa continuar a desempenhar a sua actividade laboral e assim prover ao seu sustento e ao sustento do seu agregado familiar.
26. Neste sentido, caso seja revogada a sua autorização de residência, a Recorrente será “obrigada” a permanecer no estatuto de desempregada, o que criará consequências gravosas por não lhe ser possível desempenhar a sua actividade profissional, único meio do seu sustento e do sustento do agregado familiar de cuja subsistência dela dependem.
27. Consequentemente, determinando a saída da Recorrente da RAEM, o que acarretará custos pessoais, sociais, emocionais e económicos demasiado elevados a suportar pela Recorrente,
28. Donde que, parece resultar claro que da ponderação dos interesses em jogo - estabilidade familiar e financeira versus segurança e ordem públicas - a medida de revogação da autorização de residência na RAEM aplicada pela Administração à Recorrente se revelou desadequada, desnecessária e desproporcional,
29. Sendo evidente que, salvo o devido respeito, os direitos da Recorrente foram limitados inadequadamente em comparação com o fim de proteger a ordem e a segurança públicas da RAEM quando foi decretada pela Entidade Recorrida a medida de revogação da autorização de residência.
30. De facto, a medida de revogação da autorização de residência na RAEM, enquanto medida preventiva, tem por fim impedir que da eventual actividade de certos particulares provenham danos para a sociedade ou para outros particulares.
31. Não é, por conseguinte, uma medida punitiva mas sim uma medida de natureza securitária, não expiatória, aplicável a não-residentes por razões de segurança e ordem pública. Porém, no presente caso, não se vislumbra que a Recorrente venha a pôr em risco a ordem pública da RAEM, nem tão pouco a segurança dos que aqui residem e trabalham.
32. Assim, concluímos estar perante um caso de erro manifesto por parte da Entidade Recorrida, o que configura uma violação do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 5.º , n.º 2 do CPA, e do princípio da justiça, previsto no artigo 7.º do CPA,
33. Termos em que, deverá o douto despacho recorrido ser anulado por se encontrar inquinando no vício de violação de lei, previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 21.º do CPAC, conforme o preceituado no artigo 124.º do CPA, e que aqui se invoca para os devidos efeitos legais, devendo, como consequência, ser revogada a medida de revogação da autorização de residência na RAEM aplicada à Recorrente.
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Regularmente citada, veio a Entidade Recorrida apresentar a sua contestação, formulando as seguintes conclusões:
- A Recorrente impugna o Despacho do Secretário para a Segurança, datado de 01 de Novembro de 2023, que revogou a Autorização de Residência concedida em 05 de Dezembro de 2018 para reagrupamento familiar com o seu cônjuge titular de bilhete de identidade de residente permanente de Macau,
- A Recorrente foi condenada por crime previsto na Lei n.º 17/2009, Proibição da produção, do tráfico e do consumo ilícitos de estupefacientes e de substancias psicotrópicas, com a pena de prisão efectiva de dois anos, facto que nos termos conjugados da subalínea 1) da alínea 1) do n 2.° do artigo 43.° com a alínea 1) do n.° 2 do artigo 23.°, todos da Lei n. 16/2021, constitui uma das formas possíveis de demonstração da existência de perigo para a segurança ou ordem públicas,
- A Administração confrontada com a conduta criminal da Recorrente e o potencial de perigo daí resultante para a segurança e ordem públicas só poderia tomar uma de duas decisões, manter ou revogar a Autorização, decidiu, no confronto dos valores em presença, atribuir supremacia ao interesse público, revogando a Autorização de Residência,
- A actuação da Administração, exercida no âmbito de poder discricionário, demonstra-se, não só adequada como devida, em face da supremacia do interesse público a salvaguardar,
- Existe total correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os requisitos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração agiu, não se verificando qualquer erro, manifesto ou de qualquer outra natureza,
- O acto administrativo impugnado é necessário, proporcional e encontra-se adequadamente fundamentado,
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Devidamente notificadas, a Recorrente apresentou as suas alegações facultativas a fls. 55 a 64, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
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Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer com o seguinte teor:
Nos presentes autos, a recorrente solicitou a anulação do Despacho exarado pelo Exmo. Senhor Secretário para a Segurança na Informação Complementar n.º300074/SRDARPREN/2023P (doc. de fls.384 a 387 do P.A.), traduzido em revogar a autorização da residência temporária dela.
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1. Da arguida falta de fundamentação
Sustentando a sua pretensão de anulação, a recorrente invocou, em primeiro lugar, a falta de fundamentação. O que impõe ter presente que ela recebeu a notificação do texto em chinês do despacho recorrido (doc. de fls.22 dos autos, dado por integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos).
É bom de ver que o art.115º do CPA estabelece 5 requisitos cumulativos da fundamentação expressa, quais são: a explicitude traduzida na declaração expressa; a contextualidade no sentido de constar da mesma forma em que se exterioriza a decisão tomada; a clareza como oposta a obscuridade; a congruência e a suficiência (Lino Ribeiro e José Cândido de Pinho: Código do Procedimento Administrativo de Macau Anotado e Comentado, pp.637 a 642).
E vale a pena recordar a prudente jurisprudência que ensina: A fundamentação é um conceito relativo que depende do tipo legal do acto, dos seus termos e das circunstâncias em que foi proferido, devendo dar a conhecer ao seu destinatário as razões de facto e de direito em que se baseou o seu autor para decidir nesse sentido e não noutro, não se podendo abstrair da situação específica daquele e da sua possibilidade, face às circunstâncias pessoais concretas, de se aperceber ou de apreender as referidas razões, mormente que intervém no procedimento administrativo impulsionando o itinerário cognoscitivo da autoridade decidente. (a tírulo do direito comparado, cfr. Acórdão do STA de 10/03/1999, no processo n.º44302)
Em esteira, e salvo devido respeito pela opinião diferente, parece-nos que não se verifica in casu a arrogada falta de fundamentação. Pois bem, o despacho em questão alude precisamente, como sua base legal, à subalínea 1) da alínea 1) do n.º2 do art.43.º da Lei n.º16/2021.
Para além disso, é de frisar que a recorrente recebeu as notificações tanto do Acórdão prolatado do Processo n.ºCR4-22-0166-PCC, como do Acórdão tirado no seu Processo n.º185/2023 pelo Venerando TSI. O que torna patente e irrefutável que ela podia e devia compreender o concreto significado da expressão de “prática de crime” no despacho em causa.
De tudo isto resulta seguramente que o supramencionado despacho esclareceu à recorrente os fundamentos de facto e de direito subjacentes à decisão da revogação da autorização da residência temporária dela. E objectivamente avaliando, parece-nos que a fundamentação desse despacho é clara e logicamente congruente, e permite-lhe conhecer cabalmente os fundamentos de facto e de direito da sobredita decisão.
De outro lado, vale a pena apontar que a petição inicial demonstra que em boa verdade, a recorrente compreendeu os referidos fundamentos de facto e de direito, mas não concordou com a avaliação e a valoração realizadas pela Administração da sua conduta penalmente punida. O que reforça que a arguição da falta de fundamentação é insubsistente.
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2. Da arrogada violação dos princípios da proporcionalidade de justiça
A subalínea 1) da alínea 1) do n.º2 do art.43.º da Lei n.º16/2021 estabelece categoricamente que a autorização de residência na RAEM pode ser revogada, por despacho do Chefe do Executivo, quando o respectivo titular, após a obtenção da autorização de residência, incorrer em alguma das circunstâncias previstas no n.º2 do art.23.º, se o crime em causa for punível com pena de prisão superior a 1 ano (sublinhas nossas).
Acontece in casu que no Acórdão tirado no Processo n.º185/2023 e já transitado em julgado, o Venerando TSI confirmou o aresto proferido no Processo n.ºCR4-22-0166-PCC, tendo este condenado a recorrente na pena de dois anos de prisão efectiva, em virtude de ela ter praticado, como cúmplice e na forma consumada, um crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas p.p. pelo n.º1 do art.8.º da Lei n.º17/2009 na redacção introduzida pelas Leis n.º4/2014, n.º10/2016 e n.º22/2020, cuja moldura penal é da pena de prisão de 5 a 15 anos.
Salvo merecido respeito pela opinião diversa, e à luz da doutrina preconizada pelos ilustres administrativistas Lino Ribeiro e José Cândido de Pinho (obra supra citada, pp. 82 a 99), não podemos deixar de entender que o despacho in questio não infringe os princípios da proporcionalidade e de justiça, é infundada a arguição da violação destes princípios.
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3. Do invocado erro manifesto
Na petição, lêem-se as seguintes conclusões: 31. Porém, no presente caso, não se vislumbra que a Recorrente venha a pôr em risco a ordem pública da RAEM, nem tão pouco a segurança dos que aqui residem e trabalham. 32. Assim, concluímos estar perante um caso de erro manifesto por parte da Entidade Recorrida, o que configura uma violação do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 5.º, n.º2 do CPA, e do princípio da justiça previsto no artigo 7.º do CPA.
Ora, a lógica destas duas conclusões patenteia nitidamente que o chamado “erro manifesto” dá luz à arrogada violação dos dois princípios supra mencionados e, em certa medida, ambos assumem duas faces da mesma moeda. Daí flui que a inexistência da reclamada violação destes dois princípios conduz cabalmente ao caimento daquele erro manifesto.
Seja como for, colhemos modestamente que não padecem do erro manifesto a valoração e a subsunção operadas pela Administração Pública da conduta pela qual a recorrente foi penalmente condenada no Processo n.ºCR4-22-0166-PCC.
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Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso contencioso.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não há excepções ou outras questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito do pedido.
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III. FACTOS
Dos autos e do Processo Administrativo (P.A.) apensado, resulta assente a seguinte factualidade com interesse para o mérito da causa:
1. Em 05 de Dezembro de 2018 foi concedida à Recorrente autorização de residência para efeitos de agrupamento familiar com o seu cônjuge, (B), residente em Macau, a qual tinha validade de um ano. (fls. 33, 37 e 319 do PA)
2. Durante o período de tempo compreendido entre Dezembro de 2018 e Dezembro de 2019, a Recorrente e o seu marido apenas permaneceram em Macau, por 36 e 88 dias, respectivamente. Face à falta de coabitação e de comunhão de vida entre a Recorrente e o seu marido em Macau, o Sr. Secretário para a Segurança, por despacho de 03 de Março de 2020, indeferiu o pedido de renovação da autorização de residência apresentado pela Recorrente. (fls. 90 a 92 do PA)
3. Em 20 de Julho de 2020 foi concedida novamente à Recorrente autorização de residência, tendo a autorização sido sucessivamente renovada até 20 de Julho de 2023. (fls. 319 do PA)
4. O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 20 de Janeiro de 2023, condenou a Requerente, pela prática, como cúmplice e na forma consumada de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 8.º, n.º 1 da Lei n.º 17/2009, na pena de 2 (dois) anos de prisão efectiva. (fls. 205 a 253v do PA)
5. Desse Acórdão recorreu a Requerente para o Tribunal de Segunda Instância que, por seu Acórdão de 27 de Abril de 2023, negou provimento ao recurso. (fls. 174 a 204v do PA)
6. O referido Acórdão do Tribunal de Segunda Instância transitou em julgamento em 15 de Maio de 2023. (fls. 254 do PA)
7. Tendo em consideração que a prática do crime por parte da Requerente poderia levar à revogação da autorização de residência, foi a Requerente notificada para se pronunciar sobre o assunto, tendo a mesma respondido nos termos constantes de fls. 318 a 333 do PA.
8. Em 01 de Novembro de 2023, o Sr. Secretário para a Segurança, proferiu o despacho no teor seguinte determinando a revogação da autorização de residência em Macau anteriormente concedida:
“A prática de crimes ou a sua preparação na RAEM constituem-se como formas possíveis da demonstração da existência de perigo abstracto para a segurança ou ordem públicas.
Sendo certo que a arguida é primária, não é menos certo que o seu comportamento acabou por derrubar a confiança que havia sido depositada que observaria as normas da RAEM, tal como previamente se havia comprometido, e nessa medida é igualmente incontestável que tal circunstância criminal não invalida o juízo de perigosidade que objectivamente recai sobre si, nem o receio de continuação da prática de actos dessa índole.
Os interesses individuais não devem prevalecer sobre os interesses públicos e assim, nos termos e para os efeitos da subalínea 1) da alínea 1) do número 2 do artigo 43.º da Lei n.º 16/2021, decido revogar a autorização de residência anteriormente concedida a (A).”
9. A Recorrente foi notificada da decisão acima referida em 15 de Dezembro de 2023 (fls. 444 do PA).
10. Em 16 de Janeiro de 2024, a Recorrente interpôs o presente recurso contencioso.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO
Pela prática do acto recorrido foi determinada a revogação da autorização de residência na RAEM, concedida à Requerente em 2020 e sucessivamente renovada até 20 de Julho de 2023.
Não se conformando com essa decisão veio a Requerente interpor o presente recurso contencioso pedindo a sua anulação, com a invocação dos vícios seguintes: vício de fundamentação, e vício de violação de lei por violação dos princípios da proporcionalidade e da justiça.
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- Vício de fundamentação
Nos termos do disposto no art. 115 n.º 1 do CPA, “a fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas que constituem neste caso parte integrante do respectivo acto.”
O n.º 2 do mesmo artigo prevê que “equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.”
Afirma-se, desde logo, que o dever legal imposto à Administração de fundamentar os seus actos visa garantir que o destinatário do acto administrativo – cujos direitos ou interesses legalmente protegidos possam ser afectados – possa tomar pleno conhecimento dos fundamentos de facto e de direito que motivaram a decisão tomada num determinado sentido e não noutro. Com efeito, apenas quando lhe é assegurado o acesso às razões subjacentes ao acto é que se encontra em condições de optar entre a sua aceitação ou a impugnação por via devida.
Cumpre salientar, contudo, que o CPA não exige da Administração uma fundamentação exaustiva, bastando, para o cumprimento do dever legalmente imposto, uma exposição sucinta dos fundamentos de facto e de direito que sustentam a sua decisão.
No caso em apreço, o acto recorrido fundamenta-se nos termos seguintes:
“A prática de crimes ou a sua preparação na RAEM constituem-se como formas possíveis da demonstração da existência de perigo abestracto para a segurança ou ordem públicas.
Sendo certo que a arguida é primária, não é menos certo que o seu comportamento acabou por derrubar a confiança que havia sido depositada que observaria as normas da RAEM, tal como previamente se havia comprometido, e nessa medida é igualmente incontestável que tal circunstância criminal não invalida o juízo de perigosidade que objectivamente recai sobre si, nem o receio de continuação da prática de actos dessa índole.
Os interesses individuais não devem prevalecer sobre os interesses públicos e assim, nos termos e para os efeitos da subalínea 1) da alínea 1) do número 2 do artigo 43.º da Lei n.º 16/2021, decido revogar a autorização de residência anteriormente concedida a (A).”
Com uma simples leitura do texto do acto recorrido, salta à vista que as razões que alicerçam a decisão da Entidade Recorrida. No seu ponto de vista, não obstante a Requerente ser primária, o seu comportamento comprometeu a confiança de que observaria as normas vigentes da RAEM. Neste contexto, o juízo de perigosidade e o receio de reiteração de condutas da mesma índole constituem os fundamentos determinantes da decisão tomada, que optou por prevalecer os interesses públicos em detrimento dos interesses individuais da Requerente.
Não podemos deixar de entender que a Entidade Recorrida já cumpriu o seu dever de fundamentação em consonância com que exige o art. 114º do CPA, e daí que, é de julgar improcedente este fundamento de recurso.
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- Violação dos princípios da proporcionalidade e da Justiça
Sustenta também a Recorrente que, fazendo uma ponderação dos interesses em jogo – estabilidade familiar e financeira versus segurança e ordem públicas, mostra-se desadequada, desnecessária e desproporcional a medida de revogação da autorização de residência na RAEM aplicada pela Administração à Recorrente. No seu entender, está-se perante um caso de erro manifesto por parte da Entidade Recorrida, o que configura uma violação do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 5.º , n.º 2 do CPA, e do princípio da justiça, previsto no artigo 7.º do CPA.
Vejamos.
Nos termos do disposto no art. 5º n.º 2 do CPA, “as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar.”
No caso em apreço, é o disposto no artigo 43.º, n.º 2, alínea 1), subalínea 1), da Lei n.º 16/2021 a base legal invocada pela Entidade Recorrida, onde se estabelece que a autorização de residência na RAEM pode ser revogada, quando o respectivo titular, após a obtenção da autorização de residência, incorrer em alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 23.º, e se o crime em causa for punível com pena de prisão superior a 1 ano.
O art. 23º n.º 2 da Lei n.º 16/2021, por sua vez, prevê que:
“2. Pode ser recusada também a entrada na RAEM, bem como os correspondentes pedidos de visto e autorização, a quaisquer outras pessoas não residentes igualmente consideradas não admissíveis, por constituírem perigo para a segurança ou ordem públicas, designadamente, aquelas:
1) Que tenham sido alvo de pena ou medida de segurança privativa de liberdade, aplicada por tribunal penal da RAEM ou do exterior, contanto que, neste caso, a conduta em causa constitua crime à luz da lei da RAEM;
2) Relativamente às quais existam razões sérias para crer que praticaram actos tipificados como crimes ou que tencionam cometer actos dessa natureza.”
Antes de mais, não há dúvida que os pressupostos consagrados nas normas supra citadas, indispensáveis à prolação de uma decisão de revogação da autorização de residência, estão todos verificados, considerando que foi aplicada à Requerente uma pena efectiva de prisão de dois anos, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível nos termos do artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009, cuja moldura penal é de cinco a quinze anos de prisão.
Mas ainda assim, resulta igualmente das normas acima referidas que a Administração não está vinculada a uma única solução decisória; antes, pelo contrário, o uso do verbo “pode” evidencia, de forma inequívoca, que é conferido à Administração um poder discricionário, podendo esta, em função das especificidades de cada caso concreto, adoptar a decisão que melhor salvaguarde a segurança e a ordem públicas.
No Acórdão deste TSI, de 15 de Abril de 2021, proc. n.º 673/2020, aafirmou-se o seguinte:
“O poder de revogar a autorização de residência é um poder discricionário a cargo da Administração.
Actualmente é pacífico o entendimento de que mesmo no exercício de poderes discricionários pode haver vício de violação do princípio de igualdade e proporcionalidade quando se ofenderem «os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, designadamente os princípios constitucionais: o princípio da imparcialidade, o princípio da igualdade, o princípio da justiça, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa-fé, etc.» – Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit a pág. 352.
Para Vitalino Canas o princípio da proporcionalidade é um «princípio geral de direito, constitucionalmente consagrado, conformador dos actos do poder público e, em certa medida, de entidades privadas, de acordo com o qual a limitação instrumental de bens, interesses ou valores subjectivamente radicáveis se deve revelar idónea e necessária para atingir os fins legítimos e concretos que cada um daqueles actos visam, bem como axiologicamente tolerável quando confrontada com esses fins”1».
Tem vindo a ser entendimento deste Tribunal e do TUI que «a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.» - Acórdão do TUI de 31.07.2012, Procº nº 38/2012, entre outros.
A este respeito alega-se que a revogação da autorização de residência viola o princípio da proporcionalidade porque os factos que lhe são imputados ainda estão em fase de inquérito e embora noutra sede, porque implica que não possa estar permanentemente em Macau com a sua família prestando-lhe o auxílio e apoio necessário.
O princípio da proporcionalidade haverá de ser aferido em função do objectivo preconizado pela norma em causa, isto é, dos bens e interesses que se pretendem proteger ou alcançar em função da norma.”
No caso vertente, é de realçar que o crime de tráfico de estupefacientes, praticado pela Requerente, configura uma infração criminal cada vez mais frequente, que afecta de forma grave e contínua a segurança e a ordem públicas e sociais da nossa sociedade, sendo o seu combate uma missão cada vez mais premente e exigente das forças de segurança.
Face à natureza e gravidade do crime praticado pela Requerente, fazendo uma devida ponderação entre os interesses públicos e os individuais em jogo, não podemos acompanhar a tese da Requerente justamente porque, ao invés do que vem invocado, não entendemos que a Entidade Recorrida, ao decidir revogar a autorização de residência, infringiu o princípio da proporcionalidade ou da justiça (no sentido semelhante, veja-se Ac. TSI, proc. n.º 706/2024, de 30 de Abril de 2025).
Pelo que improcede este fundamento do recurso.
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V. DECISÃO
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso.
Custas pela Recorrente, com taxa de justiça fixada em 6 UCs.
Registe e Notifique.
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RAEM, aos 24 de Julho de 2025
Seng Ioi Meng (Relator)
Fong Man Chong (Primeiro Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong (Segundo Juiz-Adjunto)
Mai Man Ieng (Procurador-Adjunto do Ministério Público)
Proc. n.º 51/2024 (Autos de Recurso Contencioso) 1 / 2