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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil para uniformização de jurisprudência
N.º 16 / 2009

Recorrente: A
Recorridas: B
     C




   
   Em relação ao acórdão deste Tribunal de 17 de Julho de 2009 e ao que recaiu sobre o pedido de esclarecimento, vem agora a requerida dos presentes autos de providência cautelar interpor o recurso para uniformização de jurisprudência e subsidiariamente apresentar o pedido de reforma da sentença quanto a custas.
   
   
   A. Recurso para uniformização de jurisprudência
   A recorrente alega duas questões fundamentais de direito relativamente às quais entende que o teor do acórdão ora recorrido se mostra em contradição com outros acórdãos indicados:
   Por um lado, a questão de saber se o conhecimento da verificação e regularidade dos pressupostos processuais (designadamente, os de legitimidade das partes e de utilidade originária da lide) constitui, ou não, questão cujo conhecimento deva preceder qualquer juízo e pronúncia quanto à inutilidade superveniente da lide e à determinação da consequente responsabilidade por custas;
   Por outro lado, a questão de saber se a execução de uma deliberação social constitui necessariamente causa de extinção da lide cautelar de suspensão de execução (ou de suspensão da eficácia) de deliberação social e, em consequência, causa, a final, de imputação das custas à parte demandada.
   
   Quanto à primeira questão, a recorrente entende que a decisão do acórdão recorrido está em contradição com a proferida nos acórdãos do antigo Tribunal Superior de Justiça de Macau de 18 de Junho de 1997 do processo n.º 640 e de 10 de Novembro de 1999 do processo n.º 1243. Em relação à segunda questão, constitui acórdão de fundamento o proferido pelo Tribunal de Última Instância em 30 de Julho de 2008 no processo n.º 13/2008.
   
   No entanto, o presente recurso para uniformização de jurisprudência não é de admitir.
   
   1. Sobre a primeira questão – Possibilidade de um acórdão do antigo Tribunal Superior de Justiça de Macau constituir acórdão de fundamento no recurso previsto na al. d) do n.º 2 do art.º 583.º do CPC.
   Em relação aos recursos para uniformização de jurisprudência, prescrevem assim as al.s d) e e) do n.º 2 do art.º 583.º do Código de Processo Civil (CPC), na redacção dada pelo art.º 80.º da Lei n.º 9/1999 com a rectificação publicada no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau de 5 de Junho de 2000, I série:
   “2. O recurso é sempre admissível, independentemente do valor:
   a) ...
   b) ...
   c) ...
   d) Se se tratar de acórdão do Tribunal de Última Instância que esteja em contradição com outro proferido por este tribunal no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se aquele acórdão for conforme com jurisprudência obrigatória;
   e) Se se tratar de acórdão do Tribunal de Segunda Instância que, não admitindo recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, esteja em contradição com outro por ele proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se aquele acórdão for conforme com jurisprudência obrigatória.”
   
   Tratam-se de novos recursos estabelecidos pela alteração introduzida pela Lei n.° 9/1999, ou seja, na altura da instalação da RAEM e consequentemente da criação dos Tribunal de Segunda Instância e Tribunal de Última Instância.
   O antigo Tribunal Superior de Justiça foi entretanto extinto e a nova organização dos tribunais passou a ser prevista na referida Lei n.° 9/1999 (Lei de Bases de Organização Judiciária), de acordo com o comando do art.° 8.°, n.° 2 da Lei n.° 1/1999, a conhecida Lei de Reunificação, esta, juntamente com a Lei Básica da RAEM, como critério seleccionador e medida da transição condicional do sistema judicial, do anterior Território de Macau até à actual RAEM.
   No novo sistema orgânico judicial, além dos Tribunais de Primeira Instância e do Tribunal de Segunda Instância, foi criado ainda o Tribunal de Última Instância (art.° 10.°, n.° 1 da Lei n.° 9/1999).
   E nos termos do n.° 3 do Anexo IV da Lei de Reunificação, as designações do antigo Tribunal Superior de Justiça constantes das normas legais são entendidas como Tribunal de Segunda Instância.
   Assim, o actual Tribunal de Segunda Instância corresponde, em princípio, ao antigo Tribunal Superior de Justiça, ambos como tribunais de segunda instância.
   
   Então, o recurso previsto na referida al. d) do n.º 2 do art.º 583.º do CPC destina-se apenas a dirimir as contradições entre decisões judiciais do mesmo Tribunal de Última Instância e o recurso previsto na al. e) do mesmo número visa as contradições entre sentenças do mesmo Tribunal de Segunda Instância e eventualmente entre as decisões do Tribunal de Segunda Instância e do antigo Tribunal Superior de Justiça.
   Mesmo que se entenda que o antigo Tribunal Superior de Justiça funcionava em maior parte dos casos como tribunal que julgava em última instância no então Território de Macau, nada resulta da referida al. d) que aquele Tribunal Superior de Justiça pudesse equiparar ao actual Tribunal de Última Instância para efeitos de que um acórdão daquele Tribunal constituísse o acórdão de fundamento no recurso para a uniformização de jurisprudência previsto nesta al. d).
   
   A recorrente, na resposta ao convite para pronunciar sobre a não admissibilidade do presente recurso, chamou o acórdão do Tribunal de Última Instância proferido no processo n.° 1/2001 para sustentar que a uniformização de jurisprudência também justifica em relação aos acórdãos proferidos pelo antigo Tribunal Superior de Justiça.
   
   Mas este argumento não procede, simplesmente porque o fundamento e objectivo do acórdão do processo n.º 1/2001 de 17 de Janeiro de 2001 são diferentes.
   Estava em causa a interpretação do n.º 2 do art.º 419.º do Código de Processo Penal (CPP) na redacção dada pelo art.º 73.º da Lei n.º 9/1999 com a rectificação publicada no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau de 24 de Janeiro de 2000, I série.
   Prescreve assim a referida norma:
   “2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.”
   Naquele acórdão, o Tribunal de Última Instância entendeu que esta norma, ao referir que “quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal”, permite que um acórdão do antigo Tribunal Superior de Justiça de Macau, correspondente ao actual Tribunal de Segunda Instância, constituir o acórdão de fundamento, no pressuposto da continuidade da força jurisdicional das sentenças do então Tribunal Superior de Justiça de Macau dentro dos parâmetros da Lei Básica da RAEM.
   
   Nunca foi negada, a priori, a possibilidade de proceder à uniformização de jurisprudência em relação a acórdãos proferidos pelo antigo Tribunal Superior de Justiça de Macau. Simplesmente, é necessário atender sempre aos requisitos de admissão dos respectivos recursos.
   O n.º 2 do art.º 419.º do CPP prevê expressamente como pressuposto do recurso extraordinário penal de fixação de jurisprudência a oposição entre acórdãos do mesmo Tribunal de Segunda Instância ou entre acórdãos deste e do Tribunal de Última Instância, diferente do que está previsto na al. d) do n.º 2 do art.º 583.º do CPC, em que tal recurso civil de uniformização de jurisprudência resolve apenas a contradição entre as decisões do mesmo Tribunal de Última Instância. E é de notar que a ambas as normas foram dadas as referidas redacções pela Lei n.° 9/1999 ao mesmo tempo.
   
   Por outro lado, a alteração à al. b) do n.º 6 do art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 55/99/M introduzida pelo art.º 79.º da Lei n. 9/1999, que se visa os assentos proferidos pelo então Tribunal Superior de Justiça de Macau, destina-se apenas a ressalvar os efeitos destes assentos para poder continuar a valer como tal no ordenamento jurídico da RAEM. A intenção legislativa deste previsão é bastante clara e daí não se pode tirar a conclusão de que o legislador da RAEM pretende equiparar o antigo Tribunal Superior de Justiça de Macau com o actual Tribunal de Última Instância em qualquer caso.
   
   De qualquer modo, não parece justificável permitir recorrer um acórdão do Tribunal de Última Instância para uniformização de jurisprudência quando esteja em oposição com um outro acórdão, mas do Tribunal de Segunda Instância ou do antigo Tribunal Superior de Justiça.
   
   2. Sobre a primeira questão – Identidade da questão fundamental de direito e a existência de contradição de decisões
   De qualquer modo, em relação ao acórdão do anterior Tribunal Superior de Justiça proferido no processo n.º 640, não há identidade de questão fundamental de direito nem contradição das decisões.
   É certo que, quer no acórdão ora recorrido, quer no mencionado acórdão de fundamento do processo n.º 640, foi suscitada a questão de omissão de pronúncia e é convergentemente entendida que só ocorre esta causa de nulidade da sentença se o tribunal não conhece determinada questão que devia apreciar.
   Por outro lado, a omissão de pronúncia alegada no recurso que deu origem ao presente acórdão recorrido relaciona-se com o objecto do recurso ampliado (ilegitimidade das requerentes da providência cautelar e a inutilidade originária da lide por falta de interesse processual) em que o Tribunal de Segunda Instância julgou extinta a instância recursória por inutilidade superveniente da lide.
   E no processo n.º 640, a questão de omissão de pronúncia prende-se com a matéria de uma cláusula do contrato-promessa que podia determinar a responsabilidade do incumprimento do contrato, numa acção em que se pedia a declaração de resolução do contrato-promessa e a condenação da restituição do sinal passado.
   Assim, é evidente que não se está perante a mesma questão fundamental de direito, tornando-se impossível a comparação das duas decisões e a eventual conclusão de contradição.
   
   Relativamente a outro acórdão de fundamento do então Tribunal Superior de Justiça proferido no processo n.º 1243, também não há identidade de questão jurídica. Neste a questão suscitada no recurso residia na responsabilidade do pagamento das custas do processo executivo em que o executado procedeu ao pagamento da quantia exequenda. Foi decidido que ficará a cargo do exequente se o pagamento foi feito antes da propositura da acção executiva e a cargo do executado no caso contrário.
   
   3. Sobre a segunda questão – Identidade da questão fundamental de direito
   Relativamente à segunda questão em que a recorrente considera existir contradição de decisões, isto é, a questão de saber se a execução de uma deliberação social constitui necessariamente causa de extinção da lide cautelar de suspensão de execução (ou de suspensão da eficácia) de deliberação social e de imputação das custas à parte demandada, entendemos que não se está perante a mesma questão fundamental de direito.
   
   Na realidade, o acórdão ora recorrido e o acórdão de fundamento do Tribunal de Última Instância do processo n.° 13/2008 incidem questões jurídicas diferentes.
   No acórdão recorrido, foi abordada a questão de saber se a sociedade demandada, ao proceder à execução da deliberação social, objecto da respectiva providência cautelar requerida, e assim determinou a inutilidade superveniente da lide, deve ser responsabilizada pelas custas do respectivo processo cautelar, para além das questões da admissibilidade do recurso e de nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
   No acórdão de fundamento, em que as requerentes e a sociedade requerida são as mesmas, estava em discussão a verificação do requisito de dano apreciável para as requerentes com a execução da deliberação da requerida, como fundamento do decretamento da providência cautelar de suspensão de deliberações sociais.
   Neste acórdão, o Tribunal de Última Instância confirmou a não verificação do referido requisito, tendo em consideração nomeadamente que os meros factos sobre os lucros da sociedade requerida e da requerente em anos anteriores e a intenção da requerida de constituir uma nova sociedade para ser cotada na Bolsa de Valores de Hong Kong são insusceptíveis de fundamentar o alegado dano apreciável das requerentes.
   Mas da matéria de facto provada naquele processo não consta que a nova sociedade subsidiária da requerida já estava cotada na Bolsa de Valores de Hong Kong, ao contrário do que alega pela recorrente no requerimento da interposição do presente recurso. Pois não é verdade que “facto este que era do conhecimento dos autos por força e nos termos do disposto no art.° 433.° do Código de Processo Civil.”
   Assim, é manifesto que não estamos perante a mesma questão fundamental de direito nos dois acórdãos em causa.
   
   Em consequência, o presente recurso para uniformização de jurisprudência não pode ser admitido.
   
   
   B. Reforma da sentença quanto às custas
   A recorrente considera que a condenação no pagamento das custas nos presentes autos não se mostre conforme com o princípio da equidade do processo, pedindo que seja isenta das custas do processo ou com redução equitativa.
   
   Ora, no acórdão cuja reforma quanto às custas se pede, a responsabilidade das custas do processo por inutilidade superveniente da lide é a questão principal do recurso para o Tribunal de Última Instância.
   O art.° 572.° do CPC permite requerer no tribunal que proferiu a sentença a sua reforma quanto a custas. Mas estas custas devem ser entendidas como as custas da respectiva instância, atendendo a natureza deste meio de reacção por parte interessada, que se trata de reforma e não de recurso.
   Tal como foi explicado pelo Prof. Alberto dos Reis:
   “Entendeu-se que para caso tão simples, como é, por via de regra, a interpretação e aplicação da lei sobre custas e multa, convinha pôr à disposição do litigante prejudicado um meio rápido, económico e expedito de obter a reparação do erro cometido.”1
   Se por acaso o objecto da sentença consiste precisamente nas custas do processo, não se pode aproveitar o meio expedito de reapreciação das custas da instância para voltar a discutir o objecto do recurso, sob pena de criar mais um grau de recurso para examinar de novo o próprio objecto do recurso.
   
   
   
   Decisão
   Face ao exposto, acordam em não admitir o recurso para uniformização de jurisprudência e indeferir o pedido de reforma quanto a custas.
   Custas pela recorrente.
   
   
   Aos 17 de Dezembro de 2009.



Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, p. 153.
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Processo n.º 16 / 2009 11