Processo nº 130/2022
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. No âmbito dos autos de acção declarativa sob a forma de processo ordinário que correu termos no Tribunal Judicial de Base – com o n.° CV1-12-0089-CAO – e em que era A., A (甲), e 1ª e 2° RR., B (乙) e C (丙), veio-se a proferir sentença com o seguinte dispositivo:
“(…) julga-se a acção parcialmente procedente porque parcialmente provada e em consequência:
- Anula-se a compra e venda da fracção autónoma “E7”, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nºXXXXXX a folhas 97 do Livro BXXX, celebrada entre a Autora e 1ª Ré por escritura pública de 14.09.2010, sendo consequentemente nulos todos os actos praticados na sequência desta declaração de nulidade, ordenando-se o cancelamento das inscrições efectuadas sob os nº XXXXXXG, nº XXXXXXG e a conversão em definitiva desta inscrição pela apresentação nº 17 de 22/11/2012.
- Absolver os Réus dos demais pedidos formulados pela Autora;
- Condenar a Autora a pagar em 45 dias ao 2º Réu a quantia de MOP1,248,276.66 (equivalente a HKD1,211,919.09);
- Absolver a Autora dos demais pedidos formulados pelo 2º Réu.
(…)”; (cfr., fls. 521 a 535 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Tempestivamente, do assim decidido recorreu o (2°) R. C, com este “recurso da sentença” do Tribunal Judicial de Base subindo um outro “interlocutório” antes interposto; (cfr., fls. 373 a 380 e 544 a 577).
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Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 18.07.2019, (Proc. n.° 221/2017), decidiu-se:
- “julgar procedente o recurso interlocutório (despacho que admitiu a junção de gravação telefónica aos autos para efeitos probatórios) interposto pelo Réu/Recorrente, revogando-se o despacho nos termos acima fixados, ordenando a sua devolução à apresentante”; e,
- “anular o acórdão que decidiu a matéria de facto e também a sentença final, mandando repetir o julgamento sem ponderar a prova considerada ilícita”; (cfr., fls. 711 a 732-v).
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Inconformada, recorreu a A. A, e por Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 16.03.2022, (Proc. n.° 134/2019), concedeu-se provimento ao dito recurso, ordenando-se a devolução dos autos ao Tribunal de Segunda Instância para se conhecer das (restantes) questões pelo 2° R. colocadas no seu recurso antes interposto; (cfr., fls. 784 a 795-v).
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Na sequência do assim decidido, proferiu o Tribunal de Segunda Instância o (2°) Acórdão de 28.07.2022, (Proc. n.° 221/2017), onde, na parte que agora interessa, tem o teor seguinte:
“(…)
Relativamente à imputação à sentença da nulidade por, em vez de declarar a nulidade da compra e venda celebrada entre a Autor e a 1ª Ré, a sentença mencionou “anula-se a compra e venda …”, nitidamente é um lapso de escrito, pois, tratando-se dum negócio simulado a consequência só pode ser nulo, assim, no texto da sentença consignou-se expressamente “De acordo com o nº 1 do artº 234º do C.Civ. a Autora tem legitimidade para arguir a simulação do negócio em causa.
Pelo que, sendo desnecessárias outras considerações se impõe julgar procedente o pedido de declaração de nulidade da compra e venda celebrada entre Autora e 1ª Ré.”.
Pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 570º/2 do CPC, procede-se à respectiva rectificação, nos termos de que, na sentença recorrida, na parte decisória, onde se lê “Anula-se a compra e venda da fracção “E7” do prédio…” deve ler-se: “Declara-se nula a compra e venda da fracção “E7” do prédio…”.
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Quanto ao demais, como os factos assentes não foram alterados, é da nossa convicção que o Tribunal a quo fez uma análise ponderada dos factos e uma aplicação correcta das normas jurídicas aplicáveis, tendo proferido uma decisão conscienciosa e legalmente fundamentada, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto no artigo 631º/5 do CPC, é de manter a decisão recorrida.
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Síntese conclusiva:
I – Uma vez que ficou provado que a Autora e a 1ª Ré, no intuito de enganar o banco e obter mais um empréstimo bancário, realizaram a escritura de compra e venda da fracção autónoma identificada nos autos, sem que alguma vez hajam tido a intenção de efectivamente a vender e a comprar, nem que haja sido pago o preço por tal transacção, nem tão pouco sido entregue a fracção ao comprador, havendo assim divergência entre a vontade real dos declarantes – aqui Autora e 1ª Ré – e a declaração, circunstância esta que cai na figura de simulação, o que gera nulidade do negócio.
II – Uma vez que a Autora invocou que o negócio celebrado entre si e a 1ª Ré é simulado e como tal nulo ao abrigo do artº 232º do CCM, e nos termos do artº 279º do CCM, a nulidade pode ser invocada a todo o tempo, torna-se inútil e infundada a apreciação preliminar da questão da excepção da caducidade do direito à acção, alegada pelos demandados.
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Tudo visto e analisado, resta decidir.
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V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em:
1) – Proceder à rectificação do 1º parágrafo da parte decisória da sentença recorrida nos termos consignados neste acórdão.
2) – Negar provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
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Custas pelo Recorrente.
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Registe e Notifique.
(…)”; (cfr., fls. 743 a 745-v).
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Ainda inconformado, traz o referido recorrente (2°) R., C, o presente recurso; (cfr., fls. 893 a 939).
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Após resposta da A., (cfr., fls. 951 a 955), vieram os autos a esta Instância.
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Por deliberação do Conselho dos Magistrados Judiciais de 26.03.2025 foram estes autos redistribuídos ao ora relator.
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Merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.
A tanto se passa.
Fundamentação
2. Vem o (2°) R. C recorrer do (2°) Acórdão – datado de 28.07.2022 – pelo Tribunal de Segunda Instância proferido em sede dos presentes autos.
Vejamos se tem razão.
Vale a pena um esclarecimento inicial.
Com a sua petição inicial apresentada no Tribunal Judicial de Base pediu a A. (A) que:
1) fosse declarado nulo o contrato de compra e venda da fracção autónoma “E7” (em causa nos autos), em 14.09.2010 entre a A. e a 1ª R., celebrado (por entender que padecia de um “vício da declaração da vontade da A., provocado por uma falsidade da dita 1ª R.”);
2) fosse declarado nulo o registo predial da mesma compra e venda;
3) fosse declarado nulo, ou anulável, o contrato-promessa de compra e venda em 23.05.2012 entre a 1ª e o 2° RR. celebrado, (porque entre ambos existiu uma mera relação de “mútuo” e não um verdadeiro “contrato de compra e venda”); e, considerando que, mesmo que em termos de forma se venha a apurar a existência duma relação de compra e venda entre os RR., terá sido posto à venda bem imóvel que não pertencia à promitente-vendedora, (o que deve redundar na nulidade ou anulabilidade do referido contrato, por esta carecer de legitimidade para o vender); devendo-se, consequentemente,
4) declarar a nulidade do registo provisório do dito contrato-promessa de compra e venda, (n.° XXXXXXG); e, para o caso de serem procedentes os pedidos anteriores, mas não sendo possível a restituição do imóvel em questão, pediu ainda,
5) a condenação dos RR. a pagar à A. uma quantia a título de indemnização não inferior a MOP$1.524.400,00.
Citada editalmente, a 1ª R. silenciou, (postura renovada pelo Ministério Público em sua representação).
O 2° R. defendeu-se por impugnação e por excepção, invocando a sua “ilegitimidade passiva”, a “caducidade do direito à acção” por parte da A., e a “inoponibilidade da (eventual) simulação entre a A. e a 1ª R. ao 2° R., enquanto terceiro de boa fé”.
Deduziu ainda reconvenção requerendo a condenação da A. na obrigação de lhe restituir a referida fracção autónoma “E7”, ou, em alternativa, na obrigação de lhe pagar as despesas em que incorreu por conta da compra do dito imóvel.
Em síntese, pediu que se proferisse decisão a:
1) declarar não provados os factos referidos pela A. na petição inicial, assim como improcedentes os respectivos pedidos;
2) declarar procedente a contestação do 2° R., com a sua imediata absolvição;
3) declarar provada a sua reconvenção, condenando a A. a lhe restituir a aludida fracção autónoma; ou, subsidiariamente,
4) a condenar a A. a lhe indemnizar pela sua perda de MOP$2.412.097,00; e a,
5) condenar a A. a lhe pagar as quantias de MOP$50.000,00 e MOP$30.000,00, devidas a título de indemnização, respectivamente, pelos seus danos patrimoniais e morais.
Oportunamente, proferiu-se despacho-saneador onde se julgou improcedente a excepção dilatória da “ilegitimidade do 2° R.”, relegando-se para final o conhecimento da excepção da “caducidade do direito à acção” da A..
E, após audiência de julgamento, foi proferida a atrás mencionada sentença onde, como se referiu, decidiu-se anular a compra e venda da referida fracção autónoma “E7”, entre a A. e a 1ª R. celebrada por escritura pública de 14.09.2010, declarando-se nulos todos os actos seguidamente praticados, (ordenando-se o cancelamento das inscrições efectuadas sob os n.° XXXXXXG e n.° XXXXXXG), absolvendo-se os RR. dos demais pedidos formulados pela A., e condenando-se a mesma A. a pagar ao 2° R. a quantia de MOP$1.248.276,66 (equivalente a HKD$1.211.919,09), absolvendo-se a mesma dos demais pedidos formulados pelo 2° R..
O entendimento sufragado pelo Tribunal Judicial de Base que levou ao assim decidido, deveu-se no facto de se ter dado como “provado” que a A. e a 1ª R. outorgaram a escritura de compra e venda da fracção autónoma em apreço com o “intuito de enganar o banco”, e, assim, “obter mais um empréstimo”, sem que alguma vez tivessem a “intenção de, efectivamente, a vender ou comprar”.
O mesmo Tribunal Judicial de Base extrai esta conclusão do facto de “não ter sido pago o preço pela transacção”, ou “entregue a fracção ao comprador”, (cfr., “alíneas A) a C), J), e M) a PP)” da matéria de facto), entendendo assim que o contrato de compra e venda entre a A. e a 1ª R. celebrado carecia dos seus “elementos essenciais”: ou seja, a “entrega da coisa” e o “pagamento do seu preço”.
De acordo com a sua leitura e interpretação da matéria de facto, as partes envolvidas, agindo segundo um plano previamente gizado, visavam obter de uma instituição bancária um empréstimo de maior valor do que aquele que a A. havia obtido aquando da sua aquisição da fracção, com este novo empréstimo saldando o anterior, e distribuindo o (restante) valor obtido entre si.
Nesta conformidade, e considerando ter existido uma “divergência entre a vontade real das declarantes e as suas declarações”, entendeu o Tribunal Judicial de Base que negócio padecia de “nulidade por simulação”.
E, dando aplicação do estatuído no art. 284° do C.C.M., considerou afastada a “protecção do 2° R. enquanto terceiro” afectado pela declaração da nulidade, dado que a sua aquisição havia sido posterior ao registo da acção por parte da A..
Inconformado com esta sentença, o 2° R. recorreu para o Tribunal de Segunda Instância, tendo subido também um anterior “recurso interlocutório” por si apresentado contra a admissibilidade da junção e valoração de um elemento de prova.
Numa 1ª pronúncia, o Tribunal de Segunda Instância julgou procedente o dito “recurso interlocutório”, revogando tal despacho e ordenando a devolução do documento à apresentante, com a anulação do Acórdão que decidiu a matéria de facto assim como a dita sentença final e ordenando a repetição do julgamento.
Tal decisão foi, como se referiu, revogada pelo Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 16.03.2022, (Proc. n.° 134/2019), com o qual se determinou que o elemento de prova em questão era admissível, decretando-se a devolução dos autos ao Tribunal de Segunda Instância para que fosse conhecido o recurso (final) pelo 2° R. apresentado.
Em novo Acórdão, o Tribunal de Segunda Instância entendeu que:
- uma vez que estava provado que a A. e a 1ª R., realizaram a escritura de compra e venda da fracção autónoma identificada nos autos sem que alguma vez tivessem a efectiva intenção de vender e comprar, (não tendo sido pago o preço por tal transacção, nem entregue a fracção), e havendo assim divergência entre a vontade real dos declarantes e as suas declarações, verificada estava uma “simulação”, com a consequente “nulidade do negócio”, (considerando também inútil e infundada a apreciação da questão da “excepção da caducidade do direito à acção” da A.).
Inconformado com esta decisão, traz agora o 2° R. o presente recurso para este Tribunal de Última Instância, e nas suas conclusões, suscita, em síntese, as questões seguintes:
- “inexistência de simulação no contrato de compra e venda entre a A. e a 1.ª R.”;
- “violação do princípio do dispositivo”;
- “inoponibilidade da simulação ao 2° R.”;
- “abuso de direito”; e,
- “erro na fixação da indemnização”.
Aqui chegados, relatado o processado, e identificadas as questões a apreciar e decidir, atentemos (para já) na “matéria de facto dada como provada”.
Dos factos
3. Está indicada como “provada” a seguinte matéria de facto:
“a) A, do sexo feminino, solteira, maior, nascida a 3 de Maio de 2010, adquiriu pela primeira vez uma fracção autónoma para habitação, sita em Macau, [Endereço(1)], 7º andar E, descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o número XXXXXX e com registo da propriedade nº XXXXXXG, tudo conforme consta da certidão a fls. 24 e seguintes que aqui se dá por integralmente reproduzido;
b) Para adquirir o imóvel acima aludido, a Autora requereu ao governo e foi autorizado a isenção de imposto do selo sobre a adquisição pela primeira vez a fracção autónoma para habitação e o Regime de bonificação ao crédito;
c) A Autora pediu empréstimo ao [Banco(1)], no valor de MOP620.000,00 (seiscentas e vinte mil patacas) e na Conservatória do Registo Predial ficou registado a hipoteca sob o número XXXXXXC;
d) Já se procedeu ao cancelamento do empréstimo e do registo de hipoteca acima aludidos;
e) Em 23 de Maio de 2012, a 1ª Ré e o 2º Réu celebraram o contrato promessa da compra e venda do imóvel em causa, com o preço de HKD1.100.000,00 (um milhão e cem mil dólares de Hong Kong), tendo as assinaturas apostas no contrato sido autenticadas na presença do notário privado D dando-se aqui por integralmente reproduzido o respectivo contrato cuja cópia consta de fls. 45 a 47;
f) No dia 25 de Maio 2012, o 2º Réu pagou o imposto do selo para aquisição do imóvel em causa na Direcção dos Serviços das Finanças; e procedeu ao registo provisório da promessa de compra e venda sob o número XXXXXXG;
g) Por volta do dia 12 de Outubro de 2012, a advogada E recebeu uma carta de autorização de empréstimo hipotecário enviado pelo [Banco(3)] em 9 de Outubro de 2012, sendo F e A novos beneficiários da hipoteca;
h) No dia 21 de Novembro de 2012, o 2º Réu celebrou a escritura da compra e venda com a procuração e transmitiu o referido imóvel para seu nome cujo teor da procuração e da escritura da compra e venda aqui se dá por integralmente reproduzido;
i) O 2º Réu liquidou o empréstimo ao [Banco(2)], no valor de HKD1.211.919,09 (um milhão, duzentas e onze mil, novecentos e dezanove dólares e nove centavos de Hong Kong);
j) A Autora sempre viveu na fracção autónoma em causa até hoje em dia;
k) O 2º Réu pagou os emolumentos para o registo de contrato da compra e venda e da escritura (os factos assentes e), f) e h)), no valor total de MOP30.819,00 (trinta mil e oitocentas e dezanove patacas), que inclui o imposto do selo no valor de MOP17.105,00 (dezassete mil e cento e cinco patacas), o registo provisório do contrato de compra e venda no valor de MOP3.866,00 (três mil, oitocentas e sessenta e seis patacas) e escritura de compra e venda no valor de MOP9.848,00 (nove mil, oitocentas e quarenta e oito patacas);
l) No dia 12 de Novembro de 2012, a Autora intentou a presente acção;
m) Em 2010 a Autora deixou de trabalhar;
n) A Autora já conhecia a 1ª Ré há um certo tempo e sabia que o marido da 1ª Ré era um mediador imobiliário que fazia compra e venda de imóveis e ajudava a pedir empréstimo com hipoteca aos bancos;
o) A Autora comunicou à 1ª Ré e marido desta que precisava de obter dinheiro;
p) A Autora estimava que a sua fracção autónoma valia HKD2.500.000,00 tendo uma hipoteca para garantia de um empréstimo de MOP620.000,00 pelo qual pagava uma amortização de cerca de MOP4.000,00 mensais;
q) Deste modo, a 1ª Ré disse à Autora que podia ajudar fazer o aumento do empréstimo hipotecário;
r) A 1ª Ré encarregou-se de conseguir a obtenção de um empréstimo hipotecário para a Autora obter o dinheiro;
s) A Autora acreditava na 1ª Ré que era capaz e havia forma de fazer o aumento do empréstimo hipotecário;
t) Assim sendo, a Autora assinou os documentos que foram apresentados pela 1ª Ré;
u) Conforme as instruções e a pedido da 1ª Ré, a Autora foi requerer o cancelamento da concessão de 4% da bonificação de juros de crédito no Instituto de Habitação, a fim de ser mais fácil obter a autorização do aumento do empréstimo hipotecário;
v) A 1ª Ré disse à Autora para se dirigir a determinado notário no dia 14 de Setembro de 2010 para assinar os documentos;
w) A Autora apareceu no dia combinado e foi a 1ª Ré que tratou de todas as formalidades e documentos;
x) A Autora assinou a escritura de compra e venda porque queria receber o dinheiro;
y) Aquando da assinatura da escritura de compra e venda e facilidades bancárias com hipoteca cuja cópia consta de folhas 108 a 116 a 1ª Ré disse à Autora que aquela era a única maneira de conseguirem obter um novo empréstimo;
z) A 1ª Ré disse à Autora que a única maneira de obterem o dinheiro era fazer uma compra e venda pedindo um empréstimo noutro banco e com o valor obtido pagarem o empréstimo anterior e ficarem com o remanescente do novo empréstimo no valor de HKD690.000,00;
aa) A 1ª Ré disse que esta era a forma de obterem o empréstimo, sendo uma situação provisória, pois logo que a Autora tivesse um emprego estável a Ré transmitia novamente o direito da propriedade da fracção autónoma para a Autora;
bb) A Autora assinou a escritura de compra e venda porque queria receber o dinheiro;
cc) Nesse dia, a Autora recebeu um cheque bancário, no valor de HKD690.000,00 (seiscentas e noventa mil dólares de Hong Kong) no escritório de advocacia;
dd) A Autora pagou o imposto do selo devido para realizar a escritura de compra e venda;
ee) No início de 2011 a Autora conseguiu arranjar um emprego;
ff) Até que nos finais de 2011, a Autora encontrou um trabalho que desempenhava as funções de gerente de serviços prestados para clientes e auferia mais de HKD15.000,00 (quinze mil dólares de Hong Kong), por mês;
gg) No início de 2012 a Autora pediu à 1ª Ré para lhe transmitir novamente o direito da propriedade da fracção autónoma em causa;
hh) A 1ª Ré aceitou e pediu à Autora para fornecer comprovativos de rendimento e cópia do bilhete de identidade para ajudar a fazer o pedido de empréstimo ao banco;
ii) A Autora disse que o valor do empréstimo era apenas de HKD1.400.000,00 (um milhão e quatrocentas mil dólares de Hong Kong);
jj) O valor da fracção autónoma em causa no mercado é de HKD3.000.000,00 (três milhões de dólares de Hong Kong);
kk) Para pedir o empréstimo, a 1ª Ré deu à Autora para assinar um contrato de promessa de compra e venda do tipo que a agência imobiliária do cônjuge desta usa, a fim de submeter ao banco para aprovação;
ll) Passados dois meses, a 1ª Ré disse à Autora que o pedido do empréstimo foi indeferido e ia tentar fazer noutro banco, por isso a transmissão do direito da propriedade da fracção autónoma foi adiada;
mm) A Autora achou que não era possível dirigindo-se ao referido banco para solicitar informação, tendo obtido a informação de que não tinham recebido o pedido de empréstimo do imóvel requerido pela Autora;
nn) Quando a Autora perguntou à 1ª Ré, esta disse que foi um erro do banco e que para obter a concessão do empréstimo do banco era apenas necessário a Autora assinar outro contrato de compra e venda segundo o modelo da agência imobiliária indicando um preço de compra e venda mais alto;
oo) A Autora assinou novamente o contrato promessa de compra e venda apresentado pela 1ª Ré para pedir o empréstimo bancário;
pp) No entanto, depois de a Autora ter assinado, a 1ª Ré não lhe voltou a contactar;
qq) Em meados de 2012, a Autora requereu a busca da fracção autónoma em causa e descobriu que o 2º Réu fez o registo do contrato promessa da compra e venda, na forma provisória, na Conservatória do Registo Predial;
rr) A Autora no dia 4 de Novembro de 2012 apresentou queixa na PJ;
ss) A 1ª Ré nunca entregou à Autora o preço da transacção;
tt) Em 21.11.2012 o saldo da conta de empréstimo em nome da 1ª Ré no [Banco(2)] era de HKD1.211.919,09;
uu) A fracção autónoma em causa tem o valor actual de HKD3.000.000,00 (três milhões dólares de Hong Kong);
vv) A 1ª Ré e o 2º Réu determinaram o preço da compra e venda do imóvel em causa por HKD1.100.000,00 (um milhão e cem mil dólares de Hong Kong);
ww) No dia 12 de Junho de 2012, a 1ª Ré passou uma procuração ao 2º Réu, para que este pudesse fazer a escritura da fracção autónoma a que se reportam os autos”; (cfr., fls. 825-v a 827-v).
Do direito
4. Exposta que também já ficou a “matéria de facto dada como provada”, vejamos agora que solução dar ao presente recurso.
–– Da alegada “inexistência de simulação”.
Entende o recorrente que não se encontram preenchidos os necessários pressupostos legais da declarada “simulação”, pedindo a esta Instância recursória que anule o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância, que confirmou o assim decidido pelo Tribunal Judicial de Base.
Sobre a “questão” colocada incide o art. 232° do C.C.M. onde se estatui que:
“1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
2. O negócio simulado é nulo”.
E, dispõe também o art. 233° do mesmo C.C.M. que:
“1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.
2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.
3. Para efeitos do número anterior, considera-se suficiente a observância no negócio simulado da forma exigida para o dissimulado, contanto que as razões determinantes da forma do negócio dissimulado não se oponham a essa validade”.
Pronunciando-se sobre idêntica matéria já teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de ponderar também no que segue:
“Ora, aquando da redacção do art. 240° do C.C. português, com a mesma redacção do art. 232° do nosso C.C.M., o Prof. Rui Alarcão teceu o seguinte comentário: “(…) pode definir-se a simulação como a «divergência intencional entre a vontade a declaração, procedente de acordo entre o declarante e o declaratário e determinada pelo intuito de enganar terceiros». É a noção que temos por preferível doutrinalmente, e que, embora esteja longe de poder considerar-se pacificamente aceite – sobretudo pelos ataques que têm sido dirigidos à tese da divergência entre a vontade e a declaração – corresponde aos ensinamentos da doutrina tradicional e preponderante designadamente entre nós”; (in “Simulação”, B.M.J. 84°-305, e do mesmo autor in, “Do negócio jurídico”, B.M.J. 105°-256).
Significa isto que há uma “simulação” quando, num negócio, existe uma divergência intencional entre a vontade e a declaração que é realizada pelas partes, em resultado de uma combinação ou conluio que determina a falsidade da declaração, também designado por “acordo simulatório”, (“pactum simulationis”), que tem como escopo, intenção, intuito ou propósito, enganar ou prejudicar terceiros.
Neste particular, é importante referir que, muitas vezes, não existe intenção fraudulenta, ou seja, de “prejudicar terceiros” (chamado “animus nocendi”) mas, continuará a existir simulação se, entre as partes, existir o propósito de “enganar terceiros” (chamado de “animus decipiendi”).
E sintetizando o conceito de simulação considerava o Prof. Mota Pinto que a mesma integrava os seguintes elementos:
- a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração;
- o acordo entre declarante e declaratário, (“acordo simulatório”), o que, evidentemente, não exclui a possibilidade de simulação nos negócios unilaterais; e,
- o intuito de enganar terceiros; (cfr., v.g., António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto in, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., pág. 466, podendo-se também neste sentido, ver os Acs. deste T.U.I. de 11.03.2015, Proc. n.° 10/2015, de 13.05.2015, Proc. n.° 69/2014 e de 27.07.2022, Proc. n.° 54/2022).
Neste último elemento, e como se referiu, pode distinguir-se o mero intuito de enganar, mas sem prejudicar, (“animus decipiendi”), que faz apodar a simulação de inocente, e o “animus nocendi”, (de prejudicar terceiros ou de violar norma legal), geradora da simulação fraudulenta.
O Prof. Pedro Pais de Vasconcelos considera, por sua vez, que “na simulação é de crucial importância o pacto simulatório. Trata-se de um acordo, de um pacto, que tem como conteúdo a estipulação entre as partes da criação de uma aparência negocial, da exteriorização de um negócio falso e a regulação do relacionamento entre o negócio aparente assim exteriorizado e o negócio real. A esta aparência negocial assim criado pode corresponder um negócio verdadeiro que as partes mantém oculto ou pode também não corresponder qualquer negócio”; (in “Teoria Geral do Direito Civil”, 8ª ed., 2015, pág. 598, podendo-se, também ver Rui Alarcão in, “Simulação”, e “Do Negócio Jurídico”, B.M.J. 84°-305 e 105°-256).
No primeiro caso há “simulação relativa”, enquanto no segundo existe “simulação absoluta”, onde só existe o negócio simulado.
Na relativa, além deste, (que o Prof. Manuel de Andrade apoda de “patente”, “ostensivo”, “decorativo”, “aparente” ou “fictício” – in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, pág. 171 e segs.), há um “negócio oculto” (“latente”, disfarçado, “real”), que é o “dissimulado”.
“A simulação absoluta verifica-se quando os simuladores fingem concluir um determinado negócio, e na realidade nenhum negócio querem celebrar”; (cfr., v.g., Henrich Ewald Hörster in, “A Parte Geral do Código Civil Português”, 1992, pág. 536).
Na verdade, a simulação traduz um fingimento que visa criar a aparência de um negócio que não foi querido pelas partes, (“simulação absoluta”), ou que foi celebrado para esconder um outro, esse sim querido pelas partes, (“simulação relativa”), com o intuito de enganar terceiros; (cfr., v.g., Mota Pinto in, “Teoria Geral do Direito Civil”, 1976, pág. 357 e segs.).
Assim, (e em síntese), o negócio simulado tem, por definição, uma aparência distinta da realizada, quer porque não existe em absoluto, quer porque é distinto do modo como aparece: ou seja, sob a aparência de um negócio normal, existe um outro propósito negocial.
Ao invocar a simulação, o simulador afirma que a vontade declarada intencionalmente não correspondeu à vontade representada e querida pelas partes, através de um concerto defraudatório, emitindo intencionalmente declarações não consonantes com aquilo que efectivamente queriam e com o fito de enganar terceiros.
Consubstanciando uma conduta desviante, mas, (infelizmente, bastante), institucionalizada, a simulação é tratada pelo legislador com desvalor porquanto constitui uma “forma”, “meio” ou “instrumento” para enganar terceiros, (“animus decipiendi”), e, até frequentemente, de os prejudicar (“animus nocendi”)”; (cfr., Ac. de 09.04.2025, Proc. n.° 129/2024).
Isto dito e sintetizando, decorre assim da primeira das atrás normas transcritas – o art. 232° – que a “simulação” supõe a alegação e prova de factos que integrem:
- “a existência de uma declaração negocial”;
- “um acordo entre declarante e declaratário, com o intuito de enganar terceiros”; e,
- “a existência de divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante”, sendo requisitos de “verificação cumulativa”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 11.03.2015, Proc. n.° 10/2015, de 13.05.2015, Proc. n.° 69/2014, de 27.07.2022, Proc. n.° 54/2022, de 08.11.2023, Proc. n.° 73/2021 e o atrás referido Ac. de 09.04.2025, Proc. n.° 129/2024).
Havendo várias modalidades de simulação, uma das distinções faz-se entre “simulação inocente” e “simulação fraudulenta”, consoante houve mero intuito de enganar terceiros, sem intenção de os prejudicar, ou intuito de prejudicar terceiros ilicitamente ou de contornar qualquer norma da lei, sendo a simulação fraudulenta mais frequente.
Outra distinção estabelece-se entre “simulação absoluta” e “simulação relativa”.
Na primeira, (na “absoluta”) as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem nenhum negócio.
Há apenas o negócio simulado, e, por detrás dele, nada mais.
Na simulação “relativa”, as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico, e na realidade, querem um outro negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso.
Por detrás do negócio simulado, (ou aparente, fictício ou ostensivo), há um negócio dissimulado (ou real, latente ou oculto).
A distinção entre simulação “absoluta” e simulação “relativa”, tem a importância derivada de esta última gerar um “problema” solucionado pelo atrás também transcrito art. 233°, n.° 2, ou seja, enquanto na simulação “absoluta”, se não põe nenhum problema, por detrás dele não existir qualquer outro negócio, na simulação “relativa”, surge o “problema” do tratamento a dar ao negócio dissimulado (ou real) que fica a descoberto com a nulidade do negócio simulado.
Isto é, enquanto o “negócio simulado” está ferido de “nulidade”, o “negócio dissimulado” merece o tratamento jurídico que lhe corresponderia se tivesse sido concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado; (cfr., v.g., Carlos Alberto da Mota Pinto in, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed., 1992, pág. 472 a 474).
In casu, a “questão” consiste em saber se houve uma “simulação do negócio entre a A. e a 1ª R.”, do qual resultou a aludida compra e venda da fracção autónoma dos autos.
Como se viu, entendeu o Tribunal recorrido que: “Uma vez que ficou provado que a Autora e a 1ª Ré, no intuito de enganar o banco e obter mais um empréstimo bancário, realizaram a escritura de compra e venda da fracção autónoma identificada nos autos, sem que alguma vez hajam tido a intenção de efectivamente a vender e a comprar, nem que haja sido pago o preço por tal transacção, nem tão pouco sido entregue a fracção ao comprador, havendo assim divergência entre a vontade real dos declarantes – aqui Autora e 1ª Ré – e a declaração, circunstância esta que cai na figura de simulação, o que gera nulidade do negócio”; (cfr., fls. 830-v).
No seu recurso, esforça-se o ora recorrente em demonstrar a “inexistência de qualquer acordo entre declarante e declaratário”, de um “intuito comum de enganar terceiros” e, ainda, de qualquer “divergência entre a declaração negocial e a vontade real dos declarantes”.
Em face dos “factos julgado provados”, importa então apreciar se encontram preenchidos os referidos “elementos – cumulativos – do negócio simulado”, tendo em conta a tríplice vertente atrás sintetizada: o “acordo entre declarante e declaratário”; o “intuito de enganar terceiros”; e a “intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 27.07.2022, Proc. n.° 254/2022 e de 09.04.2025, Proc. n.° 129/2024).
–– Vejamos então, começando-se pelo “acordo entre declarante e declaratário”.
Pois bem, como já tivemos oportunidade de considerar:
“Na simulação é de crucial importância o “pacto simulatório”.
Trata-se de um acordo, (de um pacto), que tem como conteúdo a estipulação entre as partes da criação de uma aparência negocial, da exteriorização de um negócio falso e a regulação do relacionamento entre o negócio aparente assim exteriorizado e o negócio real.
A esta aparência negocial assim criada pode corresponder um negócio verdadeiro que as partes mantêm oculto ou pode também não corresponder qualquer negócio.
No primeiro caso há “simulação relativa”, enquanto no segundo existe “simulação absoluta”, onde só existe o negócio simulado”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 27.07.2022, Proc. n.° 54/2022).
Ora, relativamente ao “negócio” dos autos, e pelas Instâncias recorridas declarado de “simulado”, é incontroversa a existência de “declarações negociais” das partes envolvidas, que se revelam no próprio contrato de compra e venda da fracção autónoma celebrado entre a A. e a 1ª R..
As declarações negociais integram a venda da fracção autónoma “E7” para a 1ª R., concluída através da escritura pública de compra e venda e facilidades bancárias com hipoteca de 14.09.2010; (cfr., fls. 108 a 116).
Nesse documento consta que a A. declarou: “Que, pela presente escritura e pelo preço de 1.000.000,00 patacas, já recebido, vende à segunda outorgante – a 1ª R. – a fracção autónoma designada por “E7” do 7° andar “E”, para habitação, com o valor matricial de 263.620,00 patacas, (…)”; (cfr., fls. 110).
Por seu turno, consta também que a 1ª R.: “aceita esta venda nos termos exarados, (…)”; (cfr., fls. 111).
E, para além do assim declarado, importa ainda atentar na “matéria de facto dada como provada” e que a seguir se volta a transcrever dada a sua grande relevância para melhor se contextualizar a venda da dita fracção autónoma da A. para a 1ª R..
É, (essencialmente), a seguinte:
“m) Em 2010 a Autora deixou de trabalhar;
n) A Autora já conhecia a 1ª Ré há um certo tempo e sabia que o marido da 1ª Ré era um mediador imobiliário que fazia compra e venda de imóveis e ajudava a pedir empréstimo com hipoteca aos bancos;
o) A Autora comunicou à 1ª Ré e marido desta que precisava de obter dinheiro;
p) A Autora estimava que a sua fracção autónoma valia HKD2.500.000,00 tendo uma hipoteca para garantia de um empréstimo de MOP620.000,00 pelo qual pagava uma amortização de cerca de MOP4.000,00 mensais;
q) Deste modo, a 1ª Ré disse à Autora que podia ajudar fazer o aumento do empréstimo hipotecário;
r) A 1ª Ré encarregou-se de conseguir a obtenção de um empréstimo hipotecário para a Autora obter o dinheiro;
s) A Autora acreditava na 1ª Ré que era capaz e havia forma de fazer o aumento do empréstimo hipotecário;
t) Assim sendo, a Autora assinou os documentos que foram apresentados pela 1ª Ré;
u) Conforme as instruções e a pedido da 1ª Ré, a Autora foi requerer o cancelamento da concessão de 4% da bonificação de juros de crédito no Instituto de Habitação, a fim de ser mais fácil obter a autorização do aumento do empréstimo hipotecário;
v) A 1ª Ré disse à Autora para se dirigir a determinado notário no dia 14 de Setembro de 2010 para assinar os documentos;
w) A Autora apareceu no dia combinado e foi a 1ª Ré que tratou de todas as formalidades e documentos;
x) A Autora assinou a escritura de compra e venda porque queria receber o dinheiro;
y) Aquando da assinatura da escritura de compra e venda e facilidades bancárias com hipoteca cuja cópia consta de folhas 108 a 116 a 1ª Ré disse à Autora que aquela era a única maneira de conseguirem obter um novo empréstimo;
z) A 1ª Ré disse à Autora que a única maneira de obterem o dinheiro era fazer uma compra e venda pedindo um empréstimo noutro banco e com o valor obtido pagarem o empréstimo anterior e ficarem com o remanescente do novo empréstimo no valor de HKD690.000,00;
aa) A 1ª Ré disse que esta era a forma de obterem o empréstimo, sendo uma situação provisória, pois logo que a Autora tivesse um emprego estável a Ré transmitia novamente o direito da propriedade da fracção autónoma para a Autora;
bb) A Autora assinou a escritura de compra e venda porque queria receber o dinheiro;
cc) Nesse dia, a Autora recebeu um cheque bancário, no valor de HKD690.000,00 (seiscentas e noventa mil dólares de Hong Kong) no escritório de advocacia;
dd) A Autora pagou o imposto do selo devido para realizar a escritura de compra e venda”; (cfr., pág. 16 a 17 deste aresto).
Ora, como cremos que resulta destes “factos” dados como provados, razoável é concluir que, num primeiro momento, a A. apenas pretendia contrair um “novo empréstimo bancário”, contra o reforço da hipoteca constituída sobre o seu imóvel.
Contudo, após ter sido “informada” pela 1ª R. de que a única maneira de obter um seu pretendido novo empréstimo seria através da “venda da propriedade”, (em si), a A. acabou por aquiescer em vendê-la.
Para a tranquilizar, a 1ª R. assegurou-lhe até que a situação seria apenas “provisória”, e que, quando a A. obtivesse um emprego com (alguma) estabilidade, (a 1ª R.) transmitir-lhe-ia, novamente, o “direito de propriedade” do dito imóvel.
Ficou, nesses exactos termos, acordada a “venda” (supostamente) provisória do imóvel, e fixada uma condição para a sua “retransmissão” (à A.), sendo de acentuar que a A., apenas aceitou vender o imóvel porque queria ter acesso aos fundos que este negócio envolveria.
Resumidamente, e cremos que, em bom rigor, este é o “acordo de compra e venda” entre A. e 1ª R. firmado, (e que, por isso, desde já se adianta, não apresenta traços de um “acordo simulatório”, como mais adiante se verá de forma mais evidente).
–– Quanto ao “intuito de enganar terceiros”.
Pois bem, como se deixou consignado, a “simulação” implica sempre a “intenção de enganar terceiros por parte dos declarantes”.
Pelas Instâncias recorridas deu-se (também) como provado o “intuito de enganar o banco e obter mais um empréstimo bancário”.
Contudo, a nossa apreciação da atrás já transcrita “matéria de facto” não nos permite concluir que existiu qualquer conluio entre os declarantes com o “intuito de se enganar uma instituição bancária”, (designadamente, para dessa forma, contraírem um empréstimo que, presumidamente, e doutra forma, não lograriam obter).
Desde logo, nenhum facto desvela a intenção de se defraudar qualquer instituição bancária, seja aquela que através do negócio viu a sua dívida saldada e a correspondente hipoteca distratada, (e que, assim e naturalmente, jamais poderia ter ficado “prejudicada” com o negócio), seja aquela que concedeu as novas facilidades bancárias contra a constituição duma nova hipoteca.
Por sua vez, nem sequer foram alegados, e muito menos provados, “factos” que demonstrem a (mínima) necessidade de se defraudar a instituição bancária para se atingir qualquer desiderato, (mais ou menos reprovável).
Da mesma forma, não existem também “factos” que demonstram sequer a “vantagem” de se ter optado pela celebração do negócio de compra e venda alegadamente simulado para se obter o “novo empréstimo”, ao invés de, para o efeito, se constituir – simplesmente – uma “nova hipoteca” sobre o imóvel, (que, até dado o seu “valor de marcado”, era inteiramente viável).
E, em nossa opinião, o que os “factos provados” – efectivamente – evidenciam, é um “esquema” da 1ª R. para decepcionar – “burlar” – a A., e, eventualmente, também os terceiros que viessem a sub-adquirir o imóvel (da 1ª R.).
Aliás, tal até transparece (claramente) da narrativa apurada pela Instância de julgamento, e, manifesta-se, nitidamente, na identificação das “partes” que ora se digladiam nos presentes autos: a A. e o 2° R., (o subadquirente do imóvel).
Não deve também ser ignorado, ou descurado, o facto de – ao contrário do que resulta da síntese conclusiva do Acórdão recorrido – jamais ter a A. apelado na presente acção – na sua petição inicial, causa de pedir, pedidos ou ulteriores expedientes e alegações – à existência de uma “simulação” no negócio que celebrou com a 1ª R..
Com efeito, a A. sempre alegou que havia sido – apenas – “defraudada” pela 1ª R. para lhe transmitir a propriedade da fracção autónoma, posição mais recentemente reforçada em sede da sua resposta ao presente recurso (pelo 2° R.) trazido à apreciação deste Tribunal de Última Instância; (cfr., em especial, as concl. 22ª a 33ª da dita resposta ao presente recurso).
Esta mesma “versão” dos acontecimentos consubstanciou até uma “queixa-crime” apresentada contra a 1ª R., (cfr., “alínea RR)” da matéria de facto atrás transcrita), da qual resultou a condenação, não só desta última, mas também a do seu marido, pela prática, em co-autoria, do crime de “burla qualificada”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. a) do C.P.M., tendo ambos sido condenados em penas de 4 anos e 6 meses de prisão efectiva pela sua participação nos “factos” discutidos nos presentes autos; (à margem de outras condenações em que também incorreram nesse processo-crime, podendo-se ver a sentença proferida pelo 4° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base nos autos com n.° CR4-16-0108-PCC, reproduzida a fls. 676 a 698-v).
Dest’arte, e simplificando, apresenta-se-nos claro que não se deve confundir a realidade factual de uma “simulação” – que pressupõe um “acordo entre as partes” no “intuito de ludibriar terceiros” – de uma “burla” – que implica a “decepção” e o “prejuízo do próprio declarante”.
Com tal, não se quer de forma alguma dizer que ao Tribunal Judicial de Base não assistisse o poder de decretar, oficiosamente, (desde que provada estivesse a factualidade necessária, cfr., art. 279° do C.C.M.), a “nulidade do (dito) negócio celebrado por simulação”.
Porém, e como cremos ter-se deixado evidenciado, sucede apenas que, nos presentes autos, não estão “provados” os elementos típicos de uma “simulação”.
Na verdade, e como se constata da matéria de facto dada como provada, ao adquirir para si a fracção autónoma, a A. contraiu um empréstimo bancário junto do “[BANCO(1)]”, no total de MOP$620.000,00, (chamando-se desde já a atenção para um manifesto lapsus calami que se impõe corrigir, para evitar futuros equívocos, pois que, ao contrário do que vem reflectido na “alínea A)” da matéria de facto, a dita A. – A – não “nasceu a 03.05.2010”, reportando-se tal “data” ao momento da “aquisição da fracção da fracção autónoma em discussão nos presentes autos” – cfr., fls. 36, art. 1° da p.i. – impondo-se, assim, a rectificação – oficiosa – da alínea A) da factualidade assente, dela passando a constar que: “A, do sexo feminino, solteira, maior, nascida a 3 de Maio de 2010, adquiriu pela primeira vez uma fracção autónoma para habitação, sita em Macau, na Rua…”).
Por sua vez, (e como se viu), após adquirir a dita fracção, a A. pediu a assistência da 1ª R. para lhe ajudar a obter um “novo empréstimo”, disponibilizando-se a reforçar o valor da hipoteca sobre a sua fracção.
E, na versão sufragada no Acórdão recorrido, por detrás da venda fictícia da fracção autónoma para a 1ª R., estaria dissimulada a concessão e obtenção de um simples novo empréstimo à A., que até se havia mostrado disposta a reforçar a sua hipoteca para o efeito.
A constituição da nova hipoteca para garantir a reposição do (1°) empréstimo, estaria, então, prevista tanto para o “negócio simulado”, (a venda da fracção para a 1ª R. e a contracção de um empréstimo por si), como para o “negócio dissimulado”, (a contracção do empréstimo por parte da A.).
Em ambos os casos, constituir-se-ia sobre o mesmo bem imóvel idêntica garantia real, apenas diferindo a identidade da devedora.
Porém, e em nossa opinião, não parece que o banco tenha sido de qualquer forma defraudado com a “trama” desvendada nas Instâncias recorridas, pois que conservou, integralmente, a sua “garantia real”, permanecendo totalmente imune às vicissitudes do registo do bem imóvel, (tanto no suposto negócio simulado, como no hipotético negócio dissimulado).
Com efeito, in casu, e atenta a “factualidade dada como provada”, não se encontra de forma alguma demonstrado que a (qualidade da) “pessoa”, ou “património da 1ª R.”, tenha tido alguma influência na decisão do banco em conceder, ou não, o empréstimo, certo sendo também que não se encontra adquirido na dita matéria de facto qualquer “intenção ou estratagema utilizado para enganar o banco”.
Aliás, (não só não se encontram provados tais factos), nem se consegue conceber a “necessidade” de levar a cabo qualquer “artimanha” para tentar obter um “novo empréstimo” contra o reforço ou a constituição de uma nova hipoteca sobre o imóvel.
Vale a pena ter aqui presente que o “empréstimo” foi concedido contra a constituição duma hipoteca numa fracção autónoma cujo “valor” era superior do que as facilidades bancárias concedidas, pois que, como resulta dos factos elencados nas “alíneas P), JJ) e UU)”:
- “A Autora estimava que a sua fracção autónoma valia HKD2.500.000,00 tendo uma hipoteca para garantia de um empréstimo de MOP620.000,00 pelo qual pagava uma amortização de cerca de MOP4.000,00 mensais”, (cfr., alínea P) da matéria de facto);
- “O valor da fracção autónoma em causa no mercado é de HKD3.000.000,00 (três milhões de dólares de Hong Kong)”; (cfr., alínea JJ) da matéria de facto); e que,
- “A fracção autónoma em causa tem o valor actual de HKD3.000.000,00 (três milhões dólares de Hong Kong)”; (cfr., alínea UU) da matéria de facto).
E, como se mostra evidente, é óbvio que o banco efectuou uma prévia (e rigorosa) avaliação do bem imóvel, sendo (igualmente) natural que tenha (certamente) concluído no sentido de que o “valor do imóvel” seria suficiente para garantir as facilidades bancárias concedidas, não se encontrando sequer provado qualquer (outro) facto que tenha entrado na ponderação do banco, e muito menos que o empréstimo só pudesse ser concedido em face de uma “alienação da fracção autónoma da A. para a 1ª R.”.
Com efeito, e com todo o respeito o dizemos, parece-nos um tanto rebuscado o esforço de se traçar sobre a narrativa existente uma “simulação”, (que, como se viu, nem sequer foi alegada), e que em nada altera a situação efectiva do “terceiro” supostamente enganado acerca dum elemento que não se provou ter sido (minimamente) essencial para a conclusão do negócio.
Nesta conformidade, e constatando-se a pelo 2° R., ora recorrente, alegada “inexistência de simulação”, impõe-se, igualmente, concluir que nenhuma utilidade existe em se apreciar e decidir os seus restantes argumentos e questões colocadas no presente recurso, pois que, perante a dita “inexistência do acordo simulatório” entre a A. e a 1ª R., necessária é a revogação das decisões proferidas pelas Instâncias recorridas, com a procedência do pedido apresentado no sentido de ao mesmo 2° R., (recorrente), ser reconhecido o seu direito de propriedade sobre a fracção autónoma em questão nos autos, condenando-se a A. a lhe restituir a posse da mesma.
Decisão
5. Em face de todo o expendido, em conferência, acordam conceder provimento ao presente recurso, revogando a decisão do Tribunal de Segunda Instância, reconhecendo-se o direito de propriedade do 2° R. (reconvinte) C sobre a fracção autónoma dos autos, condenando-se a A. A a lhe restituir a sua posse, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas.
Custas, em todas as Instâncias, pela A. recorrida (A).
Registe e notifique.
Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 14 de Novembro de 2025
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Song Man Lei
Tam Hio Wa
Proc. 130/2022 Pág. 18
Proc. 130/2022 Pág. 19