Processo nº 54/2025
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), arguido com os restantes sinais dos autos, veio recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância datado de 27.02.2025, (Proc. n.° 906/2024), que confirmou o Acórdão do Tribunal Judicial de Base que o condenou como autor material da prática de 1 crime de “violação”, p. e p. pelo art. 157°, n°s 1 e 2 do C.P.M., na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, e no pagamento das quantias de HKD$5.000,00 e de MOP$30.000,00 à ofendida/demandante B (乙), fixadas a título de “danos patrimoniais” e “danos não patrimoniais”, respectivamente, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “violação das regras de experiência comum”, e, invocando também o art. 65°, n.° 2, al. c), d) e e) do C.P.M., pede ainda uma “redução” e “suspensão da execução” da sua pena; (cfr., fls. 1147 a 1166 e 1177 a 1189 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Em Resposta, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 1199 a 1203-v).
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Oportunamente, nesta Instância, juntou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer onde manteve o opinado em sede da sua resposta ao recurso; (cfr., fls. 1333 a 1333-v).
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Nada obstando, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como “provados” os seguintes factos que foram totalmente confirmados pelo Acórdão agora recorrido do Tribunal de Segunda Instância:
“1. O arguido A (doravante designado por "arguido") entrou em Macau cerca das 0h11 do dia 26 de Setembro de 2023, ele e filho C alojaram-se no quarto XXX do [Hotel(1)] (vide o registo de entrada nas fls. 34, o formulário de registo de check-in nas 6 e o auto de visionamento nas fls. 284 a 289v dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido no presente acórdão).
2. Por volta das 15h54 do mesmo dia, o arguido e a ofendida B (doravante designada por "ofendida") jogaram na mesma mesa de jogo no Casino do [Hotel(1)], durante o qual, o arguido tomou a iniciativa de dar uma leve palmada na mão direita da ofendida e a conversar com ela, foi assim que o arguido passou a conhecer a ofendida, posteriormente, enquanto os dois jogavam juntos no Casino do [Hotel(1)], o arguido tomou a iniciativa de tocar no corpo da ofendida por três vezes (vide auto de visionamento nas fls. 284 a 286 e 313 a 334 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido no presente acórdão).
3. Durante o qual, a ofendida por sugestão do arguido, os dois jogaram em conjunto, e cada um investiu HK$10.000 (ou seja, um capital total de HK$20.000 para jogo) e, no final perderam HK$10.000.
4. Às 22h08 do mesmo dia, a ofendida disse ao arguido que estava cansada e com sono queria regressar ao quarto alugado no [Hotel(2)] para descansar, por isso pediu a devolução do restante capital do jogo no valor de HK$5.000 em fichas pertencente à ofendida (vide registos do WeChat nas fls. 61 e verso dos autos; cujo teor se dá por integralmente reproduzido no presente acórdão), mas o arguido não a devolveu, ao invés, pediu à ofendida que fosse ao quarto XXX do [Hotel(1)], onde o arguido tinha alugado, para conversar. A ofendida recusou inicialmente o pedido do arguido, mas, para reaver os tais HK$5.000 em fichas, teve de concordar com o pedido do arguido.
5. Às 22h38 do mesmo dia, o arguido e a ofendida dirigiram-se ao quarto XXX do [Hotel(1)], durante o qual, o arguido disse ao seu filho C através do WeChat que "Não volte para o quarto" (vide registos do WeChat nas fls. 92 e 129v, auto de visionamento de fls. 287 e 376 a 378 do processo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido no presente acórdão).
6. Às 22h39 do mesmo dia, após o arguido e a ofendida terem entrado no quarto XXX acima referido (vide fls. foto n.º 361 nas fls. 379 dos autos), a ofendida sentou-se no sofá da sala de estar, e o arguido ficou meio ajoelhado em frente da ofendida e disse: "Sê minha namorada, não saias esta noite, dorme aqui!". A ofendida recusou o pedido do arguido, mas depois de ouvir, o arguido repetiu duas ou três vezes o mesmo pedido.
7. Após a ofendida se ter recusado por diversas vezes, o arguido agarrou subitamente os pulsos da ofendida com as duas mãos e pressionou-a no sofá (posição de homem por cima), de seguida, puxou na roupa da ofendida, baixou o sutiã dela e começou a beijá-la no pescoço, nos seios e nos mamilos, acariciando o peito e a parte inferior do corpo dela.
8. Durante a ocorrência acima, a ofendida não parava de balançar o seu corpo para se resistir e disse ao arguido: "Não faças isso! Se fizeres isso outra vez, vou chamar a polícia!". Mas o arguido ignorou-a, pelo que a ofendida agarrou o rosto do arguido com as mãos e mordeu-lhe para impedir o abuso, só que não conseguiu.
9. Devido à diferença de tamanho entre a ofendida e o arguido, a ofendida era constantemente pressionada pelo arguido, pelo que tinha de manter os joelhos e as pernas firmemente juntos e tentava deitar-se de lado para evitar que o arguido a invadisse ainda mais. O arguido agarrou os pulsos da ofendida com a mão esquerda ao mesmo tempo e, com a mão direita, alcançou a vagina da ofendida pela frente. No entanto, devido à resistência da ofendida, o arguido não conseguiu inserir os dedos na vagina.
10. Logo de seguida, o arguido estendeu a mão direita por trás do braço da ofendida e a partir da parte do braço da ofendida inseriu os dedos na sua vagina, tendo feito pelo menos quatro vezes com movimentos de vai e vem, causando dor e desconforto na sua vagina. Acto contínuo, a ofendida continuou a resistir e a balançar o corpo com força, até que conseguiu desembaraçar os dedos do arguido da sua vagina e da parte inferior do seu corpo.
11. Imediatamente a seguir, a ofendida aproveitou o arguido relaxado, empurrou-o com força, depois fugiu apressadamente do quarto. Na altura, o telemóvel e a mala da ofendida ainda se encontravam no quarto.
12. Tal acto violento do arguido fez rasgar a alça esquerda da blusa de cor de damasco da ofendida, bem como causou arranhões ou marcas vermelhas na clavícula direita, nos braços e no osso do punho do dedo mindinho da mão esquerda da ofendida (vide o relatório nas fls. 46 a 55v dos autos e auto de exame directo de fls. 64 a 65v, cujo teor se dá por integralmente reproduzido no presente acórdão).
13. Tal acto violento do arguido, causou também directamente múltiplas contusões dispersas nos membros superiores da ofendida, cuja recuperação necessitou cerca de dois dias, tais lesões causaram ofensa simples à integridade física da ofendida (vide exam clínico de medicina legal nas fls. 137 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido no presente acórdão).
14. Por outro lado, a ofendida durante a resistência também causou marcas de mordidela e arranhões evidentes no ombro esquerdo do arguido, bem como vermelhaço, inchaço ou arranhões no lado esquerdo do rosto (junto aos lábios), no lado esquerdo do pescoço, no peito, antebraço direito, cotovelo direito, perna direita e joelho direito (vide relatório nas fls. 69 a 81v dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido no presente acórdão).
15. Às 22h52 do mesmo dia, a ofendida, com despenteada, chorou e saiu apressadamente do quarto XXX do [Hotel(1)], dirigindo-se para a sala de espera do elevador. O arguido seguiu ofendida foi correndo atrás com a mala da ofendida, tentando colocar a mala na mão da ofendida e agarrou no braço dela para a impedir a sua fuga (vide auto de visionamento de fls. fls. 379 e 380 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido no presente acórdão).
16. Enquanto aguardava pelo elevador, a ofendida não parava de chorar, e o arguido puxou-a várias vezes, mas ela soltou-se. Após o elevador ter chegado ao 18º andar, onde se encontrava o referido quarto, o arguido pressionou os ombros da ofendida e obrigou-a a entrar no elevador, mantendo conversa com a ofendida, mas ela ignorou-o (vide auto de visionamento de fls. fls. 380v a 382 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido no presente acórdão).
17. Quando o elevador chegou ao piso do [átrio], a ofendida saiu imediatamente do elevador, e o arguido seguiu-a e agarrou-a no braço. A ofendida sacudiu imediatamente o arguido, ele agarrou novamente o braço da ofendida e a levou à força em direcção ao [átrio], durante o qual, a ofendida continuou a curvar-se para se livrar, mas ainda assim foi puxada à força pelo arguido (vide auto de visionamento nas fls. 383 a 388 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido no presente acórdão).
18. Após a ofendida ter sido puxada à força para o sofá no [átrio], o arguido continuava a tocá-lo à força, incluindo colocar a cabeça da recorrente nos seus ombros, agarrando-a pelos pulsos e os ombros, encostando-a ao peito e envolvendo o corpo dela com as mãos, etc., entretanto, todas as vezes a ofendida lutou para se soltar, que nada resultou, finalmente, o guarda de segurança do casino interveio, o arguido libertou a ofendida. Posteriormente a ofendida chamou a polícia para pedir ajuda (vide auto de visionamento de fls. 388v a 390 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido no presente acórdão).
19. Após a chegada da polícia ao local, o arguido foi conduzido à Polícia Judiciária. Por volta das 2h00 da manhã de 27 de Setembro de 2023, enquanto aguardava a investigação, o arguido transferiu RMB 43.000 ao seu filho C através do WeChat e depois ensinou-o a mentir à polícia, incluindo: "Basta dizer que não tinhas dinheiro", "Agora mesmo, uma mulher que estava no Casino do [Hotel(1)]o andar de baixo, quando ela veio ao quarto para extorquir 240.000 ao meu pai, ficou aqui e depois disse que meu pai queria violá-la", e também ensinou C a permanecer na esquadra (vide auto de leitura do telemóvel de fls. 119 e 123v a 126 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido no presente acórdão).
20. Entre as 16h31 e as 16h40 do dia 29 de Setembro de 2023, durante a realização da colheita de vestígios biológicas do arguido na Polícia Judiciária, este último, quando o investigador recolhia amostras de ADN das unhas dos cinco dedos da sua mão esquerda, dobrou repentinamente os dedos da mão direita e esfregou continuamente o dedo indicador da mão direita com o polegar da mesma mão. Em seguida, enfiou o polegar e o indicador da mão direita nas duas narinas, e depois o indicador e o dedo médio da mão direita nas duas narinas, chegando mesmo a enfiar o polegar direito na narina direita, com o objetivo de impedir a recolha de amostras e tentar apagar o ADN da vítima dos dedos da mão direita (ver auto de visionamento de imagens de videovigilância de fls. 164 a 282 dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido).
21. Após análise laboratorial efectuada pela Polícia Judiciária, foi detectado ADN do arguido na superfície exterior da parte frontal (peito) da camisola de alças da vítima, na alça esquerda rasgada, nas copas do sutiã e no fecho das costas, na parte frontal e na superfície exterior e interior da zona púbica da cueca, nas unhas da mão direita, na vulva e na vagina; e foi identificado ADN da vítima nas unhas da mão direita do arguido (ver relatório de fls. 417 dos autos e relatório pericial de fls. 419 a 435 dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido).
22. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de usar violência contra a vítima para a forçar a suportar a introdução de parte do seu corpo na vagina da vítima, sabendo claramente que o seu acto era proibido e punido por lei.
Provaram-se, ainda, os seguintes factos na audiência de julgamento:
- De acordo com o Certificado de Registo Criminal, o arguido é delinquente primário em Macau.
- O arguido declarou ser comerciante antes da colocação na prisão preventiva.
Foram provados os seguintes factos relevantes para a decisão constantes da contestação penal:
- O arguido e a vítima conheceram-se no dia 26 de Setembro de 2023, no Casino do [Hotel(1)] situado na Taipa. De acordo com o registo de videovigilância do hotel, antes de a vítima sair a chorar do quarto do arguido no referido hotel, eles davam-se bem, comportando-se de forma íntima, conversando e rindo, tendo havido vários contactos físicos, como dar as mãos, colocar o braço por cima do ombro e abraçar pela cintura (ver fls. 324 dos autos e seguintes).
- A própria vítima, às 22h08 do dia 26 de Setembro de 2023 (ver fls. 61 e verso, e fls. 122 e verso dos autos), enviou uma mensagem pelo WeChat ao arguido, dizendo que estava com sono.
- Das 22h31 às 22h39 do mesmo dia, ou seja, quando o arguido respondeu à vítima (ver fls. 61 e verso e fls. 122 e verso dos autos), até às 22h39, altura em que os dois entraram juntos no quarto XXX do [Hotel(1)]. Até ao momento em que os dois entraram no quarto, passaram cerca de 31 minutos. (sic)
- Em seguida, às 22h52 do mesmo dia, cerca de 13 minutos após ter entrado no quarto XXX do arguido (às 22h39), a vítima saiu rapidamente do referido quarto.
- Entre a última mensagem da vítima (22h08) e a entrada dos dois no quarto (22h39), decorreram 31 minutos.
Factos provados do pedido cível:
Após a audiência de julgamento, verifica-se que os factos invocados na petição cível correspondem aos factos dados como provados na acusação e são considerados provados.
Foram ainda provados os seguintes factos alegados no pedido cível:
- Em 26 de Setembro de 2023, a requerente cível aceitou a proposta do requerido cível de fazer apostas conjuntas, e cada um contribuiu com 10.000 dólares de Hong Kong (ou seja, um total de 20.000 dólares de Hong Kong para aposta), tendo acabado por perder 10.000 dólares de Hong Kong (ver relatório de auto de visionamento de imagens de videovigilância de fls. 285v a 286 dos autos).
- A requerente cível afirmou que queria recuperar o capital restante que lhe pertencia, ou seja, 5.000 dólares de Hong Kong em fichas (ver as conversas do WeChat de fls. 61 e verso dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido), mas o requerido cível não o devolveu.
- A requerente cível nasceu em 13 de Outubro de 1993 e é de nacionalidade chinesa. Antes da ocorrência dos factos do presente processo, tinha apenas 29 anos, era solteira e não estava grávida (sic).
- Os actos de agressão sexual cometidos pelo requerido cível contra a requerente cível causaram-lhe desconforto físico.
- A requerente cível sentiu medo e pânico durante todo o processo de resistência ao requerido cível, sofrendo dor física e mental. Mesmo quando saiu do quarto do hotel e chegou ao átrio, continuou a sentir medo, chorando e tentando libertar-se do requerido.
- Os actos acima mencionados do requerido cível também causaram lesões na clavícula direita, nos braços direito e esquerdo e na articulação do dedo mínimo da mão esquerda da requerente cível, causando-lhe dor. Foram-lhe diagnosticadas contusões nos dois membros superiores no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar Conde de S. Januário (ver fls. 46-55 e 140 dos autos)”; (cfr., fls. 898 a 902, 1156 a 1159 e 14 a 16-v do Apenso).
Do direito
3. Insurge-se o arguido A contra o decidido pelo Tribunal de Segunda Instância que, negando provimento ao recurso que tinha interposto do Acórdão do Tribunal Judicial de Base, confirmou a sua condenação como autor material da prática de 1 crime de “violação”, p. e p. pelo art. 157°, n°s 1 e 2 do C.P.M., na pena de 3 anos e 3 meses de prisão.
E, como se disse, imputa ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “violação das regras de experiência comum”, pedindo também uma “redução” e “suspensão” da dita pena.
Porém, e como pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público se deixou adiantado, necessária é a improcedência do presente recurso, cabendo notar que as “questões” pelo ora recorrente trazidas à apreciação deste Tribunal de Última Instância já tinham sido colocadas perante o Tribunal de Segunda Instância, onde foram, com o Acórdão agora recorrido, clara, adequada e correctamente apreciadas e solucionadas, nenhuma censura nos merecendo, apresentando-se-nos, aliás, de aqui adoptar e dar como reproduzido o que aí se expôs para efeitos da decisão que adiante se irá proferir sobre o presente recurso.
Contudo, e seja como for, eis o que se nos oferece dizer – acrescentar – em relação ao pelo ora recorrente imputado “erro notório na apreciação da prova” e “violação das regras de experiência comum”.
Ora, repetidamente temos afirmado que apenas existe o dito “erro” quando “se violam as “regras sobre o valor da prova vinculada”, as “regras de experiência” ou as “legis artis”, devendo ser um “erro ostensivo” e de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”, e, “assim, visto estando que o “erro notório na apreciação da prova” nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que o Tribunal devia ter dado relevância a determinado meio de prova – sem “especial valor probatório” – para formar a sua convicção (e assim dar como assente determinados factos), visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da “livre apreciação da prova” e de “livre convicção” do Tribunal”; (cfr., v.g., e para citar os mais recentes, os Ac. deste T.U.I. de 11.03.2022, Procs. n°s 8/2022 e 12/2022, de 27.07.2022, Proc. n.° 71/2022, de 21.09.2022, Proc. n.° 78/2022, de 13.01.2023, Proc. n.° 108/2022, de 03.03.2023, Proc. n.° 97/2022, de 29.09.2023, Procs. n°s 71/2023 e 81/2023, de 01.11.2023, Proc. n.° 82/2023, de 26.01.2024, Proc. n.° 98/2023-I, de 08.03.2024, Proc. n.° 9/2024-I, de 05.06.2024, Proc. n.° 43/2024, de 28.11.2024, Proc. n.° 109/2024 e de 20.02.2025, Proc. n.° 20/2025).
De facto, (e abreviando), não se pode olvidar que é na audiência de julgamento que se produzem e avaliam (todas) as provas, (cfr. art. 336° do C.P.P.M.), sendo da análise (global) do seu conjunto e no uso dos seus poderes de “livre apreciação da prova” conjugados com as regras da experiência, (cfr. art. 114° do mesmo código), que os julgadores adquirem a “convicção” sobre os factos objecto do processo, não bastando uma “dúvida pessoal”, ou uma mera “possibilidade ou probabilidade”, para se poder dizer que incorreu o Tribunal de julgamento no vício de “erro notório na apreciação da prova”.
Nesta conformidade, e, em face do “sentido” e “alcance” que se considera dever ter o conceito de “erro notório” (e que se deixou exposto), muito não se mostra necessário acrescentar.
Com efeito, a decisão proferida em sede da “matéria de facto” apresenta-se clara, objectiva e coerente, assentando numa “convicção lógica” e de forma explícita e convincentemente justificada na fundamentação exposta no Acórdão do Tribunal Judicial de Base, com a mesma não se tendo violado qualquer “regra sobre o valor das provas (tarifadas)” ou “regra de experiência” – que o arguido recorrente nem sequer identifica – e que, como se viu, foi, de forma correcta e integral, acolhida pelo Tribunal de Segunda Instância, nenhuma censura merecendo.
Verifica-se aliás que com recurso a um grande esforço de argumentação, e com uma grande e notável imaginação, tenta o arguido ora recorrente rebater grande parte da fundamentação pelo Tribunal Judicial de Base apresentada para justificar a sua convicção, avançando com “esclarecimentos” e “razões (para todos os gostos)”, mas com muito pouca utilidade e eficácia, limitando-se a controverter (pequenos) pormenores, sugerindo meras “possibilidades” e “probabilidades” que, na sua perspectiva, deviam inverter e invalidar (toda) a “versão da ofendida” que, em resultado de uma análise cuidada e global de todo o material probatório existente, foi a acolhida pelo Tribunal Judicial de Base, e, posteriormente, em recurso do Acórdão então recorrido, pelo Tribunal de Segunda Instância.
Ora, no caso dos autos, e em face do aludido “material probatório” produzido e invocado pelo Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância, cabe dizer que não se nos mostra de forma alguma viável acolher o que o ora recorrente avança para tentar justificar a sua reclamada inocência.
Alega, em síntese, o dito recorrente, que a “intimidade” que teve com a ofendida, foi consentida e de mútuo acordo, e que não cometeu os actos/factos que integram o crime de “violação” pelo qual foi condenado; (cfr., factos provados referenciados com os n°s 7 a 10, a fls. 4 e 5 deste aresto).
Porém, e como já se viu, inexiste – nos exactos termos que se deixaram expostos – qualquer “erro notório” ou “violação das regras de experiência comum” que o mesmo imputa a decisão condenatória.
Aliás, no caso dos autos, tal “erro” ou “violação” apenas poderia ocorrer se a decisão do Tribunal Judicial de Base e do Tribunal de Segunda Instância fosse outra que não com o sentido das proferidas e que se deixaram identificadas.
Importa pois ter presente que no processo de sindicância da decisão recorrida, o Tribunal de recurso não vai à procura de uma convicção autónoma, fundada na sua própria interpretação da prova.
Ao invés, o recurso destina-se a verificar se os factos em apreciação estão devidamente suportados pela análise crítica feita às provas.
Assim, o juízo decisório da matéria de facto só é susceptível de ser alterado em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objectivo, a um “juízo desrazoável” ou mesmo “arbitrário” da apreciação da prova produzida.
Ora, bem vista a “exposição de motivos” que fundamenta a decisão da matéria de facto, e o meticuloso exame crítico das provas, é aquela manifestamente insusceptível de reparo, e inexoravelmente infundada a discordância do recorrente, pois as provas de que o Tribunal a quo se serviu, valorando-as livremente e de acordo com as regras da experiência comum, são bastantes para que, de forma perfeitamente lógica e coerente, se deva concluir que os factos ocorreram pela forma expressa na sentença, pelo que improcede necessariamente a deduzida impugnação.
No caso, e da fundamentação exposta pelo Tribunal Judicial de Base consta, nomeadamente, este trecho que se nos apresenta especialmente relevante:
“No caso em apreço, embora o arguido e a vítima tenham apresentado versões diferentes dos factos, podemos analisar as provas objectivas dos autos para determinar as circunstâncias concretas e os detalhes.
Das filmagens de videovigilância pode-se ver que a vítima saiu apressadamente do quarto hoteleiro em questão, chorando, com a alça esquerda da camisola caído, e o arguido persegui-la. A vítima saiu a chorar, o arguido agarrou-a e, depois de ela se libertar, continuou a chorar. Os dois entraram no elevador, o arguido falou, mas a vítima não lhe deu atenção. Ao chegarem ao átrio do hotel, o arguido puxou a vítima com força, fazendo com que a bolsa dela caísse no chão. A vítima não apanhou a bolsa e continuou a andar chorando, e o arguido apanhou a bolsa e a seguiu. O arguido alcançou-a e puxou-a, arrastando-a em direcção ao “[Club]”. A vítima tentou se soltar, mas o arguido acabou por puxá-la para um sofá, onde parecia implorar à vítima, e os dois continuaram a empurrar e puxar mutuamente.
De acordo com o relatório médico-legal, a vítima apresentava várias marcas suspeitas de arranhões e manchas vermelhas na clavícula direita, nos braços e no osso do dedo mínimo da mão esquerda. A polícia descobriu que, além de marcas evidentes de mordidas no ombro esquerdo, o arguido apresentava inchaços ou arranhões na parte posterior do ombro esquerdo, no lado esquerdo do rosto (perto dos lábios), no lado esquerdo do pescoço, no peito, no antebraço direito, no cotovelo direito, na parte inferior da perna direita e no joelho direito.
(…)
De acordo com o arguido, quando a vítima exigiu 200 mil dólares para «fazer sexo» com ele, ele parou, não fez mais nada à vítima, nem tocou nas partes íntimas ou em outras partes do corpo dela; também negou ter tocado ou introduzido os dedos na vagina da vítima. No entanto, a versão do arguido é claramente incompatível com as provas, pois a polícia encontrou ADN dele na parte frontal e na superfície exterior e interior da zona púbica da calcinha da vítima, nas unhas da sua mão direita, assim como na vulva e na vagina. Acresce que, a vítima apresentava lesões claramente resultantes da resistência física.
(…)
Quanto à versão da vítima, as filmagens de videovigilância, o relatório médico e o relatório de análise de ADN dela corroboram o seu comportamento e as suas mudanças emocionais na altura. Além disso, a polícia encontrou ADN do arguido na parte da frente (ou seja, no peito) do top da vítima, na alça esquerda rasgada, nas copas do sutiã e no fecho das costas, na parte da frente e na parte externa e interna da zona púbica da calcinha, nas unhas da mão direita, na vulva e na vagina. E detectou-se ADN da vítima nas unhas da mão direita do arguido (embora o arguido tenha tentado destruir esta prova, não teve sucesso). Considerando ainda a atitude do arguido após os factos e o facto de ter instruído o filho a fornecer informações falsas à polícia, é evidente que, em comparação com as declarações do arguido, a versão da vítima é credível e deve ser aceite.
Face ao exposto, as provas constantes dos autos são suficientes para se dar como provado que o arguido cometeu o crime de que vinha acusado”; (cfr., fls. 906 a 907, 1162 a 1162-v e 20 a 21 Apenso).
E, em face do que se deixou exposto, vista está a solução para a questão aqui em causa.
Com efeito, é sabido que, por sistema, quer-se sempre atacar o “depoimento da própria vítima”, e, por isso, procuram-se nele pequenas “discrepâncias” para delas se extrapolar para alegadas “contradições insanáveis” na esperança de se chegar a uma absolvição.
Ora, importa não perder de vista que em situações em que em causa estão “crimes sexuais”, como é o caso, é normal a vítima revelar algumas “inibições” e “dificuldades” em relatar os factos, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhe provoca, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para a sua auto-imagem.
No caso, e recordando a exposição de “motivos” que fundamenta a decisão da matéria de facto, os “exames periciais” e o “exame crítico das provas”, designadamente, pelo indispensável apelo às regras da experiência, é manifestamente coerente, lógica e fundada a motivação decisória, e infundada a discordância do recorrente, tão só baseada em certas circunstâncias a que pretende atribuir um incomensurável valor na construção de dúvidas que, na realidade, não têm.
Como se referiu, em situações de crimes sexuais, e por força das circunstâncias, a sua prova é particularmente difícil, pois que escasseia a “prova directa”, e, regra geral, só têm conhecimento dos factos o arguido e a própria vítima, sendo que, por vezes, até a prova pericial é realizada tardiamente, quando já não existem vestígios dos abusos cometidos; (cfr., v.g., sobre o tema, I. Pereira Ramos in, “Valoração da prova nos crimes sexuais”, Rev. Julgar, Março de 2020, e C. Rabello e F. C. da Silva in, “Os crimes sexuais e o valor probatório da palavra da vítima”, 2022).
Daí que assuma especial relevância o “depoimento da vítima”, desde que, como é evidente, seja lógico e credível, e esteja em sintonia com as outras circunstâncias apuradas e com as regras da experiência comum, baseada nos conhecimentos que sobre a matéria vem sendo transmitida pelas investigações efectuadas.
Impõe-se, por sua vez, dizer também que a “certeza judicial” não se confunde com a “certeza absoluta”, “física” ou “matemática”, sendo antes uma “certeza empírica, moral, histórica”; (cfr., v.g., Climent Durán in, “La Prueba Penal”, pág. 615, onde considera também que “Pretender mais seria querer o impossível, porque não pode obter-se a verdade absoluta naqueles factos que saem do domínio da verdade histórica. Se a legislação recusasse sistematicamente admitir a certeza sempre que pudesse imaginar-se uma hipótese contrária, ficariam impunes os maiores culpados e, por conseguinte, a anarquia introduzir-se-ia fatalmente na sociedade”).
Como no mesmo sentido também já se entendeu:
“A verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos. Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais”; (cfr., Ac. do S.T.J. de 06.10.2010, Proc. n.° 936/08).
Constitui, assim, uma verdade “prático-jurídica”, em que a reconstrução que o Tribunal deve fazer para procurar determinar a verdade de uma narrativa de factos passados (e irrepetíveis) assenta, essencialmente, na utilização de “raciocínios indutivos” que, pela sua própria natureza, não propiciam “conclusões absolutas”.
Por outro lado, importa ter presente que há muito que ultrapassada está a regra do “unus testis, testis nullus”, pois que nada impede que o Tribunal forme a sua “convicção” com base no depoimento de um só declarante ou testemunha, sendo, como este Tribunal de Última Instância já o entendeu em processo da mesma natureza, “absurdo aceitar que não se pode dar como provado um determinado facto só porque o arguido não o admitiu”; (cfr., Ac. de 13.11.2013, Proc. n.° 62/2013, e mais recentemente, o de 05.06.2024, Proc. n.° 43/2024).
Dest’arte, mantendo-se intocada a “matéria de facto dada como provada”, a reclamada absolvição não pode deixar de soçobrar, porquanto, como se demonstra no Acórdão recorrido, estão efectivamente verificados todos os pressupostos da prática pelo arguido, ora recorrente, do crime pelo qual foi condenado.
–– Quanto à pena, igualmente pouco há a dizer.
Nos termos do art. 157° do C.P.M., (com a redacção dada pela Lei n.° 8/2017):
“1. Quem, por meio de violência, ameaça grave ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com terceiro, cópula, coito anal ou coito oral, é punido com pena de prisão de 3 a 12 anos.
2. Com a mesma pena é punido quem, nos termos previstos no número anterior, constranger outra pessoa a sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos”.
Ora, no caso, foi o ora recorrente punido com a pena de 3 anos e 3 meses de prisão, tão só, a “3 meses” do seu limite mínimo.
E, como se mostra evidente, totalmente inviável é assim a pelo ora recorrente pretendida “redução” da sua pena.
Na verdade, em “matéria de pena”, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, pelo que o Tribunal de recurso deve intervir na pena, (alterando-a), apenas e tão só, quando detectar desrespeito, incorrecções ou distorções dos princípios e normas legais pertinentes no processo de determinação da sanção, pois que o recurso não visa, nem pretende eliminar, a imprescindível margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de julgamento.
Como de forma repetida e firme temos vindo a entender: “Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”; (cfr., v.g., os Acs. de 27.04.2018, Proc. n.° 27/2018, de 30.07.2019, Proc. n.° 68/2019, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020-I, de 23.06.2021, Procs. n°s 72/2021-I e 84/2021, de 11.03.2022, Procs. n°s 8/2022, 12/2022 e 14/2022, de 18.05.2022, Proc. n.° 52/2022, de 15.03.2023, Proc. n.° 30/2023, de 29.09.2023, Proc. n.° 71/2023, de 28.11.2024, Proc. n.° 136/2024 e de 20.02.2025, Proc. n.° 20/2025).
Dest’arte, revelando-se pela decisão recorrida, a selecção (adequada) dos elementos factuais elegíveis, a identificação (correcta) das normas aplicáveis, o cumprimento (estrito) dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida e justa dos critérios legalmente atendíveis, imperativa é a confirmação da(s) pena(s) aplicada(s); (neste sentido, cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015, de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020, de 05.05.2021, Proc. n.° 40/2021, de 23.06.2021, Proc. n.° 72/2021-I, de 11.03.2022, Procs. n°s 8/2022, 12/2022 e 14/2022, de 15.03.2023, Proc. n.° 30/2023 e de 28.11.2024, Proc. n.° 136/2024).
Isto, dito, e prescrevendo o n.° 1 do art. 48° do C.P.M. que “O tribunal pode suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos (…)”, necessária é a total improcedência do presente recurso.
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam negar provimento ao presente recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido.
Custas pelo arguido, com taxa de justiça que se fixa em 12 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$3.500,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 11 de Julho de 2025
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Ho Wai Neng
Song Man Lei
Proc. 54/2025 Pág. 14
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