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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil
N.º 30 / 2009

Recorrentes: Companhia A
  B
Recorridas: as mesmas





   1. Relatório
   Companhia A interpôs a acção comum de declaração do processo ordinário contra C, D, B, restantes membros da B e incertos, pedindo que os réus sejam condenados a abster-se de se manifestar dentro ou nas imediações do A e/ou do [Endereço(1)], local onde se situa a sede da autora, bem como de qualquer modo a proferirem expressões ofensivas da reputação e bom nome da autora e da sua administração, e a pagar à autora indemnizações pelos danos patrimoniais e não patrimoniais a ser liquidados em execução de sentença.
   Em relação aos quarto réus, os seja, aos restantes membros da B, a petição inicial foi indeferida liminarmente.
   Julgada a acção no Tribunal Judicial de Base, foi proferida a sentença no sentido de interditar a 3ª ré B e seus membros se manifestar dentro ou nas imediações do A e/ou do [Endereço(1)] e proferir expressões ofensivas da reputação e bom nome da autora e da sua administração; e de condenar a mesma 3ª ré a pagar à autora MOP$136.110,00 a título de indemnização pelos danos patrimoniais e MOP$200.000,00 pelos danos não patrimoniais. Os demais pedidos da autora foram julgados improcedentes com a absolvição dos réus. Os 1º e 2º réus forma absolvidos dos pedidos.
   Desta sentença recorreram a autora principalmente e a 3ª ré subordinadamente. Por acórdão proferido no processo n.º 722/2008, o Tribunal de Segunda Instância negou provimento ao recurso da autora e concedeu parcial provimento ao recurso da 3ª ré, revogando a sentença recorrida nas partes que interditou os membros da 3ª ré a manifestar-se dentro ou nas imediação do A e/ou do [Endereço(1)] e proferir expressões ofensivas da reputação e bom nome da autora e da sua administração e que condenou a 3ª ré a pagar à autora um valor de MOP$136.110,00 a título de indemnização pelos danos patrimoniais, confirmando o restante decidido.
   Vêm agora a autora recorrer deste acórdão para o Tribunal de Última Instância, bem como a 3ª ré recorrer igualmente a título subordinado.
   A autora recorrente apresentou as seguintes conclusões nas alegações do recurso:
   “1. A recorrente no momento em que deu entrada à petição inicial, e por não lhe ser possível quantificar de modo definitivo as consequências dos factos ilícitos, formulou um pedido genérico, admissível nos termos do disposto no art.° 392.° n.° 1, al. b) do Código de Processo Civil e art.° 563.° do Código Civil;
   2. No caso concreto foram alegados e ficaram provados factos que revelam e consubstanciam a existência de danos patrimoniais sofridos pela recorrente, no entanto, não sendo possível proceder à sua quantificação, justificava-se e impunha-se que o Tribunal a quo tivesse remetido a sua liquidação para a execução da sentença, nos termos do disposto no art.o 564.o, n.o 2, do Código de Processo Civil;
   3. Contudo, entendeu o Tribunal recorrido que a ocupação do espaço da recorrente não revela a existência de danos patrimoniais passíveis de serem relegados para execução de sentença, violando assim os art.os 558.o, n.o 1 do Código Civil e 564.o, n.o 2, do Código de Processo Civil;
   4. No que respeita à ocupação da A, foi entendimento do Tribunal a quo que esta, por si, não justificaria uma indemnização, apesar de os eventos descritos na factualidade dada por assente revelarem a privação do uso do seu espaço comercial, durante dois dias, com a consequente lesão dos interesses patrimoniais da recorrente;
   5. Os actos de vandalismo praticados pelos indivíduos que agiram a coberto da associação ré, durante a ocupação não autorizada da propriedade da recorrente, são ilícitos e injustificáveis, uma vez que resultaram na violação dos direitos da recorrente sobre o seu património, privando-a da sua disponibilidade;
   6. A privação do uso e fruição do espaço comercial da recorrente teve, como efeito colateral e imediato, a supressão da disponibilidade material do bem, ou seja, a rotura irreparável do exercício do direito de fruição, durante dois dias consecutivos e, em consequência, implicou a perda da utilidade económica das instalações ilicitamente ocupadas;
   7. O dano ocorre logo que à privação corresponda a falta de aproveitamento económico do bem por parte do titular do bem atingido, sendo que a privação do uso reflecte o corte definitivo e irrecuperável dos direitos de propriedade, o que justifica o ressarcimento destinado a suprir a modificação negativa que a privação do uso determinou na relação entre o lesado e o seu património;
   8. Considerando que, nos termos do art.o 558.o do Código Civil, o dever de indemnizar compreende o prejuízo causado e os benefícios económicos que a recorrente deixou de obter em consequência da lesão, o Tribunal a quo, ao excluir da indemnização por danos patrimoniais, a ocupação ilícita violou o supra referido preceito legal;
   9. Quando a violação do direito de propriedade e a decorrente privação do uso e fruição derivem da prática de acto ilícito pode ser formulado o pedido de indemnização, como forma de repor a situação anterior e de reparar os prejuízos decorrentes dessa privação;
   10. Provado que a indisponibilidade foi causa directa de prejuízos resultantes da redução ou perda de receitas, da perda de oportunidades de negócio ou da desvalorização do bem, não se questiona o direito de indemnização atinente aos lucros cessantes;
   11. Pode dizer-se que, no caso sub judice, a privação na disponibilidade material e jurídica do bem constituiu uma evidente perturbação da relação entre a recorrente e o seu património, privando-a do seu uso normal e das correspondentes utilidades que poderiam ser proporcionadas, o que não pode deixar de ser monetariamente compensado; e
   12. Tendo em conta que a recorrente exerce uma actividade lucrativa, a privação do uso do seu espaço comercial não pode deixar de ser ressarcida através da atribuição de uma indemnização, cuja quantificação deve ser relegada para liquidação em execução de sentença.”
   Pedindo que seja dado provimento ao recurso e revogado o acórdão recorrido.
   
   A 3ª ré recorrente formulou as seguintes conclusões nas alegações do seu recurso subordinado:
   “1. Os prejuízos estritamente morais implicados na ofensa do bom nome e reputação apenas calham aos indivíduos e às pessoas morais, para os quais a dimensão ética é importante, independentemente do dinheiro que poderá valer, não às sociedades comerciais, pois a estas o bom nome e a reputação apenas interessam na justa medida da vantagem económica que deles podem tirar, apenas podendo produzir a ofensa do crédito e do bom nome, para as sociedades comerciais, quando muito, um dano patrimonial indirecto, isto é, o reflexo negativo que, na respectiva potencialidade de lucro, opera aquela ofensa.
   2. A lesão do bom nome, honorabilidade e/ou imagem da recorrida não é por isso susceptível de fundamentar qualquer indemnização a título de dano não patrimonial, pelo que o tribunal a quo incorreu, nesta parte em erro de julgamento por incorrecta interpretação dos art.°s 144.°, n.° 2 e 73.° do CCM, que retiram às pessoas colectivas a capacidade de gozo dos direitos que sejam inseparáveis da personalidade singular.”
   Pedindo que seja dado provimento ao recurso subordinado.
   
   Ambas as partes apresentaram contra-alegações.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Matéria de factos
   Foram considerados provados os seguintes factos pelas instâncias:
   - “A autora é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços ao investimento nas áreas da indústria e do comércio (conforme doc. n.º 1, junto com o procedimento cautelar comum, que correu termos no Tribunal Judicial de Base sob o n.º CV1-06-0007-CPV, no 1.º Juízo Cível, e que aqui se dá por reproduzido, devendo entender-se que as referências aqui feitas a documentos e a sua numeração correspondem aos anteriormente juntos àquele procedimento) (Facto do artigo 1º).
   - No âmbito da sua actividade, a autora é a concessionária, por arrendamento, do espaço denominado A, também conhecido como “A”, sito em [Endereço(2)], conforme resulta da certidão predial junta como doc. n.º 2 (Facto do artigo 2º).
   - A “A”, aberta ao público em Janeiro de 2006, é um dos principais pólos de atracção turística de Macau, recebendo vários visitantes diariamente que ali encontram um espaço comercial, com lojas, restaurantes, bares, esplanadas e um amplo espaço de lazer e entretenimento (Facto do artigo 3º).
   - No dia 8 de Maio de 2006, por volta das 5h00 da manhã, foi encontrado inconsciente, no recinto da “A”, um jovem de 19 anos, E, que viria a falecer num hospital, três dias depois (Facto do artigo 4º).
   - O 1.º réu, C, é pai do jovem E, conforme certidão de nascimento junta como doc. n.º 3 e simultaneamente Vice-Presidente da Direcção da 3.ª ré, B, conforme consta da certidão emitida pela Direcção dos Serviços de Identificação junta como doc. n.º 4 (Facto do artigo 5º).
   - Na sequência desse acontecimento trágico a autora recebeu, por telecópia, em 12 de Junho de 2006, um documento assinado pelo 1.º réu solicitando autorização para a realização, no dia seguinte, de uma pequena cerimónia religiosa, conforme documento junto como n.º 5 (Facto do artigo 6º).
   - No próprio dia, o Chefe do Departamento de Segurança da autora, o Sr. F, agendou uma reunião com o Sr. C, na qual estiveram ainda presentes quatro outras pessoas cuja identidade se desconhece (Facto do artigo 7º).
   - Tomando em consideração a dor e a fé da família do jovem, nessa reunião foi manifestado o consentimento da autora para a realização da cerimónia solicitada e entregue uma comunicação escrita, demonstrando solidariedade pela dor da família e disponibilizando a sua ajuda e colaboração na busca das circunstâncias que levaram à morte do jovem, conforme consta do doc. n.º 6 (Facto do artigo 8º).
   - Às 15h00 do dia 13 de Junho de 2006, a cerimónia religiosa teve lugar na Piazza, dentro do recinto e junto à entrada principal da “A”, local onde o jovem foi encontrado inconsciente (Facto do artigo 9º).
   - A breve cerimónia de homenagem ao falecido foi realizada por cerca de uma centena de pessoas, decorreu de forma ordeira e pacata e terminou pelas 16h30 (Facto do artigo 10º).
   - No dia 19 de Junho de 2006, a autora recebeu uma nova carta, com o conteúdo de fls. 56, sem endereço remetente identificado, uma vez mais assinada pelo 1º réu, C (cfr. doc. n.º 7) (Facto do artigo 11º).
   - Nessa carta anuncia-se, a realização de uma série de novas cerimónias de homenagem fúnebre, a realizar na “A”, em datas a anunciar à autora e à imprensa internacional (Facto do artigo 12º).
   - No dia 30 de Junho de 2006, pelas 17h00, apareceu a “A” um grupo de pessoas transportada pelos autocarros para se manifestar pela morte do jovem E e na qualidade de membros da B (Facto dos artigos 14º e 15º).
   - Foi montada uma tenda dentro da praça, com a fotografia do jovem falecido, bem como a do seu avô – que os manifestantes referem ter morrido de desgosto pelo alegado homicídio do neto – colocadas em local bem visível, velas foram acesas, arranjos de flores ordenados pelo local, esteiras colocadas no chão e cartazes espalhados, ao longo de toda a praça, acusando a autora e a sua Administração de saberem o motivo da morte do jovem E (Facto do artigo 17º).
   - Este foi o início de dois dias de ininterrupta ocupação de alguns espaços da autora (Facto do artigo 18º).
   - Ao longo destes dois dias e de modo sucessivo:
   * foram feitos discursos e gritadas palavras de ordem, com o uso de megafones;
   * embandeirados cartazes difamatórios e acusatórios sobre a Administração da “A”;
   * ocorreram diversas manifestações e marchas de protestos em algumas ruas do recinto, acompanhadas de elementos tocando tambores e cornetas;
   * foram distribuídos panfletos; e
   * espalhados centenas de milhares de papéis de culto por toda a área do recinto,
   (cfr. as duas gravações de vídeo juntas como docs. n.ºs 8 e 9, e fotografias juntas como docs. n.ºs 10 a 44) (Facto do artigo 19º).
   - Das fotografias e das gravações vídeo, destacam-se:
   * os autocarros e a chegada de várias pessoas apoiantes;
   * a tenda e todo o estandarte montado nas instalações da autora;
   * os cartazes acusatórios com palavras de ordem;
   * a distribuição de panfletos, em particular aos visitantes da A;
   * as constantes marchas pelo recinto; e
   * o enorme barulho provocado e os distúrbios causados no local da cerimónia (Facto do artigo 21º).
   - Dos cartazes visíveis nas fotografias e nos vídeos juntos evidenciam-se, entre outras, as seguintes frases:
   * “O A agrediu e matou uma pessoa, engana os cidadãos, escondendo a verdade dos factos”,
   * “O sangue paga-se com sangue”,
   * “O céu sabe, a terra sabe e o G1 sabe” (acusação directa ao presidente da Comissão Executiva da autora, G, também conhecido como G2),
   * “O A esconde a verdade dos factos para ajudar o homicida”,
   * “Entreguem o homicida”,
   * “Há causa para a injustiça, há responsável por uma dívida”, e
   * “Encobrir o homicida será censurado pelo céu” (Facto do artigo 22º).
   - Das palavras de ordem gritadas ao longo dos dois dias por todo o recinto, para além das acima referidas, sobressaem:
   * “Nós não vamos parar”;
   * “Não vamos desistir do caso”;
   * “Nós não vamos à A, podemos cair e morrer”;
   * “A A bate até matar”; e
   * “Quem entra não sai mais” (Facto do artigo 23º).
   - Ao longo desta manifestação foi, por diversas vezes, distribuída uma carta aberta, junta como doc. n.º 45, assinada pelos representantes da R. B, onde se acusa directamente as pessoas da A de terem agredido o jovem E até à morte e de encobrirem da família todos os factos relativos à sua morte (Facto do artigo 24º).
   - Os manifestantes apenas abandonaram o local pelas 22h30 de Sábado, dia 1 de Julho de 2006 (Facto do artigo 25º).
   - Para trás deixaram um rasto de sujidade e de desordem, de latas de bebidas, pacotes de comida, caixas de papelão, papéis molhados, pisados e queimados, bem visíveis nas fotografias constantes dos docs. n.os 13, 15, 17, 21 (d), (e), (g) e (i), 22 a 29, 31 a 44 (Facto do artigo 26º).
   - A autora emitiu um comunicado no dia 1 de Julho de 2006, com o conteúdo que consta do doc. n.º 46 (Facto do artigo 27º).
   - As referidas acusações, geradas pelos familiares do jovem falecido, pela B e respectivos dirigentes, passaram a aparecer nas notícias de alguns jornais de língua chinesa (Facto do artigo 29º).
   - Os três primeiros réus têm estado presentes em todas as acções em que a autora tem sido acusada de estar envolvida na morte do jovem (Facto do artigo 37º).
   - Pela fotografia já junta com o n.º 28 (e), bem como dos vídeos juntos como docs. n.ºs 8 e 9, constata-se que a alimentação das pessoas participantes foi promovida pela B, 3ª ré, com os recipientes (panelas) da comida que fazem referência ao seu nome (Facto do artigo 38º).
   - O 1.º e a 3.ª réus emitem comunicados e promovem conferências de imprensa (Facto do artigo 39º).
   - Foi manifestada, através da notícia do Jornal Diário Ou Mun junta como docs. n.ºs 51 e 52, a intenção de repetir manifestações idênticas às do dia 30 de Junho de 2006, a ocorrer em simultâneo na “A” e no [Endereço(1)], onde se situa a sede da autora (Facto do artigo 46º).
   - Os clientes que pretendiam desfrutar de um momento de tranquilidade, passeando nas ruas temáticas, fazendo compras ou jantando num dos restaurantes do recinto, viram-se confrontados e incomodados com manifestações ruidosas, muito fumo, odores desagradáveis e uma enorme quantidade de lixo espalhado pelas ruas (Facto do artigo 60º).
   - A actuação prejudicou a credibilidade, bom nome e reputação da sociedade autora e do espaço por esta explorado, designadamente a “A” (Facto do artigo 62º).
   - Houve cancelamentos de reservas em restaurantes, lojas que foram obrigadas a encerrar mais cedo, clientes que, incomodados com a confusão instalada, abandonaram o local (Facto do artigo 74º).
   - Houve despesas de limpeza que totaliza o montante de MOP$136,110.00, conforme recibo da empresa “H”, encarregue da limpeza, junto como doc. n.º 61 (Facto do artigo 79º).”
   
   
   2.2 Recurso principal – danos patrimoniais (privação temporária do uso de um bem)
   A recorrente principal Companhia A entende que o tribunal recorrido decidiu mal ao julgar que a ocupação ilícita em si não justifica uma indemnização por danos patrimoniais, alegando que dos actos de ocupação resultam violação dos direitos da mesma recorrente sobre o seu património, com a privação da sua disponibilidade, e que não podem ser tratados como danos não patrimoniais.
   
   Trata-se da questão em saber se a privação da utilização comercial do espaço da A pode determinar a indemnização por danos patrimoniais.
   “Questão controvertida, muito debatida em Itália e na Alemanha, é a de saber se esse “dano da privação” compreende a indemnização de um dano abstracto (“valor de uso”), atinente à mera possibilidade de utilização do bem, independentemente do influxo negativo concreto no património do lesado.” O problema tem na sua génese a valoração normativa ou objectiva do dano.1
   A questão tem sido muito debatida a propósito da privação do uso de automóvel decorrente de acidente de viação. “Trata-se, nomeadamente, de saber se tem ou não direito da indemnização, quanto a essa privação do uso, o proprietário que não chega a alugar veículo nenhum para substituir o que se encontra em reparação.”2
   Em termos gerais, consiste em saber se a privação ilícita de um bem pode constituir o agente na obrigação de indemnizar o proprietário, sem necessidade de prova de outros factos ou, ao invés, depende da prova da existência de prejuízos concretos.
   
   A grande maioria da doutrina admite que é indemnizável a situação de privação do uso de um bem, consubstanciada em prejuízo patrimonial por violação do direito de propriedade.
   “Que espécie de dano? Por certo um dano material, patrimonial, consistente na privação da faculdade de poder fruir o carro que comprou. Como o direito de propriedade compreende os direitos de uso e fruição da coisa – art.º 1305.º do CC – e destas faculdades ficou privado o dono do carro, afectado ficou o seu direito de propriedade do veículo, diminuído que ficou, embora parcialmente, quer em quantidade, quer em duração. Ora isto, como componente do direito de propriedade, de cariz patrimonial, não pode deixar de ter um preço. Saber a sua medida, maior ou menor, já será outra questão, a resolver, eventualmente, ao abrigo da equidade – art.º 566.º, n.º 3 do CC.”3
   
   Em relação a existência do dano concreto, “a formulação de juízos assentes em padrões de normalidade e, se necessário, com recurso às presunções naturais ou judiciais facilmente permite inferir que, em regra, aquela privação comporta um prejuízo efectivo na esfera jurídica do lesado correspondente à perda temporária dos poderes de fruição. A amplitude das consequências pode variar de acordo com as específicas circunstâncias objectivas e subjectivas, mas raramente será indiferente para o lesado a manutenção intangível do uso do bem ou a sua privação durante um determinado período de tempo.”
   “Se a privação do uso do veículo durante um determinado período originou a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição (substituição) impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente. Fazer depender a indemnização da prova da ocorrência de danos imputáveis directamente à privação é solução que pode justificar-se quando o lesado pretenda a atribuição de uma quantia suplementar correspndente aos benefícios que deixou de obter, ou seja, aos lucros cessantes, nos termos do art.° 564.°, n.° 1, ou às despesas acrescidas que o evento determinou; já não quando o seu interesse se reduza à compensação devida pela privação que, nos termos da mesma norma, corresponde ao prejuízo causado, isto é, aos danos emergentes.4
   
   “Entre os danos patrimoniais inclui-se naturalmente a privação do uso das coisas ou prestações, como sucede no caso de alguém ser privado da utilização de um veículo seu ou ser impedido de realizar uma viagem turística que tinha contratado. Efectivamente, o simples uso constitui uma vantagem susceptível avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano.”5
   
   O proprietário pode sempre dispor da coisa como bem entender, deve, por isso, ser valorada a sua indisponibilidade independentemente da prova da concreta utilização. A utilização pelo proprietário faz parte dos interesses patrimoniais inerentes ao próprio bem e que a simples possibilidade de utilização ou de não utilização constitui uma vantagem patrimonial que, uma vez afectada, deve ser ressarcida.
   
   Sendo impossível a reconstituição natural da situação patrimonial de proprietário devido a consumação da privação do uso de um bem, a indemnização pela privação tem por objectivo compensar o lesado pela perda temporária da fruição, reconstituindo, na medida do possível, a respectiva situação patrimonial, que consiste na atribuição ou restituição do valor correspondente, equivalente, na prática, ao valor de uso atinente ao período de privação.
   
   A solução é semelhante com as disposições para o instituto de enriquecimento sem causa previsto nos art.° 467.° e seguintes do CC, em que se prescreve que aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
   “A fruição de bens e o aproveitamento das vantagens patrimoniais inerentes ao proprietário, quando destituídos de causa justificativa e não abarcados por outros institutos, conferem ao proprietário o direito de exigir a sua restituição na medida do enriquecimento indevido. Não sendo possível a prestação em espécie, a obrigação sucedânea traduzir-se-á na entrega do valor correspondente, nos termos do art.° 479.°.”6
   Está de acordo com o disposto no n.° 1 do art.° 473.° do CC (equivalente ao referido art.° 479.° do Código Civil português): “A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.”
   Assim, a privação do uso do bem e das respectivas utilidades por parte do seu proprietário, na ausência de outros meios de protecção, confere a ele o direito de ser compensado na medida do enriquecimento injustificadamente obtido à sua custa, independentemente da efectiva existência de prejuízos concretos, isto é, sem necessidade da prova de qualquer dano por ele sofrido ou da efectiva utilização que o mesmo conferiria ao bem no período da privação.
   
   No presente caso concreto, é natural que a autora, como um espaço comercial e ponto de atracção turística, aproveita sempre a sua potencialidade económica.
   Segundo os factos provados, as actividades das rés do processo realizadas nos dias 30 de Junho e 1 de Julho de 2006 na A traduziam objectivamente em ocupação da parte do espaço da autora para realizar cerimónia de culto, discursos, manifestações, marchas de protestos, exibição de cartazes, distribuição de panfletos, espalhar centenas de milhares de papéis de culto por toda a área do recinto, todos de conteúdo relacionado com a morte de E com a imputação da responsabilidade pela sua morte à autora e à sua administração, em fornecer alimentação aos participantes, em deixar um rasto de sujidade e de desordem, de latas de bebidas, pacotes de comida, caixas de papelão, papéis molhados, pisados e queimados, que incomodavam os clientes da autora e obrigaram cancelamento de reservas em restaurantes, encerramento de lojas mais cedo, etc.
   É manifesto que não deve ser indiferente para a autora a ocupação do espaço descoberto desta por parte da ré recorrente, lugar privilegiado para atrair as pessoas a frequentar os estabelecimentos comerciais instalados na A, administrada pela autora.
   Mesmo que não tinha sido alegados e provados outros factos demonstrativos de danos concretos, para além das despesas de limpeza já ressarcidas, a privação do uso do espaço da A aberto ao público, decorrente da prática de actos imputados à ré recorrente, representa já uma diminuição do gozo e fruição do património da autora.
   
   De acordo com o princípio geral da responsabilidade civil consagrado no art.º 477.º, n.º 1 do CC, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
   Em princípio, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art.º 556.º do CC).
   Sendo impossível a reconstituição natural, uma vez que a privação já estava consumada, a indemnização será fixada em dinheiro, atendendo sempre a equidade se não for averiguado o valor exacto dos danos (art.º 560.º, n.ºs 1 e 6 do CC).
   
   Por falta de elementos nesta fase processual para fixar o valor exacto de indemnização, a responsabilidade de indemnizar a autora por privação do uso do espaço da A será liquidada em execução de sentença (art.º 564.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).
   Procede, assim, o recurso da autora. Em consequência, o acórdão do Tribunal de Segunda Instância deve ser revogado na parte que decidiu o recurso da autora, para passar a condenar a 3ª ré a indemnizar a autora pelos danos resultados da privação do uso do espaço da A, a liquidar na execução de sentença.
   
   
   2.3 Recurso subordinado – danos não patrimoniais (violação do direito de personalidade de pessoas colectivas)
   Sobre a condenação da recorrente subordinada a B no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela autora da acção, aquela considera que, para as sociedades comerciais, a ofensa do bom nome, reputação e imagem comercial apenas pode produzir um dano patrimonial indirecto e os prejuízos estritamente morais implicados nas ofensas ao bom nome e reputação apenas calham aos indivíduos e às pessoas morais, não sendo possível que uma sociedade comercial possa ser sujeito activo e titular de direito indemnizatório por prejuízos estritamente morais implicados nas ofensas ao bom nome e reputação.
   
   Os autores admitem que à pessoa colectiva é reconhecido o direito de personalidade correspondente aos seus fins, que naturalmente é mais limitado em comparação com as pessoas singulares.
   
   Capelo de Sousa destacam os direitos especiais de personalidade que parecem integrar a capacidade jurídica das pessoas colectivas, tendo em conta o correspondente art.º 144.º do CC de Macau:
   “Todavia, há que reconhecer que o direito geral de personalidade se desdobra em múltiplos poderes e faculdades jurídicas, v.g., em consonância com o largo espectro de bens de personalidade humana que constitui o seu objecto jurídico. A maioria desses bens, v.g. os ligados à personalidade física, afectiva, espiritual e anímica, são inseparáveis das pessoas singulares. Outros bens, porém, haverá, particularmente os atinentes à esfera social, como certas manifestações de liberdade, a identidade, o bom nome, a reputação, a esfera de sigilo e a iniciativa, relativamente aos quais poderão configurar-se interesses análogos dignos de tutela, possuídos por conjuntos de pessoas humanas associadas ou por entes jurídicos baseados em vontades humanas objectivadas.”7
   
   Outros autores são explícitos sobre o princípio da especialidade do fim de pessoas colectivas:
   “Deste modo, num plano formal, esta categoria de direitos faz ainda algum sentido quanto às pessoas colectivas, embora num plano ajustado à sua natureza e sem o sentido transcendental que ela reveste em relação às pessoas singulares.”8
   
   “Naturalmente: qualquer transposição da tutela de personalidade para pessoas colectivas deve sempre ser feita tendo em conta os fins a que elas se destinem e a natureza da situação envolvida.
   ...
   Particularmente aptos para defender interesses das pessoas colectivas seriam o direito ao nome, o direito à honra e o direito à privacidade ou direito à protecção do sigilo.”9
   
   Até há autor defende aplicar o regime jurídico do direito de personalidade a pessoas colectivas por analogia, “quando a semelhança das situações o justifique, e sempre com a adaptação do regime ao caso concreto e com consciência de que o sentido jurídico é completamente diferente nos verdadeiros direitos de personalidade, de que são titulares pessoas humanas (singulares), e direitos subjectivos análogos na titularidade de pessoas colectivas.”10
   
   Na realidade, dispõe o art.º 144.º do nosso CC:
   “1. A capacidade das pessoas colectivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins.
   2. Exceptuam-se os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular.”
   
   Por outro lado, o art.º 73.º, n.º 1 do CC consagra o direito à honra de pessoas singulares:
   “1. Toda a pessoa tem direito à protecção contra imputações de factos ou juízos ofensivos da sua honra e consideração, bom nome e reputação, crédito pessoal e decoro.”
   
   Segundo o referido princípio da especialidade do fim de pessoas colectivas, estas devem ser consideradas titulares do direito de personalidade compatível com a sua própria natureza, excluindo nomeadamente as modalidades desse direito atinentes a pessoas singulares.
   No presente caso, é sobretudo o direito a bom nome e reputação que a autora recorrente deve obter a tutela judicial.
   A ofensa deste direito pode implicar eventualmente prejuízos no plano económico ou patrimonial, traduzindo por exemplo na diminuição da sua clientela.
   No entanto, com o reconhecimento legal, o direito de personalidade de pessoas colectivas ganha autonomia, constitui um valor que merece uma tutela judicial própria, especialmente por meio de indemnização a título de ressarcimento de danos não patrimoniais em caso de violação.
   Nos presentes autos, ficou provado que foram praticados vários actos pela ré, ora recorrente subordinada, nomeadamente a exibição de cartazes e distribuição de uma carta aberta que acusava a autora como responsável da morte de E e encobrir da família deste todos os factos relativos à morte, sem que tinha sido provada no processo a verdade das acusações. Tais actos são manifestamente prejudiciais do bom nome e reputação da autora que legitima a condenação da ré recorrente na indemnização dos danos não patrimoniais da autora, pelo que improcede o recurso subordinado desta ré.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em:
   - Julgar procedente o recurso principal da autora, revogando o acórdão recorrido na parte que decidiu o recurso da autora para a segunda instância e passando a condenar a 3ª ré B a indemnizar a autora Companhia A pelos danos resultados da privação do uso do espaço da A, a liquidar na execução de sentença;
   - Julgar improcedente o recurso subordinado da 3ª ré.
   Custas nesta instância pela 3ª ré recorrente e na segunda instância pelas recorrente e recorrida na proporção do decaimento segundo a presente decisão.
   
   
   Aos 27 de Janeiro de 2010






Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Segundo a referência de José Carlos Brandão Proença, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997, p. 676, nota 2328.
2 Antunes Varela, Das Obrigações Em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, p. 909, nota 1.
3 Américo Marcelino, Acidente de Viação e Responsabilidade Civil, 6ª ed., Livraria Petrony, Lisboa, 2003, p. 402 e 403. Os artigos citados correspondem aos art.°s 1229.° e 560.°, n.° 6 do Código Civil de Macau.
4 António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, vol. I, Indemnização do Dano da Privação do Uso, 3ªed., Almedina, Coimbra, 2007, p. 16, 64 e 65. O artigo citado corresponde ao art.º 558.º, n.º 1 do Código Civil de Macau.
5 Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2005, p. 317.
6 António Santos Abrantes Geraldes, obra citada, p. 23. Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 457. O artigo citado corresponde ao art.º 473.° do Código Civil de Macau.
7 Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 601.
8 Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 3ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 2001, p. 215.
9 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. I, parte geral, tomo II, pessoas, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2007, p. 113.
10 Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, Coimbra, 2006, p. 123
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Processo n.º 30 / 2009 22