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Processo n.º: 108/2024
Data: 10 de Outubro de 2025
Assuntos: - Uniformização de jurisprudência
- Quebra de caução
- Sentença absolutória
- Extinção de medida de coacção

SUMÁRIO
- Nos termos do art.º 427.º do Código de Processo Penal, fixa-se a seguinte jurisprudência, obrigatória para os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau:
“Verificada a quebra da caução ocorrida antes da prolação da sentença absolutória, a confirmação judicial dos pressupostos da quebra da caução após a sentença absolutória não obsta à aplicação do disposto no art.º 192.º do Código de Processo Penal.”
Relator
Ho Wai Neng

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.

Processo n.º: 108/2024 (Recurso jurisdicional relativo a uniformização de jurisprudência)
Recorrente: Ministério Público
Data: 10 de Outubro de 2025
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I. Relatório
  O Ministério Público interpôs para este Tribunal recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância no âmbito do processo de recurso penal n.º 125/2024, entendendo que o mesmo está em oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito, com o acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância no processo de recurso penal n.º 27/2022.
  O Ministério Público entende que os dois acórdãos do Tribunal de Segunda Instância acima referidos adoptaram soluções opostas quanto à questão de saber se, no decorrer do processo, verificada a violação pelo arguido das obrigações decorrentes da medida de coacção de caução, pode o tribunal, depois proferir sentença absolutória, declarar a reversão do valor da caução para a RAEM, nos termos do art.º 192.º do Código de Processo Penal.
  Por acórdão proferido em 26 de Fevereiro de 2025, este Tribunal ordenou o prosseguimento do recurso, por se verificarem todos os pressupostos para o Tribunal de Última Instância proferir acórdão para fixação de jurisprudência.
  O Ministério Público apresentou, nos termos do art.º 424.º do Código de Processo Penal, as suas alegações, tendo concluindo pela fixação de jurisprudência no seguinte sentido:
  “Uma vez proferida a sentença absolutória, extinguem-se imediatamente as medidas de coacção, sem prejuízo da efectivação da responsabilidade do arguido pela violação anterior das obrigações de medida de coacção (de caução) no processo”.
  Notificado, o arguido não apresentou qualquer resposta.
  Tendo sido constituído o Tribunal Colectivo, com a formação referida no art.º 46.º, n.º 2 da Lei de Bases da Organização Judiciária, e corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
  A questão a resolver no presente recurso consiste em saber se, no decorrer do processo penal, verificada a violação pelo arguido das obrigações derivadas da medida de coacção da prestação de caução, a sentença absolutória proferida em seguida obsta à aplicação do disposto no art.º 192.º do Código de Processo Penal?
  O Tribunal de Segunda Instância de Macau tem vindo a acompanhar, no passado, a jurisprudência portuguesa1, entendendo que, após a prolação de sentença absolutória, já não é possível determinar a quebra da caução prestada, visto que nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 198.º do Código de Processo Penal, a respectiva medida de coação extingue-se automática e imediatamente com a prolação da sentença absolutória2.
  Em 20 de Junho de 2024, no acórdão proferido no processo de recurso penal n.º 125/2024, o Tribunal de Segunda Instância alterou a posição anteriormente adoptada, passando a considerar que “a imediata extinção da medida de coacção com a prolação de sentença absolutória diz respeito apenas aos actos processuais posteriores à sentença, não obstando à apreciação, em conformidade com a lei, da violação da medida de coacção praticada pelo arguido antes da sentença absolutória”.
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  Dispõe o art.º 192.º do Código de Processo Penal o seguinte (o negrito e o sublinhado são nossos):
Artigo 192.º
(Quebra da caução)
1. A caução considera-se quebrada quando se verificar falta injustificada do arguido a acto processual a que deva comparecer ou incumprimento de obrigações derivadas de medida de coacção que lhe tiver sido imposta.
2. Quebrada a caução, o seu valor reverte para a Região Administrativa Especial de Macau.
  E nos termos do art.º 198.º, n.º 1, al. c) do mesmo Código, a medida de coacção extingue-se de imediato com a sentença absolutória, mesmo que dela tenha sido interposto recurso.
  A caução, enquanto uma das medidas de coacção previstas no Código de Processo Penal, tem por escopo assegurar a comparência do arguido a todos os actos processuais necessários e o cumprimento das obrigações previstas na lei ou ordenadas pelo juiz nos termos da lei.
  Por conseguinte, para os casos de violação da medida de coacção de caução pelo arguido no decorrer do processo, o legislador estabeleceu expressamente o respectivo efeito jurídico, que consiste na reversão do valor da caução para a Região Administrativa Especial de Macau.
  É de notar que, o legislador considera imediatamente quebrada a caução quando se verificar a falta injustificada do arguido a acto processual a que deva comparecer ou incumprimento de obrigações que lhe tiverem sido impostas, devendo o respectivo valor reverter imediatamente para a Região Administrativa Especial de Macau.
  O legislador consagrou, no art.º 192.º do Código de Processo Penal, um regime diferente da perda de objectos ou direitos relacionados com o crime prevista nos art.ºs 101.º a 103.º do Código Penal, sendo que neste último caso, a perda só se opera a favor da Região Administrativa Especial de Macau após a declaração judicial.
  No regime da perda de objectos ou direitos relacionados com a prática do crime, o despacho judicial que declara a perda de objectos ou direitos produz efeitos constitutivos. Ou seja, mesmo que o objecto tenha sido qualificado como instrumento ou produto do crime, ele não reverterá automaticamente para a Região Administrativa Especial de Macau; só assim acontece com a prolação do despacho judicial que declare a sua perda.
  Porém, no que concerne à quebra da caução, o juiz limita-se a apreciar a existência ou não dos pressupostos da quebra da caução. Uma vez reconhecida a sua existência, os efeitos jurídicos da quebra da caução produzem-se nos termos da lei, a partir do momento da sua quebra, independentemente de declaração judicial de reversão para a Região Administrativa Especial de Macau.
  Como atrás se referiu, os termos utilizados pelo legislador são “a caução considera-se quebrada” e “o seu valor reverte para a Região Administrativa Especial de Macau”, e não “declara quebrada a caução e a reversão do seu valor para a Região Administrativa Especial de Macau”.
  De acordo com o artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil de Macau, “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
  Nesta conformidade, quando a quebra da caução antecede a prolação da sentença absolutória, considera-se, nos termos do art.º 192.º do Código de Processo Penal, quebrada a caução a partir do momento da violação das suas obrigações inerentes, devendo o seu valor reverter imediatamente para a Região Administrativa Especial de Macau, ainda que o juiz só venha a confirmar os pressupostos da quebra da caução após essa sentença absolutória.
  Por outras palavras, no momento da prolação da sentença absolutória, a caução em causa já não existe, tendo o seu valor já revertido para a Região Administrativa Especial de Macau no momento da sua quebra, não se colocando, portanto, questão de extinção da caução.
  Salvo o devido respeito por opiniões diferentes, entendemos que a interpretação supra exposta corresponde melhor à função da caução como uma medida de coacção criminal, isto é, garantir que o arguido compareça a todos os actos processuais necessários e cumpra as obrigações impostas por lei ou ordenadas pelo juiz.
  É de notar que, antes de apreciar e concluir se estão reunidos os pressupostos da quebra da caução, o juiz deve cumprir o princípio de contraditório, permitindo, nomeadamente, que o arguido e o Ministério Público se pronunciem sobre a matéria; por isso, a verificação desses pressupostos nem sempre pode acontecer de forma imediata e célere — por exemplo, quando o arguido não comparece injustificadamente no dia da leitura da sentença absolutória.
  Se com a prolação da sentença absolutória se tornasse impossível responsabilizar o agente pelo seu incumprimento anterior das obrigações inerentes, ficaria fragilizada a função da caução como medida de coacção.
  Tal como afirmou o Magistrado do Ministério Público nas suas alegações, “uma coisa é a reacção a tomar em relação à violação das obrigações decorrentes das medidas de coacção, outra coisa, completamente diferente, é a extinção destas por força de sentença absolutória, pois as duas têm pressupostos distintos.
  …
  É certo que a sentença absolutória determina naturalmente a extinção imediata das medidas de coacção, mas esta alegada ‘extinção’ se circunscreve ao facto de o agente deixar de estar sujeito a tais medidas de coacção em processos subsequentes, sem prejuízo das responsabilidades e consequências jurídicas decorrentes da violação anterior dessas mesmas medidas.”
  Face ao exposto, quando a quebra da caução ocorre antes da sentença absolutória, a verificação por decisão judicial dos respectivos pressupostos, mesmo depois da prolação da sentença absolutória, não obsta à aplicação do artigo 192.º do Código de Processo Penal.
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III. Decisão
  Face ao exposto, acordam em:
1. Conceder provimento ao recurso.
2. Nos termos do art.º 427.º do Código de Processo Penal, fixar a seguinte jurisprudência, obrigatória para os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau:
“Verificada a quebra da caução ocorrida antes da prolação da sentença absolutória, a confirmação judicial dos pressupostos da quebra da caução após a sentença absolutória não obsta à aplicação do disposto no art.º 192.º do Código de Processo Penal.”
3. Ordenar o cumprimento do disposto no art.º 426.º do Código de Processo Penal.
  Sem custas.
  Notifique adequadamente.
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10 de Outubro de 2025
                  Ho Wai Neng
                  Song Man Lei
                  José Maria Dias Azedo
       [Com declaração de voto vencido em anexo]
                  Tong Hio Fong
                  Choi Mou Pan

[Apesar de eu ter assumido anteriormente a posição expendida no acórdão fundamento, a verdade é que, após uma reponderação sobre as questões envolvidas no presente recurso, especialmente depois de ter subscrito o acórdão recorrido, alterei a minha posição original.]



Processo nº 108/2024
(Autos de recurso jurisdicional relativo a uniformização de jurisprudência)


Declaração de voto

Sendo esta Instância chamada a emitir pronúncia sobre a possibilidade da quebra da caução pelo arguido prestada após decisão da sua absolvição, com o douto Acórdão que antecede entendeu-se, (essencialmente), que:
- “os efeitos jurídicos da quebra da caução produzem-se nos termos da lei, a partir do momento da sua quebra, independentemente de declaração judicial de reversão para a RAEM”, e, assim, que
- “(…) no momento da prolação da sentença absolutória, a caução em causa já não existe, tendo o seu valor já revertido para a RAEM no momento da sua quebra, não se colocando, portanto, questão de extinção”, fixando-se jurisprudência no sentido de que:
- “Verificada a quebra da caução ocorrida antes da prolação da sentença absolutória, a confirmação judicial dos pressupostos da quebra da caução após a sentença absolutória não obsta à aplicação do disposto no art.º 192.º do Código de Processo Penal”.

Ressalvando-se o elevado respeito devido ao muito mérito do assim pelos meus Exmos. Colegas entendido – e como sobre idêntica “questão” já tivemos oportunidade de ponderar e considerar, nomeadamente, em sede do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 25.07.2013, Proc. n.° 393/2013 – outra se nos afigura que devesse ser a solução, mais adequado se nos mostrando ser o decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 03.03.2022, (tirado no Proc. n.° 27/2022, onde, em síntese, se decidiu que a sentença absolutória acarreta a extinção das medidas de coacção ao arguido aplicadas), e que, estando em oposição ao deliberado no Acórdão do mesmo Tribunal de Segunda Instância de 20.06.2024, (Proc. n.° 125/2024), deu origem ao presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência.

Com efeito, (e independentemente do demais), vale a pena aqui atentar no sentido e alcance das considerações por Manuel Leal-Henriques tecidas sobre a matéria, e, especialmente, na parte em que, comentando o preceituado no art. 192° do C.P.P.M. – onde se prescreve que “1. A caução considera-se quebrada quando se verificar falta injustificada do arguido a acto processual a que deva comparecer ou incumprimento de obrigações derivadas de medida de coacção que lhe tiver sido imposta”, e que “2. Quebrada a caução, o seu valor reverte para a Região Administrativa Especial de Macau” – adverte que:
- “Prevê-se no preceito uma figura a que se chama "quebra da caução", que pode definir-se como a declaração de perda do respectivo valor em favor da RAEM por incumprimento de obrigações impostas ao arguido”; que,
- “à quebra da caução está associada uma ideia de culpabilidade, ou seja, só é de ter como fundamento válido para a perda da caução a falta culposa, por parte do arguido, a acto a que foi chamado ou culpa na inobservância das obrigações resultantes da medida de caução imposta”; e ainda, que,
- “Como tal, caberá ao juiz avaliar se o arguido, na circunstância, agiu ou não com culpa, ouvindo previamente o próprio arguido sobre o assunto e também o M.°P.° (quando não seja o requerente), decidindo de acordo com o seu prudente critério”; (in “Anotação e Comentário ao C.P.P.M.”, Vol. II, 2024, C.F.J.J., pág. 75, com sub. nosso).

Em conformidade com o assim entendido, que se nos mostra de subscrever, e, em nossa opinião, inexistindo uma decisão judicial que tenha (oportunamente) “declarado quebrada a caução pelo arguido prestada”, aplicação plena deve ter o estatuído no art. 198°, n.° 1, al. c) do aludido C.P.P.M., onde se prevê que: “As medidas de coacção extinguem-se de imediato: (…) Com a sentença absolutória, mesmo que dela tenha sido interposto recurso; (…)”.

Na verdade, atento também à “natureza e fins das medidas de coacção”, assim como os “efeitos de uma sentença absolutória” – que nos termos do art. 449°, n.° 2 do aludido C.P.P.M., “são exequíveis logo que proferidas” – mostra-se-nos mesmo de considerar que absolvido o arguido do crime que lhe era imputado, (e, deixando assim de se justificar a aplicação ou manutenção de qualquer medida coactiva), tal absolvição torna caducos todos os pressupostos legais de aplicação de qualquer antecedente medida de coacção, até mesmo da caução prestada e já declarada quebrada por decisão ainda não transitada em julgado.

Dest’arte, e em face do ocorrido nos Autos de Recurso Penal n.° 125/2024 do Tribunal de Segunda Instância, adequado não se nos mostra o decidido.

Daí, a presente declaração.

Macau, aos 10 de Outubro de 2025
José Maria Dias Azedo

1 Cfr. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6 de Dezembro de 2000, proferido no processo n.º 0011066 (disponível em www.dgsi.pt).

2 Cfr. os acórdãos do Tribunal de Segunda Instância proferidos, respectivamente, em 25 de Julho de 2013, 3 de Julho de 2014, 3 de Junho de 2021 e 3 de Março de 2022, nos processos n.ºs 393/2013, 79/2014, 299/2020 e 27/2022.
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