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Processo nº 66/2022
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲) e B (乙), (1ª e 2ª) AA., propuseram no Tribunal Judicial de Base acção declarativa de condenação sob a forma ordinária contra C (丙), D (丁) e E (戊), (1ª, 2ª e 3ª) RR., todas com os demais sinais dos autos, formulando, a final, pedido no sentido de se:

“1. Declarar que a 3.ª ré E, tendo peito feito conhecimento de que os proprietários F e G não tinham a vontade de vender a loja, em 29 de Janeiro de 2013, contraiu por meio de burla, o acto de negócio relevante ao bem imóvel em. causa (sito em [Endereço(1)]) com as duas autoras A e B, e que é juridicamente inexistente ou nulo o contrato provisório de compra e venda celebrados por estas;
2. Declarar que a 3.ª ré E, tendo peito feito conhecimento de que a proprietária H não tinha a vontade de vender a fábrica, em 12 de Novembro de 2012, contraiu, sem qualquer acto efectivo, o negócio com a 1.ª ré C e a 2.ª ré D do bem imóvel em causa (sito em Macau, [Endereço(2)]) e que o contrato provisório de compra e venda celebrado por estas é juridicamente inexistente e nulo;
3. E declarar que a cláusula 7 do respectivo contrato provisório de compra e venda, relevante à indemnização do "sinal" deve ser considerado juridicamente inexistente ou nulo;
4. Decidir que as duas proprietárias A e B sub-rogam, na qualidade e posição de credores da 3.ª ré E, o direito obrigacional, que lhes atribui a qualidade de "credores sub-rogados" e, por incumprimento pela 3.ª ré E, as autoras
5. Por provimento do pedido constante do ponto 2, como o contrato provisório de compra e venda constitui juridicamente inexistente ou nulo, condenar a 1.ª ré C e a 2.ª ré D em reembolsar à 3.ª ré E ou aos seus credores sub-rogados, isto é, as duas autores A e B, de forma solidária, toda a quantia por estas recebidas no valor total de HKD1.144.000,00, equivalentes aos MOP1.178.320,00 junto com os juros de mora a contar do dia de convocação ate integral pagamento. E por causa de liquidação, a respectiva quantia deposita-se no processo n.° CR4-13-0235-PCC-D;
Caso o pedido do ponto 4 não seja deferido, pede-se subsidiariamente o seguinte
6. Condenar a 1.ª ré C e a 2.ª ré D, de responsabilidade solidária, pelo fundamento de inexistência jurídica ou nulidade do contrato provisório de compra e venda em causa, em reembolsar à 3.ª ré E ou aos seus credores sub-rogados, isto é, as duas autoras A e B, a demais quantia recebida, nomeadamente no valor de HKD644.000,00, equivalentes aos MOP663.320,00, a isso ainda se somam os juros demora a contar do dia de convocação até integral pagamento. Por causa da questão de liquidação, a respectiva quantia deposita-se no processo n.° CR4-13-0235-PCC-D do TJB;
Caso o pedido do ponto 5 não seja deferido, pede-se subsidiariamente o seguinte
7. Condenar a 1.ª ré C e a 2.ª ré D, de responsabilidade solidária, pelo fundamento de inexistência jurídica ou nulidade do contrato provisório de compra e venda em causa, em reembolsar à 3.ª ré E ou aos seus credores sub-rogados, isto é, as duas autoras A e B, a quantia de enriquecimento sem causa já recebida, nomeadamente no valor de HKD500.000,00, equivalentes aos MOP515.000,00, a isso ainda se somam os juros de mora a contar do dia de convocação até integral pagamento. Por causada questão de liquidação, a respectiva quantia deposita-se no processo n.° CR4-13-0235-PCC-D do TJB;
8. Condenar as rés em pagamento do imposto de justiça e do honorário aos mandatários jurídicos”; (cfr., fls. 312 a 339 a 346 a 367 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Após contestação das ditas 1ª e 2ª RR., (cfr., fls. 459 a 469), e por sentença de 23.03.2021, o Tribunal Judicial de Base decidiu pela total absolvição dos pedidos pelas AA. deduzidos; (cfr., fls. 671 a 683).

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Em sede do recurso que do assim decidido interpuseram as AA., proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 20.01.2022, (Proc. n.° 788/2021), onde, concedendo parcial provimento ao recurso, revogou (parcialmente) a sentença recorrida do Tribunal Judicial de Base, e condenou as 1ª e 2ª RR., (C e D), a restituir às AA. a quantia total de HKD$644.000,00 e os seus juros legais a contar desde o trânsito em julgado da decisão; (cfr., fls. 767 a 782-v).

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Inconformadas, trazem agora as ditas (1ª e 2ª) RR. o presente recurso para este Tribunal de Última Instância pedindo a confirmação da sentença do Tribunal Judicial de Base; (cfr., fls. 791 a 797).

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Por deliberação do Conselho dos Magistrados Judiciais de 26.03.2025 foram estes autos redistribuídos ao ora relator; (cfr., fls. 856 e 869).

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Adequadamente processados, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Está dada como “provada” a seguinte factualidade:

“- A 1ª Ré C e a 2ª Ré D são boas amigas e cooperaram no investimento em compra de bens imóveis sob a forma de capitais mistos. (alínea A) dos factos assentes)
- A 3ª Ré E, do sexo feminino, solteira, maior, titular do BIRM n.º XXXXXXXX e do Bilhete de Identificação do Residente Permanente de Hong Kong n.º XXXXXXXX, residente em Taipa, [Endereço(3)], praticou acto criminal relevante ao presente processo (cfr. as circunstâncias concretas em seguintes pontos). O 4º Juízo Criminal do TJB proferiu o acórdão condenatório que foi transitado em julgado em 6 de Novembro de 2014. Ora esta está a cumprir a pena de prisão – cfr. doc. 1: acórdão do TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC emitido pelo Tribunal. (alínea B) dos factos assentes)
- Em 2009, a 3ª Ré E estabeleceu, na loja sita em Macau, [Endereço(4)], a Companhia “I”, para exercer os negócios de compra e venda e de arrendamento de bens imóveis; em Outubro de 2011, a 3ª Ré E estabeleceu no mesmo endereço a Companhia J (Estabelecimento de Pronto-a-vestir R2R), com o negócio principal de venda de pronto-a-vestir e continuar a exercer a actividade imobiliária – cfr. doc. 1: ponto 1 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC. (alínea C) dos factos assentes)
- Na segunda metade do ano 2012, a 3ª Ré E planeou adquirir as informações através de consultar o registo predial, fingiu a proprietária ou representante da proprietária de um certo bem imóvel para vender falsamente o bem imóvel, falsificou os documentos tais como contrato de compra e venda e celebrou o contrato de compra e venda com o comprador por falsificação da assinatura da proprietária, e por esta forma conseguiu ganhar por burla o “sinal” do comprador – cfr. doc. 1: ponto 2 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC. (alínea D) dos factos assentes)
- H é a tia da 3ª Ré E, que constituiu a 3ª Ré E para “arrendar” a fábrica daquela, sita em Macau, [Endereço(2)]. Porém, E emitiu “notícia falsa” àqueles que exerciam a mesma profissão com ela na indústria imobiliária, tendo declarando que a proprietária da fábrica sita em Macau, [Endereço(2)] pretendia vender este bem imóvel pelo preço de HKD$6.500.000,00 – cfr. doc. 1: ponto 9 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC . (alínea E) dos factos assentes)
- Na primeira metade de Novembro do ano 2012, o agente da “[Empresa(1)]” K acreditou na notícia e informou às duas Rés C e D, e estas duas Rés manifestaram que tinham interesse em comprar o respectivo bem imóvel – cfr. doc. 1: ponto 10 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC. (alínea F) dos factos assentes)
- Em 05 de Novembro de 2012, a 3ª Ré E levou a 1ª Ré C, a 2ª Ré D e K para ir visitar juntos a supracitada fábrica. Naquela altura, as duas Rés C e D entendiam que o preço era adequado e decidiram comprar o bem imóvel com capital misto. Estas constituíram K a tratar, em representação delas, dos assuntos de compra e venda da supracitada fábrica – cfr. doc. 1: ponto 11 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC. (alínea G) dos factos assentes)
- Em 12 Novembro de 2012, tendo perfeito conhecimento de que a proprietária H não tinha a intenção de vender a fábrica, a 3ª Ré E celebrou com K o “contrato provisório de compra e venda” por este elaborado no que diz respeito ao supracitado bem imóvel – cfr. doc. 1: ponto 12 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC. (alínea H) dos factos assentes)
- K assinou, em representação das duas Rés C e D, “K (substituto) 【甲甲(代)】”(Assinatura – vide o original) na coluna de comprador do “contrato provisório de compra e venda” do supracitado bem imóvel – cfr. doc. 1. (alínea I) dos factos assentes)
- Celebrado o contrato em representação da duas Rés C e D, K entregou a E um cheque do [Banco(1)] n.º XXXXXX, no valor de HKD$500.000,00 com a assinatura de L, a título do sinal para comprar a supracitada fábrica – cfr. doc. 1: ponto 13 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC. (alínea J) dos factos assentes)
- Recebido o cheque, a 3ª Ré E declarou falsamente que ela tinha de entregar o “contrato provisório de compra e venda” assinado pelas duas Rés à proprietária para esta assiná-lo e levou o respectivo contrato provisório. Posteriormente, a 3ª Ré E falsificou a assinatura da proprietária H no “contrato provisório de compra e venda” acima referido – cfr. doc. 1: fls. 38 e ponto 14 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC. (alínea K) dos factos assentes)
- A 3ª Ré E falsificou a assinatura da proprietária H e assinou “H (辛)” (assinatura – vide o original) na coluna de vendedor do “contrato provisório de compra e venda” do supracitado bem imóvel – cfr. doc. 1. (alínea L) dos factos assentes)
- A proprietária H nunca teve a intenção ou vontade de assinar o supracitado “contrato provisório de compra e venda”. (alínea M) dos factos assentes)
- No processo integral da celebração do supracitado “contrato provisório de compra e venda”, quer K, quer as duas Rés C e D, não viram pessoalmente proprietária assinar o seu nome “H (辛)” (Assinatura – vide o original) – cfr. doc. 1. (alínea N) dos factos assentes)
- Logo depois, a 3ª Ré E levantou o supracitado cheque e depositou o montante integral de HKD$500.000,00 deste cheque na sua conta bancária n.º X-X-XXX-X – cfr. doc. 1: ponto 15 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC. (alínea O) dos factos assentes)
- A 1ª Ré e a 2ª Ré pagou à Direcção dos Serviços de Finanças o respectivo imposto de selo acerca do respectivo contrato provisório de compra e venda, no valor de MOP$147.893,00 – cfr. doc. 1: fls. 39 e os factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 147v do doc. 1). (alínea P) dos factos assentes)
- Na primeira metade de Dezembro de 2012, quando se estava aproximando ao “prazo” de celebração do contrato de compra e venda fixo pelo “contrato provisório de compra e venda” assinado pelas três Rés, a 3ª Ré E disse falsamente que a proprietária pretendia aumentar o preço para os HKD$9.300.000,00. Por isso, depois de discussão, a 1ª Ré C e a 2ª Ré D entende que o preço era demasiado alto e desistiram do negócio – cfr. doc. 1: ponto 16 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC. (alínea Q) dos factos assentes)
- Naquela altura, para fazer correr o tempo a fim de evitar a ser posta a descoberto, a 3ª Ré E manifestou novamente à 1ª Ré e a 2ª Ré através de K que a proprietária estava prestes a pagar-lhes “sinal duplo” e o imposto de selo pago pelas duas Rés a título de indemnização – cfr. doc. 1: ponto 17 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC. (alínea R) dos factos assentes)
- Naquela altura, a 3ª Ré E tinha perfeito conhecimento de que não havia suficiente depósito na conta bancária n.º X-X-XXX-X aberta em nome da sua companhia “I”, porem, a 3ª Ré E passou três cheques com o valor igual de HKD$1.143.585,00 respectivamente n.º XXXXXXX, n.º XXXXXXX e n.º XXXXXXX do [Banco(2)] em 16 de Janeiro de 2013 e em 24 de Janeiro de 2013, e entregou à 2ª Ré C e à 3ª Ré D através de K a título de indemnização – cfr. doc. 1: fls. 42 a 51 dos autos e ponto 18 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 144 do doc. 1). (alínea S) dos factos assentes)
- A 1ª Ré C e a 2ª Ré D digiram-se em três vezes ao banco para levantar os supracitados três cheques, mas os cheques foram devolvidos pelo banco – cfr. doc. 1: fls. 42 a 52 dos autos e ponto 19 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 144 do doc. 1). (alínea T) dos factos assentes)
- Para evitar a ser posta a descoberto, a 3ª Ré E coleccionou dinheiro com pressa para reembolsar à 1ª Ré C e à 2ª Ré D, por isso, ela decidiu praticar novamente burla da mesma maneira – cfr. doc. 1: ponto 20 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 144 do doc. 1). (alínea U) dos factos assentes)
- Naquela altura, segundo as informações de registo predial da loja sita em [Endereço(1)] na Conservatória de Registo Predial, a 3ª Ré E chegou a conhecer que as respectivas proprietárias eram F e G – cfr. doc. 1: ponto 21 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 144 do doc. 1). (alínea V) dos factos assentes)
- Por isso, a 3ª Ré E falsificou, de modo não conhecido, cópias de BIRM de que constam os nomes e fotos de F e G e outros sinais não verdadeiros; tais cópias de BIRM estão apreendidas no respectivo processo. Após análise e inspeção, foi provado que tais são cópias de BIRM falso – cfr. doc. 1: ponto 22 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 144 do doc. 1). (alínea W) dos factos assentes)
- Depois, a 3ª Ré E declarou falsamente àqueles que exerciam a mesma profissão com ela na indústria imobiliária, que ela foi constituída com poderes para vender a supracitada loja – cfr. doc. 1: ponto 23 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 144 e 144v do doc. 1). (alínea X) dos factos assentes)
- Vista a supracitada loja, as duas Autoras, isto é, A e a sua amiga B tinham a vontade de comprá-la com capital misto, e discutiram, através do cônjuge da Autora A, M, sobre o preço do bem imóvel por muitas vezes com a 3ª Ré E. Por final, a 3ª Ré E declarou falsamente que o proprietário “F” concordou em vender o bem imóvel junto com o contrato de arrendamento pelo preço de HKD$22.600.000,00 e exigiu que recebesse primeiro um montante de HKD$1.500.000,00 a título de “sinal” – cfr. doc. 1: ponto 25 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 144 do doc. 1). (alínea Y) dos factos assentes)
- Verificados os nomes dos proprietários e visto o bem imóvel in loco, as duas Autoras A e B acreditaram no que a 3ª Ré disse e aceitaram o supracitado preço e condições para compra. Por isso, a pedido da 3ª Ré E, a Autora A entregou à 3ª Ré E um cheque do [Banco(1)] n.º XXXXXXX no valor de HKD$1.500.000,00 através de M. O objecto para quem é que se passava o cheque foi “F” e quem passou o cheque foi o marido da Autora A, N (sic.) – cfr. doc. 1: ponto 26 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 144v do doc. 1). (alínea Z) dos factos assentes)
- Em 29 de Janeiro de 2013, na loja da 3ª Ré E sita em Macau, [Endereço(4)], M entregou o cheque dado pela Autora A à 3ª Ré E para esta reentregar ao proprietário “F” – cfr. doc. 1: ponto 27 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC. (alínea AA) dos factos assentes)
- Recebido o cheque, a 3ª Ré E assinou, na qualidade de representante do proprietário, o “contrato provisório de compra e venda” elaborado por M; ao mesmo tempo, para adquiriu a confiança da outra parte, a 3ª Ré E ainda prestou as cópias de BIRM falsificadas de “F” e de “G” – cfr. doc. 1: fls. 74, 113, 128 e 129 e ponto 28 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 145 do doc. 1). (alínea BB) dos factos assentes)
- Posteriormente, sem adquirir permissão dada pelas duas Autoras e por M, a 3ª Ré E acrescentou o seu nome “E (戊)” no lugar a branco da coluna “a quem deve ser pago o montante” e, em 31 de Janeiro de 2013, foi à [sucursal] do [Banco(1)] para levantar o cheque (n.º XXXXXXX). Naquela altura, a 3ª Ré E levantou o montante integral de HKD$1.500.000,00 do cheque e depositou-o na sua conta bancária (n.º X-X-XXX-X) do [Banco(1)] – cfr. doc. 1: fls. 31 e 32, 133 a 136 dos autos e ponto 29 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 145 do doc. 1). (alínea CC) dos factos assentes)
- Para cobrir a fraude praticada às Rés C e D, a 3ª Ré E depositou, em 31 de Janeiro de 2013 HKD$1.144.000,00 nas contas da 1ª Ré e à 2ª Ré com a quantia de “sinal” pago pelas Autoras – cfr. doc. 1: fls. 41, 133 e 134, e ponto 30 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 145 do doc. 1). (alínea DD) dos factos assentes)
- Quer dizer, a 3ª Ré E levantou o cheque prestado pela Autora A e utiliza tal dinheiro para entregar à 1ª Ré C e à 2ª Ré D um montante de HKD$1.144.000,00 – cfr. doc. 1: o acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 144 do doc. 1). (alínea EE) dos factos assentes)
- E a 1ª Ré e a 2ª Ré já receberam tal quantia no valor de HKD$1.144.000,00 e depositou-a respectivamente em três montantes – cfr. fls. 41, 147 e 147v dos autos. (alínea FF) dos factos assentes)
- Tal quantia inclui os seguintes títulos, com o respectivo valor:
1. Quantia equivalente ao “preço” pago pela 1ª Ré e a 2ª Ré pela compra da fábrica em causa: HKD$500.000,00;
2. Quantia equivalente à indemnização fixa nos termos do “regime de sinal” relativo à compra e venda da fábrica em causa: HKD$500.000,00;
3. Quantia equivalente ao imposto de selo pago à Direcção dos Serviços de Finanças para a compra da fábrica em causa: MOP$147.893,00, equivalentes aos HKD$144.000,00, cfr. doc. 1, fls. 38, 39, 41 e 147v dos autos. (alínea GG) dos factos assentes)
- A 3ª Ré E estava a efectuar a pena de prisão por 9 anos e 6 meses no Estabelecimento Prisional de Macau, e transferindo para Hong Kong a cumprir continuamente a pena de prisão num estabelecimento prisional. (alínea GG-1) dos factos assentes)
- A 3ª Ré não deduziu nenhuma acção junto ao TJB com o fundamento de nulidade, anulabilidade ou inexistência jurídica contra o “contrato provisório de compra e venda” (da fábrica sita em Macau, [Endereço(2)]) contraído entre ela e a 1ª Ré e a 2ª Ré, para pedir que a 1ª Ré e a 2ª Ré devolver o integral montante da supracitada quantia de HKD$1.144.000,00. (alínea HH) dos factos assentes)
- Ou seja, a 3ª Ré não deduziu nenhuma acção junto ao TJB com o fundamento de nulidade, anulabilidade ou inexistência jurídica contra o “contrato provisório de compra e venda” (da fábrica sita em Macau, [Endereço(2)]) contraído entre ela e a 1ª Ré e a 2ª Ré, para pedir que a 1ª Ré e a 2ª Ré devolver o montante de HKD$500.000,00 a título da indemnização por elas recebida sob o “regime de sinal” regulado pelo contrato. (alínea II) dos factos assentes)
- Ou seja, a 3ª Ré também não deduziu, junto ao TJB, nenhuma acção contra o “contrato provisório de compra e venda” (da fábrica sita em Macau, [Endereço(2)]) celebrado entre ela e a 1ª Ré e a 2ª Ré com o fundamento de liberalidade ou enriquecimento ilegítimo, a fim de pedir que a 1ª Ré e a 2ª Ré devolvam a “quantia de indemnização” no valor de HKD$500.000,00 recebida por elas nos termos do “regime de sinal” regulado no respectivo contrato. (alínea JJ) dos factos assentes)
- Em 24 de Fevereiro de 2016, as duas Autoras emitiu, através do mandatário jurídico, uma carta à 1ª Ré C e à 2ª Ré D, tendo exigindo que estas devolvessem parte paga pela 3ª Ré E com o dinheiro das Autoras, isto é, o montante de HKD$1.144.000,00 e que o depositassem no processo n.º CR4-13-0235-PCC – cfr. doc. 2. (alínea KK) dos factos assentes)
- Respectivamente em 03 de Março e em 07 de Março de 2016, a 1ª Ré C e a 2ª Ré D assinaram a carta acima referida – cfr. doc. 3. (alínea LL) dos factos assentes)
- Aproximadamente na segunda dezena de Março de 2016, uma das Rés (dentre a 1ª Ré C e a 2ª Ré D) manifestou ao mandatário jurídico, por telefone, que recusava a exigência referida na carta. (alínea MM) dos factos assentes)
- Posteriormente em 16 de Março de 2016, o mandatário jurídico da 1ª Ré C e 2ª Ré D respondeu por escrito ao mandatário jurídico das duas Autoras, tendo apontado que elas não se conformavam com o teor de devolução da respectiva quantia exigida pelas Autoras. (alínea NN) dos factos assentes)
- Até agora a 1ª Ré C e a 2ª Ré D não devolveram nenhum montante, quer HKD$1.144.000,00, quer HKD$644.000,00, quer HKD$500.000,00, pago pela 3ª Ré E. (alínea OO) dos factos assentes)
- Quer a 1ª Ré, quer a 2ª Ré, quer a 3ª Ré, não exigiram à Direcção dos Serviços de Finanças devolvesse o imposto de selo no valor de MOP$147.893,00. (alínea PP) dos factos assentes)
- Segundo o acórdão do processo n.º CR4-13-0235-PCC que foi transitado em julgado em 06 de Novembro de 2014, a 3ª Ré tem de pagar às duas Autoras HKD$1.500.000,00 e a isso ainda se somam os juros de mora jurídicos a contar do dia de convocação até integral pagamento, a título de indemnização. (alínea QQ) dos factos assentes)

Base Instrutória:
- As duas Autoras A e B já transferiram o integral do capital misto no valor de HKD$1.500.000,00 a N. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- A 3ª Ré ainda não pagou nenhuma quantia às Autoras (não abrangendo os montantes da comparticipação pecuniária no desenvolvimento económico). (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- Igualmente, a 3ª Ré também não depositou nenhuma quantia no processo penal n.º CR4-13-0235-PCC ou n.º CR4-13-0235-PCC-D a título de indemnização às duas Autoras. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- Até agora as duas Autoras só apreendem o montante de comparticipação pecuniária no desenvolvimento económico da 3ª Ré E no valor de MOP$9.000,00, o que foi registado no processo n.º CR4-13-0235-PCC-D do 4º Juízo Criminal do TJB. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- A 3ª Ré E já não tem nenhuns bens para pagar indemnização pelos prejuízos sofridos pelas Autoras. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)”; (cfr., fls. 672-v a 679 e 770 a 777).

Do direito

3. Como se deixou relatado, vem as 1ª e 2ª RR., (C e D), recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que as condenou a restituir às AA., (A e B), a quantia total de HKD$644.000,00 e os seus juros legais a contar desde o trânsito em julgado da decisão.

Nos termos das disposições conjugadas dos art. 589°, n.° 3 e 598°, n.° 1 do C.P.C.M., é pelas “conclusões” das alegações que se delimita o “objeto do recurso”, (seja quanto à “pretensão” das recorrentes, seja quanto às “questões” que colocam à apreciação do Tribunal para o qual o recurso é dirigido).

Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal não se verifica em sede de “qualificação jurídica dos factos”, ou relativamente a “questões de conhecimento oficioso”, desde que no processo existam os elementos necessários e suficientes para tal efeito; (cfr., art. 567° do C.P.C.M.).

Feita esta observação preliminar, vejamos se o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância padece das maleitas e merece a censura que pelas 1ª e 2ª RR. lhe são assacadas.

–– Pois bem, em sede do presente recurso, e em face das suas alegações e conclusões a final aí produzidas, adequado se mostra de considerar que entendem as RR., ora recorrentes, que o Tribunal de Segunda Instância incorreu em:
- “omissão de pronúncia” no que toca à questão da compensação com a indemnização por responsabilidade extracontratual da 3ª R., suscitada enquanto excepção peremptória na sua contestação;
- “errada aplicação da lei” no que respeita à questão da “obrigação natural”; e,
- “errada aplicação da lei” no que respeita à questão do “abuso de direito”.

Identificadas que assim cremos ter ficado as razões do inconformismo das ora recorrentes, desde já se consigna que nos iremos ocupar delas de forma separada.

Contudo, e antes de mais, para um melhor entendimento do que em causa está nos presentes autos, vale a pena um ainda que breve esclarecimento sobre o pelas AA. pretendido com os pedidos que deduziram.

Ora, (em apertada síntese), através do presente processo, e ao abrigo do instituto da “sub-rogação do credor ao devedor”, (previsto nos art°s 601° e segs. do C.C.M.), pretendem as ditas AA. sub-rogar-se num (alegado) crédito da 3ª R. sobre as 1ª e 2ª RR., ora recorrentes.

Entendem que tendo a 3ª R. compelido estas (1ª e 2ª) RR., (ora recorrentes), a assinar um contrato provisório de compra e venda de forma fraudulenta – falsificando a assinatura da verdadeira proprietária do imóvel – dever-se-ia reconhecer e declarar a “inexistência” ou “nulidade” deste mesmo contrato.

Assim, e apelando ao aludido instituto da “sub-rogação do credor ao devedor” para justificar a sua “actuação em nome da 3ª R. no exercício dos direitos que lhe competem”, são de opinião que tudo o que havia sido prestado no âmbito dessa relação contratual (inválida), deveria ser restituído, particularmente, as quantias pela dita 3ª R. às 1ª e 2ª RR. entregues a título de indemnização decorrente do incumprimento contratual, ou seja: no caso, o dobro do sinal por aquelas pago, acrescido do montante pelas mesmas adiantado a título de imposto de selo.

Acolhendo, em parte, o assim considerado, veio o Tribunal de Segunda Instância a revogar a “decisão absolutória” do Tribunal Judicial de Base, e, reconhecendo o invocado “direito de sub-rogação das AA.”, condenou as 1ª e 2ª RR., ora recorrentes, a lhes pagar a quantia total de HKD$644.000,00 e juros.

Isto dito e visto, vejamos então como decidir.

A “sub-rogação” verifica-se quando uma coisa se substitui a outra, ou uma pessoa a outra pessoa, havendo, assim, um objecto, ou um sujeito jurídico, que toma o lugar de outro diverso; (cfr., v.g., Galvão Telles in, “Dir. Obrigações”, 3ª ed., pág. 220).

A ideia geral da “sub-rogação” é pois a de “substituição”, em certo quadro, de uma realidade por outra, para desempenhar o lugar da primeira.

Pode ser “pessoal”, quando a pessoa toma, na titularidade de um direito subjectivo, o lugar de outra, podendo verificar-se de duas maneiras: a) ou por a pessoa suceder ao titular anterior, que deixa de o ser – é a “sub-rogação pessoal transmissiva ou translativa”; b) ou por a pessoa poder agir como titular do direito, em substituição de outra, que é e continua a ser o titular – é a “sub-rogação pessoal substitutiva”.

Pode, também, ser “real”, quando uma coisa entra para um património em substituição de outra, aí desempenhando, para certo efeito, o papel da primeira; (cfr., v.g., Castro Mendes in, “Dir. Civil, Teoria Geral”, Vol. II, 1979, pág. 42).

A sub-rogação pode ainda ser “convencional”, ou “legal”: no primeiro caso, (a convencional), resulta de um “acordo” entre o terceiro que cumpriu e o credor a quem o cumprimento foi feito, ou entre o terceiro e o devedor; por sua vez, será “legal” quando se verifica por imposição da Lei.

Nos termos dos artigos 583° e segs. do C.C.M., há “sub-rogação” quando um terceiro cumpre uma dívida de outrem, ou empresta dinheiro, (ou outra coisa fungível), ao devedor para esse cumprimento, adquirindo os direitos do credor originário em relação ao devedor.

Trata-se, assim, de uma forma de “transmissão de créditos”.

Contudo, a sub-rogação configura-se também como um “meio conservatório da garantia patrimonial”, (cfr., art°s 600° e segs. do C.C.M.), através do qual o credor pode substituir-se ao seu devedor no exercício de direitos de conteúdo patrimonial de que este é titular contra terceiros, desde que o próprio devedor o não faça, e de que o direito, por sua natureza ou por disposição de lei, não seja de “exercício exclusivo pelo titular”, sendo, ainda, tão só permitida quando seja “essencial à satisfação ou garantia do direito do credor”, (cfr., art. 601°), cabendo ainda notar que a sub-rogação exercida por um dos credores, aproveita a todos os demais; (cfr., art. 604°).

Pronunciando-se sobre o tema, considera igualmente Antunes Varela que:

“Como o próprio nome sugere, a sub-rogação do credor ao devedor consiste na faculdade concedida ao credor de substituir ao devedor no exercício de certos direitos capazes de aumentarem o activo, diminuírem o passivo ou impedirem uma perda do activo do património do obrigado.
(…)
A lei quer, portanto, defender seriamente a garantia patrimonial, reconhecendo ao credor a faculdade de se substituir ao devedor no exercício de direitos que possam aumentar ou impedir a diminuição do património deste (que é o suporte real ou a base económica dos seus débitos), sempre que o obrigado o não faça”; (in “Direito das Obrigações”, Vol. II, 7ª ed., pág. 436).

Com efeito, constitui (naturalmente) ponto de partida para que se possa recorrer a este “meio de conservação da garantia patrimonial”, a existência de um crédito sobre o devedor no património de quem se pretende exercer o direito de sub-rogação.

In casu, está (nos presentes autos) assente que: “Segundo o acórdão do processo n.º CR4-13-0235-PCC que foi transitado em julgado em 06 de Novembro de 2014, a 3ª Ré tem de pagar às duas Autoras HKD$1.500.000,00 e a isso ainda se somam os juros de mora jurídicos a contar do dia de convocação até integral pagamento, a título de indemnização”; (cfr., alínea QQ) da matéria de facto).

Nesta conformidade, adquirido estando que as AA. têm um “crédito sobre a 3ª R.”, pode-se (assim) desde já concluir que às mesmas assiste “legitimidade” para, invocando o (seu) alegado “direito de sub-rogação”, deduzir a “pretensão” que apresentaram na sua petição inicial; (cfr., pág. 2 e 3 deste aresto).

Avancemos então para uma análise do “mérito” do pelas mesmas AA. pretendido.

Pois bem, como se viu, no dito “processo-crime conexo”, (CR4-13-0235-PCC) – em que se discutiu a grande maioria dos factos que se vieram a dar também como provados nos presentes autos – foi a 3ª R. condenada a pagar às AA. a quantia de HKD$1.500.000,00, (equivalente à quantia em que foram defraudadas, assim como os seus juros), a título de indemnização civil.

Porém, a (mera) existência de tal “decisão condenatória” a favor das AA. não nos parece bastar para a imediata procedência da pretensão que apresentaram, já que, para o (sucesso do) exercício do invocado direito de “sub-rogação”, a Lei prevê – como se viu, mais um requisito, estabelecendo – que a mesma apenas é permitida “(…) quando seja essencial à satisfação ou garantia do direito do credor”; (cfr., art. 601°, n.° 2 do C.C.M.).

Com efeito – e tendo em atenção e comparando com o regime da (mera) “legitimidade dos credores”; cfr., art. 600°, n.° 1 do C.C.M., conclui-se que – o legislador estabelece condições mais apertadas e específicas para o exercício do aludido direito de “sub-rogação”.

Como nota Antunes Varela, “O contraste nítido entre as duas disposições vizinhas só pode significar que, para o exercício da sub-rogação, necessita o credor de alegar e provar uma de duas coisas:
a) que do acto omitido pelo devedor resultou a insolvência ou o agravamento da insolvência dele, sendo o exercício do direito indispensável para eliminar tal resultado;
b) ou que da omissão resultou a impossibilidade de satisfação (cumprimento) do direito do credor, como sucede quando a inactividade do devedor provoque a privação, para o seu património, da coisa não fungível essencial à realização da prestação devida”; (in ob. cit., pág. 441).

Nos presentes autos, encontram-se igualmente “provados” os seguintes factos:
- “A 3ª Ré ainda não pagou nenhuma quantia às Autoras (não abrangendo os montantes da comparticipação pecuniária no desenvolvimento económico)”, (cfr., resposta ao quesito 2º da base instrutória);
- “Igualmente, a 3ª Ré também não depositou nenhuma quantia no processo penal n.º CR4-13-0235-PCC ou n.º CR4-13-0235-PCC-D a título de indemnização às duas Autoras”, (cfr., resposta ao quesito 3º da base instrutória);
- “Até agora as duas Autoras só apreendem o montante de comparticipação pecuniária no desenvolvimento económico da 3ª Ré E no valor de MOP$9.000,00, o que foi registado no processo n.º CR4-13-0235-PCC-D do 4º Juízo Criminal do TJB”, (cfr., resposta ao quesito 4º da base instrutória); e ainda que,
- “A 3ª Ré E já não tem nenhuns bens para pagar indemnização pelos prejuízos sofridos pelas Autoras”; (cfr., resposta ao quesito 5º da base instrutória).

Ora, com base no transcrito substrato factual comprovado nos presentes autos, a eventualidade de fazer ingressar no património da devedora das AA. – a 3ª R. – quaisquer montantes que se venham a apurar ser da responsabilidade das 1ª e 2ª RR., será seguramente essencial para que seja satisfeito o reclamado direito de crédito das ditas AA., (dado que não se apurou a existência de quaisquer outros bens no património da 3ª R.).

Contudo, não podemos ignorar que nos termos do já referido art. 604° do C.C.M.: “A sub-rogação exercida por um dos credores aproveita a todos os demais”, e, como salienta Almeida Costa, “Quer dizer, uma vez efectivada a sub-rogação, os bens entram ou reentram no património do devedor em benefício de todos os credores e do próprio devedor. Portanto, também este meio não aproveita apenas ao credor que o utiliza. Entende-se, na verdade, ser essa a orientação mais razoável, visto que o credor que se prevalece da sub-rogação invoca um direito do devedor, estando certo que os bens tenham, em princípio, o destino que lhes caberia se o direito fosse exercido pelo seu titular”; (in “Direito das Obrigações”, 10ª ed., pág. 851).

Na verdade, e como no mesmo sentido observa Antunes Varela, “Relativamente aos efeitos da sub-rogação, a nota mais importante a destacar é a de que os bens por ela atingidos regressam ao património do devedor ou ingressam nele, em proveito de todos os credores e do próprio devedor. Quer isto dizer que os efeitos da sub-rogação exercida por um dos credores não aproveitam apenas a este, como em princípio seria lógico e natural que sucedesse.
Embora a questão seja controvertida entre os autores, entendeu-se, de acordo com a tese de Vaz Serra, não ser justo nem razoável que o autor da sub-rogação, só pelo facto de o ser, se utilize do benefício da acção, com exclusão dos outros credores, quando ele se limitou a usar um meio que o devedor também poderia ter utilizado, cujos benefícios, nesse caso, reverteriam sem dúvida para todos os credores.
Diferente desta é, como se sabe, a solução adoptada para a impugnação pauliana.
Outra consequência importante a salientar, tirada da circunstância de o credor, através da sub-rogação, exercer um direito que não é propriamente seu, mas do devedor é a de que o terceiro (contra quem o direito é exercido) só pode opor ao credor os meios de defesa que poderia deduzir contra o devedor, e não os que pessoalmente lhe competissem contra o credor”; (in ob. cit., pág. 445).

Com efeito, a “sub-rogação do credor ao devedor”, não implica a sua “imediata” – ou “automática” – substituição no exercício do correspondente direito, isto é: o devedor do devedor, não fica (imediatamente) obrigado a pagar “directamente” ao credor do seu credor.

Transpondo esta “lógica das coisas” para o caso dos presentes autos, (e para simplificar), diríamos que tal significa que, pelo facto de as 1ª e 2ª RR. terem (eventuais) dívidas para com a 3ª R., e de esta ter também dívidas para com as AA., não implica que (por força e efeitos da pelas AA. invocada “sub-rogação”), tenham aquelas 1ª e 2ª RR. que efectuar o pagamento da dívida que tem com a 3ª R de forma directa e imediata às aludidas AA., pois que, como se viu, a respectiva quantia em dívida deve primeiro ingressar no património da 3ª R..

Posto isto, e sendo de concluir (à luz do preceituado no art. 604° do C.C.M.) que as 1ª e 2ª RR. não poderiam ser condenadas a pagar “directamente” (qualquer quantia) às AA. – porque os montantes recuperados no exercício do seu invocado direito de sub-rogação devem (primeiro) ingressar no património da 3ª R., para, como tal, responder e satisfazer os interesses de todos os seus credores – impõe-se, desde já aqui, rectificar a decisão do Tribunal de Segunda Instância em conformidade, (na parte em questão), pois que o dito normativo encerra uma norma imperativa de ordem pública que molda o instituto da sub-rogação do credor ao devedor de modo a proteger os “interesses de terceiros”, havendo assim que se revogar o nestes termos decidido pelo Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância.

Aqui chegados, e mostrando-se-nos que com a “conclusão” e “decisão” a que se chegou e proferiu não se dá cabal solução à questão que deu origem aos presentes autos, importa avançar e passar a apreciar os “vícios” pelas RR., ora recorrentes, assacados ao Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, (agora, e essencialmente, no que toca ao mérito do “reconhecimento da existência do crédito da 3ª R.”, relativamente ao qual foram as mesmas recorrentes condenadas a pagar).

–– Comecemos pela assacada “omissão de pronúncia”.

Pois bem, aqui, sustentam as RR., ora recorrentes, que se deve recuperar a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base que as “absolveu dos pedidos pelas AA. deduzidos”, afirmando que os seus interesses – tendo também sido vítimas de uma “burla” perpetrada pela 3ª R. – devem igualmente ser ponderados e protegidos, nada devendo ter que pagar.

Consideram que o Tribunal de Segunda Instância incorreu assim em “omissão de pronúncia”, ao não abordar a questão do seu direito a serem indemnizadas pelos prejuízos que sofreram em consequência dos factos ilícitos – “burla” – pela dita 3ª R. praticados e de que foram ofendidas.

Dizem pois – em síntese – que este seu direito de indemnização por factos ilícitos deveria ter sido “reconhecido” pelo Tribunal de Segunda Instância para efeitos de se “compensar eventuais valores devidos à 3ª R.”, não devendo assim as recorrentes ser condenadas a pagar quaisquer montantes a esta ou às AA..

Vejamos.

Como é sabido, “A obrigatoriedade de o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não significa que o juiz tenha, necessariamente, de apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para fundamentarem a resolução de uma questão”, (cfr., v.g., Viriato de Lima in, “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., pág. 536), sendo também esse o entendimento deste Tribunal de Última Instância que repetidamente tem considerado que: “só a omissão de pronúncia sobre questões, e não sobre os fundamentos, considerações ou razões deduzidas pelas partes, que o juiz tem a obrigação de conhecer determina a nulidade da sentença”, pois que o vocábulo (legal) de “questão”, não pode ser entendido de forma a abranger todos os “argumentos” invocados pelas partes; (cfr., v.g., e entre outros, os recentes Acs. de 17.04.2024, Proc. n.° 28/2023, de 08.05.2024, Proc. n.° 12/2024-I, de 29.07.2024, Proc. n.° 17/2021, de 03.10.2024, Proc. n.° 5/2022, de 15.01.2025, Proc. n.° 137/2024-I, de 06.06.2025, Procs. n°s 59/2022 e 75/2023, de 11.07.2025, Proc. n.° 57/2025-I e de 25.07.2025, Proc. n.° 124/2024).

Com efeito, “questões” são apenas “(…) as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes”; (cfr., v.g., Antunes Varela in, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122°, pág. 112).

Ora, nos termos do art. 630°, n.° 2 do C.P.C.M.: “Se o tribunal recorrido não tiver conhecido de certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, o Tribunal de Segunda Instância, se entender que o recurso procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”.

No Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 10.10.2012, Proc. n.° 39/2012-I, tratou-se especialmente desta “questão” consignando-se o que segue (e vale a pena atentar):

“Em 2.º grau de recurso correspondente a 3.º grau de jurisdição, o TUI conhece (deve conhecer) das seguintes questões:
i) Questões suscitadas nas conclusões da alegação dos recorrentes;
ii) Questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado;
iii) Questões suscitadas por requerimento do recorrido na alegação de recurso, a título subsidiário, para o caso de recurso proceder, nos termos do artigo 590.º, n. os 1 e 2 do Código de Processo Civil;
iv) Questões não conhecidas pelo tribunal recorrido, nos termos do artigo 630.º do Código de Processo Civil.
São estas as questões que o TUI pode conhecer.
Ao contrário do que julgam os recorridos o TUI não pode conhecer de matérias relacionadas com o fundo da causa que estes abordem na sua resposta à alegação do recorrente. Só as suscitadas pelos recorrentes1. De todo o modo, é inteiramente falso que os recorridos tenham suscitado a questão dos vícios do registo nas conclusões 23 a 31. O que aí foi abordado foi a questão do artigo 284.º do Código Civil, atrás enunciada e já resolvida.
(…) Os recorridos alegam que se trata de questão de conhecimento oficioso, mas não fundamentam a afirmação, que é errónea. E fazem ainda uma afirmação mais atrevida. Que o TUI deveria conhecer de questões por eles suscitadas na contestação e nas alegações de direito, prévias à sentença de 1.ª instância. Afirmação tanto mais errónea que a anterior.
(…)
iv) Questões não conhecidas pelo tribunal recorrido, nos termos do artigo 630.º do Código de Processo Civil.
Este grupo merece maior atenção.
Por força do disposto no artigo 652.º do Código de Processo Civil, aplica-se ao julgamento do TUI a norma do artigo 630.º do Código de Processo Civil, com as alterações impostas pelo artigo 651.º do mesmo diploma.
Ponhamos de lado o n.º 1 do artigo 630.º e o artigo 651.º do Código de Processo Civil, por não estarem em causa nulidades do Acórdão recorrido.
Nos termos do n.º 2 do artigo 630.º, se o TSI não tiver conhecido de certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, o TUI, se entender que o recurso procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
Este poder é oficioso, não depende de requerimento dos recorridos, como sucede com o instituto do artigo 590.º do Código de Processo Civil.
Vejamos, então se o TUI não conheceu de questões consideradas prejudicadas pelo Acórdão recorrido.
O TSI conheceu da questão suscitada pelos ora recorridos, então recorrentes, de mandar baixar o processo à instância, nos termos do artigo 629.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, julgando-a procedente, considerando prejudicadas as demais questões suscitadas pelos recorrentes.
Resta, então, saber se os ora recorridos, então recorrentes, suscitaram a matéria em causa nas suas alegações para o TSI.
Ora, percorre-se tal alegação e vê-se, à vista desarmada, que nunca os ora recorridos abordaram a questão dos vícios do registo, nunca suscitaram eventuais violações dos artigos 15.º, 16.º e 17.º do Código do Registo Predial.
Logo, não poderia o TUI conhecer de tais matérias, que nunca foram discutidas nos autos, mesmo na contestação ou nas alegações do direito, ao contrário do que afirmam os recorridos”.

Nesta conformidade, e em face do até aqui exposto, razoável se mostra de considerar que tendo o Tribunal de Segunda Instância revogado a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base, poderia, (ou melhor, deveria), ter averiguado se o conhecimento de alguma questão relevante suscitada pelas (ora) recorrentes havia ficado “prejudicado” por essa decisão anterior.

Em caso afirmativo, deveria conhecer de tais questões, ou então ordenar a baixa do processo, consoante constassem, ou não, do processo, os elementos necessários.

In casu, na sua contestação, as recorrentes suscitaram, efectivamente, como excepção peremptória, a questão da “compensação pelo valor da indemnização pela responsabilidade extracontratual da 3ª R.”.

E, como se deixou expendido, os pedidos apresentados pelas AA. soçobraram no Tribunal Judicial de Base, sendo certo que não houve pronúncia sobre as “questões” pelas ora recorrentes suscitadas na sua contestação, (precisamente porque o seu conhecimento ficou claramente prejudicado).

Posteriormente, em sede do recurso que do assim decidido interpuseram as AA., o Tribunal de Segunda Instância revogou a decisão – absolutória – proferida (no sentido que atrás se deixou explicitado), não tendo tratado das “questões” pelas 1ª e 2ª RR. suscitadas na sua contestação e cujo conhecimento havia ficado prejudicado com a solução dada pelo Tribunal Judicial de Base.

Reconhece-se que no Acórdão recorrido, são feitas “referências (passageiras)” à questão da “responsabilidade civil extracontratual”, designadamente para deixar claro que o montante pago pela 3ª R. às recorrentes terá sido feito ao abrigo da eventual responsabilidade contratual e não da delitual, as quais não se devem confundir; (cfr., fls. 781-v, onde se fez constar “解除合同的賠償是合同責任的賠償,而不法行為的賠償則是非合同責任。兩者在法律上有著不同的性質,不能混為一談”, ou seja, em tradução livre por nós efectuada, “A indemnização por resolução de contrato é uma indemnização resultante de responsabilidade contratual, enquanto a indemnização por acto ilícito é uma responsabilidade extracontratual. São de natureza jurídica diferente, e não se pode confundir uma com a outra”).

E, nestes termos, adequado não parece de se considerar que o Tribunal recorrido tenha efectivamente abordado – expressa e especificamente – a referida questão da “compensação” e da existência, ou não, de “responsabilidade extracontratual da 3ª R.”, pelas ora recorrentes suscitada na sua contestação.

Quid juris?

Ora, voltando atrás, cabe recordar que a “questão” que as ora recorrentes pretendem ver esclarecida prende-se com o reconhecimento de uma “compensação” do eventual crédito da 3ª R. em reaver o que foi prestado, (devido à inexistência do contrato entre as mesmas celebrado), com uma responsabilidade civil extracontratual que esta deveria assumir.

Noutras palavras, na óptica das recorrentes, o Tribunal deveria ter feito operar uma “compensação de créditos”, descontando do montante pelas mesmas eventualmente devido, sobre o que se viesse, em contrapartida, a apurar em termos da responsabilidade extracontratual da 3ª R. para com elas.

Invocam, portanto, o instituto da “compensação”, embora, com um “crédito” que ainda não se encontra reconhecido.

Importa então atentar que nos termos do art. 838° do C.C.M.:

“1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio da compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos cumulativos:
a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.
2. Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente.
3. A iliquidez da dívida não impede a compensação”.

Nestes termos, conclui-se que para que a “compensação” possa operar, devem convergir dois requisitos (essenciais): a obrigação do credor deve ser “exigível judicialmente”, e as duas obrigações devem ter por objecto coisas “fungíveis”, da mesma espécie e qualidade.

Na perspectiva das recorrentes, coincidem inteiramente no “objecto” ambos os créditos, (tanto que estimam que o “montante” dos danos a receber a título de indemnização extracontratual é idêntico ao valor que receberam a título de indemnização por incumprimento contratual).

Não obstante, parece-nos que falha aqui um dos requisitos essenciais: precisamente, o de o crédito ser “exigível judicialmente”.

Com efeito, na altura em que as recorrentes apresentaram a sua contestação, o crédito a que as mesmas fizeram apelo não era “exigível”, (e muito menos exequível).

Embora as recorrentes tenham feito apelo a um eventual “direito de serem indemnizadas pela responsabilidade por factos (evidentemente) ilícitos da 3ª R.”, a verdade é que esta responsabilidade jamais foi (especificamente) apurada, e, muito menos, objecto de qualquer pronúncia, seja neste ou noutro processo judicial.

Por sua vez, importa não perder de vista que nos presentes autos, e seja como for, as recorrentes ficaram aquém de formular – expressamente – um “pedido reconvencional” contra a 3ª R., para que a aludida “matéria” fosse (devidamente) apreciada, e, eventualmente, “reconhecido” o seu reclamado direito à indemnização por responsabilidade extracontratual; (acerca da possibilidade de uma reconvenção contra terceiro que não o autor, vd., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 11.03.2020, Proc. n.° 34/2019, e Cândida Pires e Viriato Lima in, “C.P.C.M. Anotado e Comentado”, Vol. II, pág. 59 a 62).

De facto, a alusão à “compensação” por via de “excepção” deverá operar enquanto facto extintivo da obrigação se a compensação já tiver produzido o efeito de extinguir a obrigação entre as partes.

Caso contrário, a “compensação” deverá operar por via da dedução de um “pedido reconvencional”.

Nesta conformidade, parece-nos inevitável que, não tendo sido formulado “pedido reconvencional” para o efeito, jamais poderia o Tribunal emitir pronúncia sobre uma eventual “condenação da 3ª R. no pagamento de uma indemnização às ora recorrentes”.

Com efeito, este “pedido de condenação da 3ª R. na obrigação de pagamento de uma indemnização por responsabilidade extracontratual” não pode ser conhecido tão só de forma “incidental”, pois que não se reduz a um tipo de defesa invocável na contestação, (cfr., art. 407° do C.P.C.M.), sendo, antes, um pedido (de condenação) perfeitamente “autónomo” dos pedidos formulados pelas AA., e que daria origem a uma “nova acção”, “cruzada”, e em que, necessariamente, se teriam de facultar às partes interessadas todos os direitos processuais de defesa e de contraditório; (veja-se, aliás, que uma das hipóteses que sustenta a formulação de um “pedido reconvencional” é, precisamente, a faculdade de o R. fazer operar uma “compensação de créditos”, nos termos do art. 218°, n.° 2, al. b) do C.P.C.M.).

Dest’arte, (e de forma que nos parece bastante nítida), importa, desde já, concluir que não existe um “crédito exigível” de que as recorrentes se possam valer para invocar a extinção, por “compensação”, do alegado crédito da 3ª R..

Por sua vez, cabe ainda notar que não tendo as ora recorrentes apresentado (oportunamente) um “pedido de indemnização civil” enxertado no processo-crime que correu termos sob o n.° CR4-13-0235-PCC, (onde se discutiram os mesmos factos que ora consubstanciam a causa de pedir na presente acção), sempre lhes estaria vedado suscitar (agora) tal pedido em sede de um processo (de natureza civil) autónomo.

Nesta conformidade, e vista nos parecendo estar a solução (de improcedência) para a “questão” colocada (e da pretendida “compensação”), continuemos.

–– Passemos para a assacada “errada aplicação do direito no que respeita a uma invocada obrigação natural”.

Sustentaram as recorrentes na sua contestação, e novamente o fazem agora nas alegações de recurso perante esta Instância, que não deveriam ser obrigadas a restituir os montantes recebidos da 3ª R., visto que o seu pagamento foi feito para saldar uma “obrigação natural”.

Entendem que a prestação que lhes foi efectuada pela 3ª R. correspondeu, nada mais nada menos, ao cumprimento de um “dever ético-social”, e, como tal, enquadrável no conceito jurídico de “obrigação natural”.

E, nessa medida, (e nos termos do art. 397° do C.C.M.), não podiam as AA. requerer a “repetição da prestação”.

Ora, nos termos do art. 396° do C.C.M.: “A obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça”, sendo, assim, obrigações de natureza excepcional, a que correspondem deveres de cariz meramente moral ou social, aos quais – por lhes ser reconhecido um acrescentado dever de justiça – a ordem jurídica atribui e reconhece efeitos equivalentes aos de uma obrigação civil.

Tratando da matéria, o Prof. Manuel de Andrade contrapunha às “obrigações civis”, (ou “perfeitas”), as “obrigações naturais”, (“imperfeitas” ou de “juridicidade reduzida”), sem deixar de considerar estas últimas verdadeiras obrigações jurídicas; (in “Teoria Geral das Obrigações”, pág. 73 e segs., apud Almeida Costa in, “Direito das Obrigações”, 10ª ed., pág. 192 e 193).

Com efeito, e como se preceitua no art. 398° do C.C.M.: “As obrigações naturais estão sujeitas ao regime das obrigações civis em tudo o que não se relacione com a realização coactiva da prestação, salvas as disposições especiais da lei”.

A grande distinção entre as “obrigações civis” e as “obrigações naturais” passa pela impossibilidade de se exigir o seu cumprimento coercivo, ou seja, pela insusceptibilidade de se requerer ao poder judicial para impor ao devedor o seu cumprimento.

Porém, como “contrapeso”, a ordem jurídica reconhece (plenamente) os “efeitos” do cumprimento duma obrigação natural quando realizada de forma espontânea, não podendo o “solvens” requerer do “accipiens” a sua repetição; (cfr., o citado art. 397°, n.° 1 do C.C.M., onde se preceitua que “Não pode ser repetido o que for prestado espontaneamente em cumprimento de obrigação natural, excepto se o devedor não tiver capacidade para efectuar a prestação”).

No fundo, o cumprimento de uma obrigação natural reflecte no “solvens” o acatamento de um dever com a consciência de que está a actuar conforme ditames de justiça, e não meramente a proceder a uma liberalidade, (v.g. por caridade, beneficência ou cortesia).

Noutras palavras, as “obrigações naturais” não podem ser exigidas pelo credor judicialmente, mas a ordem jurídica reconhece plenamente os efeitos do seu cumprimento, estando o “accipiens” autorizado a “reter a prestação” a título de pagamento; (o que se apelida de “solutio retentio”).

Em suma, e tal como nas “obrigações civis”, o devedor está adstrito a satisfazer ao credor uma determinada prestação, mas este não dispõe da faculdade de promover a execução específica da obrigação ou o património do devedor inadimplente.

In casu, as recorrentes invocam a figura da “obrigação natural” para tentarem fazer-se valer da sua característica de “irrepetibilidade”, (ou seja, para a não “devolução” do que receberam da 3ª R.).

No entanto, parece que se concentram um tanto forçosamente nesta “particularidade” (das “obrigações naturais”), ignorando, as especificidades que temperam a sua situação em concreto.

Com efeito, as recorrentes limitam-se a invocar, abstractamente, as premissas previstas na lei sobre as obrigações naturais – a obrigação fundar-se num dever moral ou social, a que corresponde um dever de justiça – sem identificar, explicitar, concretizar ou delinear, sequer, a “obrigação” a que se referem.

E, desta forma, não se sabe se se referem ao suposto dever que recaía sobre a parte inexistente no contrato de ressarci-las por incumprimento contratual; à necessidade da responsável pelo cometimento da “burla” de assumir a obrigação da parte inexistente no contrato, por ter dado azo ao inevitável incumprimento contratual; ao dever da 3ª R. assumir uma responsabilidade extracontratual devido aos seus actos ilícitos; ou a qualquer outro dever…, (certo sendo também que não justificam minimamente em que medida, ou em que termos, a alegada “obrigação” teria revestido, originária, ou sucedaneamente, a natureza de uma “obrigação natural” quanto ao seu vínculo, não justificando, igualmente, porque “motivo”, “razão” ou “circunstância”, se deve considerar que o cumprimento correspondia a um dever moral ou social, (e menos ainda de justiça).

Certo sendo que a Lei não “tipifica”, exaustivamente, as “obrigações naturais”, dúvidas não existem que às ora recorrentes competia demonstrar, minimamente, a “natureza” dos deveres que concorrem na obrigação, para que, após a sua apreciação, se pudesse determinar, conscientemente e com a necessária segurança, se nelas existe um “dever de justiça”, (de tal forma significativo, que se deva sobrepor, inclusivamente, à declaração da inexistência do contrato donde provém).

A razão das recorrentes em apelar à figura da obrigação natural poderá, porventura, passar pelo entendimento que a 3ª R. efectuou a prestação não porque se sentia a isso obrigada – pois que no contrato (falsificado) ela não figurava como parte – mas porque actuou movida por um mero dever de (repor a) justiça, reconhecendo a legitimidade das recorrentes em reivindicar o pagamento do sinal em dobro e do montante pago a título de imposto de selo.

Porém, (e também por falta de oportuna e adequada exposição sobre esta matéria), da factualidade apurada não resulta que a prestação efectuada pela 3ª R. tenha sido efectuada a coberto de um qualquer “dever moral ou social”, ou que ela tenha sido movida por um louvável “desígnio de justiça”.

Na óptica das “accipientes”, a prestação representou o pagamento devido legalmente por parte da (alegada) promitente-vendedora do bem imóvel (que se viria a revelar inexistente), em virtude do percepcionado incumprimento contratual.

Na óptica da 3ª R. – na medida em que no presente processo é configurada como a “solvens” – não se tratou de dar cumprimento a qualquer dever de justiça ao qual se sentia adstrita, estando plenamente demonstrados e descortinados os motivos que a impeliram a actuar.

Com efeito, está claramente provado que:
- “Naquela altura, para fazer correr o tempo a fim de evitar a ser posta a descoberto, a 3ª Ré E manifestou novamente à 1ª Ré e a 2ª Ré através de K que a proprietária estava prestes a pagar-lhes “sinal duplo” e o imposto de selo pago pelas duas Rés a título de indemnização – cfr. doc. 1: ponto 17 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC”, (cfr., alínea R) dos factos assentes);
- “Para evitar a ser posta a descoberto, a 3ª Ré E coleccionou dinheiro com pressa para reembolsar à 1ª Ré C e à 2ª Ré D, por isso, ela decidiu praticar novamente burla da mesma maneira – cfr. doc. 1: ponto 20 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 144 do doc. 1)”, (cfr., alínea U) dos factos assentes); e que,
- “Para cobrir a fraude praticada às Rés C e D, a 3ª Ré E depositou, em 31 de Janeiro de 2013 HKD$1.144.000,00 nas contas da 1ª Ré e à 2ª Ré com a quantia de “sinal” pago pelas Autoras – cfr. doc. 1: fls. 41, 133 e 134, e ponto 30 dos factos provados do acórdão proferido pelo TJB constante da certidão do processo n.º CR4-13-0235-PCC (fls. 145 do doc. 1)”; (cfr., alínea DD) dos factos assentes).

Dest’arte, (e com a perfeita e clara noção e consciência da inexistência do substrato contratual que ardilosamente criou), a 3ª R. jamais foi movida por algum sentimento “nobre” mas, tão só e apenas, pelo “receio de que a sua conduta criminosa fosse posta a descoberto”.

Assim, totalmente inviável se apresenta configurar a prestação pela 3ª R. efectuada às ora recorrentes como o cumprimento de uma “obrigação natural”.

Aliás, (e ao invés do que agora pretendem defender), não se pode igualmente olvidar que ao longo do processo, as recorrentes argumentaram, (recorrentemente), que mereciam ter sido compensadas a título de uma “responsabilidade contratual” ou “extracontratual”, institutos que, como se sabe, dão origem a “obrigações civis” e não “naturais”, (cabendo aqui notar que o que agora alegam “raia a má fé”…).

Não se podendo assim de forma alguma, acolher, também aqui, o inconformismo das ora recorrentes.

–– Da “errada aplicação do direito no tocante ao instituto do abuso do direito”.

Defendem também as ora recorrentes que a tentativa de recuperação – devolução – da indemnização que pela 3ª R. lhes foi paga pelo incumprimento do contrato configura um manifesto “abuso de direito”, representando, simultaneamente, uma “violação do princípio da boa fé” e da “proibição do venire contra factum proprium”.

Ora, as circunstâncias (bastante) particulares da situação em questão merecem – uma especial e cuidada – ponderação.

Começa-se por dizer que se compreende a solução a que chegou o Tribunal de Segunda Instância, especialmente, se se tiver em consideração que o montante em questão pela 3ª R. entregue às ora recorrentes é dinheiro obtido através da burla da qual foram vítimas as AA..

Porém, outras considerações merecem também especial relevo e deverão moldar a perspectiva a adoptar, até porque, estando em causa o exercício de um direito de sub-rogação das credoras – as AA. – à sua devedora, (a 3ª R.), é na esfera jurídica desta última (R.) que devemos apurar se, efectivamente, existe o “direito” sub-rogado, sendo, não menos importante, recordar (e não olvidar) que, como claramente resulta da factualidade provada nos presentes autos, também as ora recorrentes, foram vítimas de idêntica “burla” da 3ª R..

Com efeito, e como provado está, nos finais de 2012, e por intermédio e por iniciativa da dita 3ª R., as ora recorrentes celebraram um contrato provisório de compra e venda, e avançaram com o pagamento de um sinal de HKD$500.000,00, tendo ainda liquidado o imposto de selo correspondente ao contrato prometido, num total de MOP$147.893,00.

E, em face da impossibilidade (evidente) do cumprimento da promessa, (visto que a pessoa que no contrato figurava como “promitente-vendedora” era alheia ao sucedido e não estava a par das suas maquinações e enredo, a 3ª R. prometeu às ora recorrentes que seriam ressarcidas pelos danos ocasionados, para evitar que estas desvendassem a sua trapaça.

Muito lamentavelmente, para obter os fundos necessários para o prometido pagamento às ora recorrentes, a 3ª R. recorre novamente ao mesmo “esquema”, acabando por defraudar as AA. que, por intermédio do identificado “negócio”, vem a sofrer uma perda de HKD$1.500.000,00, sendo com parte (considerável) desta quantia que a 3ª R. obteve das AA. (em Janeiro de 2013), que a mesma (3ª R.) pagou às recorrentes o sinal em dobro que estas haviam pago, assim como a quantia perdida a título de imposto de selo devido pelo contrato prometido.

As ora recorrentes, receberam a prestação da 3ª R. de boa fé, confiando que esta lhes tinha sido entregue a título de “indemnização pelo incumprimento contratual”, desconhecendo a teia de incidentes (criminais) que se desenrolava “atrás da cortina”.

Porém, o esquema da 3ª R. acabou por ser descoberto, e em sede do já referido processo-crime n.° CR4-13-0235-PCC, (onde foram essencialmente discutidos os factos integradores da causa de pedir na presente acção), foi proferida a sentença condenatória a que igualmente já se fez referência; (sobre esta sentença incidiram recursos jurisdicionais para o Tribunal de Segunda Instância, Proc. n.° 304/2014, e para este Tribunal de Última Instância, Proc. n.° 105/2014, tendo a sentença condenatória da 3ª R. transitado em julgado a 06.11.2014).

Nesse mesmo “processo-crime” ficou provado que as ora recorrentes – aí ofendidas – haviam sido ressarcidas pelos danos ocasionados pelo crime de “burla” contra elas perpetrado, (“facto” que aliás transitou para os presentes autos), sendo ainda de notar que no Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância proferido se veio a entender que, embora as ora recorrentes houvessem sido reparadas pelos danos causados com o crime pela aí arguida, aqui 3ª R., cometido, nada justificava uma “atenuação especial da pena”, pois que para reparar as recorrentes, aí ofendidas, havia a mesma arguida utilizado o mesmo “esquema”, causando um “novo ofendido”, e desta forma, prejudicando as aqui AA.; (cfr., fls. 172 a 187-v, pág. 28 a 31 do Ac. do T.S.I. Proc. n.° 304/2014).

E, nesta conformidade, que dizer?

Pois bem, tendo o conta o que “provado” está, mostra-se de aqui consignar desde já que é com bastante perplexidade (e mesmo embaraço) que delineamos na esfera jurídica da 3ª R. o direito de, (agora, por intermédio das AA.), arguir a “invalidade do negócio” que ela própria (dolosamente) engendrou para efeitos de poder reaver os montantes que espontaneamente pagou às ora recorrentes a título de indemnização.

Com efeito, (e como se deixou dito), releva, claramente, da dita factualidade que, pretendendo não ser descoberta e ter de enfrentar as consequências (de natureza criminal) da sua conduta, a 3ª R. decidiu, num primeiro momento, compensar as ora recorrentes como se o contrato-promessa com as mesmas celebrado fosse (inteiramente) “válido”, sendo de notar que estas em nada contribuíram, nem estavam cientes, da sua “inutilidade” por total falta de intervenção da verdadeira proprietária do imóvel objecto do negócio.

Pelo contrário, confiaram que a “situação” tivesse ficado (em termos legais) definitivamente resolvida, até porque foram indemnizadas nos termos do próprio contrato que com a 3ª R. celebraram.

E, assim sendo, impõe-se ter bem presente esta pretensão de se querer agora alterar este “status quo” perfeitamente estabilizado, vários anos após a sua espontânea tomada de posição (contraditória) pela “parte” dolosa e exclusivamente responsável pelo vício do contrato, para efeitos de se beneficiar o seu património, (e trair as expectativas das ora recorrentes, “parte” inocente e prejudicada).

Como resulta dos presentes autos, os “factos” a ele subjacentes foram (previamente) discutidos e provados no aludido processo de natureza criminal.

A própria petição inicial do presente processo reproduziu, aliás, na sua grande maioria, os factos que se provaram neste mesmo processo criminal, (como, através das remissões aí feitas resulta literalmente do próprio articulado).

As ora recorrentes foram citadas para a presente acção praticamente “6 anos” após terem recebido de boa-fé os montantes que lhes foram pagos, (e mais de “4 anos” volvidos sobre o trânsito em julgado de todas as questões relevantes no aludido processo-crime).

E, em face do que se deixou exposto, razoável nos parece de concluir que se está perante uma – evidente – violação da “proibição do venire contra factum proprium”.

Na verdade, como aceitar que a 3ª R., após invocar a “reparação” (voluntária) dos danos causados às ora recorrentes para efeitos de uma pretendida “atenuação especial” da sua pena, venha agora, (num momento posterior), invocar a “invalidade” do contrato a que deu azo e motivou o seu pagamento para viabilizar que os montantes entregues lhe sejam devolvidos e, ingressem, de novo, no seu património?

Seria pois – claramente – incoerente e de grande e gritante injustiça reconhecer-se à parte responsável criminal e civilmente pela “inexistência” dum contrato, o direito de arguir essa mesma “invalidade” para – num momento em que os danos (de natureza cível) já se encontram definitivamente fixados e indemnizados – reaver o que espontaneamente pagou para tal efeito no âmbito de tal negócio.

Com efeito, não se nos apresenta “prática saudável”, (e em nada recomendável), permitir-se que um arguido condenado se possa servir dos seus próprios actos criminosos que intencionalmente praticou para obter uma compensação do que pagou e que era devida nos termos contratuais, dessa forma, como que eximindo-se da sua própria responsabilidade.

E, perante isto, cremos que o Acórdão recorrido, (embora nele se tente ir ao encontro de “pretensões que não deixam de ser também legítimas” das AA.), colide, frontalmente, com o que se apurou e se encontra ponderado e decidido, traindo direitos (igualmente) legítimos e – saliente-se – pelo decurso do tempo já perfeitamente estabilizados e consolidados na esfera jurídica das ora recorrentes.

De facto, e face à conduta pretérita da 3ª R., (e até pelas consequências que dessa actuação se extraíram judicialmente), cremos pois estarmos assim perante uma nítida situação de “venire contra factum proprium” que deverá despoletar a intervenção do instituto do “abuso do direito” com as suas legais e necessárias consequências.

Como no Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 08.04.2022, (Proc. n.° 127/2021), se deixou consignado:

“Uma das modalidades do “abuso de direito” manifesta-se na figura do chamado “venire contra factum proprium”, que se verifica, essencialmente, quando alguém exerce o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que, fundadamente, a outra parte tenha confiado.
Com efeito, o “princípio da confiança” é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia, e está presente, desde logo, ao se referir nos “limites impostos pela boa fé” ao exercício dos direitos, (cfr., art. 326° do C.C.M.), pretendendo-se, por essa via, assegurar, efectivamente, a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte”, valendo igualmente a pena atentar neste veredicto o seguinte trecho onde se esboçam os principais traços da figura do abuso de direito na sua vertente da proibição do venire contra factum proprium:

“Ora, nos termos do estatuído no art. 326° do C.C.M.:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
E, como sabido cremos ser, uma das modalidades do “abuso de direito” manifesta-se na figura do chamado “venire contra factum proprium”, que se verifica essencialmente quando alguém exerce o direito em “contradição com uma sua conduta anterior, em que fundadamente, a outra parte tenha confiado”; (sobre o tema, sua origem, evolução e concretização, cfr., v.g., A. M. Cordeiro in, “Do Abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, e Hugo R. Galdino Araújo in, “Venire contra factum proprium: sua aplicabilidade, amplitude e delimitações”, com abundante referência doutrinal e jurisprudencial).
Na verdade, (e como igualmente nota A. M. Cordeiro), importa ter presente que o abuso do direito é uma expressão consagrada para traduzir, hoje, um “instituto multifacetado”, e que prossegue, os “objectivos últimos do sistema”, cabendo salientar que o “princípio da boa fé” tem de ser muito mais que (mero) idílico verbalismo jurídico, implicando, sempre, uma ponderação global da “situação em jogo”, sob pena de se descambar em puro formalismo de que se pretende fugir…
Por sua vez, não se pode olvidar também que a “proibição do comportamento contraditório” – “禁止不一致的行為”, “prohibition of inconsistent behavior”, ou “l’interdiction de se contredire na détriment d’autrui” – que visa proteger as pessoas com base nas proposições da confiança, da boa-fé, da lealdade e da coerência, apontando como inadmissível e ilegal o comportamento contraditório à conduta anteriormente assumida, configura já, actualmente, um instituto jurídico autonomizado, tendo como pressupostos:
- duas condutas de uma mesma pessoa, a primeira (“factum proprium”), contrariando a segunda;
- uma identidade de partes;
- uma situação contraditória produzida numa mesma situação jurídica, (ou entre situações jurídicas estreitamente coligadas);
- que a primeira conduta, (factum proprium), tenha um significado social minimamente unívoco;
- que o factum proprium seja apto a gerar a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta, (segundo as circunstâncias, usos, costumes e boa-fé); e, por fim,
- o caráter “vinculante” do aludido “factum proprium”.
Com efeito, o “princípio da confiança” é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia, e está presente, desde logo, ao se referir nos “limites impostos pela boa fé” ao exercício dos direitos, (cfr., art. 326° do C.C.M.), pretendendo, por essa via, assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte”.

Ora, como cremos estar adquirido, o “venire contra factum proprium”, cuja tutela é assegurada pelo instituto do “abuso do direito”, ocorre quando uma parte se autovincula com certa conduta perante a sua contraparte, em quem cria expectativas legítimas, razoáveis e determinantes, que acaba por trair pela adopção dum comportamento posterior contraditório.

Como notava Baptista Machado, “As origens históricas do princípio [do «venire contra factum proprium»] remontam a tempos recuados, podendo dizer-se que o mesmo obteve uma certa expressão do Direito Romano através da figura da exceptio doli generalis (dolus praesens). Com efeito, se neste direito valia o brocardo nullus videtur dolo facere, qui suo iure utitur, parece óbvio que esta fórmula não justificava qualquer exercício arbitrário do direito, pois o exercício do direito encontrava limites na bona fides. E assim foi que, no quadro da exceptio dolis, a bona fides pôde muitas vezes prevalecer sobre o «ius strictum». É neste contexto que se pode encontrar em ULPIANO, a propósito de uma situação de «aparência jurídica», criada por quem depois pretendia fundar-se no «strictum ius», a seguinte afirmação: «adversus factum suum (…) movere controversiam prohibetur».
Também no período do direito comum se utilizou frequentemente a «exceptio doli» para afastar resultados menos aceitáveis do «ius strictum» ou para impedir o exercício abusivo de um direito. Não se chegou aí a recortar, porém, uma hipótese ou domínio de hipóteses capaz de estabelecer quaisquer fronteiras entre a proibição do venire contra factum proprium e a «exceptio doli». Aquele princípio não é sequer citado, embora seja aplicada, no quadro da «exceptio doli», a ideia que lhe está subjacente.
Modernamente, com o desenvolvimento da teoria do «abuso do direito», o princípio em causa começou a ser considerado com uma das manifestações daquele abuso.
No que respeita ao quadrante próprio da proibição do venire contra factum proprium no âmbito do «abuso do direito» (art. 334° do C.C.M.), parece-nos que tal proibição corresponde àquela parte da fórmula legal que considera ilegítimo o exercício de um direito, «quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé»”; (in “Tutela da Confiança e «Venire contra factum proprium»”, Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, pág. 345 e 423).

E, como também salienta António Menezes Cordeiro, “O primeiro e, porventura, mais impressivo tipo de actos abusivos organiza-se em torno da locução venire contra factum proprium ou, mais simplesmente, venire. De origem canónica e com raízes controversas, o venire ficou a dever boa parte da sua carreira à musicalidade da sua fórmula latina.
Estruturalmente, o venire postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si, mas diferidas no tempo. Só que a primeira – o factum proprium – é contraditada pela segunda – o venire.
O óbice que justificaria a intervenção do sistema residiria na relação de oposição que, entre ambas, se possa verificar”; (in “Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, Vol. II, Setembro de 2005).

No caso dos presentes autos, apresenta-se-nos de considerar que todos os comportamentos adoptados pela 3ª R. até ao momento em que as AA. vieram em seu nome arguir o “direito a reaver as quantias por si prestadas” às ora recorrentes (em face da inexistência do contrato) são manifesta e totalmente incoerentes e contraditórias.

Desconsiderando por ora o facto de que a 3ª R. foi a única responsável pela invalidade do contrato, a verdade é que foi ela própria que promoveu a “resolução amigável” do contrato com as ora recorrentes, (ainda que para estas não descobrirem o esquema de burla que havia montado), entregando-lhes, espontaneamente – mas em nome de um “interesse egoísta” – o montante legalmente devido para compensar o seu incumprimento do contrato, mantendo-se estas na convicção que o assunto estaria legal e definitivamente resolvido.

Compreensivelmente, pela 3ª R., (ou, no caso, pelas AA.), não é feita qualquer alusão à “invalidade” que ela – intencionalmente – provocou para se afirmar que as ora recorrentes não deviam ser ou mereciam ser ressarcidas (pelo incumprimento contratual).

E, por sua vez, quando os mesmos factos foram discutidos no processo de natureza criminal, a 3ª R., (mantendo a mesma postura), invocou, aliás, a reparação efectuada às ora recorrentes para fundamentar um pedido de atenuação especial da pena pelo crime de “burla” que cometeu, sendo, assim, esta conduta processual, naturalmente susceptível de sustentar uma natural situação objectiva de confiança, criando nas ora recorrentes a convicção de que a compensação recebida lhes era totalmente devida, (sendo de notar ainda que as partes que intervêm nos presentes autos intervieram também no dito processo-crime).

Dest’arte, tem-se por óbvio que seria inimaginável para as ora recorrentes supor – após o desfecho do aludido processo-crime – que a 3ª R., em patente oposição com a sua anterior conduta e postura processual, lhes pudesse vir a requerer a devolução das quantias que espontaneamente lhes tinha entregue.

Mostra-se-nos assim de considerar que a presente situação enquadra-se na “proibição do venire contra factum proprium”, pelo que, impõe-se impedir uma flagrante traição das legítimas expectativas das ora recorrentes, devendo operar o sentido correctivo do instituto do “abuso do direito”.

As expectativas criadas na esfera jurídica das recorrentes devem valer não só contra quem adopta uma atitude notoriamente contrária a outra sua anterior, mas também, naturalmente, contra quem pretenda actuar “em seu nome”, seja enquanto seu representante, seja enquanto titular de um invocado “direito de sub-rogação do credor ao devedor”, como é o caso das ora AA..

Com efeito, além de se inserir na vertente clássica do venire contra factum proprium, a “situação” em apreço pode ainda ter tutela na modalidade descrita por Menezes Cordeiro como “tu quoque”:

“Tu quoque (também tu!) exprime a máxima segundo a qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois e sem abuso:
– ou prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente;
– ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio;
– ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada”; (in ob. cit.).

Esta vertente do “venire contra factum proprium” estabelece (precisamente) que as partes não podem fazer-se valer de um vício a que deram causa para, no futuro, contrariar as expectativas legítimas geradas na contraparte da estabilidade da relação contratual.

Não se nos mostra pois de acolher “pretensões” que apenas apelam à ilegalidade do negócio exclusiva e dolosamente pelo próprio provocado, (no caso, pela 3ª R.), para contrariar e anular efeitos pelo mesmo no passado promovidos e já estabilizados na ordem jurídica, em detrimento dos interesses da parte que actuou em boa fé, (as ora recorrentes).

Face ao exposto, é manifesto que as pretensões das AA. não podem merecer acolhimento, sob pena de se estar a incentivar, e premiar, práticas manifestamente “contrárias à Lei”.

Seria o mesmo que se estar a dizer que “o crime compensa”!

Dest’arte, e por tudo o que se deixou exposto, a esta Instância resta deliberar como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentados expendidos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso das RR., revogando-se o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância para ficar a valer o decidido pelo Tribunal Judicial de Base.

Custas pelas recorrentes e recorridas na proporção dos seus respectivos decaimentos.

Registe e notifique.

Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao Tribunal Judicial de Base com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 26 de Setembro de 2025


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Song Man Lei
Choi Mou Pan

1 Já assim não será quanto a questões suscitadas pelos recorridos que obstem ao conhecimento do recurso.
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