Processo nº 381/2025
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)
Data: 26 de Setembro de 2025
Recorrente: (A)
Recorrido: Director dos Serviços de Saúde
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
(A), com os demais sinais dos autos,
veio interpor o presente recurso contencioso administrativo contra,
Director dos Serviços de Saúde, que indeferiu o recurso hierárquico interposto pela Recorrente dos actos homologatórios praticados relativamente aos pareceres emitidos pela Junta de Saúde em 20.05.2024 e 17.06.2024.
Foi proferida sentença a julgar improcedente o recurso contencioso interposto pela Recorrente com a consequente manutenção do acto recorrido.
Não se conformando com a decisão proferida veio a Recorrente recorrer da mesma, apresentando as seguintes conclusões:
I. O presente recurso tem por objecto a douta sentença proferida pelo douto Tribunal Administrativo, ora Tribunal a quo, nos autos de recurso contencioso administrativo acima referenciados, que julgou improcedente o recurso contencioso interposto pela Recorrente (A), com a consequente manutenção do acto recorrido.
II. O douto Tribunal a quo considerou que pese embora a omissão da declaração da incapacidade da sinistrada em consequência do acidente ocorrido, deve-se reconhecer que a Recorrente se encontrava na situação de incapacidade temporária absoluta que impossibilitou o seu exercício do trabalho, e sempre existia a propósito desta questão um entendimento consensual entre a interessada e a Administração, anteriormente à referida intervenção da Junta de Saúde em 26/06/2023, Contudo, tal consensualidade deixou de existir desde o parecer de 26/06/2023, uma vez que ao impor à trabalhadora o dever de regressar ao serviço.
III. E não tendo este acto sido sujeito à impugnação contenciosa tempestiva, consolidou-se na ordem jurídica como caso decidido, com força estabilizadora da situação jurídica pelo facto daquele acto que lhe deu origem se ter tornado inimpugnável, concluindo assim que a crítica dirigida pela Recorrente ao acto recorrido, pela mudança do regime aplicável de “faltas” por acidente em serviço para “faltas por doença” e o incumprimento do comando legal constante do artigo 116º, n.º 2 deixa de ser pertinente, pois não foi neste que se introduziu tal mudança, mas sim tinha sido naquele de 26/06/2023. Não sendo assim imputável ao acto recorrido a ilegalidade pela inobservância do regime de faltas por acidente em serviço.
IV. E no que diz respeito aos vícios invocados por violação dos princípios da proporcionalidade e da adequação, por aplicação errónea do regime de faltas por doença, e não o regime por acidente em serviço, entendeu o douto Tribunal a quo que a Administração encontra-se vinculada a aplicar um regime de faltas ou outro, diante da verificação dos respectivos pressupostos legais, não lhe cabendo escolher o regime mais vantajoso, com base no juízo da conveniência formulado.
V. Não se conformando com o douto acórdão, vem a ora Recorrente recorrer por considerar que o referido acórdão padece do vício de interpretação e aplicação errónea da lei, por erro na avaliação dos pressupostos que foram carreados para a análise e fundamentação, violação do princípio da legalidade e que importam uma nulidade e ou anulabilidade da decisão impugnada.
VI. A Recorrente (A) é funcionária do IAM desde 01/07/2019 e teve dois acidentes em serviço em 29/06/2021 e 25/07/2022, sendo que por causa deste dois acidentes, a Recorrente faltou ao serviço em períodos sucessivos.
VII. As sucessivas faltas foram justificadas por atestados médicos e, decorridos mais de 60 dias sobre os acidentes, por pareceres da Junta de Saúde, sendo que dos pareceres da Junta de Saúde posteriores ao segundo acidente em serviço, constava sempre a menção de que “as faltas no período de a ... foram causadas pelo acidente ocorrido no dia 25/07/2022”.
VIII. Em 03/04/2023, a Recorrente foi submetida novamente à avaliação da Junta de Saúde e esta, no seu parecer, deixou de referir que as faltas no período de 03/04/2023 a 23/04/2023 se deveram ao acidente ocorrido no dia 25/07/2022.
IX. Entretanto, de 03/04/2023 a 25/06/2023 a Junta de Saúde emitiu cinco pareceres, sem nada referir quanto ao nexo causal entre as faltas da Recorrente de 03/04/2023 a 25/06/2023 e o acidente em serviço ocorrido em 25/07/2022, pelo que a Junta não confirmou que as faltas depois de 02/04/2023 tenham sido causadas pelos acidentes em serviço, apenas determinou as permanências na situação de faltas por doença.
X. Entretanto, na sequência desta lacuna nos pareceres da Junta de Saúde, o IAM oficiou aos SSM, através de ofício n.º 003692/IAM-DA/OFI/2023, para esclarecer a referida causalidade.
XI. Em 26/06/2023 a junta de Saúde emitiu o seguinte parecer: “A funcionária regressa ao serviço a partir de 26/06/2023 e, a partir dessa data, deverá ser designada para o desempenamento de tarefas leves durante 90 dias”, sem também nada referir quanto nexo causal entre as faltas da Recorrente de 03/04/2023 a 25/06/2023 e o acidente em serviço ocorrido em 25/07/2022.
XII. Sendo que o Director dos SSM respondeu a este ofício no sentido de não haver prova de que aquelas faltas se relacionavam com o acidente de 25/07/2022 (v. fls. 931 do processo administrativo): “Exmo. Sr. Presidente José Maria da Fonseca Tavares: Os SSM receberam o ofício nº 003692/IAM-DA/OFI/2023 do IAM a perguntar se as faltas da funcionária (A) foram causadas pelo acidente de 25/07/2022. A nossa resposta é a seguinte: não há provas de que as faltas por doença da referida funcionária entre 03/04/2023 e 25/06/2023 estejam relacionadas com o acidente ocorrido em 25/07/2022.”
XIII. E em 17/08/2023, o IAM, com base na resposta do Director dos SSM, decidiu que “Consideram-se como “faltas por doença” as faltas dadas pela funcionária acima referida entre 3 de Abril de 2023 e 25 de Junho de 2023. Como os dias que a funcionária faltou por doença neste ano civil excedem 30 dias seguidos ou interpolados a partir de 3 de Maio de 2023, as faltas superiores a 30 dias descontam na antiguidade para efeitos de categoria e carreira”. (Cfr. fls. 739 do P.A.).
XIV. E só em 27/08/2023 é que a Recorrente tomou conhecimento desta decisão.
XV. Contudo, a Junta de Saúde, não deu a conhecer os factos concretos que permitiram considerar a situação clínica da Recorrente como “doença” e não como “situação resultante dos acidentes em serviço”, contradizendo os pareceres emitidos anteriormente até 03/04/2023, onde se mencionava que as faltam eram devidas pelo acidente em serviço ocorrido em 25/07/2022.
XVI. Ora, salvo o devido respeito, a fundamentação do douto Tribunal a quo, parte de uma premissa errada ao considerar que o facto de no parecer da Junta de Saúde de 26/06/2023 se impor à trabalhadora o dever de regressar ao serviço, considera que a Recorrente está apta para trabalhar, e que houve o desaparecimento da causa impeditiva da execução normal do trabalho, e por isso as faltas passam a não ser justificadas por acidente.
XVII. Ora, a Recorrente não consegue concordar com o raciocínio perfilhado pelo douto Tribunal a quo, salvo o devido respeito que é devido, em primeiro lugar, porque a cessação da incapacidade temporária absoluta não determina por si só a justificação da alteração da causa das faltas, pelo que a dita consensualidade entre a Recorrente e a Administração, não cessa, ao contrário do que é referido pelo Tribunal, e em segundo lugar porque há uma clara omissão da declaração da incapacidade da sinistrada em consequência do acidente ocorrido no parecer da Junta de Saúde de 26/06/2023.
XVIII. Na verdade, existe uma consensualidade de que ainda nada estava claro, nem definido uma vez que a própria Junta de Saúde a mandou trabalhar por 90 dias, com trabalhos leves, o que evidencia que a situação da Recorrente ainda estava a ser avaliada, pelo que não se podia dizer ainda que a Recorrente já tinha sido recuperada ou que as faltas eram por doença e não eram devidas por acidente em serviço.
XIX. Este facto é aliás comprovado, no referido ofício n.º 003692/IAM-DA/OFI/2023, enviado pelo IAM aos SSM em 11/07/2023 - a pedir esclarecimentos sobre a lacuna nos pareceres da Junta de Saúde de 03/04/2023 a 25/06/2023, em que nada referem quanto ao nexo causal entre as faltas da Recorrente de 03/04/2023 a 25/06/2023 e o acidente em serviço ocorrido em 25/07/2022,
XX. Pelo que, ao contrário do entendimento perfilhado pelo douto Tribunal a quo, que julgamos se ter equivocado, salvo o devido respeito, a Recorrente entende que não se pode atribuir ao parecer homologado em 26/06/2023 os efeitos jurídicos que se pretende, em virtude da própria Administração ainda não se ter conformado, nem esclarecido o âmbito definitivo dos seus efeitos na esfera jurídica da Recorrente.
XXI. Em suma, salvo o devido respeito, não assiste razão ao douto Tribunal a quo, quando atribui ao referido parecer homologado em 26/06/2023, uma força vinculativa na esfera jurídica da Recorrente, quando esse parecer da Junta de Saúde não é claro e foi considerado insuficiente, pela própria Administração - pelo menos o assim demonstra quando a própria entidade empregadora oficia os serviços de saúde para prestar esclarecimentos - para que o trabalhador compreendesse plenamente as implicações legais.
XXII. Aliás, ao fixar a data da mudança de paradigma para 26 de Junho de 2023, o Tribunal a quo incorreu num erro de apreciação dos elementos probatórios, ignorando a evidência do Parecer de 14.08.2023.
XXIII. Com efeito, embora a Autora tenha alegado que a mudança de paradigma ocorreu em 3 de Abril de 2023 - conforme o parecer datado de 03.04.2023 - os autos demonstram de forma incontroversa que a reclassificação das faltas, de “acidente em serviço” para “doença”, somente se consolidou com o Parecer da Junta de Saúde de 14 de Agosto de 2023.
XXIV. Neste sentido, repare-se que na Administração pública, o funcionário que perfaça 18 meses de faltas por doença e com mais de 15 anos de serviço, nos termos do nº 1 do artº 106º e nº 1 do artº 107º ambos do ETAPM é automaticamente desligado do serviço para efeitos de aposentação.
XXV. Ora, se a Junta designou a última avaliação para 12.03.2025 e informou a Recorrente de que essa seria a última junta por ter atingido os 18 meses de faltas por doença, isso implica que a contagem dos 18 meses se iniciou só depois de 14.08.2023.
XXVI. Ademais, após a Junta de Saúde de 14.08.2023, a Recorrente trabalhou em diversos pequenos períodos (nos dias 19, 20, 21 e 22 de Agosto; 26 a 31 de Agosto; 1 e 2 de Setembro; e de 6 a 21 de Setembro), totalizando 28 dias de trabalho. Essa continuidade laboral evidencia que a reclassificação do paradigma apenas se consolidou para a Administração somente após o parecer de 14.08.2023, pois somente a partir dessa data o regime passaria a ser aplicado, em consonância com a prática administrativa do IAM e a designação da próxima junta.
XXVII. Por outro lado, o IAM continua a pagar o salário da Recorrente o que vem reforçar a tese de que a alteração do enquadramento das faltas não se deu em 26/06/2023.
XXVIII. Pelo que perante a divergência entre os pressupostos de que a douta decisão do Tribunal a quo partiu e sua real ocorrência, a Recorrente entende que a douta decisão do Tribunal a quo padece de erro nos pressupostos na avaliação de facto e de direito. Constituindo o erro nos pressupostos um vício de violação de lei que conduzem à anulação do acto administrativo.
XXIX. Mais, a Recorrente foi submetida à avaliação de 20/5/2024 pela junta que deu parecer cujo teor com o seguinte teor: “Conforme mostra o relatório médico do acidente de trabalho dessa funcionária, datado de 29 de Junho de 2021: dor ao pressionar na parte inferior esquerda das costas e na anca esquerda, dor ao pressionar no ligamento inguinal esquerdo; sintomas de dor na anca esquerda, diagnóstico de distensão na anca esquerda. O relatório médico do acidente de trabalho de 25 de Julho de 2022 indica: dor na anca direita, sem inchaço, e leve dor ao pressionar a anca direita, com diagnóstico de contusão nos tecidos moles. Os relatórios médicos indicam que a funcionária sofreu uma lesão no quadril esquerdo em 29 de Junho de 2021 e uma torção no quadril direito em 25 de Julho de 2022, sem que fossem encontradas anomalias na ressonância magnética e na tomografia computadorizada. As lesões causadas pelos dois acidentes acima referidos foram, respectivamente, uma lesão no quadril esquerdo e uma torção no quadril direito, que resultaram em incapacidade temporária para o trabalho. Ambas as lesões foram lesões dos tecidos moles, sem lesões em outros tecidos e órgãos, com um período de recuperação inferior a 12 semanas, mas a Junta de Saúde concedeu licenças por doença superiores a 8 meses para cada uma das lesões (30/06/2021 a 10/03/2022, 26/07/2022 a 02/04/2023). Após uma análise abrangente de todos os dados clínicos e relatórios de exames, é altamente provável que a referida funcionária sofra de uma lesão no plexo lombossacral esquerdo (left lumbosacral plexus lesion), causando a dor correspondente. Lesões do plexo lombossacral causadas por traumatismos são extremamente raras, sendo provocadas por fracturas da articulação sacroilíaca, separação da sínfise púbica e outros traumatismos. Podem ser detectadas através de exames de ressonância magnética e tomografia computadorizada. Esta Junta concede à referida funcionária a licença por doença de 20/05/2024 a 16/06/2024, devendo ela se submeter à esta Junta para uma nova avaliação em 17/06/2024.”
XXX. Posteriormente, foi a Recorrente de novo submetida à avaliação da junta marcada em 17/6/2024, tendo sido emitido pela junta o parecer com o seguinte teor: “Conforme mostra o relatório médico do acidente de trabalho dessa funcionária, datado de 29 de Junho de 2021: dor ao pressionar na parte inferior esquerda das costas e na anca esquerda, dor ao pressionar no ligamento inguinal esquerdo; sintomas de dor na anca esquerda, diagnóstico de distensão na anca esquerda. O relatório médico do acidente de trabalho de 25 de Julho de 2022 indica: dor na anca direita, sem inchaço, e leve dor ao pressionar a anca direita, com diagnóstico de contusão nos tecidos moles. Os relatórios médicos indicam que a funcionária sofreu uma lesão no quadril esquerdo em 29 de Junho de 2021 e uma torção no quadril direito em 25 de Julho de 2022, sem que fossem encontradas anomalias na ressonância magnética e na tomografia computadorizada. As lesões causadas pelos dois acidentes acima referidos foram, respectivamente, uma lesão no quadril esquerdo e uma torção no quadril direito, que resultaram em incapacidade temporária para o trabalho. Ambas as lesões foram lesões dos tecidos moles, sem lesões em outros tecidos e órgãos, com um período de recuperação inferior a 12 semanas, mas a Junta de Saúde concedeu licenças por doença superiores a 8 meses para cada uma das lesões (30/06/2021 a 10/03/2022, 26/07/2022 a 02/04/2023). Após uma análise abrangente de todos os dados clínicos e relatórios de exames, é altamente provável que a referida funcionária sofra de uma lesão no plexo lombossacral esquerdo (left lumbosacral plexus lesion), causando a dor correspondente. Lesões do plexo lombossacral causadas por traumatismos são extremamente raras, sendo provocadas por fracturas da articulação sacroilíaca, separação da sínfise púbica e outros traumatismos. Podem ser detectadas através de exames de ressonância magnética e tomografia computadorizada. Esta Junta concede à referida funcionária a licença por doença de 17/06/2024 a 23/06/2024, devendo ela se submeter novamente à Junta em 24/06/2024 para ser reavaliada.”
XXXI. Sendo que a ora Recorrente interpôs recurso hierárquico necessário, em 29/7/2024 dos despachos do subdirector datado de 20/5/2024 e de 17/6/2024 para o Director dos Serviços de Saúde, e, posteriormente, recurso contencioso.
XXXII. Ora, como podemos ver mais uma vez, a Junta de Saúde, não deu a conhecer de forma clara os factos concretos que permitiram considerar a situação clínica da Recorrente como “doença” e não como “situação resultante dos acidentes em serviço”, contradizendo os pareceres emitidos anteriormente até 03/04/2023, onde se mencionava que as faltam eram devidas pelo acidente em serviço ocorrido em 25/07/2022.
XXXIII. As expressões “muito possivelmente” e “é raro” utilizadas no relatório da junta médica são vagas e imprecisas, deixando a Requerente num estado de incerteza e confusão. A expressão “muito possivelmente” revela uma falta de certeza médica que deveria ter sido acompanhada de uma explicação clara e detalhada, de modo que a Requerente pudesse entender plenamente as implicações desta possível condição. Já a expressão “é raro” desconsidera a necessidade de uma análise mais aprofundada e individualizada do caso, omitindo informações cruciais para o entendimento da Requerente sobre a causa do seu problema de saúde.
XXXIV. Por outro lado, o princípio da dignidade humana, consagrado no artigo 30.º da Lei Básica, exige que os pacientes sejam tratados com respeito, o que inclui o direito a receber informações clínicas de maneira clara, completa e acessível. A ausência de clareza e a incerteza geradas pelo relatório da junta médica violam esse princípio, pois deixam a Requerente em uma posição de vulnerabilidade, impedindo-a de tomar decisões informadas sobre o seu tratamento.
XXXV. Mesmo sabendo da grande margem de discricionariedade do poder de decisão da Administração, não parece adequado, salvo o devido respeito, que essa decisão seja proferida com base em conceitos vagos incapazes de justificar porque um dia a Recorrente via as suas faltas justificadas por acidente e outro dia são consideradas por doença e não por acidente.
XXXVI. E nessa medida que se entende que a justificação do acto apresentada é deficiente e não é clara, notando-se uma falta de clareza nos critérios que foram ou deveriam ser tidos em conta, pois mais uma vez deparamo-nos com uma fundamentação genérica, apontando apenas para conceitos imprecisos que não são capazes de justificar a mudança de paradigma.
XXXVII. Em todo o caso, salvo o devido respeito, a fundamentação do douto Tribunal a quo, parte de uma premissa errada ao considerar que o facto de no parecer da Junta de Saúde de 26/06/2023 se impor à trabalhadora o dever de regressar ao serviço, considera que a Recorrente está apta para trabalhar, e que houve o desaparecimento da causa impeditiva da execução normal do trabalho, e por isso as faltas passam a não ser justificadas por acidente.
XXXVIII. Para além disso, sempre se dirá que a actividade da Administração pauta-se pelo princípio da Legalidade, por outras palavras, Administração subordina a sua actividade à lei.
XXXIX. Nos termos do art.º 116.º do ETAPM - (Submissão à Junta de Saúde): 1. Quando o sinistrado se encontrar impossibilitado de desempenhar plenamente as suas funções por período superior a 60 dias, é o mesmo obrigatoriamente submetido à Junta de Saúde, a solicitação do dirigente do serviço a que o sinistrado pertence. 2. A Junta de Saúde elabora relatório sobre a situação do sinistrado, declarando: a) Se o mesmo se encontra ou não incapaz para o serviço; b) Se a incapacidade é absoluta ou parcial, permanente ou temporária; c) Quais as lesões resultantes do acidente em serviço.
XL. Por outro lado, relembre-se que compete à Junta de Saúde, nos termos da al. a) do nº 2 do artº 33º do DL nº 81/99/M, verificar ou confirmar as situações de doença do pessoal dos serviços públicos, devendo emitir assim uma opinião clara, de forma a que órgão administrativo competente seja capaz de se pronunciar de uma forma adequada, tendo em vista a justificação de faltas ou fixação de incapacidades resultantes de doença ou acidente.
XLI. Assim, neste caso concreto, segundo este dever, impunha-se que a Junta de Saúde, além de descrever as lesões resultantes do acidente, se pronunciasse também sobre apta a regressar ao serviço ou se, mesmo estando curada das lesões, delas resultou alguma incapacidade.
XLII. Sendo esta obrigação imposta pelo artigo 116.º, n.º 2, do ETAPM de carácter vinculativo, significa que a Junta de Saúde não dispõe de qualquer margem de discricionariedade na elaboração do relatório, devendo observar de forma rigorosa os critérios legalmente estabelecidos.
XLIII. Ora, a Junta de Saúde ao longo dos seus pareceres não tem dado cumprimento ao constante no artigo 116.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, ao não declarar se a Recorrente estava definitivamente curada; se a incapacidade da Recorrente é absoluta ou parcial, permanente ou temporária. Concluindo-se sem qualquer base de suporte que a Recorrente passou para o regime de faltas por doença.
XLIV. De facto, o Tribunal a quo entendeu que em todas as intervenções ocorridas nunca chegou a ser elaborado pela Junta de Saúde o relatório a que se refere o artigo 116.º, n.º 2, do ETAPM, com as declarações exigidas (a saber, existência e grau de incapacidade).
XLV. Essa constatação reforça a conclusão de que houve clara inobservância do regime jurídico aplicável, resultando num acto administrativo ilegal.
XLVI. Assaca-se, assim, aos referidos pareceres da Junta de Saúde, a inobservância do art.º 116.º do ETAPM, por se não ter declarado pela Junta se a Recorrente estava capaz ou não para o serviço.
XLVII. E sabendo que a vinculação estrita da Junta de Saúde aos critérios estabelecidos no artigo 116.º, n.º 2, do ETAPM é condição essencial para que o relatório seja elaborado de forma objectiva, transparente e em conformidade com a lei; e que o próprio Tribunal, na sentença em análise, reconheceu esta falta de conformidade com a lei dos pareceres da Junta de Saúde, esta situação gera inevitavelmente a violação do principio da Legalidade.
XLVIII. Por outro lado, esta incerteza e mudança de um regime de faltas por acidente para regime de faltas por doença, sem qualquer justificação cientifica capaz de sustentar tal decisão, viola também o dever de informação clínica, previsto no artigo 7.º, n.º 1, da Lei do Erro Médico, bem como um desrespeito pelo princípio da dignidade humana consagrado no artigo 30.º da Lei Básica.
XLIX. Por tudo isto, o acto jurídico em questão configura-se como nulo nos termos do artigo 122.º, n.º 2, alínea d), do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
L. Tal nulidade tem repercussões nos relatórios médicos anteriores, visto que o direito à informação clínica da Requerente vem sendo sistematicamente violado.
LI. Ao não fornecer à Requerente informações precisas e compreensíveis, a junta médica não só a privou do conhecimento necessário sobre a sua condição, como também feriu a sua dignidade, ao tratá-la com desconsideração ao direito de ser informada de maneira adequada.
LII. A falta de explicação sobre o motivo pelo qual o estado clínico da Recorrente deixou de ser considerado como consequência de um acidente de trabalho e passou a ser tratado como uma doença autónoma é uma omissão grave que reforça a violação contínua dos seus direitos.
LIII. Sendo que esta violação do direito à informação clínica vem-se arrastando nos vários relatórios médicos, tal como foi igualmente reconhecido na douta sentença de que se recorre, os falharam em explicar de forma acessível, objetiva, completa e inteligível as razões clínicas para a mudança de diagnóstico da Recorrente.
LIV. Assim, sabendo que nos termos do artigo 122.º, n.º 2, alínea d), do Código do Procedimento Administrativo, um acto administrativo é nulo quando ofende o conteúdo essencial de um direito fundamental, no caso em questão, esta falta de informação clara, completa e inteligível impede a Recorrente de exercer plenamente os seus direitos, ofendendo o direito da Recorrente à informação clínica e, por conseguinte, o princípio da dignidade humana, nos termos supra expostos, configurando a nulidade do respectivo acto administrativo.
LV. Pelo que, deparamo-nos com uma insuficiência de matéria de facto capaz de suportar um juízo seguro de direito que sustente a mudança de paradigma das faltas, pois não se vislumbram os fundamentos que sustentam tal decisão, considerando-se que a entidade recorrida ao decidir como decidiu está a violar os mais elementares princípios de direito, e que integram o núcleo de direitos fundamentais, nomeadamente o princípio da boa fé, da tutela, o princípio da justiça e da boa fé, previstos nos artigos 5º, 7º e 8º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), erro nos pressupostos, violação dos artigos 110º e 116º do ETAPM, artigo 33º, al. a) do nº 2 do DL nº 81/99/M, e ainda artigo 7.º, n.º 1, da Lei do Erro Médico, violando por conseguinte o princípio da legalidade administrativa, previsto no artigo 3º do CPA.
LVI. Assim, do que foi exposto, deve o presente recurso contencioso, ser julgado procedente e, o que importa a declaração de nulidade ou anulação pelo douto Tribunal e em consequência, ser aplicada à Recorrente, atendendo à sua situação clínica, o regime de “Faltas por acidente em serviço”, com a reposição de todos os seus direitos que foram limitados, considerando-se as faltas dadas pela Recorrente até ao momento como “faltas por acidente em serviço”, com os consequentes efeitos jurídicos.
Contra-alegando veio o Recorrido apresentar as seguintes conclusões:
i. A Recorrente não explica a conexão entre a alegada violação do princípio da dignidade humana e o alegado erro na avaliação dos pressupostos, não percebendo a Entidade Recorrida o que pretende a Recorrente alegar em matéria de facto.
ii. A deliberação da Junta de 26/6/2023 é sem dúvida definitiva, sendo claro os seus efeitos jurídicos da cessação de incapacidade da Recorrente; Assim sendo, a fixação da data da mudança de paradigma em 26/6/2023, não constitui qualquer erro na avaliação dos prossupostos o Tribunal a quo.
iii. Por outro lado, não cabe à Junta a determinação do regime aplicável, o parecer da Junta limita-se a uma natureza técnica na área de medicina e que tem por função determinar o quadro clínico em que se encontra o trabalhador.
iv. A Recorrente não concorda é com o regime legal em que foi submetida à Junta, pelo que deveria era reclamar da decisão do respectivo Serviço.
v. O parecer da Junta de 26/6/2023, pronuncia-se sobre a capacidade para o serviço da ora Recorrente, e determina que a mesma pode regressar ao trabalho, sendo um relatório claro e consequente não existe necessidade de análise das eventuais lesões resultantes de acidente em serviço.
vi. Nas deliberações posteriores de 8/1/2024, mais se pronuncia a Junta deliberando que a eventual incapacidade seria parcial e temporária.
vii. A Recorrente continua a não compreender que os relatórios médicos de emitidos por instituições médicas de Macau e de Hong Kong, não confirmam o alegado nexo de causalidade entre a sua situação actual e os acidentes em serviço.
viii. Não é aplicável ao caso em concreto o Regime Jurídico do Erro Médico, não tendo a Recorrente comprovado os requisitos previstos no artigo 3.º da Lei n.º 5/2016.
ix. Não é comprovada qualquer relação entre a prestação de informação clínica e o princípio da dignidade humana.
x. O acto recorrido não é susceptível de violar o direito à informação sobre o estado clínico, e a actuação da Junta é circunscrita ao que esteja previsto nos artigos 105.º e 106.º ou 116.º do ETAPM, nada mais do que isso.
xi. A Administração expressou de forma clara e foram disponibilizadas todas as informações legalmente exigidas à Recorrente, pelo que não se verifica qualquer vício por falta de informação.
xii. Face a tudo o que antecede, andou bem o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, visto que a sentença recorrida não padece de qualquer vício de erro de avaliação dos pressupostos de facto, qualquer vício de violação do princípio da legalidade, nem padece de quaisquer outros vícios.
Foram os autos ao Ilustre Magistrado do Ministério Público o qual emitiu parecer no sentido de ser negar provimento ao presente recurso jurisdicional.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos Factos
Na decisão recorrida foi dada por assente a seguinte factualidade:
- A ora Recorrente (A) trabalha no Instituto para os Assuntos Municipais, desde 1 de Julho de 2019.
- Em 29/6/2021, a Recorrente na execução do trabalho de carga que lhe foi confiada, caiu no chão ao carregar a caixa, e sofreu, por consequência, conforme resultou do exame médico, as seguintes lesões físicas “dor ao pressionar na parte inferior esquerda das costas e na anca esquerda, dor ao pressionar no ligamento inguinal esquerdo” (conforme o auto de notícia e outros docs. juntos a fls. 926 a 927 do processo administrativo).
- Sendo assim, no período que decorreu entre 30/6/2021 e 30/8/2021, faltava ao serviço mediante a apresentação dos atestados médicos sucessivamente emitidos (conforme os docs. juntos a fls. 4 a 22 do processo administrativo).
- Por encontrar-se impossibilitada de desempenhar plenamente as suas funções por período superior a 60 dias, a Recorrente foi submetida pelo IAM à avaliação da Junta de Saúde agendada em 27/8/2021, para esta elaborar o relatório, nos termos previstos no artigo 116.º, n.º 2 do ETAPM, sobre a situação dela (conforme os docs. juntos a fls. 23 a 24 do processo administrativo).
- Após a avaliação realizada na sessão de 27/8/2021, a Junta de Saúde emitiu o seguinte parecer, que foi homologado pelo Director dos Serviços de Saúde em 30/8/2021:
“Comprovou-se que que a funcionária esteve ausente por motivo de doença justificada entre 30/06/2021 e 26/08/2021, e continuou a gozar de licença por doença de 27/08/2021 a 30/08/2021.
Esta Junta solicitou que a funcionária apresentasse o relatório médico no prazo de 60 dias, a fim de avaliar se a sua ausência entre 04/07/2021 e 30/08/2021 foi causada pelo acidente ocorrido em 29/06/2021.” (cfr. o doc. junto a fls. 25 do processo administrativo).
- Na sequência disso, o médico do Centro Hospitalar Conde de São Januário emitiu o relatório médico datado de 6/9/2021, com o seguinte teor: “A falta por doença da paciente entre 04/07/2021 e 30/08/2021 está relacionada com o acidente ocorrido em 29/06/2021.” (conforme o doc. a fls. 29 junto do processo administrativo).
- Entretanto, a Recorrente continuou a faltar ao serviço entre 30/8/2021 e 1/10/2021 mediante a apresentação dos atestados médicos (conforme os docs. juntos a fls. 39 a 45 juntos do processo administrativo).
- Foi a mesma submetida à Junta para a avaliação agendada em 22/10/2021 e para a elaboração do relatório acima referido, com a junção do relatório médico solicitado por aquela e os atestados médicos (conforme os docs. juntos a fls. 56 a 57 do processo administrativo).
- Após a sessão de 22/10/2021, a Junta emitiu o seguinte parecer, que foi seguidamente homologado pelo Director dos Serviços de Saúde:
“Comprovou-se que a funcionária esteve ausente por motivo de doença justificada entre 31/08/2021 e 27/09/2021, e entre 02/10/2021 e 21/10/2021, e que continuou a gozar de licença por doença entre 22/10/2021 e 29/10/2021.
Esta Junta solicitou que a funcionária apresentasse, no prazo de 60 dias, um relatório médico válido, a fim de avaliar se a sua ausência entre 28/09/2021 e 01/10/2021 foi causada pelo acidente ocorrido em 29/06/2021.” (cfr. o doc. junto a fls. 58 do processo administrativo).
- Desse modo, a Recorrente foi sucessivamente submetida à Junta, em 17/12/2021, 14/1/2022, 11/3/2022, 15/8/2022, e esta, para além de considerar as faltas justificadas por doença, pronunciou-se, com base nos relatórios por ela solicitados, sobre a existência do nexo causal entre as sucessivas faltas e o acidente ocorrido em 29/6/2021(conforme os docs. juntos a fls. 71 a 121 do processo administrativo).
- Além disso, a partir de 17/12/2021, a Junta deu pareceres no sentido de a Recorrente regressar ao serviço para execução dos trabalhos mais leves no prazo de 90 dias (conforme os docs. juntos a fls. 73, 98 e 121 do processo administrativo).
- Sucedeu que em 25/7/2022, a Recorrente no local de trabalho, enquanto estava a dirigir-se à casa de banho e pretendeu evitar o embate com o colega, perdeu o equilíbrio e caiu novamente, sofreu por consequência, conforme resultou do exame médico, as seguintes lesões físicas “Dor ao pressionar na parte inferior direita das costas e na anca, dor ao pressionar no ligamento inguinal direito e dor ao pressionar no joelho direito. (complaint of right hip joint pain after injury)” (conforme o auto de notícia e os outros docs. juntos a fls. 125 a 126 do processo administrativo).
- Foi a Recorrente de novo submetida pelo IAM à avaliação da Junta agendada em 24/10/2022, para esta elaborar o relatório, nos termos previstos no artigo 116.º, n.º 2 do ETAPM, sobre a situação dela em virtude do referido acidente ocorrido (conforme os docs. juntos a fls. 167 a 168 do processo administrativo).
- Como sucedeu relativamente ao primeiro acidente, a Junta, em 24/10/2022, 21/11/2022, 12/12/2022, 16/1/2023, 13/2/2023, 6/3/2023, 20/3/2023, para além de conceder os períodos de faltas por doença, pronunciou-se, com base nos relatórios por ela solicitados, sobre a existência do nexo causal entre as sucessivas faltas e o acidente ocorrido em 25/7/2022 (conforme os docs. juntos a fls. 169 a 239 do processo administrativo).
- Posteriormente, nas avaliações realizadas em 3/4/2023, 8/5/2023, 15/5/2023, 29/5/2023, 12/6/2023, a Junta limitava-se a conceder as faltas por doença e agendar a próxima avaliação, deixando entretanto de pronunciar-se sobre a falta por acidente (conforme os docs. juntos a fls. 245 a 296 do processo administrativo).
- Após a avaliação realizada em 26/6/2023, a Junta deu parecer, pronunciando-se no sentido de que a Recorrente devesse regressar ao serviço na mesma data, para execução dos trabalhos mais leves no prazo de 90 dias (conforme o doc. junto a fls. 302 do processo administrativo).
- Não obstante do referido parecer, a Recorrente faltou ao serviço no dia 29 de Junho de 2023 com a apresentação do atestado médico, foi submetida à Junta conforme previsto no artigo 105.º, n.º 2 do ETAPM (conforme os docs. juntos a fls. 309 a 311 do processo administrativo).
- A Recorrente regressou ao serviço em 30/6/2023, contudo continuava a faltar intermitentemente, sendo por isso submetida às sucessivas avaliações da Junta.
- Após a avaliação realizada em 10/7/2023, a Junta pronunciou-se no parecer homologado, nos seguintes termos, “A funcionária regressou ao trabalho em 30/06/2023. Foi-lhe informado que, a partir desta data, caso volte a ausentar-se por motivo de doença, deverá apresentar um relatório médico para que esta Junta avalie a sua doença, não sendo aceite relatório apresentado posteriormente.” (conforme o doc. junto a fls. 312 do processo administrativo).
- Conforme solicitado no dito parecer, a Recorrente foi submetida à avaliação de 20/5/2024 pela Junta que deu parecer com o seguinte teor:
“Conforme mostra o relatório médico do acidente de trabalho dessa funcionária, datado de 29 de Junho de 2021: dor ao pressionar na parte inferior esquerda das costas e na anca esquerda, dor ao pressionar no ligamento inguinal esquerdo; sintomas de dor na anca esquerda, diagnóstico de distensão na anca esquerda. O relatório médico do acidente de trabalho de 25 de Julho de 2022 indica: dor na anca direita, sem inchaço, e leve dor ao pressionar a anca direita, com diagnóstico de contusão nos tecidos moles.
Os relatórios médicos indicam que a funcionária sofreu uma lesão no quadril esquerdo em 29 de Junho de 2021 e uma torção no quadril direito em 25 de Julho de 2022, sem que fossem encontradas anomalias na ressonância magnética e na tomografia computadorizada. As lesões causadas pelos dois acidentes acima referidos foram, respectivamente, uma lesão no quadril esquerdo e uma torção no quadril direito, que resultaram em incapacidade temporária para o trabalho. Ambas as lesões foram lesões dos tecidos moles, sem lesões em outros tecidos e órgãos, com um período de recuperação inferior a 12 semanas, mas a Junta de Saúde concedeu licenças por doença superiores a 8 meses para cada uma das lesões (30/06/2021 a 10/03/2022, 26/07/2022 a 02/04/2023).
Após uma análise abrangente de todos os dados clínicos e relatórios de exames, é altamente provável que a referida funcionária sofra de uma lesão no plexo lombossacral esquerdo (left lumbosacral plexus lesion), causando a dor correspondente. Lesões do plexo lombossacral causadas por traumatismos são extremamente raras, sendo provocadas por fracturas da articulação sacroilíaca, separação da sínfise púbica e outros traumatismos. Podem ser detectadas através de exames de ressonância magnética e tomografia computadorizada.
Esta Junta concede à referida funcionária a licença por doença de 20/05/2024 a 16/06/2024, devendo ela se submeter à esta Junta para uma nova avaliação em 17/06/2024.”
(conforme o doc. junto a fls. 2742 do processo administrativo).
- Tal parecer mereceu o despacho de homologação do subdirector dos Serviços de Saúde, datado de 20/5/2024.
- Posteriormente, foi a Recorrente de novo submetida à avaliação da Junta marcada em 17/6/2024 (conforme o doc. junto a fls. 2738 do processo administrativo).
- Foi emitido pela Junta o parecer com o seguinte teor. O parecer esse mereceu o despacho de homologação do subdirector, datado de 17/6/2024.
“Conforme mostra o relatório médico do acidente de trabalho dessa funcionária, datado de 29 de Junho de 2021: dor ao pressionar na parte inferior esquerda das costas e na anca esquerda, dor ao pressionar no ligamento inguinal esquerdo; sintomas de dor na anca esquerda, diagnóstico de distensão na anca esquerda. O relatório médico do acidente de trabalho de 25 de Julho de 2022 indica: dor na anca direita, sem inchaço, e leve dor ao pressionar a anca direita, com diagnóstico de contusão nos tecidos moles.
Os relatórios médicos indicam que a funcionária sofreu uma lesão no quadril esquerdo em 29 de Junho de 2021 e uma torção no quadril direito em 25 de Julho de 2022, sem que fossem encontradas anomalias na ressonância magnética e na tomografia computadorizada. As lesões causadas pelos dois acidentes acima referidos foram, respectivamente, uma lesão no quadril esquerdo e uma torção no quadril direito, que resultaram em incapacidade temporária para o trabalho. Ambas as lesões foram lesões dos tecidos moles, sem lesões em outros tecidos e órgãos, com um período de recuperação inferior a 12 semanas, mas a Junta de Saúde concedeu licenças por doença superiores a 8 meses para cada uma das lesões (30/06/2021 a 10/03/2022, 26/07/2022 a 02/04/2023).
Após uma análise abrangente de todos os dados clínicos e relatórios de exames, é altamente provável que a referida funcionária sofra de uma lesão no plexo lombossacral esquerdo (left lumbosacral plexus lesion), causando a dor correspondente. Lesões do plexo lombossacral causadas por traumatismos são extremamente raras, sendo provocadas por fracturas da articulação sacroilíaca, separação da sínfise púbica e outros traumatismos. Podem ser detectadas através de exames de ressonância magnética e tomografia computadorizada.
Esta Junta concede à referida funcionária a licença por doença de 17/06/2024 a 23/06/2024, devendo ela se submeter novamente à Junta em 24/06/2024 para ser reavaliada.”
(conforme o doc. junto a fls. 2738 do processo administrativo)
- A ora Recorrente interpôs recurso hierárquico necessário, em 29/7/2024 dos despachos do subdirector datado de 20/5/2024 e de 17/6/2024 para o Director dos Serviços de Saúde, ora Entidade recorrida, recurso esse que foi indeferido em 1/8/2024.
- Em 5/9/2024, do dito acto foi interposto o presente recurso contencioso.
b) Do Direito
É do seguinte teor a decisão recorrida:
«O que está em apreço é a legalidade do acto do Director dos Serviços de Saúde que decidiu, em segundo grau, sobre o recurso hierárquico necessário interposto dos actos homologatórios relativos aos dois pareceres emitidos pela Junta de Saúde no sentido de conceder os períodos de falta por doença. Arroga-se a Recorrente titular do direito que foi lesado pelo acto recorrido, na medida em que devia a Junta conceder as faltas segundo o regime de faltas por acidente em serviço, mais favorável considerando as consequências que decorram da sua aplicação.
Começa a ora Recorrente por assacar ao acto recorrido a nulidade por ofensa ao conteúdo essencial do direito fundamental, sancionada pelo artigo 122.º, n.º 2, alínea d) do CPA, especificando que o acto recorrido não foi explícito sobre o motivo pelo qual o estado clínico da Recorrente deixou de ser considerado como consequência do acidente de trabalho, o que violou o seu direito à informação clínica e assim como o princípio da dignidade humana (conforme alegado nos artigos 25.º a 37.º da petição inicial).
Com o devido respeito, laborou a Recorrente em manifesto erro na qualificação do vício invocado e o que se invoca aqui não é o vício de nulidade, mas sim o de mera anulabilidade pela falta de fundamentação do acto.
No dizer do professor Vieira de Andrade, a falta da fundamentação do acto pode gerar a consequência da nulidade numa das duas situações, na primeira quando a declaração dos fundamentos de decisão imposta em casos determinados pela lei especial, “foi em termos tais que se possa concluir que ela representa garantia ou única da salvaguarda de um valor fundamental de juridicidade, ou então da realização do interesse público específico servido pelo acto fundamentado”, na outra, quando esteja em causa o incumprimento do dever de fundamentação que afecta os direitos, liberdades e garantias consagrados nos preceitos constitucionais. Contudo deve-se sublinhar que “o dever de fundamentação não deve ser considerado um segmento normativo do direito fundamental, razão porque também só em circunstâncias particulares se deverá admitir que a sua violação conduza à nulidade do acto”, nomeadamente, “quando se trate de actos administrativos que toquem o núcleo de esfera normativa protegida e apenas quando a fundamentação possa ser considerada um meio insubstituível para assegurar uma protecção efectiva do direito, liberdade e garantia” (cfr. Vieira de Andrade, o Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, pp. 292 a 294).
No caso aqui em apreço, o acto recorrido não é susceptível de violar o direito à informação sobre o estado clínico, cuja satisfação não se reclama no procedimento que culmina com o acto, mas na própria fase do tratamento médico. A actuação concreta da Junta de Saúde é circunscrita ao que esteja previsto nos artigos 105.º e 106.º ou o 116.º do ETAPM, sob pena de incorrer em violação da lei. Nada mais do que isso.
Se assim é, o que a ora Recorrente invocou só pode ser a ilegalidade decorrente da violação do dever de fundamentação previsto nos artigos 114.º e 115.º do CPA, cuja apreciação se fará de seguida.
*
Quanto ao vício da falta de fundamentação que considerou inquinar o acto recorrido, entendeu a Recorrente que os pareceres da Junta homologados e confirmados pelo acto recorrido não deram a conhecer os factos em que se baseou para alterar a situação de faltas por acidente em serviço para faltas por doença (conforme se alega nos artigos 38.º a 51.º da petição inicial).
Como se tem entendido na generalidade da doutrina, o dever de fundamentação do acto administrativo tem, geneticamente, uma função endógena de propiciar a reflexão da decisão pelo órgão administrativo, e uma função exógena, externa ou garantística de facultar ao cidadão a opção consciente entre conformar-se com tal decisão ou afrontá-la em juízo. Atento esse escopo finalístico do instituto, impõe-se, na norma do artigo 114.º do CPA, o dever legal de fundamentação do acto administrativo. E exige-se, no disposto do artigo 115.º, n.º 1 do CPA, como requisitos legais da fundamentação, que a mesma seja expressa e contenha uma sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão.
De acordo com a consolidação jurisprudencial da RAEM que tem vindo a ser feita em torno do dever legal de fundamentação, que se considera cumprido este dever sempre que o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal fica a conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pela entidade administrativa, para que possa sindicar o acto de forma esclarecida (entre muitos outros, veja-se, neste sentido, o Acórdão do TSI, Processo n.º 375/2016, de 9/11/2017).
Ou melhor, foi adoptado aqui no que toca à suficiência da fundamentação, o critério que a doutrina designa por o da “compreensibilidade das razões da decisão por um destinatário normal ou razoável, ainda que colocado na situação concreta”. À luz desse critério, o essencial é que o destinatário do acto percebe “quais as razões de facto ou de direito que tinham determinado o mesmo autor a agir ou escolher aquele conteúdo”. Nesta linha, no âmbito do controle jurisdicional, “as razões que devem ser declaradas não são as (subjectivamente) “mais importantes”, nem as “essenciais”, mas as “determinantes”, isto é, aquelas que sejam, ao mesmo tempo, justificativas – por revelarem um juízo típico ou próprio de um órgão público, objectivamente apto a suportar uma decisão administrativa – e decisivas – por terem sido, entre todas, aquelas que serviram de causa impulsiva do agir da Administração.” (cfr. José Carlos Vieira de Andrade, obra cit., Almedina, pp. 247 a 248).
No caso aqui em apreço, estamos perante um acto praticado em segundo grau que decidiu sobre o recurso hierárquico necessário interposto do acto de primeiro grau. Deve ser por referência àquele que se exerça o controlo de suficiência formal. A este respeito, parece evidente que o acto recorrido se encontra fundamentado de tal modo que permita ao destinatário normal colocado na posição da Recorrente conhecer as razões de facto – as lesões sofridas e provocadas pelo acidente levaram apenas um período não superior a 12 semanas para se recuperarem, o que deva impedir a aplicação contínua do regime de falta por acidente em serviço no caso concreto e as de direito - as normas ínsitas nos artigos 104.º, n.º 1, alínea a) e 105.º, n.º 1 do ETAPM em que se assentava a actuação administrativa em causa.
Aliás, a crítica dirigida pela Recorrente à fundamentação do acto não se prende com a ausência da enunciação dos motivos que tenham impulsionado a prática do acto, isto é, a fundamentação formal do acto, mas interessam “a correspondência dos motivos enunciados com a realidade”, essencial para a fundamentação material donde decorre o vício de violação da lei como se analisará adiante (veja-se quanto à distinção, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 0512/17, de 14/3/2018, consulta disponível em linha https://www.dgsi.pt/).
Nestes termos ditos, não ocorreu o vício de falta de fundamentação, devendo-se por isso julgar improcedente o recurso quanto a este fundamento.
*
Mais alega a Recorrente que o acto impugnado padeceu do vício de violação da lei por erro no pressuposto de facto, por considerar erradamente que a falta dela se deve à situação de doença, faltando assim ao cumprimento do artigo 116.º do ETAPM (conforme se alega nos artigos 52.º a 59.º da petição inicial).
Dito por outro modo, entende a mesma que é a elaboração do relatório sobre a situação da sinistrada em consequência do acidente em serviço ocorrido que se impunha na situação concreta, com as declarações indicadas nas alíneas a), b) e c) do dito preceito legal.
Salvo devido respeito, tal fundamento não colhe.
Conforme registado nos respectivos autos de notícia, constitui factualidade incontroversa que ocorreram sucessivamente à ora Recorrente, sinistrada no caso, os dois acidentes em serviço, tal como têm sido implicitamente reconhecidos pela Junta nas suas intervenções solicitadas pelo IAM, serviço a que pertence a trabalhadora. Nesta conformidade, deve ser o regime de faltas por acidente em serviço estabelecido nos artigos 110.º a 120.º do ETAPM que é em primeiro lugar chamado à colação.
Ao abrigo do n.º 1 do artigo 116.º do referido Estatuto, “Quando o sinistrado se encontrar impossibilitado de desempenhar plenamente as suas funções por período superior a 60 dias, é o mesmo obrigatoriamente submetido à Junta de Saúde, a solicitação do dirigente do serviço a que o sinistrado pertence.”.
Mais conforme previsto no n.º 2 do artigo 116.º do ETAPM, cabe à Junta no relatório elaborado sobre a situação do sinistrado, declarar o seguinte,
“a) Se o mesmo se encontra ou não incapaz para o serviço;
b) Se a incapacidade é absoluta ou parcial, permanente ou temporária;
c) Quais as lesões resultantes do acidente em serviço.”.
No caso da declaração de incapacidade permanente e absoluta, assiste ao sinistrado o direito a ser aposentado, nos termos previstos no artigo 119.º do Estatuto. Se a incapacidade declarada for apenas parcial, o sinistrado não se encontra impossibilitado de regressar ao serviço, devendo lhe ser distribuídas tarefas compatíveis com a sua situação, “tendo em conta o seu nível e qualificação profissionais” – de acordo com o disposto no artigo 118.º, n.º 1 do Estatuto.
E quanto à declaração da incapacidade temporária, sendo parcial, o sinistrado deve regressar ao serviço para executar as tarefas adequadas que lhe fossem distribuídas, segundo a referida norma do artigo 118.º, n.º 1; sendo a incapacidade absoluta, ou seja, “as lesões ou a doença o impossibilitam completamente de trabalhar ou ganhar” na definição emprestada ao artigo 3.º, alínea g), (1) do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, justifica-se então a falta por motivo de acidente em serviço, com a situação de impossibilidade de pleno desempenho de funções mensalmente confirmada por declaração do médico, conforme a exigência contemplada pelo artigo 117.º, n.º 2.
Além disso, ainda impõe-se sublinhar que segundo o artigo 117.º, n.º 1 do Estatuto, o sinistrado “mantém todos os direitos e regalias a que teria direito se estivesse em serviço efectivo”, durante o período decorrido desde o acidente até à declaração de incapacidade pela Junta, ou ao restabelecimento do sinistrado, se isso ocorrer dentro do período de 60 dias, e sendo assim, a declaração de incapacidade da Junta não vier a ter lugar.
Desse modo, fácil é entender que em qualquer das situações acima supostas, não se colocaria a hipótese de conceder ao sinistrado as faltas por doença, sendo certo que a actuação administrativa se devia cingir à aplicação do regime de falta por acidente em serviço.
Tanto mais que a situação de impossibilidade temporária do desempenho de funções em virtude da ocorrência do acidente em serviço não parece poder vir a converter-se na de impossibilidade gerada pela doença sofrida, com a consequente justificação das faltas nos termos previstos no artigo 97.º e ss do ETAPM. O que pode suceder, tratando-se da incapacidade temporária, é apenas se o sinistrado se encontra recuperado ou não da incapacidade - no caso afirmativo, deve ele regressar ao serviço na data da cessação da incapacidade; e se pelo contrário, continuar a revelar incapacidade para desempenhar as tarefas, poderá ser de novo submetido à Junta para declaração da incapacidade permanente e absoluta – nos termos previstos do artigo 118.º, n.º 2 do Estatuto, com a produção dos efeitos inerentes a tal declaração.
No caso dos autos, certo é que em todas as intervenções ocorridas nunca chegou a ser elaborado pela Junta tal relatório a que se refere no artigo 116.º, n.º 2 do ETAPM com as declarações nele especificadas, sobretudo para tomar posição relativa à existência da incapacidade e o respectivo grau, mesmo que para tal fosse reiteradamente solicitado pelo IAM nos respectivos Boletins Individuais para Inspecção Sanitária preenchidos e remetidos para aquela juntamente com o ofício enviado. O que a Junta fez foi de conceder as faltas por doença, e de pronunciar-se, com base nos relatórios médicos obtidos, sobre a existência do nexo causal entre as sucessivas faltas e o acidente ocorrido, não tendo cumprindo, na íntegra, a exigência legal plasmada no artigo 116.º, n.º 2 do Estatuto.
Porém, consideramos não ser possível agora que relativamente ao acto aqui em causa o dito vício de ilegalidade se invoque, tendo em conta que segundo a factualidade apurada, a partir do parecer emitido e homologado em 3/4/2023, a Junta se limitava a conceder as faltas por doença e agendar a próxima avaliação, deixando de ter qualquer palavra sobre a ligação entre as faltas e o acidente de 25/7/2022 e até que se pronunciou, no parecer emitido e homologado em 26/6/2023, que a trabalhadora deve regressar ao serviço a partir desse dia para realizar as tarefas leves, posição essa foi reiterada no parecer de 10/7/2023.
Daí, pese embora a omissão da declaração da incapacidade da sinistrada em consequência do acidente ocorrido, deve-se reconhecer que ela se encontrava na situação da incapacidade temporária absoluta que impossibilitou o seu exercício do trabalho, e sempre existia a propósito desta questão um entendimento consensual entre a interessada e a Administração, anteriormente à referida intervenção da Junta em 26/6/2023, o que explica o motivo pelo qual os actos praticados até lá não chegaram a ser impugnados com base na respectiva omissão. Contudo, tal consensualidade deixou de existir desde o parecer de 26/6/2023, uma vez que ao impor à trabalhadora o dever de regressar ao serviço, a Junta considerou a mesma apta para trabalhar. A esta consideração subjaz a ideia do desaparecimento daquela causa impeditiva da execução normal do trabalho, ou por outras palavras, a cessação da incapacidade temporária absoluta.
Trata-se aqui de um acto administrativo - o parecer homologado em 26/6/2023 - ao abrigo do artigo 110.º do CPA que tenha importado uma definição autoritária e vinculativa da situação jurídica da ora interessada. Não tendo este acto, sendo contenciosamente impugnável, sido sujeito à impugnação contenciosa tempestiva, consolidou-se este na ordem jurídica como caso decidido, com força estabilizadora da situação jurídica pelo facto daquele acto que lhe deu origem se ter tornado inimpugnável.
Nestes termos entendidos, a mudança ilegal de um regime de “faltas por acidente em serviço” para outro de “falta por doença” assim como o incumprimento do comando legal constante do artigo 116.º, n.º 2 deixa de ser pertinente, pois não foi neste acto recorrido que se introduziu tal mudança, mas tinha sido naquele de 26/6/2023.
Como tal, atentos os efeitos vinculativos do caso decidido anteriormente formado, que se traduz “no carácter obrigatório das determinações contidas no acto administrativo para os sujeitos da relação jurídica sobre a qual incide” e que abrange, “quer o destinatário do acto administrativo, quer o seu autor” (cfr. Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, p.185), não parece que pudesse a Junta nos posteriores pareceres de 20/5/2024 e 17/6/2024, voltar a justificar as faltas por existência da impossibilidade de trabalhar como consequência do acidente em serviço, o que levaria a contradizer a posição anteriormente tomada que vincula a própria Junta.
Não é imputável, assim, ao ora acto recorrido a ilegalidade pela inobservância do regime de faltas por acidente em serviço. O que resta, por conseguinte, é ver justificadas as faltas verificadas depois de 26/6/2023, por motivo de doença sob o regime consagrado nos artigos 97.º a 109.º do Estatuto.
Assim, é de improceder o recurso quanto ao fundamento invocado.
*
Ainda entende a Recorrente que o acto recorrido violou os princípios da proporcionalidade, da adequação, e da justiça e imparcialiade, considerando que tanto a desadequação como a desproporcionalidade resultam do facto de ter aplicado erradamente o regime de faltas por doença, e não o regime por acidente em serviço (conforme se alega nos artigos 60.º a 83.º da petição inicial).
Parece evidente que para a situação concreta aqui em causa, a Administração se encontra vinculada a aplicar um regime de faltas ou outro, diante da verificação dos respectivos pressupostos legais, não lhe cabendo escolher o regime mais vantajoso, com base no juízo da conveniência formulado. Dito por outras palavras, nesse âmbito da actividade legalmente vinculada, a actuação administrativa seja num sentido ou noutro não é susceptível de violar os princípios fundamentais do direito administrativo.
Pelo que se deve improceder o recurso quanto a este fundamento.
*
Assim, resta decidir.».
Foi do seguinte teor o Douto Parecer do Ministério Público:
«1.
(A), melhor identificada nos presentes autos, interpôs recurso contencioso do acto administrativo praticado pelo Director dos Serviços de Saúde que indeferiu o recurso hierárquico interposto pela Recorrente dos actos homologatórios praticados em relação aos pareceres emitidos pela Junta de Saúde em 20 de Maio de 2024 e 17 de Junho de 2024.
Por douta decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo que se encontra a fls. 279 a 288 dos presentes autos foi o recurso julgado improcedente.
Inconformada, veio a Recorrente contenciosa interpor o presente recurso jurisdicional perante o Tribunal de Segunda Instância, pugnando pela revogação daquela decisão.
2.
(i)
Antes do mais importa, a benefício da clareza, definir adequadamente o objecto do recurso contencioso e, por essa via, do presente recurso jurisdicional. Não é fácil, ao menos para nós, dada a profusão de pareceres da Junta de Saúde e, mais do que isso, a manifesta falta de clareza desses pareceres e da respectiva fundamentação, reveladora, afinal, com todo o respeito o dizemos, de uma inexplicável incompreensão sobre as exigências resultantes da lei relativamente ao âmbito, ao sentido e ao alcance da intervenção daquela Junta.
O que esteve em causa no recurso contencioso foi a impugnação do acto do Director dos Serviços de Saúde que indeferiu o recurso hierárquico interposto das decisões do Subdirector dos Serviços de Saúde homologatórias de dois concretos pareceres da Junta de Saúde, um datado de 20 de Maio de 2024 e outro datado de 17 de Junho de 2024.
No parecer de 20 de Maio de 2024, homologado pelo Subdirector dos Serviços de Saúde na mesma data, a Junta de Saúde pronunciou-se no sentido de ser concedida à Recorrente «a licença por doença de 20/5/2024 a 16/6/2024, devendo ela se submeter a esta Junta para nova avaliação em 17/6/2024».
No parecer de 17 de Junho de 2024, homologado pelo Subdirector dos Serviços de Saúde na mesma data, a Junta de Saúde pronunciou-se no sentido de ser concedida à Recorrente «a licença por doença de 17/6/2024 a 23/6/2024, devendo ela se submeter a esta Junta para nova avaliação em 24/6/2024».
A Recorrente não se conformou com estas decisões e interpôs recurso contencioso no qual apontou, de forma nem sempre pertinente, diversas ilegalidades, sendo que, ao que nos parece, o essencial da sua pretensão consiste em ver enquadradas as suas ausências ao serviço nos lapsos temporais antes referidos no regime legal das faltas por acidente de serviço e não no das faltas por doença.
Vejamos.
(ii)
(ii.1)
Salvo o devido respeito, a insistência da Recorrente na invocação da nulidade do acto recorrido com fundamento na violação do conteúdo essencial de um direito fundamental não faz, a nosso modesto ver, qualquer sentido, tal como, aliás, o Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo bem demonstrou na douta sentença recorrida.
Com efeito, parece-nos óbvio que a Administração não violou o princípio da dignidade humana consagrado artigo 30.º da Lei Básica nem o seu direito à informação clínica. O ponto da discordância da Recorrente prende-se com a fundamentação do acto, com o modo como, em seu entender, a Administração não explicitou de «forma acessível, objectiva, completa e inteligível as razões para a mudança de diagnóstico» (veja-se o ponto 89 das doutas alegações do recurso). Todavia, como facilmente se perceberá, isso nada tem que ver com a causa de nulidade do acto administrativa prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo.
(ii.2)
Admitindo que a Recorrente pretende invocar a falta de fundamentação do acto e que, nessa parte, discorda da douta sentença recorrida, julgamos que não tem razão.
Na verdade, das normas contidas nos artigos 114.º, n.º 1, alínea b) e 115.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo (CPA) resulta para a Administração o dever legal de fundamentação, que deve ser expressa e consistir numa sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, entre outros, dos actos administrativos que neguem, extingam, restrinjam ou afectem por qualquer modo direitos ou interesses legalmente protegidos.
O dever de fundamentação dos actos administrativos tem, geneticamente, uma função endógena de propiciar a reflexão da decisão pelo órgão administrativo e uma função exógena, externa ou garantística de facultar ao cidadão a opção consciente entre o conformar-se com tal decisão ou afrontá-la em juízo (entre muitos outros, veja-se, neste sentido, o Ac. do Tribunal de Segunda Instância de 7.12.2011, Processo nº 510/2010), e sendo assim, pode dizer-se que um acto está fundamentado sempre que o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal fica a conhecer as razões que estão na sua génese, para que, se quiser, o possa sindicar de uma forma esclarecida.
No caso em apreço, analisada a fundamentação do acto recorrido estamos em crer, como acima já dissemos, que a Administração não deixou de observar o referido dever legal de fundamentação formal uma vez que dele resultam as razões de facto e de direito que justificaram a prática do acto. Por isso, um destinatário normal colocado na posição da Recorrente, confrontado com o dito acto, não podia deixar de ficar ciente dos motivos que levaram à actuação administrativa agora em causa.
(ii.3)
A questão da Recorrente, como dissemos, é outra, na verdade.
Em seu entender, as faltas nos períodos temporais aqui em causa deviam ser consideradas faltas por acidente de serviço, sujeitas, por isso, ao respectivo regime, e não faltas por doença.
A este propósito o Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo escreveu na sua douta sentença, entre o mais, o seguinte:
«Porém, consideramos não ser possível agora que relativamente ao acto aqui em causa o dito vício de ilegalidade se invoque, tendo em conta que segundo a factualidade apurada, a partir do parecer emitido e homologado em 3/4/2023, a junta se limitava a conceder faltas por doença e agendar a próxima avaliação, deixando de ter qualquer palavra sobre a ligação entre as faltas e o acidente de 25/7/2022 e até que se pronunciou no parecer emitido e homologado em 26/6/2023, que a trabalhadora deve regressar ao serviço a partir desse dia para realizar as tarefas leves, posição essa que foi reiterada no parecer de 10/7/2023».
A partir daqui, o Meritíssimo Juiz considerou que a homologação do parecer da Junta de Saúde de 26 de Junho de 2023 consubstanciava um verdadeiro acto administrativo que impunha à Recorrente o dever de regressar ao serviço a subjaz como seu fundamento a decisão daquela Junta sobre a cessação da incapacidade temporária absoluta e que esse acto, que introduziu a mudança no regime das faltas da Recorrente, porque não foi impugnado, se consolidou na ordem jurídica como caso decidido vinculando a Administração na sua actuação futura como aquela que se consubstanciou nos autos aqui impugnados.
Estamos em crer que a douta sentença recorrida não merece censura. Em termos breves, pelo seguinte.
Como se sabe, o Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM) prevê, ao lado do regime das faltas por doença (artigos 97.º a 109.º) um regime de faltas por acidente em serviço (artigos 110.º a 120.º).
Em se tratando de acidente de serviço [de acordo com o n.º 1 do artigo 111.º do ETAPM considera-se em serviço o acidente que, produzindo, directa ou indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a incapacidade ou morte do sinistrado, ocorra: a) no local de trabalho, durante o desempenho das suas funções; b) fora do local de trabalho, na execução de serviços superiormente ordenados; c) no percurso normal entre a residência e o local de trabalho], quando o sinistrado se encontrar impossibilitado de desempenhar plenamente as suas funções por período superior a 60 dias, é o mesmo obrigatoriamente submetido à Junta de Saúde, a solicitação do dirigente do serviço a que o sinistrado pertence, tal como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 116.º do ETAPM.
À Junta de Saúde cabe, então, elaborar um relatório sobre a situação do sinistrado em que declare: a) se o mesmo se encontra ou não incapaz para o serviço; b) se a incapacidade é absoluta ou parcial, permanente ou temporária; c) quais as lesões resultantes do acidente em serviço. É o que resulta do disposto no n.º 2 do artigo 116.º do ETAPM.
Ainda de acordo com o regime legal desenhado nos artigos 117.º a 119.º do ETAPM, o regime de faltas por acidente em serviço termina com o restabelecimento do sinistrado ou com a declaração de incapacidade permanente, sendo que no que a esta concerne se distingue entre incapacidade permanente parcial e absoluta. Em se tratando de incapacidade permanente absoluta, o sinistrado tem direito a ser aposentado nos termos previstos no artigo 262.º, n.º 1, alínea c) do ETAPM (trata-se, aliás, de uma situação de desligamento obrigatório do serviço para efeitos de aposentação). Já se estiver em causa uma situação de incapacidade permanente parcial, a lei impõe ao dirigente do serviço o dever de providenciar para que ao sinistrado sejam distribuídas tarefas compatíveis com a sua situação, tendo em conta o seu nível e qualificação profissionais. Isto mesmo, de resto, também sucede quando a incapacidade seja parcial, mas temporária. De acordo com o n.º 2 do artigo 118.º do ETAPM, se o sinistrado revelar incapacidade para desempenhar as tarefas a que se refere o número anterior, pode ser de novo submetido pelo dirigente do serviço à Junta de Saúde para efeitos de declaração de incapacidade permanente e absoluta.
Um último ponto que nos parece importante fazer notar é o seguinte. Mesmo nas situações de incapacidade parcial, o sinistrado pode ficar impossibilitado de trabalhar por razões que nada têm que ver com o acidente de serviço, devendo a justificação dessas faltas, em tal conspecto, seguir o regime previsto nos artigos 97.º e seguintes.
No caso em apreço, resulta da matéria de facto provada que na avaliação realizada em 26 de Junho de 2023, a Junta de Saúde deu parecer no sentido de que a Recorrente regressasse ao serviço, embora, inexplicavelmente e contra o que a lei exige, sem se ter pronunciado de modo expresso sobre se a Recorrente estava totalmente restabelecida ou se pelo contrário sofria de incapacidade parcial e, nesse caso, qual a natureza, permanente ou temporária, dessa incapacidade e também sem nada dizer sobre a medida, em percentagem, dessa incapacidade. Parece certo, em todo o caso, que a Junta de Saúde considerou que a Recorrente apta para trabalhar e que, portanto, cessara a situação de incapacidade temporária absoluta, é dizer, o regime das faltas por acidente de serviço.
No dia 29 de Junho de 2023, a Recorrente faltou ao serviço e foi novamente submetidas à Junta de Saúde, desta feita ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 105.º do ETAPM. A partir daí, a recorrente continuou a faltar ao serviço de modo intermitente, sendo, por isso, submetida a sucessivas avaliações da Junta de Saúde, incluindo aquelas que aqui estão em causa, e nas quais, pelo que se consegue alcançar a partir da leitura dos pareceres, as suas faltas foram consideradas justificadas por doença.
De qualquer modo, como muito bem decidiu o Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo, com a prática do acto administrativo que homologou o parecer da Junta de 26 de Junho de 2023, e com a sua consolidação na ordem jurídica, a questão das faltas por acidente de serviço deixou de poder ser discutida a respeita da impugnação dos actos recorridos uma vez que, com a prática desse acto ficou decidido que, no entender da a Administração a Recorrente deixou de sofrer de incapacidade temporária absoluta e que, por isso, o acidente de serviço deixou de ser causa justificativa das faltas ao serviço, caindo estas, pois, no regime das faltas por doença dos artigos 97.º e seguintes.
Deste modo, somos modestamente a concluir que não ocorre o erro de julgamento que à douta sentença recorrida foi imputado pelo Recorrente.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional.
É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público.».
Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual integralmente aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta entendemos que a sentença recorrida não enferma dos vícios que lhe são imputados impondo-se negar provimento ao recurso.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância em negar provimento ao recurso.
Custas a cargo da Recorrente fixando-se a taxa de justiça em 6 UC´s.
Registe e Notifique.
RAEM, 26 de Setembro de 2025
Rui Pereira Ribeiro (Relator)
Seng Ioi Man (Primeiro Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong (Segundo Juiz-Adjunto)
Álvaro Dantas (Delegado Coordenador do Ministério Público)
381/2025 ADM 41