Processo nº 6/2025
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão de 01.07.2022 proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR1-16-0434-PCC do Tribunal Judicial de Base, decidiu-se condenar o (5°) arguido A (甲), com os restantes sinais dos autos, como co-autor material da prática em concurso real e na forma consumada de:
- 1 crime de “associação ou sociedade secreta”, p. e p. pelo art. 1°, n.° 1, e 2°, n.° 2 da Lei n.° 6/97/M, na pena de 6 anos de prisão;
- 44 crimes de “burla de valor consideravelmente elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. a) do C.P.M., na pena de 3 anos de prisão cada; e,
- 99 crimes de “burla de valor elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 3 do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão cada;
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 18699 a 19180 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Do assim decidido, o dito arguido (A) recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 30.10.2024, (Proc. n.° 697/2022), negou provimento ao recurso; (cfr., fls. 19791 a 20336-v).
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Inconformado com o assim decidido, traz o mesmo o presente recurso para esta Instância, alegando para, a final, produzir as conclusões seguintes:
“(…)
3. Entende o Recorrente que o acórdão do Tribunal Recorrido padece dos seguintes vícios:
- O Recorrente foi condenado pela prática de 1 “crime de participação em associação criminosa”, no acórdão existe a errada aplicação do disposto no artigo 2.º, n.º 2 da Lei n.º 6/97/M,
- O Recorrente foi condenado pela prática de 44 “crimes de burla qualificada de valor consideravelmente elevado” cuja fixação de números de crimes é errada e os quais devem ser qualificados como crime continuado de 1 “crime de burla qualificada de valor consideravelmente elevado”;
- Em cúmulo jurídico, a pena única de 7 anos e 6 meses de prisão efectiva imposta ao Recorrente foi excessiva e violou o artigo 65.º do Código Penal.
4. Primeiramente, quanto à parte de “crime de participação em associação criminosa”, entende o Recorrente que o Tribunal Recorrido aplicou erradamente o disposto no artigo 2.º, n.º 2 da Lei n.º 6/97/M.
5. Embora o grupo criminoso deste caso tenho sido qualificado pelo acórdão do TUI proferido no proc. n.º 60/2015, como uma associação criminosa, nos autos, as circunstâncias criminosas do Recorrente não são suficientes para provar que o Recorrente bem sabendo a natureza da referida associação, ainda participou voluntariamente nela.
6. Segundo os factos criminosos que foram dados como provados nos autos, podem somente ser qualificados que o Recorrente praticou, com os outros arguidos, na forma dolosa, uma série de condutas de crimes para burlar o Ministério Público, mas não sabia claramente nem participou voluntariamente na associação criminosa liderada por B.
7. Na realidade, em todas as provas documentais constantes nos autos e/ou as escutas telefónicas, de facto, não há nenhum registo de escritas e/ou conteúdo de conversação mostraram que o Recorrente teve vontade de participar na associação criminosa.
8. Pior ainda, a associação que foi qualificada como associação criminosa pelo acórdão do TUI proferido no proc. n.º 60/2015, não tem nenhuma designação ou nome.
9. Isto é, o Recorrente não reúne o elemento subjectivo de ter sabido claramente e participado voluntariamente na associação criminosa liderada por B.
10. Por conseguinte, na ausência de ser dado como provado o elemento de o Recorrente ter participado intencionalmente numa associação criminosa, o Tribunal Recorrido condenou-o, pela prática de 1 “crime de participação em associação criminosa”, o qual aplicou erradamente o disposto no artigo 2.º, n.º 2 da Lei n.º 6/97/M.
11. Além disso, o Recorrente foi condenado, pela prática de 44 “crimes de burla qualificada de valor consideravelmente elevado”, entende o Recorrente que, a determinação de número de crimes é errada e o qual deve ser qualificado como prática de 1 “crime de burla qualificada de valor consideravelmente elevado”, na forma continuada.
12. Entende o Recorrente que, as condutas criminosas praticadas por si são concretas, correspondentes totalmente aos elementos acima referidos de forma continuada.
13. De acordo com os factos que foram provados, todos os comportamentos do Recorrente, foram praticados sob as ordens do seu empregador E (ou seja, o outro arguido deste processo), todo o trabalho responsável pelo recorrente era parte de nível mais baixo da conduta criminosa.
14. E por outro lado, existe lacuna de má gestão pessoal interna do próprio MP, fez com que a sua conduta criminosa pudesse ser realizada com sucesso.
15. Daí se vê que, ao longo dos anos, as condutas do Recorrente violaram o mesmo bem jurídico, e o meio da prática nunca mudou, o sucesso da prática das condutas dos crimes, em boa medida, aproveitou a negligência e lacuna do funcionamento interno do Ministério Público, e o mais importante é que, o Recorrente apenas actuou conforme as ordens doutros arguidos.
16. Por conseguinte, entende o Recorrente que, nos presentes autos, o mesmo deve ser condenado pela prática, na forma continuada, de 1 “crime de burla qualificada de valor consideravelmente elevado”, mas não é computado autonomamente por cada um crime de forma consumada.
17. Por fim, entende o Recorrente que, em cúmulo de todos os crimes, é excessivo que o Recorrente foi condenado na pena única de 7 anos e 6 meses da prisão efectiva, o que violou o disposto no artigo 65.º do CP.
18. Nos presentes autos, foram provados os seguintes factos e as seguintes circunstâncias, a favor do Recorrente, que:
- O Recorrente é primário.
- Nos presentes autos, o Recorrente praticou uma série dos crimes são os trabalhos de nível mais baixo.
- O Recorrente tinha a posição mais baixa na associação criminosa, não participou em toda a concepção do plano criminoso ou plano de execução, desde o início até ao fim, nos quais o Recorrente não participou, mas apenas fez segundo as ordens de outrem.
- O Recorrente apenas recebeu sempre um salário fixo da empresa em que estava empregado, e o salário que recebeu foi apenas a um nível razoável, nunca recebeu nenhum benefício ilegal extra resultante da conduta criminosa.
19. Por conseguinte, podem considerar que são baixos o grau de ilicitude do facto, o modo de execução dos factos criminosos e o grau de violação dos deveres impostos ao Recorrente. E, o Recorrente é mais jovem que todos os arguidos, as experiências da vida e da sociedade são menos que os outros arguidos, bem como, a sua situação económica é pior em comparação com os outros;
20. Portanto, entende o Recorrente que, mesmo que na situação em que o Recorrente foi acusado e condenado, pela prática dos crimes, a medida da pena para o Recorrente deve ser manifestamente mais baixa que os outros arguidos. Contudo, no acórdão recorrido, a medida da pena do recorrente é mais ou menos igual à doutros arguidos.
21. Entende o Recorrente, tendo em consideração de todas as circunstâncias especificadas no artigo 65.º, n.º 2 do CP a favor do Recorrente, é adequada a medida de pena do Recorrente abaixar para a seguinte moldura:
- 1 “crime de participação em associação criminosa” (comparticipante), é condenado na pena de 5 anos de prisão;
- 44 “crimes de burla qualificada de valor consideravelmente elevado” (comparticipante), é condenado na pena de 2 anos de prisão, por cada um;
Em cúmulo, é totalmente condenado na pena única de 6 anos de prisão efectiva.
22. Por conseguinte, é excessiva a presente condenação do Recorrente na pena única de 7 anos e 6 meses da prisão efectiva, o Tribunal Recorrido não mediu rigorosa e corretamente a pena de prisão conforme o artigo 65.º do CP”; (cfr., fls. 20350 a 20356-v e 4 a 5-v do Apenso).
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Em Resposta, foi o Ministério Público de opinião que se deve confirmar integralmente a decisão do Tribunal de Segunda Instância; (cfr., fls. 20363 a 20369).
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Oportunamente, nesta Instância, e em sede de vista, juntou a Ilustre Procuradora Adjunta douto Parecer mantendo o teor da sua anterior Resposta ao recurso; (cfr., fls. 20399).
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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.
A tanto se passa.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no seu Acórdão e que foram totalmente confirmados pelo Acórdão ora recorrido do Tribunal de Segunda Instância, e que, mais adiante, se fará adequada referência; (cfr., fls. 18701 a 19162 e 19792 a 20309).
Do direito
3. Insurge-se o (5°) arguido A contra o decidido pelo Tribunal de Segunda Instância que confirmou o Acórdão do Tribunal Judicial de Base que o condenou como co-autor material da prática, em concurso real, de 1 crime de “associação ou sociedade secreta”, p. e p. pelo art. 1°, n.° 1, e 2°, n.° 2 da Lei n.° 6/97/M, na pena de 6 anos de prisão, 44 crimes de “burla de valor consideravelmente elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. a) do C.P.M., na pena de 3 anos de prisão cada, e 99 crimes de “burla de valor elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 3 do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão.
Assaca à decisão recorrida o vício de “erro na aplicação do direito”, pois considera que a mesma viola o art. 2, n.° 2 da Lei n.° 6/97/M, e que a sua conduta devia integrar à prática de um (só) “crime continuado” quanto ao crime de “burla de valor consideravelmente elevado”, pedindo também a redução das penas parcelares e única que lhe foram aplicadas.
Cremos porém que não se lhe pode reconhecer – qualquer – razão.
Vejamos.
–– Quanto ao crime de “associação ou sociedade secreta”, p. e p. pelo art. 1°, n.° 1, e 2°, n.° 2 da Lei n.° 6/97/M.
Essencialmente, diz o ora recorrente que foi injustamente condenado pela prática do dito crime, negando a sua participação ou pertença a qualquer “associação ou sociedade secreta”, imputando ainda ao Acórdão recorrido o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro notório na apreciação da prova” e “erro de direito”.
Porém, e como se deixou adiantado, é evidente que nenhuma razão tem o ora recorrente, pois que, como se constata da decisão do Tribunal Judicial de Base – assim como do Tribunal de Segunda Instância que, em sede do anterior recurso do arguido, confirmou integralmente a sua condenação pelo crime em questão – inexiste qualquer “insuficiência” e “erro”, seja ele qual for – sobre estes “vícios da matéria de facto”; cfr., v.g., o mais recente Ac. deste T.U.I. de 28.11.2024, Proc. n.° 109/2024 – valendo aqui, inteiramente, as considerações no Acórdão agora recorrido tecidas que demonstram, claramente, a total verificação dos elementos típicos “objectivos” e “subjectivos” do ilícito em causa, mostrando-se pois de aqui as adoptar como fundamentação da decisão que, a final, se irá proferir, pouco havendo a acrescentar.
Uma breve nota adicional se nos afigura porém oportuna.
É a seguinte.
Os presentes autos, e a “matéria de facto” nos mesmos dada como “provada”, (e que não se mostra de alterar), dá nos (claramente) conta da efectiva prática em concurso real de inúmeros crimes cometidos por um “grupo de pessoas” que, de forma organizada, agiram, por um período de vários anos, em conformidade com um plano previamente engendrado e acordado, em conjunção de intentos e esforços, com (uma certa) hierarquia interna e divisão de tarefas, dedicando-se à obtenção ilícita de avultadas quantias monetárias em consequência da sua fraudulenta participação nas diversas fases de preparação e celebração de “contratos” de prestação de serviços, obras e outros, e, nos quais, tiveram (nomeadamente) intervenção os co-arguidos destes autos, A, (o ora recorrente), e C, D, E e F.
Isto – sem esforço se extraindo da “matéria de facto dada como provada” e, agora – visto e dito, e sendo de consignar também que a aludida “associação” era chefiada pelo (pessoa do próprio) ex-Procurador do Ministério Público, (B), que os referidos “contratos” e “adjudicações” tinham como objecto serviços prestados e obras efectuadas nos “Serviços do Ministério Público da R.A.E.M.”, e que por correspondentes factos dados como assentes em sede do Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 13.07.2017, prolatado no Proc. n.° 60/2015, foi este último arguido igualmente condenado (nomeadamente) pela prática do mesmo crime de “associação ou sociedade secreta”, da qual se considerou que fazia parte o ora recorrente, e sendo, por sua vez, de se referir que os presentes autos são o vulgarmente conhecido e chamado de “processo conexo” ao do ex-Procurador, (não havendo um “processo único” em virtude do regime do “foro especial” então aplicável), totalmente claro cremos que fica o que atrás se deixou exposto relativamente à (idêntica) decisão condenatória do ora recorrente pela prática do dito crime nos presentes autos.
Com efeito, e como se disse, para além de nos presentes autos abundante ser a “matéria de facto provada” que justificou e justifica plenamente a sua condenação pela prática do mencionado crime de pertença à dita “associação ou sociedade secreta”, importa não olvidar – e aqui salientar – que no dito Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 13.07.2017, Proc. n.° 60/2015, expressamente “provado” está que o ora recorrente integrava a mesma “associação ou sociedade secreta”, (afigurando-se-nos assim que se alguma dúvida ainda pudesse haver quanto a tal realidade, esta apenas poderia ter como razão de ser uma muito fértil imaginação, mais própria dos contos de ficção cientifica e de realização totalmente impossível num “mundo real”).
E, nesta conformidade, (sem prejuízo do muito respeito que, como sempre, temos e mantemos, por diverso entendimento), visto cremos que está que evidentemente infundado é o inconformismo do ora recorrente, desnecessárias e (completamente) inúteis se apresentando pois mais qualquer outra consideração sobre a questão.
–– Resolvida que assim cremos ter ficado a questão relativamente à condenação do ora recorrente pela prática do crime de “associação ou sociedade secreta”, p. e p. pelo art. 1°, n.° 1, e 2°, n.° 2 da Lei n.° 6/97/M, importa agora emitir pronúncia sobre as restantes “questões” pelo mesmo trazidas à apreciação deste Tribunal de Última Instância.
Pois bem, se bem ajuizamos, duas são as aludidas questões.
A primeira, quanto à decisão da sua condenação pela prática, em concurso real, de 44 crimes de “burla de valor consideravelmente elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. a) do C.P.M., e relativamente à qual é de opinião que deve ser alterada para a da prática de 1 (só) “crime continuado”, e, a segunda, quanto às suas “penas parcelares e única” em que foi condenado.
E, aqui, a primeira coisa que se mostra de consignar – como bem notou a Ilustre Procuradora Adjunta na sua Resposta ao recurso do ora recorrente para este Tribunal de Última Instância – é que estas duas “questões” são efectivamente “questões novas”, pelo mesmo recorrente antes não colocadas em sede do seu recurso do Acórdão do Tribunal Judicial de Base para o Tribunal de Segunda Instância.
E, nesta conformidade – notando-se também que notificado da aludida Resposta do Ministério Público, onde até se pugnava pelo não conhecimento das referidas “questões novas”, nada disse o recorrente, mantendo-se silente – quid iuris?
Pois bem, como um dos “princípios – processuais – fundamentais”, figura, como sabido é, o da “lealdade processual” que pressupõe a actuação alinhada de todos os intervenientes no processo a fim de, em confiança, na boa fé e respeito recíproco, se alcançar a “verdade material dos factos”, e, desta forma, a sua “finalidade última”, que mais não é que a tão desejada sã “realização da Justiça”; (sobre o tema, cfr., v.g., o Ac. de Unif. Jurisprudência do S.T.J. de 2/2011, in D.R. n.° 19/2011, Série I, de 27.07.2011).
E, assim, (e como também se considerou no Ac. do S.T.J. de 22.09.2021, Proc. n.° 797/14), “permitir que um sujeito processual venha, em recurso, suscitar, questões novas, questões que não expôs e não defendeu perante o tribunal recorrido, ofenderia irremediavelmente o princípio da lealdade processual com que sempre deve agir, mesmo que no exercício do mais amplo direito de defesa”, das mesmas questões não se devendo assim conhecer, (sendo de se decidir pela sua rejeição).
Com efeito, considerando a “estrutura processual penal”, assim como a “natureza” e “objectivo” dos recursos, é entendimento unânime que os mesmos consubstanciam verdadeiros “remédios jurídicos”, no sentido em que o seu único objectivo é apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso, não se destinando a conhecer “questões novas”, que não tenham sido anteriormente apreciadas pelo Tribunal recorrido; (cfr., v.g., sobre esta matéria o Ac. deste T.U.I. de 23.07.2014, Proc. n.° 43/2014, pelo M.P. também citado, e, mais recentemente, o Ac. do S.T.J. de 04.05.2023, Proc. n.° 96/20).
E, então, que dizer?
Ora, aqui chegados, (seja como for), e tratando-se de uma questão relacionada com a “apreciação” e “qualificação jurídico-penal dos factos”, (e que até pode beneficiar o arguido recorrente), não se deixa de consignar o que segue.
Nos termos do art. 29° do C.P.M.:
“1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
Atento o assim estatuído, adequado se mostra de considerar que a “realização plúrima do mesmo tipo de crime” pode constituir:
a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o (mesmo) dolo ou resolução inicial;
b) um só crime, na forma continuada, se (toda) a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; ou,
c) um concurso (real) de infracções, se não se verificar qualquer das situações anteriores.
Maia Gonçalves, (referindo-se a idêntico artigo do C.P. Português), considera que com o preceito em questão – o art. 30° – se perfilha “o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime.
(...)
É claro que embora o artigo o não diga expressamente, não se abstrai do juízo de censura (dolo ou negligência). Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores, ou diversas vezes ao mesmo preceito, tal juízo de censura dirá a última palavra sobre se, concretamente, se verificam um ou mais crimes, e se sob a forma dolosa ou culposa. Isto se deduz do uso do advérbio efectivamente e dos princípios basilares sobre a culpa.
(…)
Posto que para que uma conduta seja considerada delituosa se torna necessário que para além de antijurídica seja, igualmente, culposa, a culpa apresenta-se – assim – como elemento limite da unidade da infracção, pois que sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes o mesmo tipo legal de crime se torna aplicável, de onde se nos depare uma pluralidade de infracções.
Assente, então, que sempre que se verifique uma pluralidade de resoluções criminosas, se verifica uma pluralidade de juízos de censura, a dificuldade residirá, apenas, em verificar se numa determinada situação concreta existe pluralidade de resoluções criminosas ou se o agente age no desenvolvimento de uma única e mesma motivação criminosa”; (in “C.P.P. Anotado”, 8ª ed., pág. 268).
Isto é, o critério teleológico (e não naturalístico) adoptado pelo legislador na destrinça entre “unidade” e “pluralidade de infracções”, pressupõe o “juízo de censurabilidade”, pelo que haverá tantas infracções quantas as vezes que a conduta que o preenche se tornar reprovável.
Em relação ao (anterior) Código Penal de 1886 considerava também o Prof. E. Correia que:
“Se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídicos e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções. Mas porque a acção, além de antijurídica, tem de ser culposa, pode acontecer que uma actividade subsumível a um mesmo tipo mereça vários juízos de censura. Tal sucederá no caso de à dita actividade corresponderem várias resoluções, no sentido de determinações de vontade, de realização do projecto criminoso”, e que “certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime e às quais presidiu pluralidade de resoluções devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam considerável diminuição da culpa. Tal sucederá, quando a repetição da actividade for facilitada, de modo considerável, por uma disposição exterior das coisas para o facto”; (in “Direito Criminal”, Vol. 2, pág. 201, 202, 209 e 210, e ainda em “Unidade e Pluralidade de Infracções”, pág. 338).
Por sua vez, e tratando mais especificamente da matéria do “crime continuado”, também já teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de afirmar que:
“O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”, e que,
“Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior”; (cfr., v.g., o Ac. de 24.09.2014, Proc. n.° 81/2014, com abundante doutrina sobre a questão, o de 03.11.2021, Proc. n.° 136/2021).
Adequado e razoável é assim reter que o conceito de “crime continuado” é definido como a “realização plúrima” do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o “mesmo bem jurídico”, executada por forma essencialmente “homogénea”, “temporalmente próxima”, e no quadro da solicitação de uma mesma “situação exterior” que diminua consideravelmente a culpa do agente, exigindo-se uma apreciação e ponderação “caso a caso”, sendo por sua vez de se ter presente que a (eventual) não verificação de um destes pressupostos leva à consideração da presença da figura da “acumulação real”; (sobre o tema, pode-se também ver, v.g., Manuel Leal-Henriques in, “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, Vol. I, pág. 376 e segs.; e M. M. Garcia e J. M. Castela Rio in, “Código Penal. Parte Geral e Especial. Com Notas e Comentários”, pág. 213 e segs.; Ana R. Baptista Martins in, “O Crime Continuado”, U.C.P., 2012; e M. Mateus Fidalgo Simões in, “O Crime Continuado – A problemática da sua (in)aplicabilidade aos bens pessoalíssimos”, U.C., 2014).
De (especial) relevo a ponderar é que as ditas “circunstâncias externas” que levam o agente a “agir repetidamente”, como que numa situação de à “mão de semear”, como que a “convidar para a repetição da prática da conduta criminosa”, têm de se manter, evidenciando, (e justificando, por isso), uma “menor culpabilidade”, o que já não ocorre se o agente actuou sucessivamente, mas “ultrapassando”, “superando” ou “contornando” obstáculos (e resistências) ao longo do “iter criminis”, afeiçoando a realidade exterior aos seus desígnios e propósitos, sendo ele a “dominá-la”, (e não o inverso), inexistindo, assim, motivos para que se considere verificada qualquer “atracção” (ou “solicitação”) para a prática reiterada do crime e, desta forma, como “atenuada a sua culpa”, não se podendo pois considerar os crimes pelo mesmo assim cometidos como (um) “crime continuado”.
Nesta conformidade, e em face do que até aqui se deixou exposto, que dizer?
Ora, (no caso dos presentes autos), cremos que totalmente inviável é considerar que a conduta do arguido relativamente ao crime de “burla de valor consideravelmente elevado” integra uma “continuação criminosa”.
Na verdade, inexiste, in casu, a aludida “situação exterior” que levou à “repetição” da conduta, verificando-se, antes, que era precisamente o “inverso” que sucedia, já que a consumação dos ilícitos era, ao invés, “provocada” pelo ora recorrente (e restantes co-arguidos) que, para cada “contrato”, tinham que elaborar (e forjar) uma série de documentos com os preços inflacionados, encetar diligências várias – documentar consultas fictícias a “sociedades de fachada”, possuídas pelas mesmas pessoas – constituindo assim, como se descreveu, um “processo” no qual era necessária a participação activa, conjunta e concertada dos arguidos para se conseguir ultrapassar (e “fintar”) as “formalidades” legais precisamente instituídas (e existentes) para impedir a ocorrência de “fraudes” e de indevidas “apropriações de vantagens ilícitas”, o que, infelizmente, foi o que nos presentes autos sucedeu; (podendo-se, aliás, cfr., v.g., os factos provados com os n°s 225 e segs., 253 e segs., 259 e segs., 265 e segs., 286 e segs., 289 e segs., 292 e segs., 296 e segs., 306 e segs., 309 e segs., 318 e segs., 330 e segs., 333 e segs., 340 e segs., 363 e segs., 620 e segs., 623 e segs., 626 e segs., 629 e segs., 632 e segs., 952 e segs., 955 e segs., 958 e segs., 961 e segs., 964 e segs., 1163 e segs., 1166 e segs., 1169 e segs., 1172 e segs., 1175 e segs., 1962 e segs., 2157 e segs., 2160 e segs., 2380 e segs., 2383 e segs., 2386 e segs., 2389 e segs., 2392 e segs., 2395 e segs., assim como 2398 e segs.).
Dest’arte, nos termos que se deixaram expostos, e como se referiu, (totalmente) inexistente sendo a dita “situação exterior” – a tornar a repetida prática dos crimes como que à “mão de semear” – vista está a solução que se mostra de adoptar.
Por fim, (e já agora), não se deixa de dizer também que, ponderando as “penas parcelares” em que foi o ora recorrente condenado, que nenhuma censura merecem até por se situarem junto do seu limite mínimo, e atento o estatuído no art. 71°, n.° 1 e 2 do C.P.M., (sobre as “regras da punição do concurso de crimes”), e tendo presente os limites aí previstos, assim como a “pena única” em questão – de 7 anos e 6 meses de prisão – evidente se apresenta que nenhuma margem da sua redução existe, (sendo caso para se considerar que apenas peca por excesso de benevolência).
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam negar provimento ao presente recurso, confirmando o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância.
Pagará o recorrente a taxa de justiça que se fixa em 12 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 26 de Fevereiro de 2025
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Ho Wai Neng
Tong Hio Fong
Proc. 6/2025 Pág. 10
Proc. 6/2025 Pág. 11