Processo nº 776/2024
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 18 de Setembro de 2025
ASSUNTO:
- Recurso contencioso
- Autorização de Residência
- Revogação
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 776/2024
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 18 de Setembro de 2025
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Administração e Justiça
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Administração e Justiça de 04.09.2024 que concordou com o parecer n.º 33/DAG/DJP/D/2024 da Direcção dos Serviços de Identificação, mantendo a decisão quanto à declaração de nulidade de emissão do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau e do passaporte da Região Administrativa Especial de Macau à Recorrente, formulando as seguintes conclusões:
1. Um dos fundamentos essenciais pelo qual a Administração manteve a sua decisão é sobretudo que, segundo o actual registo de nascimento da recorrente, é filha de mãe B e de pai incógnito.
2. Entende a Administração que com base no supracitado facto, a recorrente não reúne o requisito previsto no artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 19/99/M, ou seja, como filha de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento, razão pela qual, a recorrente também não reúne o disposto no artigo 9.º n.º 2 da Lei n.º 8/1999, não possui a qualidade do residente permanente de Macau.
3. O disposto no artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 19/99/M é um requisito de facto, quer dizer, os pais são indivíduos autorizados a residir em Macau nos termos da lei cuja interpretação contrária é se os pais da menor não são indivíduos autorizados a residir em Macau ao tempo do seu nascimento, não é possível que a menor seja residente de Macau.
4. A disposição acima indicada é uma disposição obrigatória em termos legais, também uma disposição restritiva, pelo que não pode a Administração efectuar arbitrariamente uma interpretação extensiva.
5. Quanto à interpretação ora efectuada pela Administração, tendo esta entendido que a qualidade desconhecida do pai é equivalente a que o pai não é indivíduo autorizado a residir em Macau nos termos da lei, pois isto é inaceitável e também ultrapassa a norma estipulada por lei.
6. Francamente, entendemos que é adequada a rejeição pela Administração da emissão à parte pela primeira vez do bilhete de identidade de residente de Macau, se a recorrente pertencer à situação em que pediu pela primeira vez junto dos Serviços de Identificação a emissão do bilhete de identidade de residente de Macau sem que conseguisse fornecer a identidade do seu pai, fazendo com que tais Serviços não conseguissem confirmar se reunisse ela as condições do estatuto de residente de Macau.
7. Contudo, como a recorrente já obteve o bilhete de identidade de Macau e mantinha tal situação há 25 anos, perante a situação em que deixa em branco a qualidade do seu pai, o que quer dizer que a recorrente ainda tem oportunidade de se enquadrar na situação prevista no artigo 5.º, n.º 1 do «Novo regime de emissão do Bilhete de Identidade de Residente».
8. Mesmo que seja nulo o acto de pedido do Bilhete de Identidade de Residente de Macau (que assim considera a Administração), segundo o princípio da economia e o princípio do aproveitamento, de facto, supostamente se a recorrente reunir o disposto no artigo 5.º, n.º 1 do «Novo regime de emissão do Bilhete de Identidade de Residente», pode ser mantida ainda a sua qualidade de residente de Macau.
9. É errada a interpretação do disposto no artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 19/99/M por parte da Administração, isto quer dizer, não pode a Administração interpretar a lei de forma arbitrária, de modo a considerar que a qualidade desconhecida do pai é igual a não pertencer ao indivíduo autorizado a residir em Macau nos termos da lei.
10. Pelo que, a Administração incorreu em erro na interpretação da lei– vicio de erro nos pressupostos de direito.
11. A recorrente nasceu em Macau onde cresce e vive desde a infância. As matérias envolvidas no presente recurso não foram causadas por culpa da recorrente, como pessoa inocente, a recorrente foi colocada numa posição em que se viu obrigada a receber o acto em causa.
12. A recorrente estuda e vive em Macau desde o ensino primário, ela ama Macau, considerando Macau como o seu lar, depois de concluído o curso secundário, frequentou o curso de ciências sociais na Universidade de Macau e obteve a licenciatura em ciências sociais (comunicação pública).
13. A recorrente sempre se sente orgulhosa de ser residente de Macau, esperando poder contribuir para a sociedade de Macau com o que aprendeu na universidade, tendo, ao longo dos anos, já produzido vários filmes de propaganda tais como vídeos relativos ao festival de luz e sombra, fogos de artifício e carros alegóricos de Ano Novo, etc., para o governo de Macau incluindo o Instituto para os Assuntos Municipais, a Universidade de Macau, a Direcção dos Serviços de Turismo e o Instituto Cultural.
14. Conjugadas as supracitadas situações da recorrente, perante a situação em que a identidade do pai da interessada ainda não foi confirmada e que a mãe da interessada já se tornou residente de Macau, evidentemente o que a Administração cancelou o Bilhete de Identidade de Residente de Macau da interessada violou os princípios da proporcionalidade, da boa fé e da imparcialidade, também violou o direito fundamental à vida previsto na Lei Básica.
15. A atribuição dos efeitos nos termos do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo e a declaração de nulidade da emissão de documentos, podem ser dois procedimentos distintos, contudo, não é necessariamente impossível tratá-los no mesmo procedimento.
16. Supõe-se que os respectivos efeitos atribuídos causam que a declaração de nulidade se torne desnecessária e irreal, o que não afecta que a Administração não decide a não declaração de nulidade do respectivo acto.
17. Não concordam com o que alegou a Administração na resposta que nos termos do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, é necessário aguardar até que a decisão de nulidade da emissão de documentos se torne definitiva ou inimpugnável para ser tratado tal pedido, a interessada considera que pode ser tratado no presente processo administrativo.
18. Ao interpretar o artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo como um poder discricionário, a Administração nunca atribuiu efeitos jurídicos putativos às situações de facto decorrentes do acto nulo, pelo que consideramos que tal interpretação não tem razão.
19. Uma vez que todos os casos são isolados, há que fazem análise consoante cada caso concreto, face ao que a Administração, baseando-se em que não foi feito tal acto, não exerceu o poder discricionário, consideramos que isto violou o princípio da legalidade.
20. Na realidade, a Administração tem o poder para exercer a discricionária no sentido de determinar se exerce ou não a disposição do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo. Contudo, de acordo com a resposta da Administração, esta, até que não considerou as situações relevantes, só respondeu apenas que o departamento nunca atribuiu efeitos jurídicos putativos a situações de facto decorrente do acto nulo.
21. O Tribunal de Última Instância tinha apreciado, no processo n.º 53/2021, um caso semelhante ao presente caso, naquele caso individual, o recorrente, embora tivesse obtido o bilhete de identidade do residente de Macau, ele vivia no Interior da China desde a infância até à conclusão da licenciatura, e até ao trabalho, também foi deslocado ao Interior da China pela companhia de Macau, ele próprio tem uma ligação forte com o Interior da China. Nessa situação, se a Administração exercer o poder discricionário para considerar se é necessário ou não, nos termos do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, manter os efeitos jurídicos já produzidos pelo agente, e tomar a decisão negativa, consideramos compreensível.
22. Contudo, a situação do presente caso é totalmente diferente. A situação da recorrente é diferente da situação daquele que cresceu no Interior da China e só veio a Macau através da reunião familiar, a recorrente nasceu em Macau onde também cresceu, estudou e trabalha, toda a ligação da sua vida sempre está em Macau, tanto os seus amigos, membros familiares, colegas, como todas as outras coisas.
23. A ligação emocional que ela tem para Macau, inclui um sentimento de pertença a esta terra, todas as ruas e edifícios de Macau, as pessoas que as conhece a requerente, seus amigos, colegas de escola, membros familiares, colegas de trabalho, bem como a carreira que adora e o seu contributo para Macau ao longo dos anos.
24. E a sua mãe já passou a ser residente permanente de Macau há muito tempo, que tem a sua vida e o seu trabalho em Macau.
25. Por conseguinte, a Administração, no caso vertente, de facto não cumpriu a sua função devida, nem conheceu de que se devia atribuir à recorrente os efeitos previstos no artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo ou seja, caso V. Ex.as assim não entendam, através das situações individuais expostas pela recorrente, mesmo que a Administração tenha as considerado, também foi exercido o seu poder discricionário na situação totalmente desrazoável, não foram atribuídos à recorrente os efeitos previstos no artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo.
26. Por conseguinte, a Administração padece do vício da violação do disposto do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, e da violação dos princípios da proporcionalidade, da boa fé e da imparcialidade disposto no mesmo código, e que não exerceu o seu poder discricionário, da total desrazoabilidade no exercício o seu poder discricionário;
Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Administração e Justiça contestar, apresentando as seguintes conclusões:
1. A recorrente, A, nasceu em Macau no dia 13 de Junho de 1999, o assento de nascimento donde constava que o pai C, residente de Macau. Estes Serviços emitiram pela primeira vez o Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º 1/3XXXX7/3 à recorrente, de acordo com o artigo 5.º, n.º 1 e artigo 26.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, por o pai ser residente de Macau quando a recorrente nasceu, pelo que a mesma possui o estatuto de residente de Macau. Por conseguinte, a 21 de Junho de 1999, tendo estes Serviços emitido, pela primeira vez, à recorrente o Bilhete de Identidade de Residente de Macau sob o n.º 1/3XXXX7/3.
2. Posteriormente, tendo estes Serviços, de acordo com o artigo 9.º, n.º 2, da Lei n.º 8/1999, o artigo 2.º, n.º 2, alínea 1), da Lei n.º 8/2002 e o artigo 23.º do Regulamento Administrativo n.º 23/2002, a 25 de Julho de 2005, substituído, para a recorrente, o bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau n.º 13XXXX7(3), o qual foi renovado em 25 de Maio de 2010, 23 de Julho de 2014 e 6 de Maio de 2019, respectivamente.
3. Contudo, a 12 de Janeiro de 2024, estes Serviços receberam a notificação enviada pelo Ministério Público, indicando que tendo o Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base proferida em 28 de Novembro de 2023 a decisão da acção declarativa comum de impugnação de paternidade e a decisão já transitou em julgado, cujo teor foi averbado pela Conservatória do Registo Civil ao assento de nascimento da recorrente. O assento de nascimento da recorrente que já foi actualizado, donde consta a seguinte indicação: o pai ***, a mãe B, residente do Interior da China.
4. Como o pai era incógnito e a mãe não era residente de Macau no tempo do nascimento da recorrente, esta não preenche os requisitos legais acima referidos, esta não tinha o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, a ela não deveria ser emitido o bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau.
5. Acresce que, dado que a recorrente não possui o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, não se encontra preenchido o requisito indicado no artigo 5.º da Lei n.º 8/2009, a ela não deve ser emitido o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau n.º MB01XXXX3.
6. Dado que não é verdadeira a identidade do pai registada no assento de nascimento e a falsidade desse facto equivale à falta absoluta do conteúdo ou objecto do acto administrativo. Perante a insatisfação dos requisitos legais, os actos destes Serviços de emitir os documentos são actos sem base legal, os quais prejudicam o interesse público e devido à gravidade dos danos causados, sofrem do vício de nulidade por falta de elemento essencial. Deste modo, nos termos do artigo 122.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, por falta de elementos essenciais são nulos os actos administrativos destes Serviços de emitir uma série de documentos à recorrente, os quais nunca produziram efeitos.
7. O referido acto administrativo destes Serviços de emitir o documento de identificação à recorrente é nulo por omissão de elemento essencial, o que, nos termos do artigo 122.º, n.º 2, alínea i), do Código do Procedimento Administrativo, são nulos os posteriores actos de conceder à recorrente a renovação e substituição do BIR que foram praticados com base no acto administrativo nulo.
8. Nestas circunstâncias, de acordo com o disposto no artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo, estes Serviços declaram a nulidade dos actos administrativos da emissão à recorrente do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, e de renovação e substituição do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau e da emissão do passaporte da Região Administrativa Especial de Macau, bem como de cancelar, nos termos da lei, o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau, dos quais a ora recorrente era titular.
9. Atribui ou não à recorrente os efeitos jurídicos putativos a acto nulo nos termos do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, não é a matéria que o presente processo administrativo deve apreciar.
10. A entidade recorrida reconhece e confirma os actos acima tomados por estes Serviços de acordo com a lei.
Quanto à opinião da advogada representante de que a entidade recorrida interpretou erradamente a lei e que o acto recorrido está viciado de existência do pressuposto jurídico errado (artigos 5.º a 17.º da petição inicial):
11. A advogada representante salientou que, de acordo com o entendimento oposto do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, se os pais não forem pessoas autorizadas a residir em Macau de acordo com a lei, esse não pode tornar-se residente em Macau. Considera que a Administração não pode fazer arbitrariamente uma interpretação extensiva deste artigo e equiparar a identidade desconhecida do pai da recorrente à situação de o pai não estar autorizado a residir em Macau, de acordo com a lei. Na situação em que a recorrente obteve o bilhete de identidade de residente em Macau há muitos anos e que a identidade do pai é deixada em branco, significa que a recorrente tem ainda a oportunidade de cumprir os requisitos legais para o estatuto de residente em Macau. Acredita que, com base nos princípios económicos e de disponibilidade, a Administração deve, pelo menos, manter o estatuto de residente em Macau da recorrente até que a identidade do seu pai seja confirmada. Portanto, a advogada representante acredita que a entidade recorrida interpretou erradamente a lei e que o acto recorrido tem o vício de existência de pressuposto jurídico.
12. A entidade recorrida não concorda com o ponto de vista acima da advogada representante. De acordo com o artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, as condições para que os menores obtenham o estatuto de residente em Macau estão claramente estipuladas. Apenas aqueles cujo pai ou mãe biológicos residam legalmente em Macau no momento do seu nascimento em Macau podem obter o estatuto de residente em Macau.
13. Por outras palavras, a Administração só pode emitir um bilhete de identidade de residente de Macau à parte, de acordo com a lei, se tenham confirmado que o pai biológico ou a mãe biológica residiam legalmente em Macau no momento do nascimento da parte. Se a parte em causa não cumprir os requisitos legais pertinentes, ou se vier a provar posteriormente que não cumpre os requisitos pertinentes, a Administração não deve emitir o bilhete de identidade de residente de Macau, sob pena de violação do princípio da legalidade.
14. Neste caso, a recorrente obteve originariamente o estatuto de residente em Macau com base no facto de o seu pai ser C, residente em Macau, tal como consta no seu registo de nascimento. A Conservatória do Registo Civil fez uma correcção no registo de nascimento da recorrente, constando que o seu pai é *** e a sua mãe é residente do Interior da China, B. Como a recorrente não conseguiu provar que o seu pai biológico ou mãe biológica residiam legalmente em Macau quando nasceu em Macau, e não conseguiu provar que cumpre as disposições do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, pelo que a mesma não tem estatuto de residente em Macau e não lhe deve ser emitido um BIRM.
15. No passado, o V/ Tribunal e o Tribunal de Última Instância já apreciaram vários casos semelhantes de falsa paternidade, incluindo casos em que a identidade do pai biológico é desconhecida e a mãe não residia legalmente em Macau no momento do seu nascimento, como no caso da recorrente. Todos os tribunais entenderam que a prática da Administração de declarar a emissão de bilhete nulo e cancelá-lo não padece de vício e salientaram claramente que a Administração descobriu posteriormente que as partes não cumpriam as condições legais, deveria declarar a emissão de bilhete nulo e cancelar o bilhete relevante. Caso contrário, não estaria em conformidade com as disposições da lei. [Vide o acórdão do Colectivo do V/ Tribunal no processo n.º 30/2022 de 24 de Novembro de 2022 e os acórdãos do Colectivo do Tribunal de Última Instância nos processos n.º 96/2022 de 13 de Janeiro de 2023 e n.º 34/2023 (I) de 29 de Setembro de 2023].
16. É importante realçar que a lei estipula directamente que tipo de pessoas são elegíveis para residência permanente na RAEM. Para verificar se uma pessoa é residente permanente na RAEM, tanto o Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, como o subsequente regime de Bilhete de Identidade de Residente exigem que o requerente forneça as informações de identidade dos seus pais para determinar se o requerente é elegível para residência permanente na RAEM. Se as informações relevantes não puderem ser fornecidas, a pessoa em causa não cumpre os requisitos legais relevantes e não se qualifica como residente permanente de Macau.
17. De acordo com o entendimento da advogada representante, esta considera que, quando a paternidade é desconhecida, a pessoa em causa preenche ainda os requisitos do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, e é qualificada como residente de Macau. Se este entendimento for estabelecido, parecerá que um dos pais não indica deliberadamente a identidade do outro, fazendo assim que o filho nascido em Macau obtenha o estatuto de residente em Macau. Isto é obviamente inaceitável e não está de acordo com a intenção legislativa do legislador.
18. Pode observar-se que, ao aplicar o disposto no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, a tratar deste caso, a entidade recorrida interpretou os articulados relevantes com base na sua letra da lei, de acordo com os princípios gerais de interpretação jurídica previstos no artigo 8.º do Código Civil, e não interpretou os articulados de forma arbitrária e extensiva, tal como referido pela advogada representante.
19. A advogada representante salientou que a recorrente obteve um bilhete de identidade de residente de Macau há muitos anos. Se a paternidade for deixada em branco, significa que a recorrente terá ainda a oportunidade de cumprir os requisitos legais para o estatuto de residente de Macau, entendendo que, com base nos princípios da economia e da disponibilidade, a Administração deve, pelo menos, manter o estatuto de residente de Macau da recorrente até que a sua paternidade seja confirmada.
20. Como acima referido, o artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, estipulou claramente os requisitos para a obtenção de identidade de residente de Macau. O legislador não fez qualquer distinção quanto ao momento para a obtenção de identidade de residente de Macau. Por outras palavras, independentemente de a pessoa estar a solicitar o bilhete de identidade de residente de Macau pela primeira vez ou de possuir o bilhete há muitos anos, deve cumprir os requisitos legais para obter o bilhete. Os requisitos relevantes são o fundamento legal para manter a identidade de residente de Macau. Desde que seja posteriormente confirmado que a pessoa não cumpre os requisitos relevantes, deixará de ter identidade de residente de Macau.
21. Nestas circunstâncias, a Administração não pode, como disse a advogada representante, manter o estatuto de identidade de residente de Macau da recorrente e continuar a emitir-lhe um bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau e um passaporte da Região Administrativa Especial de Macau, porque a recorrente obteve um bilhete de identidade de residente de Macau durante muitos anos e “tem uma oportunidade” de se qualificar como residente de Macau com base no espaço em branco no documento de identidade do seu pai. Tal violaria inevitavelmente o princípio da legalidade.
22. Na verdade, é impossível à Administração conhecer a identidade do pai biológico da recorrente, e só a mãe da recorrente o sabe melhor. De acordo com o artigo 62.º, n.º 2, artigo 87.º, artigo 88.º do Código do Procedimento Administrativo e artigo 335.º, n.º 1 do Código Civil, a recorrente tem o ónus da prova de que se ela tem ou não o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau. E se ela considerar que ela própria preenche os requisitos legais para ter o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, deve fornecer informações ou provas à Administração como o comprova (no casos semelhante de informações falsas sobre a paternidade, o V/ tribunal concordou com o parecer do Ministério Público de que o ónus da prova cabe à pessoa que requer o bilhete, ver o acórdão do Colectivo do proc. n.º 809/2021 de 16 de Junho de 2022).
23. Tendo a Conservatória do Registo Civil corrigido o registo de nascimento da recorrente, os factos relevantes confirmaram que a recorrente não preenche os requisitos legais e não tem a identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau. Isto é suficiente para que a Administração inicie procedimento administrativo para cancelar o bilhete de identidade e o passaporte da recorrente.
24. Com base na análise supra, a advogada representante indicou que a entidade recorrida interpretou erradamente o disposto no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, resultando em que a conduta da recorrente apresenta um vício da existência de erro no fundamento jurídico, sendo improcedente a alegação em causa.
Quanto à alegação da advogada representante de que o acto recorrido violou manifestamente os princípios da proporcionalidade, da boa fé e da justiça, bem como o direito fundamental à vida previsto na “Lei Básica” (artigos 18.º a 22.º da petição inicial):
25. A advogada representante salientou que a recorrente nasceu, foi criada e viveu em Macau, e que a nulidade da emissão do bilhete de identidade não foi causada por culpa da recorrente quem considera Macau como a sua casa e espera contribuir para a sociedade de Macau. Como a paternidade da recorrente não foi confirmada e a sua mãe se tornou residente em Macau, a decisão de cancelar o bilhete de identidade de residente de Macau da recorrente viola claramente os princípios da proporcionalidade, da boa-fé e da justiça, bem como o direito fundamental à vida estipulado na “Lei Básica”.
26. Como acima referido, a lei estipula directamente quem é qualificado como residente permanente de Macau. A Administração só pode emitir bilhetes de identidade de residente da RAEM e passaportes da RAEM a pessoas qualificadas de acordo com a lei. Em situações em que o acto de emissão do bilhete seja considerado nulo, a Administração também deve, obrigatoriamente segundo a lei, declarar a nulidade do acto. Trata-se de um acto vinculado, no qual a Administração não possui qualquer margem de escolha quanto ao conteúdo do acto, não havendo espaço para discricionariedade.
27. Relativamente ao papel dos princípios gerais do direito administrativo em actos vinculados, o V/ tribunal, na decisão do caso semelhante sobre a falsa paternidade (do acórdão do Colectivo do proc. n.º 1191/2019, proferido em 10 de Dezembro de 2020), apontou que, para os actos vinculados, não faz sentido invocar os princípios gerais do direito administrativo dispostos pelo Código do Procedimento Administrativo (princípio da boa-fé, da confiança, da proporcionalidade e da justiça) (o Tribunal de Última Instância tem o mesmo ponto de vista nos seus acórdãos do Colectivo no proc. n.º 26/2019, de 18 de Setembro de 2019 e no proc. n.º 14/2014, de 9 de Abril de 2014).
28. Com base nisto, sendo a declaração de nulidade de uma série de actos de emissão de bilhetes à recorrente um acto vinculado, não se aplicam os princípios gerais de direito administrativo. Por outras palavras, a decisão não violou os princípios da proporcionalidade, da boa-fé e da justiça, tal como referidos pela advogada representante.
29. Na verdade, a entidade recorrida está ciente de que os dados de identidade falsos não foram fornecidos pela recorrente, nem esta participou nos actos que levaram à nulidade do seu bilhete de residente. No entanto, é claro que tais actos foram praticados em benefício da recorrente, com o objectivo de lhe permitir obter um direito ao qual não teria direito, possibilitando-lhe assim a identidade de residente permanente de Macau. Pode-se dizer que a recorrente é a principal beneficiária dos referidos actos.
30. Por conseguinte, mesmo que os actos relevantes não tenham sido tomados pela recorrente, a recorrente obteve originariamente a qualidade de residência em Macau com base no “nascimento” e na “qualificação de residência do pai”. O tribunal confirmou agora que a relação pai-filha registada é falsa e que a sua “identidade de residente de Macau”, previamente confirmado, foi obtido através do fornecimento malicioso de informações falsas de identidade. A Administrativa só pode declarar nula a série de actos de emissão de bilhetes à recorrente, nos termos da lei.
31. Nestas circunstâncias, a Administração não pode continuar a emitir o bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau à recorrente, com base em argumentos como o facto de que a recorrente reside em Macau há muitos anos, que considera Macau como o seu lar e que sua mãe já é residente de Macau.
32. Mesmo que a recorrente possua o bilhete de identidade por muitos anos, isso não a torna reconhecida como residente permanente de Macau, pois a “expectativa razoável” protegida pela lei deve basear-se no “cumprimento das disposições legais”. Se a Administração continuar a emitir o bilhete de residente permanente da RAEM à recorrente que não possui a identidade de residente permanente, isso violaria o princípio da legalidade.
33. Quanto à afirmação da advogada representante de que a decisão de cancelar os documentos viola o direito fundamental relacionado ao direito à vida previsto na “Lei Básica”, na verdade, a recorrente é maior de idade e tem legalmente plena capacidade jurídica. Mesmo que não tenha o estatuto de residente em Macau, isso não a impede de escolher uma profissão e de trabalhar em Macau ou noutro local como residente de outro local. Não há qualquer prova de que o acto recorrido, tal como apontado pela advogada representante, viole as disposições da “Lei Básica” sobre o direito fundamental relacionado ao direito à vida.
Quanto à atribuição dos efeitos jurídicos putativos a actos administrativos nulos (artigos 23.º a 38.º da petição inicial):
34. A advogada representante entende que, ainda que a atribuição dos efeitos jurídicos putativos a acto administrativo nulo e a declaração de nulidade da emissão de documentos sejam dois procedimentos distintos, podem ser tratados no mesmo procedimento, não concorda que a Administrativa deva esperar até que a decisão de invalidar os documentos seja definitiva ou que não haja impugnação sobre a decisão antes de analisar o pedido de atribuição de efeitos jurídicos presuntivos a acto administrativo nulo. Entende que a prática da Administração viola o disposto no artigo 123.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo e os princípios da proporcionalidade, da boa-fé e da justiça. A respectiva decisão padece dos vícios de se recusar a exercer discricionariedade ou da total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
35. Sobre a aplicação do artigo 123.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo, mediante o parecer do Ministério Público no acórdão do Colectivo do proc. n.º 1078/2020 de 10 de Março de 2022 e a declaração dos juízes do V/ tribunal no proc. n.º 833/2021 de 19 de Maio de 2022, resultam que o pressuposto da atribuição dos efeitos jurídicos putativos a acto nulo necessita de ter, em primeiro, uma decisão de declaração de nulidade, e aguardar até que a decisão sobre a declaração da nulidade de emissão de documentos à recorrente fosse definitiva ou inimpugnável, só pode tratar do pedido apresentado nos termos do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, caso contrário, iria surgir uma circunstância em que, por um lado, havia uma impugnação daquele acto nulo, e por outro lado, exigem a atribuição dos efeitos jurídicos putativos a acto nulo.
36. Podem verificar-se que, a atribuição ou não dos efeitos jurídicos putativos a situações de factos decorrentes do acto nulo, com a declaração da nulidade quanto à emissão de documentos, sendo os dois diferentes procedimentos distintos, opinião a qual é também aceitável na prática jurídica.
37. Devido ao facto de que, neste procedimento administrativo, deve-se primeiro tratar da questão da nulidade do acto de emissão, só pode ser tratado o pedido de se atribuir ou não à recorrente o efeito jurídico putativo decorrente do acto nulo, e aguardar até que a decisão da Administração sobre a declaração da nulidade de emissão de documentos fosse definitiva ou inimpugnável, pelo que, actualmente, a Administração não fez decisão sobre o respectivo pedido.
38. Ou seja, neste caso, a Administração apenas declarou nulo o acto de emissão do bilhete de identidade de residente permanente da RAEM e do passaporte da RAEM à recorrente e cancelou os documentos relevantes, e nunca tomou qualquer decisão sobre se deveria conferir às situações de facto decorrentes do acto nulo um efeito jurídico putativo.
39. De acordo com o artigo 28.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo Contencioso, apenas os actos administrativo praticados pela Administração podem ser o objecto do recurso contencioso. Em tais circunstâncias, a entidade recorrida entende que o objecto do presente recurso contencioso deve limitar-se à decisão de declarar nula a emissão de documentos à recorrente e de cancelar os documentos relevantes, não devendo incluir a questão de atribuir à recorrente o efeito jurídico putativo do acto nulo, nos termos do artigo 123.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo, uma vez que a Administração nunca tomou qualquer decisão sobre a atribuição ou não do efeito jurídico putativo relevante à recorrente.
40. Importa ainda referir que em vários casos semelhantes envolvendo falsa paternidade para cancelamento de bilhetes de identidade, é discricionária a decisão da Administração de atribuir ou não efeitos jurídicos putativos a situações a facto decorrentes do acto nulo, nos termos do artigo 123.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo. Embora a lei conceda este poder à Administração, não a obriga a tomar tal decisão. Mesmo que a Administração decida, em última instância, não atribuir os efeitos jurídicos putativos ao acto nulo, as práticas relevantes não contêm o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, nem violam os princípios orientadores das actividades administrativas, como a boa-fé, a justiça e a proporcionalidade (ver o acórdão do Colectivo no processo n.º 782/2017, de 11 de Outubro de 2018 do V/ Tribunal e os acórdãos do Colectivo no processo n.º 53/2021 de 27 de Julho de 2022 e no processo n.º 56/2021 de 21 de Setembro de 2022 e no processo n.º 83/2022, de 4 de Novembro de 2022, do Tribunal de Última Instância).
41. Como acima referido, conceder a um acto nulo um efeito jurídico putativo e declarar nulo o acto de emissão de bilhetes são dois procedimentos diferentes. Por conseguinte, nesta fase, a Administração ainda não apreciou o pedido formulado pela recorrente sobre a atribuição do efeito jurídico putativo relevante. Concluído o procedimento administrativo pertinente para a declaração de nulidade da emissão do bilhete, a Administração dará, certamente, início aos procedimentos administrativos para analisar se lhe atribuirá o efeito jurídico putativo, de acordo com a lei e o requerimento da recorrente.
42. Quanto à alegação do advogado representante de que a Administração utilizou o facto de não ter atribuído ao acto nulo o efeito jurídico putativo como motivo para não tomar a decisão relevante para a recorrente e acreditava que a decisão relevante violava o princípio da legalidade, na verdade, esta foi meramente a explicação da Administração sobre o tratamento de pedidos homólogos no passado e não foi utilizada como motivo de negação.
43. Com base na análise supra, tendo em conta que a entidade recorrida ainda não se tratou sobre o pedido de efeito jurídico putativo formulado pela recorrente no presente procedimento administrativo, a questão em causa não constitui objecto do presente recurso contencioso, muito menos o facto de o acto recorrido violar o artigo 123.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo, como indicado pela advogada representante, bem como os princípios gerais de direito administrativo, incluindo os princípios da proporcionalidade, da boa-fé e da justiça.
44. Por conseguinte, é improcedente o que dito pela advogada representante de que o acto recorrido padece do vício pelo erro manifesto ou pela total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, ambas silenciaram.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer com o seguinte teor:
«1.
A, melhor identificado nos autos, vem interpor recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Administração e Justiça, que indeferiu o recurso hierárquico interposto do acto da Directora dos Serviços de Identificação que declarou nulos os actos administrativos de emissão do Bilhete de Identidade de Residente (BIR) e do passaporte da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM) e bem assim os actos da respectiva substituição e renovação, pedindo a respectiva anulação.
2.
As questões colocadas no presente recurso não são novas, longe disso.
Apesar do entendimento diferente que em anteriores ocasiões sufragámos, afigura-se-nos que a pretensão anulatória da Recorrente não pode proceder (cfr. artigo 7.º, n.º 3 do Código Civil).
(i)
Quanto à questão da nulidade, como foi afirmado pelo Tribunal de Última Instância nos processos n.º 53/2021 e n.º 56/2021 e depois reiterado nos processos n.º 83/2022, n.º 96/2022, n.º 119/2022 e n.º 34/2023:
«1. O elemento essencial de um acto refere-se a qualquer elemento importante que possa levar a que o acto respectivo não seja possível ser caracterizado como acto administrativo, ou a qualquer elemento cuja falta seja tão grave que o acto deva ser considerado nulo.
2. Para além dos elementos comuns aos actos administrativos gerais, existem ainda alguns elementos que devem ser considerados imprescindíveis devido ao tipo e situação dos actos administrativos específicos, que são também os elementos principais dos actos administrativos.
3. O legislador de Macau estabelece um regime jurídico rigoroso para a aquisição do estatuto de residente de Macau e a emissão de bilhetes de identidade de residente de Macau, o D.L n.º 6/92/M, alterado pelo D.L n.º 63/95/M, o D.L n.º19/99M, bem como a Lei n.º 8/2002 regularam sucessivamente o regime do bilhete de identidade de residente de Macau, o art.º 24.º da Lei Básica da RAEM e os art.ºs 1.º e 3.º da Lei n.º 8/1999 (Lei sobre residente permanente e direito de residência da RAEM) regulam especificamente o residente permanente e o residente não permanente da RAEM, definindo o âmbito do residente permanente, entre os quais foram criados critérios rigorosos e fixados o “nascido em Macau” e “o pai ou a mãe à data do nascimento são residentes de Macau” como condições prévias para os filhos obterem o estatuto de residente de Macau ou residente permanente de Macau.
4. Caso o interessado não reúna as condições legais, certamente a autoridade competente não lhe deve emitir o bilhete de identidade de residente de Macau; se vier a verificar posteriormente que não estão reunidas as condições legais, a autoridade administrativa deve declarar nulo o acto administrativo correspondente e cancelar o documento comprovativo da identidade já emitido, sob pena de violar as disposições legais respectivas, nomeadamente o art. 24.º da Lei Básica da RAEM e o art. 1.º da Lei n.º 8/1999.”
5. No presente caso, o acto da Administração de ter emitido pela primeira vez à recorrente o bilhete de identidade de residente de Macau efetivamente carece de elementos que devam ser considerados “principais” à luz das circunstâncias específicas do acto (ou seja a veracidade do facto de a recorrente possuir a qualidade de residente de Macau por causa do pai dela ser residente de Macau), pelo que o acto é um acto nulo e também são nulos os actos administrativos subsequentes de substituição e de renovação do bilhete de identidade de residente permanente da RAEM».
(ii)
Do mesmo modo em relação à questão dos chamados efeitos putativos do acto nulo.
Segundo os citados acórdãos do Tribunal de Última Instância:
«6. De acordo com o art.º 123.º do Código do Procedimento Administrativo, em princípio, o acto administrativo nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, podendo os interessados invocar a todo o tempo a nulidade, podendo também os órgãos administrativos ou tribunais declarar nulos os actos administrativos a qualquer tempo; em certa circunstância, o legislador atribui certos efeitos jurídicos a actos nulos que, em princípio, não produzem quaisquer efeitos jurídicos.
7. A passagem do tempo não é suficiente para que um acto nulo produza efeitos jurídicos. Este efeito só pode ser produzido “de acordo com os princípios gerais de direito”, tais como os princípios da proteção da confiança, da boa-fé, da igualdade, da imparcialidade, da proporcionalidade, da imparcialidade, do enriquecimento sem causa e da realização do interesse público. As injustiças decorrentes de uma acto administrativo nulo podem ser resolvidas de acordo com esses princípios que limitam a Administração.
8. Se o acto do próprio indivíduo (como nos casos de coacção ou crime, ou até, simplesmente, de dolo ou má-fé) tiver causado a nulidade do acto administrativo, então absolutamente não se pode atribuir-lhe os efeitos putativos favoráveis.
9. A aplicação ou não do poder atribuído pelo n.º 3 do art.º 123.º, a “reserva” de certos efeitos jurídicos derivados de actos nulos é do âmbito do poder discricionário da Administração.
10. No âmbito do exercício do poder discricionário pela Administração, as decisões da Administração não são sujeitas a revisão dos tribunais, se não envolverem matéria a resolver por decisão vinculada, salvo erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício do poder discricionário.
11. Ao apreciar se o órgão administrativo cumpre os princípios gerais do direito administrativo tais como os princípios da proporcionalidade, da confiança, da imparcialidade e da boa-fé, os juízes só podem intervir se a decisão administrativa violar de forma intolerável tais princípios».
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que o recurso contencioso deve ser julgado improcedente.».
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
1. Por despacho de 04.09.2024 do Secretário para a Administração e Justiça foi indeferido o recurso hierárquico interposto pela ora Requerente da decisão da Direcção dos Serviços de Identificação que declarou a nulidade dos actos de emitir, renovar e substituir o bilhete de identidade de residente permanente e o passaporte da RAEM, dos quais a ora Requerente era titular com o seguinte teor:
«(…)
“Relativamente ao recurso hierárquico necessário que a advogada de A (adiante designada por “Parte”) interpôs para o Sr. Secretário para a Administração e Justiça, contra a decisão destes Serviços que declarou a nulidade do acto de emitir, renovar e substituir o bilhete de identidade permanente e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau da Parte e que cancelou o seu bilhete de identidade permanente e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau, nos termos do artigo 159.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, é da nossa opinião que:
I. Factos
1. A Parte A nasceu em Macau no dia 13 de Junho de 1999, titular do assento de nascimento n.º 1885 emitido pela Conservatória de Registo de Nascimento, donde constava a seguinte indicação: o pai C, residente de Macau (titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau n.º 12XXXX1(4)), a mãe B, residente do Interior da China.
2. A 21 de Junho de 1999, C pediu, em representação da Parte, pela primeira vez, a estes Serviços a emissão do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, tendo estes Serviços, com base nos dados constantes do assento de nascimento acima referido, emitido, pela primeira vez, à Parte o Bilhete de Identidade de Residente de Macau sob o n.º 1/3XXXX7/3.
3. A 25 de Julho de 2005, C pediu, em representação da Parte, a estes Serviços a substituição do BIR por bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, tendo estes Serviços, com base nos dados constantes do assento de nascimento acima referido, emitido à Parte o bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau n.º 13XXXX7(3), o qual foi renovado em 25 de Maio de 2010, 23 de Julho de 2014 e 6 de Maio de 2019, respectivamente.
4. A 30 de Novembro de 2021, estes Serviços receberam um ofício do Corpo de Polícia de Segurança Pública, informando que na apreciação do pedido de fixação de residência em Macau da mãe da Parte, o Corpo de Polícia de Segurança Pública descobriu que a filha (a Parte) de B e do pai, C, que nasceu naquela altura, se envolveu num caso de pai biológico falso.
5. A 29 de Dezembro de 2021, por terem dúvidas sobre a relação entre a Parte e os seus pais, estes Serviços enviaram ofício à Parte, exigindo-lhe a apresentação de certidão de teste de paternidade entre ela, C e B.
6. A 12 de Janeiro de 2024, estes Serviços receberam a notificação enviada pelo Ministério Público, indicando que foi instaurada contra a Parte uma acção declarativa comum de impugnação de paternidade que corria termos no Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base sob o n.º FM1-22-0040-CAO. A decisão da acção foi proferida em 28 de Novembro de 2023 que já transitou em julgado, cujo teor foi averbado pela Conservatória do Registo Civil ao assento de nascimento da Parte.
7. Para tal, estes Serviços enviaram ofício em 23 de Janeiro de 2024 à Conservatória do Registo Civil para pedir o registo de nascimento mais recente da Parte.
8. A 6 de Fevereiro de 2024, estes Serviços receberam o assento de nascimento n.º 1885/1999/CR da Parte que já foi actualizado, donde consta a seguinte indicação: o pai ***, a mãe B.
9. Além disso, a Parte possui o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau n.º MB01XXXX3 que foi emitido em 6 de Julho de 2023 e é válido até 6 de Julho de 2033.
10. Como o pai era incógnito e a mãe não era residente da Região Administrativa Especial de Macau no tempo do nascimento da Parte, esta não tinha o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, a ela não deveria ser emitido o bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau. Assim, por ofício n.º 1360/DSI-DAG/OFI/2024 de 28 de Maio de 2024 destes Serviços, foi a Parte notificada de que estes Serviços iam cancelar o bilhete de identidade de residente permanente n.º 13XXXX7(3) e o passaporte n.º MB01XXXX3 da Região Administrativa Especial de Macau possuídos por ela. Além disso, foi realizada audiência escrita.
11. A advogada da Parte apresentou, em 7 de Junho de 2024, as alegações escritas e o respectivo documento comprovativo a estes Serviços.
12. Após uma análise, visto que a advogada não conseguiu provar nas alegações escritas o facto de a Parte reunir os requisitos legais para a aquisição do estatuto de residente permanente de Macau, em 8 de Julho de 2024, estes Serviços tomaram, na Proposta n.º 28/DAG/DJP/D/2024, a decisão de declarar a nulidade dos actos de emitir, renovar e substituir o bilhete de identidade de residente permanente e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau da Parte, bem como de cancelar o bilhete de identidade de residente permanente e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau da mesma. Tal decisão foi notificada à advogada em 22 de Julho do mesmo ano mediante o ofício n.º 1606/DSI-DAG/OFI/2024.
13. A 13 de Agosto de 2024, de tal decisão a advogada da Parte interpôs recurso hierárquico necessário junto do Sr. Secretário. Estes Serviços receberam os documentos encaminhados pelo Gabinete do Sr. Secretário em 14 de Agosto.
II. Direito
(1) A Parte não preenche os requisitos legais para o estatuto de residente de Macau
14. Prevê o artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 19/99/M de 10 de Maio, «Aprova o novo regime de emissão do Bilhete de Identidade de Residente» que “se consideram residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento.” E segundo a alínea a) do n.º 1 do seu artigo 26.º, “o pedido do BIR deve ser acompanhado de: a) Certidão de narrativa de registo de nascimento ou documento equivalente”.
15. Uma vez que a Parte nasceu em 13 de Junho de 1999 em Macau, do assento de nascimento daquela altura constava que o pai era residente de Macau C, pelo que, em 21 de Junho de 1999, estes Serviços emitiram pela primeira vez o Bilhete de Identidade de Residente de Macau, sob o n.º 1/3XXXX7/3, à Parte.
16. Depois, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, da Lei n.º 8/1999 « Lei sobre Residente Permanente e Direito de Residência da Região Administrativa Especial de Macau» - “São considerados residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau, os cidadãos chineses titulares do BIR emitido antes de 20 de Dezembro de 1999 que preencham um dos seguintes requisitos:1) Constar do BIR que o local de nascimento é Macau; 2) Ter decorrido sete anos desde a data da primeira emissão do BIR; …” e do artigo 2.º, n. 2, alínea 1), da Lei n.º 8/2002 «Regime do bilhete de identidade de residente da Região Administrativa Especial de Macau» - “O Bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, que é concedido aos residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau”, estes Serviços emitiram, em 25 de Julho de 2005, o bilhete de identidade de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau n.º 13XXXX7(3) à Parte.
17. Ao abrigo do artigo 2.º, n.º 2, alínea 1), da Lei n.º 8/2002 e do artigo 23.º do Regulamento Administrativo n.º 23/2002 «Regulamento do bilhete de identidade de residente da Região Administrativa Especial de Macau», tal BIR foi renovado, respectivamente, em 25 de Maio de 2010, 23 de Julho de 2014 e 6 de Maio de 2019.
18. A 12 de Janeiro de 2024, estes Serviços receberam a notificação do Ministério Público, informando que foi instaurada contra a Parte uma acção declarativa comum de impugnação de paternidade que corria termos no Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base sob o n.º FM1-22-0040-CAO. A decisão da acção foi proferida em 28 de Novembro de 2023 que já transitou em julgado, cujo teor foi averbado pela Conservatória do Registo Civil ao assento de nascimento da Parte. Actualmente, do assento de nascimento consta que o pai é ***, a mãe é B.
19. Uma vez que a mãe biológica não era residente de Macau na altura em que a Parte nasceu, além disso, nem se conseguiu confirmar a identidade do pai biológico, do que resultou que a Parte não preenche os requisitos previstos no artigo 5.º, n.º 1 e no artigo 26.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, não se deve conceder o Bilhete de Identidade de Residente de Macau àquele que não possua o estatuto de residente de Macau. A Parte também não satisfaz as disposições do artigo 9.º, n.º 2, da Lei n.º 8/1999, do artigo 2.º, n.º 2, alínea 1), da Lei n.º 8/2002 e do artigo 23.º do Regulamento Administrativo n.º 23/2002, não se deve conceder o Bilhete de Identidade de Residente de Macau àquele que não possua o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau.
20. Acresce que, dado que a Parte não possui o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, não se encontra preenchido o requisito indicado no artigo 5.º da Lei n.º 8/2009 «Regime dos documentos de viagem da Região Administrativa Especial de Macau», a ela não deve ser emitido o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau n.º MB01XXXX3.
(2) Falta de elemento essencial ao acto de emissão do documento
21. A lei estabelece rigorosamente os requisitos para adquirir o estatuto de residente de Macau. Segundo o artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio: “Consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento.” Para ser o residente de Macau, há que verificar os dois requisitos a seguir indicados: para um indivíduo adquirir o estatuto de residente de Macau, ele (1) deve nascer em Macau; (2) o pai biológico ou a mãe biológica reside legalmente em Macau à data do seu nascimento.
22. Segundo os diplomas legais citados, a veracidade do facto provado (a veracidade do facto de que a Parte adquiriu o Bilhete de Identidade de Residente de Macau por o pai ser o residente de Macau) é considerada como elemento essencial do acto administrativo.
23. Dispõe o artigo 122.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo que: “São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.”
24. Dado que não é verdadeira a identidade do pai registada no assento de nascimento e a falsidade desse facto equivale à falta absoluta do conteúdo ou objecto do acto administrativo. Perante a insatisfação dos requisitos legais, os actos destes Serviços de emitir os documentos são actos sem base legal, os quais prejudicam o interesse público e devido à gravidade dos danos causados, sofrem do vício de nulidade por falta de elemento essencial.
25. Deste modo, nos termos do artigo 122.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, por falta de elementos essenciais são nulos os actos administrativos de emitir uma série de documentos à Parte, os quais nunca produziram efeitos.
(3) São nulos os actos consequentes do acto de emissão do documento
26. De acordo com o artigo 122.º, n.º, alínea i), do Código do Procedimento Administrativo, os actos nulos abrangem: “Os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na manutenção do acto consequente.”
27. O referido acto administrativo destes Serviços de emitir o documento de identificação à Parte é nulo por omissão de elemento essencial, o que, nos termos do artigo 122.º, n.º 2, alínea i), do Código do Procedimento Administrativo, implica a nulidade dos posteriores actos de conceder à Parte a renovação e substituição do BIR que foram praticados com base no acto administrativo nulo.
28. Não há, no caso vertente, contra-interessados com interesse legítimo, portanto, não existe a situação excepcional prevista na segunda parte daquele artigo.
III. Análise do recurso hierárquico
(1) Quanto à identidade do pai biológico da Parte (pontos 1 a 14 do recurso hierárquico)
29. Apontou a advogada que, no assento de nascimento actual da Parte consta que o pai é desconhecido, mas não indica que o seu pai não é residente de Macau. Como o espaço para a identidade do pai foi deixado em branco, a Parte ainda tem oportunidade de reunir os requisitos legais para ter o estatuto de residente de Macau, pelo que entende que se deve manter, pelo menos, o estatuto de residente de Macau da Parte até que seja confirmada a identidade do seu pai. Além disso, acrescentou a advogada que a Parte tem o ónus da prova quanto à identidade do seu pai e, ao mesmo tempo, a Administração também tem o dever de apurar o facto, não devendo transferir todos os deveres para a outra parte. Entende que na situação em que a identidade do pai é desconhecida e a mãe já se tornou residente de Macau, a decisão de cancelamento do Bilhete de Identidade de Residente de Macau da Parte viola manifestamente os princípios da proporcionalidade, da boa fé, da justiça, violando ainda o direito fundamental à vida consagrado na «Lei Básica».
30. Não podemos concordar com o ponto de vista da advogada expresso no número anterior. Estipula o artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, «Aprova o novo regime de emissão do Bilhete de Identidade de Residente» que estava vigente na altura em que nasceu a Parte: “consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento.” A norma especifica que apenas pode adquirir o estatuto de residente de Macau aquele que nasceu em Macau e o pai ou a mãe resida legalmente em Macau à data do seu nascimento.
31. In casu, a Parte obteve naquela altura o estatuto de residente de Macau por causa de que do assento de nascimento dela constava que o seu pai, C, era residente de Macau. Agora a Conservatória do Registo Civil rectificou o registo do nascimento da Parte, indicando que o pai: ***, a mãe: B, residente do Interior da China. Uma vez que não se conseguiu provar que o pai biológico ou a mãe biológica da Parte residia legalmente em Macau à data do seu nascimento, não se encontrava preenchido o requisito previsto no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, portanto, a Parte não possui o estatuto de residente de Macau, não lhe devendo ser emitido o Bilhete de Identidade de Residente de Macau.
32. Nesta situação, estes Serviços não podem fazer como a advogada disse, não podendo continuar a emitir à Parte o Bilhete de Identidade de Residente de Macau tão só porque a mesma “tem oportunidade” para possuir o estatuto de residente de Macau, enquanto a identidade do seu pai é desconhecida. Isso violará necessariamente o princípio da legalidade.
33. No que concerne à identidade do pai biológico da Parte, há que apontar que estes Serviços não têm competência para investigar e determinar a identidade do pai biológico da Parte, é impossível para a Administração saber da identidade do pai biológico da mesma. De facto, só a mãe da Parte é que sabe melhor da identidade do pai biológico da Parte.
34. Ainda mais, nos termos dos artigos 62.º, n.º 2, 87.º e 88.º do Código do Procedimento Administrativo e do artigo 335.º , n.º 1 “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, do Código Civil, cabe à Parte o ónus de provar o seu estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau. Caso entenda reunir os requisitos legais para a aquisição do estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, deve apresentar à Administração as informações ou prova.
35. É de salientar que a lei estipula directamente quem tenha o estatuto do residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau e que, para verificar se uma pessoa tem o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, tanto o Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10 de Maio, como o posterior regime do bilhete de identidade de residente, exigem que a identidade dos pais do requerente seja determinada com base no assento de nascimento do requerente para determinar se o requerente tem o estatuto do residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau.
36. A este respeito, pelo Ministério Público foi emitido o parecer na sua sentença sobre um caso semelhante de informações falsas sobre a paternidade, indicando expressamente que é claramente errado o entendimento de que o ónus da prova da paternidade cabe à Administração quando não constava do assento de nascimento a paternidade, não considerando que a decisão da Administração de declarar da nulidade do documento tenha violado o princípio da inquisitório (vide o acórdão do Tribunal de Segunda Instância no processo n.º 809/2021, de 16/6/2022, em que o Juiz do Tribunal de Segunda Instância concordou e reproduziu os pareceres pertinentes da decisão):
“Começa a Recorrente por alegar que é uma cidadã chinesa que residiu habitualmente em Macau por mais de 7 anos e que, por isso, face ao disposto no artigo l.º, n. e 1, alínea 2) e artigo 4.º e da Lei n.º 8/1999 adquiriu o estatuto de residente permanente.
Diz mais. Diz que, actualmente, do seu assento de nascimento não resulta quem é o seu pai, pelo que era sobre a Administração que recaia o ónus da prova quanto à questão da paternidade da Recorrente em virtude do princípio do inquisitório previsto no artigo 86.º do Código do Procedimento Administrativo (Código do Procedimento Administrativo).
Salvo o devido respeito, a Recorrente labora em manifesto equívoco.
Na verdade, a Administração declarou a nulidade do acto da emissão e dos actos de renovação do BIR da Recorrente no pressuposto da sua nulidade em virtude da desconformidade verificada judicialmente entre a paternidade da Recorrente constante do registo e a paternidade biológica. Ficou judicialmente demonstrado que o pai da Recorrente não é o residente de Macau que ficou a constar do seu assento de nascimento.
Ora, por força da declaração de nulidade da emissão do BIR e bem assim das respectivas renovações, atento o efeito retroactivo das mesmas, é evidente que se não pode dizer que a Recorrente tenha residido legalmente em Macau e, portanto, face ao disposto no n.º 1 do artigo 4.º e da lei n.º 8/1999 que aqui tenha residido habitualmente.
Parece-nos deslocada, neste contexto, a invocação do princípio do inquisitório para procurar justificar a anulação do acto recorrido tendo em conta os seus concretos fundamentos.”
(Sublinhado nosso)
37. A advogada referiu que, na situação em que a mãe já passou a ser residente de Macau e não foi confirmada a paternidade, a decisão de cancelar o Bilhete de Identidade de Residente de Macau da parte violava claramente os princípios da proporcionalidade, da boa fé e da justiça. É de frisar novamente que, uma vez que não conseguiu comprovar que o pai biológico ou a mãe biológica residia legalmente em Macau à data do nascimento da parte em Macau, pelo que a parte não preencheu os requisitos legais de obter a qualificação de residente de Macau, a Direcção dos Serviços de Identificação tem de declarar a nulidade do acto da emissão do documento nos termos da lei. Este é um acto vinculado, a Administração não tem qualquer direito de opção quanto ao conteúdo daquele acto, nem tem margem para discricionariedade.
38. Nestas circunstâncias, a Direcção dos Serviços de Identificação não pode, a pedido apresentado pela advogada (vide a última parte do recurso hierárquico), exercer o poder discricionário para conservar o estatuto de residente de Macau da parte e conservar o seu Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau e o seu passaporte da Região Administrativa Especial de Macau, uma vez que o legislador não concedeu qualquer margem à Administração para exercer o poder discricionário.
39. No que diz respeito à função dos princípios gerais fundamentais do direito administrativo para o acto vinculado, o Tribunal de Segunda Instância no acórdão dos casos semelhantes de informações falsas sobre a paternidade (acórdão do proc. n.º 1191/2019, de 10/12/2020) referiu que não tem significado para invocar os princípios gerais do direito administrativo (princípio da boa fé, da confiança e da proporcionalidade e da justiça) previstos no Código do Procedimento Administrativo em relação ao acto vinculado:
“De seguida, passemos a ver a 3.ª e 4.ª questão em conjunto.
Violação de lei por a administração ter considerado que o acto de declaração de nulidade é vinculado e
Violação dos princípios da boa fé da confiança da proporcionalidade e da justiça;
Nos termos acima analisados, não resta dúvida que a situação de reconhecimento do direito a residir em Macau é uma situação vinculativa, desde que estejam preenchidos os pressupostos legalmente fixados, o agente administrativo tem de reconhecer tal direito, não lhe restando quase nenhum espaço da opção. Pelo que, torna-se inútil invocar os princípios gerais do Direito Administrativo, já que o controlo do acto administrativo praticado no exercício do poder vinculado é muito apertado.
Nesta óptica, improcede também estes argumentos do Recorrente, julgando-se também improcedente o recurso nesta parte.”
40. Alem disso, o Tribunal de Última Instância, no seu acórdão do processo n.º 26/2019, de 18/9/2019, indicou que “Por outro lado, é de reafirmar aqui o entendimento uniforme deste Tribunal de Última Instância no sentido de que no âmbito da actividade vinculada não se releva a alegada violação dos princípios da boa fé e da igualdade (e ainda dos princípios da justiça, da proporcionalidade, da tutela da confiança).”
41. É de indicar também o acórdão do Tribunal de Última Instância, no proc. n.º 14/2014, de 9/4/2014, que:
“Ora, como se sabe, em sede de vinculações legais, não está em causa a infracção de princípios como o da proporcionalidade ou da justiça, que só têm razão de ser naquelas matérias em que os órgãos administrativos têm poderes discricionários, o que não é o caso.
Como referimos no acórdão de 14 de Dezembro de 2011, no processo n.º 54/2011, quando a Administração não dispõe, face ao tipo legal do acto, de margem de discricionariedade ou liberdade decisória, é inoperante a alegação de violação dos princípios da boa-fé, da igualdade, proporcionalidade ou justiça.”
42. Nesta base, como a declaração da nulidade de uma série de actos de emissão de documentos à parte é um acto vinculado, os princípios gerais do direito administrativo não se aplicam, ou seja, a decisão não viola os princípios da proporcionalidade, da boa fé e da imparcialidade referidos pela advogada representante.
43. No que diz respeito a que a advogada indicou que, após o cancelamento dos documentos da parte, o desconhecimento da paternidade impossibilitou-a de obter um registo domiciliar e de reconstruir a sua vida, considerou que a decisão de cancelar os documentos violava a Lei Básica no que diz respeito ao direito fundamental à vida. Como já foi referido, uma vez que a decisão de declarar a nulidade de um documento é um acto vinculado, nestas circunstâncias, a Direcção dos Serviços de Identificação não pode, pelo mero facto de a parte não poder obter o registo domiciliar e restabelecer a sua vida, continuar a emitir o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau à parte que não tem o estatuto de residente permanente de Macau, o que é contrário ao princípio da legalidade.
44. Apesar disso, não obsta a que a parte apresente à entidade competente um pedido de fixação de residência em Macau, nos termos do artigo 11.º, n.º 1 da Lei n.º 16/2021 (Regime jurídico do controlo de migração e das autorizações de permanência e residência na Região Administrativa Especial de Macau), “O Chefe do Executivo pode, por razões humanitárias ou por outros motivos excepcionalmente atendíveis e fundamentados, conceder autorizações de entrada, de permanência e de residência, e respectivas renovações ou prorrogações, com dispensa dos requisitos, condições e formalidades legalmente previstos.” Contudo, a concessão de autorização do pedido de fixação de residência em Macau é um procedimento diferente do procedimento de cancelamento de documentos aqui previsto, e a concessão ou não de autorização da fixação de residência em Macau a título excepcional, também não é uma questão a apreciar no procedimento de cancelamento de documentos aqui previsto.
(2) Relativamente ao aspecto de concessão de efeitos jurídicos putativos a acto administrativo nulo (pontos 15 a 19 do recurso hierárquico)
45. A advogada considerou que, embora a concessão de efeitos jurídicos putativos a um acto administrativo nulo e a declaração de nulidade da emissão de documentos fossem dois procedimentos distintos, não era necessariamente impossível tratá-los no mesmo procedimento. E não concordou com que a Direcção dos Serviços de Identificação tivesse de aguardar até que a decisão da nulidade da emissão de documento fosse definitiva ou inimpugnável antes de tratar do pedido da atribuição de efeitos jurídicos putativos a acto administrativo nulo, e considerou que a Direcção dos Serviços de Identificação deveria ter tratado o pedido no presente processo administrativo ao mesmo tempo.
46. De acordo com o artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, “O disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito.”
47. Relativamente à aplicação das disposições legais acima referidas, vide o parecer do Ministério Público no acórdão do Tribunal de Segunda Instância, proc. n.º 1078/2020, que refere o seguinte:
“6. No nosso prisma, a palavra ‘possibilidade’ significa que o n.º 3 do art.º 122.º do Código do Procedimento Administrativo confere poder discricionário à Administração. No aresto tirado no Processo n.º 147/2018, o douto TSI explanou: Cremos, no entanto, que o recorrente não pode obter por esta via (recurso contencioso contra o acto de cancelamento do Bilhete de Identidade de Residente de Macau) aquilo que só estará em causa, se e quando pedir à entidade administrativa competente que lhe atribua o direito à residência com fundamento no art.º 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo e 326.º do CC, ‘a contrario sensu’ , e se quando tal lhe for negado. Ou seja, só se não lhe for deferido esse pedido é que poderá tentar os mecanismos reactivos apropriados, seja pela via do recurso contencioso com a expressa invocação do respectivo vicio, seja pela via da acção a que se refere o art. 103.º, do Código do Processo Administrativo Contencioso, ou se tal for o caso, da acção reconhecimento de direito a que alude o art. 100.º.
Esta tese leva-nos a inferir que o exercício do poder discricionário consignado no referido n.° 3 carece do requerimento do interessado, e tem como pressuposto a prévia declaração da nulidade, por isso, a declaração da nulidade dum acto administrativo não coincide com a decisão de atribuição ou não certos efeitos jurídicos favoráveis, sendo distintos.”
48. Além disso, o Juiz do Tribunal de Segunda Instância, já em 19/5/2022, fez uma declaração para exprimir o seguinte entendimento:
“Por outro lado, a atribuição de efeitos jurídicos de fixação de residência em Macau à recorrente a situações de facto decorrentes de actos nulos, é necessário haver um pressuposto de declaração de nulidade. Assim, não é possível, por um lado, anular o acto recorrido (manter a decisão da declaração de nulidade do Director da Direcção dos Serviços de Identificação) e, por outro lado, conferir à recorrente o efeito jurídico do direito da fixação de residência em Macau com base nas circunstâncias de facto decorrente do acto nulo.
Com respeito das diferentes opiniões, considero que se pretender obter a atribuição de efeitos jurídicos de fixação de residência em Macau à recorrente a situações de facto decorrentes de actos nulos, é necessário em primeiro confessar o estabelecimento da declaração de nulidade feita pela Administração, sucessivamente, exigem à Administração a atribuição de efeitos jurídicos de fixação de residência em Macau à recorrente a situações de facto decorrentes de actos nulos.” (sublinhado nosso)
49. A partir daí verifica-se que o pressuposto da atribuição dos efeitos jurídicos putativos a acto nulo necessita de ter uma decisão de declaração de nulidade, e aguarda até que a decisão sobre a declaração da nulidade de emissão de documentos à parte fosse definitiva ou inimpugnável, só pode tratar do pedido apresentado nos termos do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, caso contrário, iria surgir uma circunstância em que, por um lado, havia uma impugnação daquele acto nulo, e por outro lado, exigem a atribuição dos efeitos jurídicos putativos a acto nulo.
50. Por outras palavras, a atribuição ou não dos efeitos jurídicos putativos a situações de factos decorrentes do acto nulo, com a declaração da nulidade quanto à emissão de documentos, sendo os dois diferentes procedimentos distintos, opinião a qual é também aceitável na prática jurídica.
51. Por conseguinte, face ao pedido apresentado nos termos do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, é necessário aguardar até que a decisão sobre a declaração da nulidade de emissão de documentos à parte fosse definitiva ou inimpugnável, só pode tratar de tal pedido, isto é, atribui ou não à parte os efeitos jurídicos putativos a acto nulo, não é a matéria que o presente processo administrativo deve apreciar.
52. Além disso, indicam os acórdãos do Tribunal de Última Instância, nos processos n.ºs 53/2021, 56/2021, de 27/7/2022 e de 21/9/2022:
“Se é aplicado ou não o poder conferido pelo art.º 123.º, n.º 3, para a “conservação” dos certos efeitos jurídicos decorrentes do acto nulo, sendo o âmbito do poder discricionário do órgão administrativo.
Quanto ao exercício do poder discricionário, salienta este TUI nos vários acórdãos, salvo a situação excepcional, no âmbito em que a Administração exerce o poder discricionário, a decisão feita pela Administração não sujeita à apreciação do tribunal no caso de não envolver a que a matéria deve ser resolvida através da decisão vinculada.”
53. Além disso, vide o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, no proc. n.º 782/2017, de 11/10/2018, no qual indica:
“Em relação aos eventuais efeitos putativos do acto nulo previstos pelo n.º 3 do art.º 123.º do Código do Procedimento Administrativo, salientamos que se trata duma excepção da regra geral prevista no n.º 11 do mesmo preceito.
Sendo regra de excepção, cabe à própria Administração ponderar, dentro do seu poder discricionário, se deve ou não atribuir certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes do acto nulo.
E consabido que o exercício do poder discricionário por parte da Administração só é sindicável pelo tribunal nos casos de erro manifesto, da total desrazoabilidade e do desvio de poder - als. d) e e) do n.º 1 do art.º 21.º do Código do Processo Administrativo Contencioso, que não é o caso.
Não ignoramos que o Recorrente não tem qualquer intervenção no processo de crime de falsificação de documento que lhe permitiu obter o estatuto de residente permanente e tem vivido na Região Administrativa Especial de Macau há mais de 16 anos.
Perante a necessidade de combate às situações fraudulentas de obter o estatuto de residente e o interesse do Recorrente em continuar a viver na Região Administrativa Especial de Macau, nada a censurar a Administração em dar mais relevância à primeira, ou à segunda.
Trata-se duma opção político-administrativa dentro do seu poder discricionário.
Pois, ao permitir o Recorrente continuar a residir na Região Administrativa Especial de Macau a título de residente permanente pode trazer à sociedade a mensagem errada no sentido de poder obter o estatuo(sic.) de residente permanente por aquela forma, o que equivale encorajar as pessoas a fazerem o mesmo no futuro.
Pelas razões expendidas, entendemos que o exercício do poder discricionário por parte da Administração no caso em apreço não padece do erro manifesto, da total desrazoabilidade e do desvio de poder, nem violou os princípios orientadores da actividade administrativa, nomeadamente os da boa fé, da justiça, da adequação e da proporcionalidade.”
54. Verifica-se que, para a atribuição dos efeitos jurídicos putativos a situações do facto decorrente do acto nulo ou não, sujeitar ao poder discricionário da Administração, e que, embora a lei confira esse poder à Administração, não a obriga a tomar essa decisão. Mesmo que a Administração decida, finalmente, não atribuir um efeito jurídico putativo ao acto administrativo nulo, a prática em causa não envolve a qualquer erro manifesto ou total desrazoabilidade, nem viola os princípios orientadores da boa fé, da justiça e da proporcionalidade na actividade administrativa.
55. A Direcção dos Serviços de Identificação tinha dito que nunca atribuiu os efeitos jurídicos putativos a situações do facto decorrentes do acto nulo, o que é meramente para explicar à advogada a situação real dos casos relevantes que a Direcção dos Serviços de Identificação já tratou, não é para ser o motivo de não exercer o poder discricionário, pois, desde o início até ao fim, a Direcção dos Serviços de Identificação sempre considera que a atribuição de efeitos jurídicos putativos a actos administrativos nulos como uma excepção no regime de nulidade é um procedimento diferente da declaração de nulidade do acto de emissão de documentos. Por conseguinte, a Direcção dos Serviços de Identificação não fez por enquanto qualquer análise e decisão sobre a atribuição ou não dos efeitos jurídicos putativos, já para não falar da alegação da advogada de que a decisão violava o princípio da legalidade.
IV. Sugestão
Pelo exposto, visto que, quando a parte nasceu em Macau, a sua mãe biológica não é residente de Macau, e não foi confirmada a identidade do seu pai biológico, assim, a parte não satisfaz a disposição do artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 19/99/M, de 10/5, pois não tem o estatuto de residente de Macau, pelo que não deve ser atribuído o Bilhete de Identidade de Residente de Macau, e que não satisfaz a disposição no artigo 9.º, n.º 2 da Lei n.º 8/1999, a mesma não tem o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau, também não preenche o artigo 2, n.º 2, alínea (1) da Lei n.º 8/2002 e o artigo 23 do Regulamento Administrativo n.º 23/2002, não deve ser atribuído o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau, e não deve ser atribuído o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau por não preencher o artigo 5.º da Lei n.º 8/2009, 《Estabelece os princípios gerais do Regime do bilhete de identidade de residente da Região Administrativa Especial de Macau》.
A paternidade constante do assento de nascimento da parte não é verdadeira, a falsidade do facto iguala à falta absoluta do conteúdo ou objecto do acto administrativo, pelo que o acto da emissão de documentos da Direcção dos Serviços de Identificação, por carecer da autenticidade do facto comprovado (que a parte tem estatuto de residente de Macau) e da base da lei, pelo que padece do vício de nulidade por falta de elemento essencial, simultaneamente, devido à consideração da gravidade do prejuízo e do interesse público, o respectivo acto de emissão também sofre do vício de nulidade, pelo que uma série de acto da emissão de documentos à parte por parte da Direcção dos Serviços de Identificação, é nula de acordo com o artigo 122.º, n.º 1 e n.º 2, alínea i) do Código do Procedimento Administrativo.
Pelo exposto, não existe na decisão da Direcção dos Serviços de Identificação o vício indicado pela advogada, quanto à atribuição dos efeitos jurídicos putativos aos actos administrativos nulos relativos à parte ou não nos termos do artigo 123.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, não é a matéria que este processo administrativo deve apreciar, visto que a advogada nas alegações de recurso hierárquico ainda não conseguiu comprovar que a parte tem o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau conforme fixado por lei, é improcedente o fundamento indicado pela advogada, segundo o qual deve conservar o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau da parte.
Por conseguinte, sugere-se ao Sr. Director que proponha ao Exmo. Secretário a manutenção da decisão de declarar a nulidade dos actos administrativos da emissão à parte do Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º 1/3XXXX7/3, e da renovação e substituição do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau n.º 13XXXX7(3) e da emissão do passaporte da Região Administrativa Especial de Macau n.º MB01XXXX3, bem como de cancelar, nos termos da lei, o Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau n.º 13XXXX7(3), que foi emitido à parte pela 1.ª vez em 21/6/1999, e o passaporte da Região Administrativa Especial de Macau n.º MB01XXXX3, e em consequência, rejeita-se o recurso hierárquico apresentado pela Advogada da parte.’
Se não conformar com a decisão acima referida, poderá recorrer contenciosamente junto do Tribunal de Segunda Instância no prazo de 30 dias a partir da recepção deste ofício.».
- cf. fls. 12 a 24 dos autos e traduzidas a fls. 92v a 101 dos PA -.
b) Do Direito
Vem a Recorrente imputar ao acto recorrido os seguintes vícios:
1. Violação de direito fundamental à vida;
2. Violação de lei quanto aos fundamentos da declaração de nulidade do acto;
3. Violação de lei quanto aos efeitos putativos da situação de facto decorrente do acto nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA;
4. Violação dos princípios da boa-fé e da proporcionalidade.
No caso dos autos estamos perante uma cumulação de impugnações de diversos actos a qual se mostra legal nos termos do artº 44º do CPAC face à conexão existente entre os respectivos objectos.
No que concerne à questão da nulidade do acto a Entidade Recorrida fundamenta a sua decisão no nº 1 do artº 122º do CPA.
No que concerne aos dois primeiros fundamentos invocados pela Recorrente - Violação de direito fundamental à vida e Violação de lei quanto aos fundamentos da declaração de nulidade do acto – já nos pronunciámos no Acórdão de 14.01.2021 proferido no processo que correu termos neste Tribunal sob o nº 1013/2019 onde sobre estas matérias escrevemos:
«Nos actos recorridos entendeu a Administração que por força da alteração da menção da paternidade quanto à Recorrente, passando aquela a ser atribuída a um sujeito que ao tempo do nascimento da Recorrente não era residente da RAEM, os actos de emissão de BIRPM e de Passaporte da RAEM são nulos nos termos do nº 1 do artº 122º do CPA por falta de elemento essencial.
(…)
1. Nulidade do acto recorrido por ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental;
Sobre esta questão escreve Diogo Freitas do Amaral, em Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4ª Ed., pág. 368/369:
«O artigo 161.º, n.º2, do CPA considera, exemplificativamente, como atos nulos.
(…)
D) Os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental;
(…)
Um dos preceitos mais difíceis de interpretar é o constante da alínea d): que deve entender-se, neste contexto, por direito fundamental?
Cabe à jurisprudência e à doutrina delimitar o sentido e o alcance da norma legal: por nós, contudo, entendemos que a expressão direitos fundamentais só abrange, neste artigo, os direitos, liberdades e garantias, e os direitos de natureza análoga, excluindo os direitos económicos, sociais e culturais que não tenham tal natureza. Seria, com efeito, levar longe de mais o elenco das nulidades do ato administrativo considerar como atos todos os que de alguma forma pudessem ofender algum direito económico, social ou cultural sem natureza analogia à dos direitos, liberdades e garantias: por exemplo, não nos pareceria razoável fulminar com a sanção mais grave da nulidade todos os atos administrativos praticados no domínio da segurança social em que, por erro de facto ou por erro de cálculo, se violasse o direito subjectivo a uma certa prestação social. Aos atos desta natureza melhor se ajusta, em caso de ilegalidade ou de vício da vontade, o regime da anulabilidade, por razões de certeza e segurança do direito. O mesmo se diga dos direitos subjetivos públicos de carácter administrativo (por exemplo, direito de informação, direito à audiência prévia, direito à notificação, etc.), cuja violação é, quanto a nós, geradora de mera anulabilidade, por não estar em causa a proteção da dignidade da pessoa humana – a qual é o valor jurídico basilar do conceito de «direito fundamental»».
Os Direitos e Deveres fundamentais dos Residentes de Macau encontram-se definidos nos artigos 24º a 44º da Lei Básica.
Segundo a Jurisprudência comparada em Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 01.08.2016, proferido no processo 01665.0/10BEBRG-A, «II – O “conteúdo essencial de um direito fundamental” previsto no artigo 133.º, nº 2, alínea d), do CPA reporta-se ao núcleo duro de um direito, liberdade e garantia ou análogo, à ofensa chocante e grave de um princípio estruturante do Estado de Direito ou de outro direito fundamental suficientemente densificado na lei ordinária.
A violação do “conteúdo essencial de um direito fundamental” só gera a nulidade do acto administrativo e, consequentemente, a possibilidade da sua impugnação a todo o tempo, quando, em consequência do acto administrativo em causa, seja afectado o mínimo sem o qual esse direito não pode subsistir enquanto tal.».
Ou seja, a nulidade prevista na al. d) do nº 2 do artº 122º do CPA só implica a nulidade do acto, se este – o acto – afectar a subsistência do direito em si.
(…)
O facto de ficar sem os documentos de identificação – Bilhete de Identidade e Passaporte – emitidos pela RAEM porque eventualmente não reúne as condições nos termos do artº 24º da Lei Básica para ser residente de Macau não constitui a violação de direito fundamental algum.
O direito fundamental que no caso sub judice está em causa é o direito a ser residente e esse só poderá ser afectado se, estando preenchidos os pressupostos que levam à concessão do direito este não for concedido, o que, no caso em apreço, nos reconduz à apreciação dos demais vícios invocados, ficando prejudicada a apreciação daquele outro.
2. Vício de violação de lei por erro na aplicação do direito.
Relativamente a esta matéria é elucidativo o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público nos seus pontos 2.2.1 e 2.2.3.1 e onde se conclui que por força da não retroactividade absoluta da norma do nº 2 do artº 1650º do C.Civ. os actos de atribuição e emissão à Recorrente do BIRPM (…) e do Passaporte da RAEM (…), não são nulos face ao disposto no nº 1 do artº 122º do CPA uma vez que quando foram praticados não lhes faltava elemento algum.
Concordamos inteiramente com a posição assumida no referido Parecer.
Para além da Doutrina já naquele citada mostra-se também adequado citar José Carlos Vieira de Andrade em “A Nulidade Administrativa essa Desconhecida” in Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, pág. 772:
«Sendo a gravidade substantiva definida pela lei por referência aos “elementos essenciais” do acto, deve tal entender-se como uma menção relativa aos momentos estruturais, mas compreendidos numa perspectiva valorativa, funcional e prática – a gravidade dos vícios mede-se relativamente aos aspectos principais do sujeito, do objecto, do fim, do conteúdo, da forma e do procedimento, do modo que o acto, pressuposta a sua existência, será nulo quando os vícios de que sofre impliquem ou se equiparem à falta de algum desses elementos, em função do respectivo tipo legal.».
Ora, no caso em apreço o apontado vício do acto não contende com nenhum dos elementos essenciais do acto.
Quando os actos que agora se pretende sejam nulos foram praticados a filiação de um sujeito nascido em Macau encontrava-se estabelecida.
E ao tempo do nascimento foi estabelecida quanto à paternidade relativamente a um residente de Macau.
A validade do acto tem de ser aferida em função dos elementos que existem quando foi praticado – tempus regit actum -.
O que sucedeu é que, posteriormente aquele elemento veio a ser alterado, circunstância que já não é contemporânea da prática dos actos que foram considerados nulos pelos actos aqui impugnados e objecto destes autos.
O facto do estabelecimento da filiação retroagir ao momento do nascimento não apaga nem inquina todos os actos que hajam sido praticados com base na filiação que se encontrava estabelecida, os quais ao tempo foram praticados de acordo com o que constava do registo.
Inclusivamente a impugnação da maternidade ou paternidade por não estar conforme com a biológica pode não lograr proceder de acordo com o disposto no nº3 do artº 1665º, aplicável à paternidade por força do disposto no nº 3 do artº 1697º, todos do C.Civ..
No caso em apreço – e como já é referido no Parecer do Ministério Público – é preciso ser cauteloso no que concerne aos efeitos retroactivos da impugnação/fixação da paternidade.
Decorrência da concepção biológica do ser humano justifica-se a norma do nº 2 do artº 1650º do C.Civ., uma vez que não se pode ter um pai até determinada idade e a partir daí um outro, no entanto os efeitos jurídicos a retirar da norma em causa têm de ser ponderados.
Por outro lado, e se tal não fosse já bastante não podemos abstrair do princípio “tempus regit actum” – já antes citado e também referido no parecer do Ministério Público -, segundo o qual se diz no Acórdão de 04.07.2002 do Supremo Tribunal Administrativo Português, proferido no processo 0852/02 “É pacífica a jurisprudência deste Tribunal que afirma, no âmbito do contencioso administrativo, a vigência do princípio “tempus regit actum”, segundo o qual, a apreciação da legalidade dos atos administrativos deve ter em conta, apenas, a realidade fáctica existente no momento da sua prática e o quadro normativo então em vigor (Acórdãos STA de 6.2.02, no recurso 37633, Pleno, e de 7.2.02, no recurso 48295)”.
Ora, à data em que os actos foram praticados a factualidade necessária para o efeito existia e correspondia ao que constava do registo de nascimento, pelo que, se impõe concluir não estar demonstrado que aos actos declarados nulos faltava um elemento essencial.
Assim sendo, impõe-se concluir que os dois actos impugnados ao concluírem pela nulidade dos actos de emissão de BIRPM e de Passaporte, por não estar demonstrado que àqueles faltava elemento essencial, enfermam de vício de violação de lei, sendo consequentemente anuláveis nos termos do artº 124º do CPA.»
Acrescentaríamos hoje, melhor esclarecendo, ao que ao tempo dissemos que o facto da paternidade atribuída à Recorrente não ser verdadeira e daí ter resultado a atribuição do estatuto de residente da RAEM será seguramente um erro nos pressupostos do acto de atribuição dessa qualidade – de residente de Macau -.
Não falta pressuposto ou elemento essencial algum ao acto praticado.
O que acontece é que o pressuposto paternidade está viciado de erro porque a paternidade atribuída não é a verdadeira.
O que acontece, repetimos, é um erro nos pressupostos de facto do acto praticado, que como tal poderia conduzir à anulabilidade do acto nos termos do artº 124º do CPA se houvesse sido requerida em tempo, o que não aconteceu.
Destarte, tal como então – e já referido – concluímos pela anulabilidade dos actos impugnados nos termos do artº 124º do CPA por vício de violação de lei.
Mais invoca a Recorrente que os actos impugnados enfermam dos vícios de violação de lei por não terem sido reconhecidos efeitos putativos da situação de facto decorrente do acto nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA, bem como, por violação dos princípios da boa-fé e da proporcionalidade.
Sobre esta matéria reproduzimos o que se escreveu no Acórdão de 12.05.2022 proferido no processo que correu termos neste Tribunal sob o nº 590/2021:
«1. Violação de lei quanto aos efeitos putativos da situação de facto decorrente do acto nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA e
2. Violação dos princípios da boa-fé e da proporcionalidade.
Mas ainda que se entendesse e concluísse pela nulidade dos actos de atribuição de BIRPM e de Passaporte da RAEM, sempre haveria que avaliar dos efeitos putativos do acto.
Sendo o acto nulo não produz efeitos, pelo que, segundo o purismo dos conceitos nada mais haveria a discutir a não ser retirar da nulidade as consequências devidas.
É tradicionalmente aceite pela Jurisprudência e Doutrina que o reconhecimento por banda da Administração da nulidade do acto é um acto vinculado.
Contudo, o nº 3 do artº 123º do CPA, a propósito da não produção de efeitos jurídicos do acto nulo, consagra que não fica prejudicada «a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito».
Veja-se a este respeito José Carlos Vieira de Andrade em “A Nulidade Administrativa essa Desconhecida” na obra supra indicada a pág. 776:
«O panorama apocalíptico associado ao regime legal da nulidade compreender-se-á numa perspectiva histórica, na medida em que o regime foi elaborado tendo em mente os actos da “administração agressiva” (e, entre nós, da administração local) e com base numa enumeração, taxativa e concreta, das situações ou dos vícios geradores de nulidade – mas é excessivamente radical e não responde em termos adequados à realidade dos tempos de hoje, em que se impõe a consideração das relações jurídicas estabelecidas pelos actos administrativos.
Por um lado, o regime puro não funciona bem perante o alargamento do conceito e das espécies de acto administrativo, agora muitas vezes actos constitutivos de direitos e interesses legalmente protegidos, que exigem a produtividade ou merecem a estabilidade da situação de facto originada pelo acto. Por outro lado, não se coaduna com a definição qualitativa das nulidades por natureza e com o consequente carácter problemático da qualificação da invalidade – menos ainda entre nós, quando a definição legal de nulidade substancial se refere à falta de elementos essenciais, em termos que abrangem uma diversidade relevante de situações.
Como vimos, a questão da invalidade dos actos administrativos e dos respectivos efeitos constitui um problema, a resolver através da ponderação entre os valores da legalidade, de um lado, e os da segurança jurídica e da estabilidade das decisões, por outro lado – sendo especialmente relevante a protecção da boa fé e da confiança dos cidadãos quando estejam em causa decisões que lhes sejam favoráveis.».
A questão tem normalmente sido abordada a propósito dos agentes putativos e de questões de urbanismo, contudo não se limita a essas situações, podendo a aplicabilidade da norma abranger outras situações de facto que hajam sido geradas por actos que se venha apurar ao fim de determinado espaço de tempo que são nulos.
Sendo certo que, no caso dos actos putativos não se trata do aproveitamento do acto nulo (o que por força da nulidade é impossível) mas do aproveitamento dos efeitos (do acto) – veja-se Inês Ramalho em “O Princípio do Aproveitamento do Acto Administrativo”, Tese de Mestrado, Faculdade Direito de Lisboa em CJP, CIDP.
Relativamente ao anterior Código do Procedimento Administrativo de Macau aprovado pelo Decreto-Lei nº 35/94/M de 18 de Julho, Lino Ribeiro e José Cândido de Pinho em anotação ao nº 3 do artº 115º2 escreviam que:
«O disposto no n.º 3 do artigo 115.º veio consagrar um regime de nulidade que a doutrina e a jurisprudência já admitia, sobretudo a propósito dos agentes putativos. Como acontece em muitas situações jurídicas, reconhece-se que o tempo é um facto natural produtor de efeitos jurídicos. Assim, um acto nulo, que desde a sua emanação não produz quaisquer efeitos jurídicos (mas que os produz de facto) pode, pelo simples decurso do tempo, vir a produzi-los.
A intenção do legislador é temperar o rigor que constitui a destruição total de situações de facto constituídas à sombra do acto nulo. À transformação de situações de facto em situações de direito pelo decurso do tempo chama-se, sobretudo no direito privado, usucapião. Como se vê, este instituto também desempenha um papel, embora menor, no Direito Administrativo.
No entanto, o decurso do prazo não é suficiente para que o acto nulo venha a produzir efeitos jurídicos. Como a lei expressamente refere, tal só deve acontecer «de harmonia com os princípios gerais de direito». Faz-se apelo a princípios como os da protecção da confiança, da boa fé, da igualdade, da imparcialidade, da proporcionalidade, da justiça, do não enriquecimento sem causa, da realização do interesse público. Estes princípios, que são vinculativos para a Administração, podem ser chamados a resolver situações de injustiça derivadas da nulidade dum acto administrativo.
O caso mais tratado pela doutrina e jurisprudência é o dos agentes putativos, que são pessoas que actuando, em circunstância normais, como titulares de um órgão administrativo, não o são de direito, quer porque o seu provimento resulta de um acto inválido, quer porque já cessou o efeito do acto do seu provimento legal. (…).
Ora, por razões de protecção da boa fé e da estabilidade da função pública, a doutrina e a jurisprudência admitem que os funcionários providos em virtude dum acto nulo possam, pelo decurso do tempo, adquirir o direito ao lugar e que os actos administrativos por si praticados não serão inválidos por esse facto.
As relações entre o agente putativo (aquele que se faz acreditar) e a pessoa colectiva em que está inserido levam a que ao fim de determinado tempo aquele se torne agente de direito. A lei nada diz quanto ao período de tempo necessário para que ocorra aquela transformação. O professor Marcello Caetano, por analogia com a situação prevista no artigo 1298.º, alínea b) do Código Civil, fazia referência ao prazo de dez anos. Mas os tribunais administrativos portugueses eram mais benevolentes e, em certos casos, admitiam mesmo prazos inferiores, pouco excedentes a três anos. Mas além do decurso dum prazo suficiente, exige-se ainda que o exercício das funções públicas seja pacífico, contínuo e público, e que o facto que originou a situação não tenha sido gerado de forma dolosa ou erro grosseiro do interessado.».
Em sentido idêntico já sustentava o Prof. Marcello Caetano em Manual de Direito Administrativo, Vol. I, pág. 517.
Mais recente, Luiz S. Cabral de Moncada3 em anotação ao nº 3 do artº 162º do Código do Procedimento Administrativo Português, diz:
«2. Os efeitos do acto nulo
2.1. Segundo a doutrina tradicional, o acto nulo não gera efeitos. Parte-se do princípio segundo o qual o acto nulo não gera efeitos. O princípio é lógico mas não corresponde à realidade. Trata-se um belo exemplo da metodologia hermenêutica da jurisprudência dos conceitos e do «método da inversão» dela própria que consiste em deduzir as consequências dogmáticas apenas das abstracções conceituais desprezando os dados empíricos. Apenas se admite que do acto nulo resultem efeitos «putativos», que a Administração poderá resguardar, se for caso disso, em homenagem a determinados valores, como vimos, valendo o acto como se fosse válido. Ora, se assim é, também os efeitos do acto nulo, mesmo que só envergonhadamente «putativos», poderão ter de ser retroactivamente destruídos para garantir a reconstituição de uma situação hipotética actual favorável a um beneficiário, precisamente porque o prejudicaram, mesmo que só putativamente para não chocar os mais ortodoxos, tal como sucede se o acto for apenas anulável. A final, tendo em conta razões de justiça material, os regimes do acto nulo e do acto anulável, este à frente versado, aproximam-se em vez de se afastarem.
E há outro argumento, à frente exposto; é que os actos nulos são agora susceptíveis de reforma ou conversão, de acordo com o n.º 2 do art. 164.º. E porquê? Por não terem efeitos? Não certamente.
Nesta conformidade se entende agora a ampla possibilidade de atribuir efeitos a situações de facto resultantes de actos nulos não apenas pelo decurso de tempo mas em atenção aos princípios gerais de direito administrativo.
2.2. Desconhecer os efeitos do acto nulo é não querer ver que o acto administrativo até à declaração da respectiva nulidade ou à sua desaplicação com esse fundamento beneficia de uma presunção de legalidade, relativa evidentemente, mas que gera efeitos como se válido fosse, ficando ainda apoiados nos poderes de hierarquia de que o superior faz uso para impor actos nulos quiçá por ele próprio praticados. O direito de resistência a actos nulos, salvo nos casos em que co-envolvem a prática de um crime, é fraco paliativo para tais efeitos tema, contudo, que aqui não pode ser desenvolvido.».
Como tem vindo a ser desenvolvido pela Doutrina mais recente subjacente ao aproveitamento dos efeitos putativos do acto nulo subjazem os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e proporcionalidade com base nos quais se tem vindo a sustentar que se aceite a produção de efeitos decorrido que seja determinado espaço de tempo.
Ora, no caso em apreço o que aconteceu é que o Recorrente, quando nasceu em Maio de 1994 foi registado como sendo filho de um residente de Macau tendo-lhe sido atribuído o estatuto de residente permanente de Macau.
Passados 17 anos, em Maio de 2011 veio a ser proferida decisão que manda eliminar aquela menção de paternidade e inscrever uma outra passando a figurar como pai um sujeito que ao tempo do nascimento do Recorrente não era residente de Macau.
A mãe do Recorrente desde 25.10.1996 e o seu pai desde 11.02.2002 que têm o estatuto de residentes de Macau.
Ou seja, em termos práticos o que ocorre é que sendo o Recorrente um recém-nascido, por força da natureza não tem qualquer intervenção nos actos que (eventualmente) indevidamente hajam sido praticados quanto ao registo da filiação e que segundo a Administração levam à nulidade dos actos recorridos.
Isto é, dúvidas não há quanto à boa-fé do Recorrente, até porque, como já se viu há 10 anos que lhe é emitido o BIRPM nele se fazendo constar a actual paternidade mencionada na certidão de nascimento.
No entanto o resultado prático é que o Recorrente que não tendo qualquer participação activa na prática dos actos que levam à nulidade, depois de cerca de 27 anos a viver, a estudar e já a trabalhar em Macau perde o estatuto de residente, sem que subjectivamente lhe possa ser assacada responsabilidade alguma.
Ora, se outros argumentos já antes expendidos não fossem já suficientes para determinar a anulação dos actos impugnados, entendemos que o decurso do tempo é argumento bastante para em face das circunstâncias do caso concluir que deve ser reconhecido efeitos jurídicos às situações de facto decorrentes dos actos nulos que eventualmente hajam sido praticados.
Embora o objecto desta acção seja um acto administrativo isso não nos pode impedir de ver para além disso e ponderar as consequências que dele decorrem que na prática são a perda do estatuto de residente da RAEM a alguém que aqui nasceu, viveu, estudou, trabalha e onde tem as suas raízes e está culturalmente ligada sem que tenha contribuído em nada, seja para beneficiar desse estatuto, seja para as razões que agora se invocam para o perder.
Acrescendo, porque a isso também não se pode ser alheio que é de ascendência Chinesa, os quais nos termos da legislação aplicável gozam de um estatuto diferenciado, para além de que, Macau não é outra coisa que não seja parte integrante da Republica Popular da China sem prejuízo do seu estatuto de Região Especial.
Chamando à colação os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e da proporcionalidade parece-nos que a situação pode e deve ser enquadrada na previsão do nº 3 do artº 123º do CPA.
Sobre a relevância dos princípios da boa-fé e da confiança, com consagração legal no artº 8º do CPA e a sua relevância para o reconhecimento dos efeitos putativos do acto é abundante a Doutrina e Jurisprudência a respeito, nada havendo a acrescentar, remetendo-se, pela sua clareza, para o trabalho de Ana Gouveia Martins em “Responsabilidade da Administração com Fundamento na Declaração de Nulidade ou Revogação de Actos Inválidos”, in Colecção de Estudos, Nº1, Instituto do Conhecimento AB.
Reconhecendo-se, com base em tudo antes exposto, a boa-fé do Recorrente, a questão que agora se coloca é como é que se torna efectiva a produção dos efeitos putativos do acto nulo.
Para o Professor Doutor Marcello Caetano a tutela dos efeitos putativos do acto era feita com recurso às regras da usucapião.
Vieira de Andrade vem dar mais relevância aos interesses em causa deixando a fixação do período de tempo necessário para a produção de efeitos para o intérprete.
«O rigor do regime legal da nulidade pode em muitas circunstâncias revelar-se excessivo, designadamente quanto à impossibilidade aparentemente absoluta de ratificação, de reforma e até de conversão (artigo 137º, n.º 1 do CPA) e quanto ao regime de imprescritibilidade do poder de declaração da nulidade por qualquer autoridade administrativa ou judicial (artigo 134.º, n.º 2 do CPA). A moderação desse rigor resulta da possibilidade de reconhecimento jurídico de efeitos de facto produzidos pelo acto nulo, com base no decurso do tempo e com fundamento em princípios jurídicos fundamentais (designadamente, os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima ou o princípio da proporcionalidade) – prevista no n.º 3 do artigo 134.º do CPA.» - Cit. Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, pág. 201 -.
Entre a exigência de instauração de uma acção para o efeito, a possibilidade de serem reconhecidos os efeitos do acto em sede de execução, a necessidade de juridificação do reconhecimento dos efeitos ou a possibilidade de ser a própria a administração a fazê-lo, entre as mais sugeridas soluções, tem a Doutrina e a Jurisprudência procurado soluções para um direito que consagrado na lei cabe encontrar como o reconhecer numa jurisdição que começando a ser de anulação tem vindo a evoluir no sentido da plena jurisdição.
Segundo Vieira de Andrade na já citada obra “A nulidade Administrativa essa Desconhecida” a pág. 780/781, «Nas situações em que se ponha o problema do reconhecimento jurídico da situação de facto decorrente do acto nulo o juiz não pode alegar que a sua tarefa é meramente hermenêutica, que só visa aplicar uma solução previamente definida na lei – ele não se limita a conhecer, decide a solução do caso concreto e é juridicamente responsável por ela, devendo, para além de evitar injustiças extremas e situações de impraticabilidade (…), respeitar a proibição do excesso, pois só atendendo aos efeitos reais da decisão se alcança a paz social que a justiça almeja.».
Como vem sendo esclarecido o que está em causa não é a produção de efeitos de um acto nulo, o qual por força da nulidade nunca poderia produzir efeitos.
O que está em causa é reconhecerem-se efeitos jurídicos às situações de facto geradas pelo acto nulo.
Ora este efeito tanto pode ser conseguido através da administração e aqui no exercício de um poder discricionário ou pelo tribunal.
No caso em apreço está em causa o estatuto de residente da RAEM.
Não colhe qualquer sucesso a argumentação da Autoridade Recorrida quando demanda ainda que veladamente o interesse público para a não emissão do BIRPM e do Passaporte com base numa situação criminal que de modo algum pode ser imputada ao interessado e que como vimos, uma vez expurgada, o mesmo havia adquirido o estatuto de residente com base noutros fundamentos – o qual até, com base noutros pressupostos como já referimos até lhe foi reconhecido -. Menos ainda, será sustentável a imposição de consequências de um acto por outros praticado a quem a ele é alheio (neste caso o Recorrente) em manifesta violação do princípio da culpa, égide de um estado de direito, em prol da defesa do interesse público e da prevenção criminal.
Para além de que, está apenas em causa o reconhecimento de uma situação pretérita, decorrida há 27 anos, em que as circunstâncias e os meios eram completamente distintos dos que hoje existem, sendo que, actualmente este género de situações podem ser – e na prática são – evitadas com recurso a testes de ADN, bastando para o efeito se necessário legislar-se nesse sentido.
Logo, o reconhecimento da situação subjacente aos autos em nada belisca o interesse público.
No que concerne aos princípios fundamentais de direito da proporcionalidade, da boa-fé e da confiança consagrados nos artº 5º e 8º do CPA demandam o reconhecimento da situação – o estatuto de residente – a quem ao longo de toda a vida, actualmente com 28 anos sempre usufruiu do estatuto de residente de Macau e adequou a sua vida a Macau como resulta dos sinais dos autos.
Entendemos também, que na senda do que tem vindo a ser sustentado pela Doutrina mais hodierna, neste tipo de situação não importa tanto o tempo decorrido desde a prática do acto, mas sim a situação existente no momento em que se conclui pela nulidade, sendo certo que, o comando contido no nº 3 do artº 123º do CPA manda dar relevância ao tempo.
Porém, se a pessoa a quem foi concedido o estatuto de residente da RAEM quando se vem a apurar que o acto é nulo por não ser descendente de residentes de Macau ainda é menor, por força da dependência dos progenitores, do exercício do poder paternal e a guarda que lhe está associada, antes de atingida a maioridade nada justifica que se reconheçam efeitos ao acto independentemente do tempo que haja decorrido.
No entanto, se entretanto tiver atingido a maioridade, entendemos que devem ser reconhecidos efeitos ao acto, havendo aqui, por força da exigência feita no nº 3 do artº 123º do CPA de fixar um espaço de tempo que se entenda razoável para o efeito, o qual entendemos poder ser igual aos 7 anos exigidos pela lei para a atribuição do estatuto de residente permanente – Lei nº 8/1999, artº 1º, nº 1, 2) -, contados desde da prática do acto que se tem por nulo.
Destarte, em face da factualidade apurada e tendo em consideração os princípios supra indicados que no caso em apreço se verificam, haveria de, nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA ter sido reconhecidos efeitos aos actos de atribuição de BIRPM e de Passaporte da RAEM à Recorrente, mantendo-os.
Não tendo sido feito como concluir?
Aqui chegados e sem prejuízo do reconhecimento da nulidade ser um acto vinculado – caso concluíssemos nesse sentido o que não é o caso - o certo é que, o nº 3 do artº 123º do CPA atribui à administração um campo de discricionariedade que lhe permitiria ter actuado de outra forma.
O reconhecer ou não efeitos ao acto nulo nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA implicando um poder discricionário pode ser sindicado pelo tribunal de acordo com os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da confiança e imparcialidade.
Ao não reconhecer à Recorrente o estatuto de residente não actuou a Administração de acordo com o princípio da proporcionalidade, da confiança e da boa-fé os quais já antes analisados se entendeu que justificavam que fosse reconhecido o respectivo estatuto.
Nada tendo feito a Administração, num contencioso de anulação ficaria o tribunal impossibilitado de corrigir a situação reconhecendo efeitos ao acto.
A solução encontramo-la no já citado trabalho “Responsabilidade da Administração …” de Ana Gouveia Martins, a pág. 67/68 com a figura da supressão do poder de declarar a nulidade:
«Todavia, uma vez declarada a nulidade, nada obsta a que, com base no princípio da tutela da confiança, sejam atribuídos efeitos putativos às situações de facto decorrentes de actos nulos, se, por força do decurso de tempo, os princípios gerais impuserem a sua consolidação (art. 134.º, n.º 3 do CPA). Indispensável para tanto é que seja praticado um acto que, reconhecendo e declarando a nulidade, justifique a atribuição desses efeitos putativos e declare quais os efeitos que se devem considerar consolidados pelo decurso de tempo.
Acresce que, apesar de a boa-fé não ter, em geral, por efeito neutralizar a ilegalidade cometida, convalidando o acto ilegal, tem-se admitido a título excepcional que quando a administração considerou, «durante um longo espaço de tempo, uma dada situação conforme ao direito (apesar de ilegal), mas pretender agora, porque a manutenção dela já não lhe aproveita, invocar a sua nulidade», que a boa-fé obste à declaração dessa nulidade. Com efeito, o princípio da boa-fé proíbe actuações que consubstanciem um «venire contra factum proprium (ou proibição de comportamento contraditório) – de acordo com a qual se veda (ou impõe) o exercício de uma competência ou de um direito, quando tal exercício (ou não exercício) entra em flagrante e injustificada contradição com o comportamento anterior do titular, por este ter suscitado na outra parte uma fundada e legítima expectativa de que já não seriam (ou o seriam irreversivelmente) exercidas – a supressio ou verwirkung (que da anterior se distingue pelo facto de a dimensão temporal ganhar uma relevância autónoma), etc.»
Com efeito, em determinadas e circunscritas constelações de casos o princípio da boa-fé pode obstar à revogação ou à declaração da nulidade de actos administrativos ilegais por consubstanciar um exercício inadmissível de direitos. Nomeadamente é possível invocar a figura da supressio que determina a paralisação ou redução do conteúdo de certas posições jurídicas em função do seu não exercício durante um amplo lapso temporal, in casu, uma supressão de competências.».
Ou seja, tudo se reconduziria a que por força do tempo decorrido os efeitos do acto (nulo) se haviam consolidado na esfera jurídica do particular não produzindo a nulidade todos os seus efeitos.
Ao não se ter optado pela figura da supressão do poder de declarar a nulidade reconhecendo efeitos aos actos (nulos) de acordo com os princípios da boa-fé e da confiança, são os actos impugnados anuláveis impondo-se que se decida em conformidade.
Não sendo argumentável em sentido contrário que o acto de declaração de nulidade é um acto vinculado e como tal não é susceptível de ser apreciado em função dos indicados princípios, pois o que está em causa não é a declaração de nulidade mas o reconhecimento dos efeitos fácticos do acto os quais demandavam uma abstenção de agir a que não se obedeceu em violação dos referidos princípios, e nesta parte já estamos no domínio da discricionariedade.
A não se entender assim nunca o acto de reconhecimento de efeitos putativos do acto nulo poderia ser objecto de decisão e apreciação do tribunal uma vez que não pode ser objecto de acção para a prática do acto administrativo devido porque não é um acto vinculado mas discricionário. O que levaria a que só haveria possibilidade de apreciar os efeitos putativos do acto se a administração o reconhecesse e desse acto fosse interposto recurso para o tribunal, mas se nada reconhecer já não haveria acção judicial para o efeito.
Logo não se aceitando que esta questão possa ser apreciada através do instituto da supressão do poder de declarar a nulidade, seria o mesmo que declarar que ao direito consagrado no nº 3 do artº 123º não corresponde acção judicial alguma o que viola o princípio do acesso à justiça consagrado no artº 14º do CPA.
Em igual sentido veja-se e-Pública: Revista Electrónica de Direito Público, Vol. 1, nº 2, Lisboa Junho 2014 “Os efeitos putativos da nulidade dos actos urbanísticos: entre a tutela da confiança e o interesse público”: «Todavia, não excluímos que mesmo em sede de acção administrativa especial de impugnação do acto, o juiz possa atribuir efeitos jurídicos à situação de facto, desde que os requisitos que acima elencámos se encontrem cumpridos, em particular o decurso do tempo.».
Concluindo, entendemos que no caso em apreço não se tendo a administração abstido de declarar a nulidade dos actos reconhecendo implicitamente ao Recorrente o direito a beneficiar do estatuto de residente da RAEM e consequentemente, emitindo-lhe o BIRPM e o Passaporte de Macau, enfermam os actos impugnados do vício de violação de lei por violação do princípio da boa-fé e da confiança, sendo anuláveis nos termos do artº 124º do CPA.»
Tudo visto, seja porque entendemos que os actos impugnados enfermam de vício de lei e consequentemente são anuláveis, seja porque se impunha o reconhecimento do estatuto de residente, impõe-se decidir em conformidade, anulando-se os actos impugnados.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso anulam-se os actos recorridos.
Sem custas por delas estar isenta a Entidade Recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 18 de Setembro de 2025
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(2o Juiz-Adjunto)
Seng Ioi Man
(1o Juiz-Adjunto)
(Votei vencido, por entender acompanhando a posição exposta no douto parecer do M.P., dever ser julgado improcedente o recurso.)
Álvaro António Mangas Abreu Dantas
(Delegado Coordenador)
1 Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público proferido no indicado processo 1013/2019 e citado no Acórdão proferido nesses autos em 14.01.2021:
«2.2.1
Estabelecia-se no artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, em vigor à data da primeira emissão do BIR da Recorrente:
«Consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento».
Consagrava-se na norma acabada de transcrever uma forma de aquisição originária do direito de residência em Macau fundada no nascimento e que resultava da conjugação de dois pressupostos: (i) por um lado, o nascimento do menor em Macau e por outro (ii) a residência legal em Macau de pelo menos um dos progenitores, ao tempo do nascimento do menor.
Ora, está demonstrado e assente que a Recorrente, no dia 23 de Outubro de 1996, nasceu em Macau e que, por outro lado, nessa data, a pessoa que no registo civil figurava como seu pai, é dizer, a pessoa relativamente à qual se achava estabelecida a paternidade da Recorrente tinha o estatuto de residente de Macau. Portanto, no momento em que foi praticado, o acto de emissão do BIR não enfermava de qualquer vício, mostrando, ao invés, em absoluta conformidade com a lei (tempus regit actum).
Sucede que, mais recentemente, por sentença proferida pelo Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial de Base no processo FM1-17-0010-CAO e transitada em julgado em 3 de Novembro de 2017, ficou estabelecido que a paternidade do Recorrente é de outra pessoa que não aquela que antes figurava no registo como seu pai, sendo certo que a mesma, à data do nascimento da Recorrente, não era residente de Macau.
Não nos parece, no entanto, que esta circunstância implique, por si só, a nulidade do acto de emissão do BIR e do passaporte da RAEM do Recorrente por falta dos seus elementos essenciais como foi entendido pela Administração.
2.2.3
Como se sabe, a regra entre nós vigente e que resulta do artigo 124.º do CPA, é a de que os actos administrativos inválidos são meramente anuláveis e não nulos.
A nulidade só ocorre quando a um acto faltem os elementos essenciais ou quando a lei comine expressamente essa forma de invalidade, tal como decorre do disposto no artigo 122.º do CPA.
Compreende-se a opção do legislador em erigir a anulabilidade como regime-regra, dado que a mesma se mostra «determinada por considerações de oportunidade, que sobretudo se prendem com a necessidade de dotar as situações que são definidas por ato administrativo de um mínimo de estabilidade que proteja a confiança do amplo círculo de interessados que nelas podem estar envolvidos» (assim, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, 3.ª edição, Coimbra, 2015. P. 270).
Sobre o que deva entender-se por elementos essenciais do acto cuja falta determina a chamada nulidade por natureza não existe, como se sabe, unanimidade na doutrina, havendo autores que adoptam um critério estrutural, enquanto outros utilizam um critério material de determinação do que sejam tais elementos essenciais (no primeiro sentido, MARCELO REBELO DE SOUSA - ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo III, pp. 160-161; no segundo sentido, por exemplo, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA - PEDRO COSTA GONÇALVES - J. PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, Coimbra, 1998, p. 645).
Entre nós, o Tribunal de Última Instância, no seu acórdão de 5.11.2014, tirado no processo n.º 82/2014, já teve oportunidade de decidir que se consideram «elementos essenciais do acto aqueles cuja falta não permite a qualificação do acto como administrativo, podendo abrange factores cuja ausência é de tal modo grave que repugna à consciência jurídica a possibilidade da ilegalidade se sanar pelo decurso do tempo».
Em nosso modesto entendimento, faltará um elemento essencial ao acto administrativo quando o mesmo se encontre desprovido de um elemento indispensável à sua caracterização como acto administrativo, como sejam o seu autor e o seu destinatário, o seu conteúdo, mas também quando lhe falte um requisito de tal modo essencial que o vício, pela sua gravidade, não pode ficar apenas submetido ao regime da anulabilidade. A este último propósito, a doutrina costumava ilustrar com o exemplo das verificações constitutivas, considerando-se que seria um elemento essencial a veracidade dos factos certificados (assim, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, - PEDRO COSTA GONÇALVES - J. PACHECO AMORIM, Código..., p. 642 e JOSÉ CARLOS VIEIRACDE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5.ª edição, Coimbra, 2018, p. 222. De resto, esta situação está hoje expressamente tipificada como causa de nulidade na alínea j) do n.º 2 do artigo 161.º do novo CPA português).
No caso em apreço, não vemos que os actos administrativos de emissão do BIR e do passaporte da RAEM a favor da Recorrente enfermem da falta de qualquer elemento essencial de natureza estrutural. E também não vemos que lhes falte qualquer outro elemento que, pela gravidade dessa falta, justifique que se considere que tais actos são nulos.
Repare-se. Para a emissão do BIR aos menores a lei exigia, como vimos, que os mesmos tivessem nascido em Macau e que, no momento do nascimento, fossem filhos de indivíduos autorizados a aqui residir nos termos da lei. Ao tempo da emissão do BIR estavam verificadas estas condições: (i) o Recorrente nasceu em Macau e (ii) nesse momento, o seu pai, de acordo com a paternidade então estabelecida, era também residente de Macau.
Do mesmo modo com a emissão do passaporte.
Nos termos do artigo 5.º da Lei n.º 8/2009, podem ser titulares de passaporte da RAEM as pessoas que satisfaçam os seguintes requisitos:
(i) Sejam cidadãos chineses;
(ii) Sejam titulares do bilhete de identidade de residente permanente da RAEM.
Ora, na data da emissão do passaporte da Recorrente tais requisitos era de verificação indiscutível pelo que se não vislumbra a falta de qualquer elemento essencial neste acto.
A isto contrapõe a Administração que a Recorrente não tem o estatuto de residente de Macau porque à data do seu nascimento o seu pai não era residente de Macau e como tal, os actos que foram declarados nulos padecem, ab initio, da falta de um elemento essencial.
Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar este entendimento.
Como referimos, quando os actos foram praticados, a filiação da Recorrente encontrava-se estabelecida, embora, como mais tarde se veio a verificar, não existisse uma coincidência com a respectiva filiação biológica.
Uma vez que a filiação se encontrava estabelecida, os efeitos jurídicos em matéria de aquisição do direito de residência por parte da Recorrente emergentes dessa filiação estabelecida produziram-se.
A questão que se coloca é a de saber se tais efeitos produzidos à sobra da filiação anteriormente estabelecida se podem considerar destruídos retroactivamente, desde o nascimento do Recorrente, pelo facto de em 2017 ter sido estabelecida uma outra paternidade.
Não nos parece.
Sabemos que, de acordo com a norma do artigo 1650.º, n.º 2 do Código Civil, o estabelecimento da filiação tem eficácia retroactiva, o que significa que, em princípio, todo o conjunto de consequências jurídicas que são previstas por várias normas e que não se produziram antes, produzem-se agora como se a filiação tivesse sido estabelecida desde o nascimento (assim, GUILHERME DE OLIVEIRA, Estabelecimento da Filiação, 2019, p. 21).
No entanto, essa regra da retroactividade dos efeitos da filiação exige uma aplicação criteriosa. Como a doutrina assinala, «a retroactividade é uma técnica jurídica não uma ficção da realidade» e a realidade é esta: no momento do nascimento da Recorrente, aquele a que lei confere relevância, o vínculo jurídico da sua filiação estava estabelecido em relação a um residente de Macau e o efeito que a lei associa a esse facto produziu-se com a atribuição à Recorrente do estatuto da residência que a mesma manteve, pacificamente, durante mais de 20 anos.
Por outro lado, aquela regra da eficácia retroactiva que decorre da norma do artigo 1650.º, n.º 2 do Código Civil não é, nem pode ser de aplicação absoluta.
Tem de se aceitar, como ensina a boa doutrina, que, em certas circunstâncias, daquela regra não resulte a completa destruição de determinados actos ou vínculos jurídicos entretanto criados com base na filiação anteriormente estabelecida, sob pena de se comprometer irremediável e intoleravelmente esse elemento essencial do Estado de Direito que é o da segurança jurídica (neste último mesmo sentido, GUILHERME DE OLIVEIRA, Estabelecimento da Filiação, 2019, p. 22. Ainda que a Lei Básica não consagre expressamente uma referência ao princípio da segurança jurídica, deve entender-se que esse é um princípio essencial integrador do tecido normativo material de natureza constitucional que vigora na Região, porquanto reveste um carácter imprescindível a uma estruturação da vida social em paz jurídica. Neste sentido, JORGE REIS NOVAIS, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, Coimbra 2019, p. 149).
Ora, a situação que os presentes autos documentam parece-nos ser uma daquelas em que o princípio da segurança jurídica reclama uma desaplicação daquela norma do n.º 2 do artigo 1650.º do Código Civil em toda a sua extensão. De contrário estar-se-ia a destruir, de forma irremediável e injustificada, o vínculo pessoal à Região que a Recorrente, desde o seu nascimento, ocorrido há cerca de 24 anos, legitimamente mantém.
Afastada a aplicação da regra da retroactividade do estabelecimento da filiação à situação presente, ficarão salvaguardados os efeitos produzidos, em matéria de residência, com base na filiação anteriormente estabelecida e como tal terá de concluir-se que, nem o acto de emissão do BIR nem o acto de emissão do passaporte da RAEM carecem do elemento que a Administração reputou de essencial.
Importa igualmente salientar que a norma do artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, entretanto revogada, e, a norma do artigo 4.º da Lei n.º 8/2002, em vigor, têm como pressuposto de aplicação o de que em causa estejam menores uma vez que essas normas têm em vista regular a atribuição do estatuto de residente a menores, não a maiores. Queremos com isto dizer que os pressupostos relevantes, de acordo com aquelas normas legais, para a atribuição da residência aos menores são aqueles que se verificam durante a menoridade e, em princípio, só esses, irrelevando, pois, os que vierem a verificar-se uma vez atingida a maioridade. E a verdade é que a Recorrente, quando viu estabelecida a sua filiação relativamente a uma pessoa que, à data do seu nascimento, não era um residente de Macau, já era maior.
Eis porque somos a concluir que o pressuposto de que partiu a Administração para considerar que aos actos declarados nulos faltava um elemento essencial não está demonstrado.
2 A redacção daquele preceito corresponde hoje ao nº 3 do artº 123º do CPA.
3 Em Código de Procedimento Administrativo Anotado, 2ª edição, pág. 512.
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776/2024 REC CONT 66