ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A intentou contra B, também conhecido por B1, acção para revisão e confirmação de decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância do Município de Foshan, da Província de Guangdong, do Interior da China, que decidiu declarar nulo o contrato de penhor de uma quota social do autor, constituído a favor do B. Em recurso interposto, o Tribunal Supremo da Província de Guangdong confirmou a decisão.
Por acórdão de 2 de Julho de 2009, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) julgou a acção procedente, revendo e confirmando a mencionada sentença.
Inconformado, interpõe B recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
- No processo que culminou na decisão revidenda não foram observados os princípios do contraditório e do direito de defesa (art. 1200°, nº 1, al. e) CPC) e, bem assim, a sua confirmação e execução viola os princípios fundamentais do Direito ou a ordem pública de Macau (art. 1200°, nº1, al. f) CPC e art. 11°, al. 6) do Acordo).
- De acordo com uma sentença penal que foi junta aos autos, é evidente que ao réu, ora Recorrente, não foi dada a oportunidade de apresentar contestação ou de se defender em audiência, pelo que, nesse processo criminal, foi manifestamente violado o direito de defesa do Recorrente.
- Na decisão revidenda encontram-se várias menções à sentença do processo crime que condenou o Recorrente no crime de burla, que demonstram que a factualidade, dada como provada na decisão cível, relacionada com a alegada burla ou falseamento de créditos assenta apenas na mencionada sentença penal.
- Por se fundamentar em outra decisão de índole penal, proferida em processo em que não foi respeitado o princípio do contraditório, a decisão revidenda viola claramente os princípios fundamentais a que o nosso direito está sujeito, designadamente o princípio do contraditório, consagrado no art. 3º e manifestado no art. 1200°, n.º1, al. e), ambos do CPC.
- Por este motivo, a decisão revidenda viola também o princípio da igualdade das partes, consagrado no art. 4° do CPC.
- Verifica-se também que a decisão revidenda violou os princípios fundamentais e basilares da ordem jurídica de Macau, bem como a ordem pública internacional.
- O Tribunal da RPC aplicou simultaneamente a lei chinesa e a lei de Macau, com a agravante de na mesma decisão fazer referência de forma indiscriminada às leis processuais e materiais dos dois ordenamentos jurídicos, tornando-a assim ininteligível.
- Ainda que se entenda ser inteligível a decisão, ao fazer a aplicação do direito material de Macau, o Tribunal da RPC limita-se a fazer uma menção genérica aos Códigos Comercial, Civil e do Processo Civil, todos de Macau, mencionando apenas dois artigos do Código Civil, e não procede à subsunção dos factos às disposições legais mencionadas, denotando deste modo o total desconhecimento da lei de Macau.
- Dado que as partes declararam expressamente a vontade de submeter quaisquer litígios emergentes da relação material à lei de Macau, e o Tribunal da RPC julgou a acção judicial demonstrando desconhecer por completo a mesma, a confirmação da decisão obtida nestas circunstâncias ofende claramente a ordem pública de Macau, impedindo o Recorrente de exercer o direito de acesso à justiça, pedra basilar do ordenamento jurídico de Macau.
- O Recorrente demonstrou que a acção judicial que correu no Continente Chinês deveria ter sido proposta contra a sociedade [Companhia (1)] como parte legítima, e não contra o Recorrente, como parte ilegítima.
- As consequências legais da falta de legitimidade processual indeferimento liminar ou absolvição da instância - têm implicações de tal forma determinantes nos direitos e deveres das partes, que é forçoso considerar-se a legitimidade processual um princípio fundamental do Direito de Macau.
- A norma do Acordo que impõe a conformidade com a ordem pública (a. 6) do art. 11°), confrontada com a sua equivalente do CPC (al. f) do n.º 1 do art. 1200° do CPC) impõe um escrutínio mais rígido da sentença cuja revisão seja requerida, bastando verificar-se uma ofensa a um princípio fundamental do Direito de Macau para que a confirmação não deva ser deferida.
II - Os Factos
Resulta dos autos o seguinte:
Na acção cível, intentada por A contra B no Tribunal de Segunda Instância do Município de Foshan, da Província de Guangdong, do Interior da China, o primeiro alegara que ambos e outros constituíram em Macau uma sociedade comercial mais tarde designada de [Companhia (2)], na qual o primeiro tinha uma quota de 45%.
Após vicissitudes várias, B convenceu A a outorgar-lhe uma procuração, além do mais, com todos os poderes relativamente à mencionada quota social, para facilitar a gestão social.
Com a procuração, B falseou a existência de um débito de A a seu favor no montante de MOP$ 50,000,000.00 (cinquenta milhões de patacas) e outorgou, por escritura pública um penhor da quota de A a seu favor, como garantia do mencionado crédito, que era falso, tudo sem o conhecimento de A.
Na sentença, o Tribunal deu como provados os factos atrás mencionados.
A sentença diz, ainda, que A não podia ter contraído o crédito junto de B porque, na alegada data, estava em prisão disciplinar à ordem da Secção do Partido Comunista da China, do Bairro de Nanhai, do Municipio de Foshan.
E o Tribunal deu, ainda, como provado que, em processo crime que correu termos em Tribunal do Interior da China, o recorrente foi condenado numa pena de 12 anos de prisão, como autor do crime de burla, pelos factos que são a causa de pedir da acção cível.
A sentença da acção cível entendeu ser aplicável o Direito substantivo de Macau ao litígio e julgou procedente o pedido, declarando nulo o penhor da quota de 45% da sociedade. Para tanto decidiu que, sendo o direito de crédito nulo - no montante de MOP$ 50,000,000.00 (cinquenta milhões de patacas) - nulo era o penhor que garantia o crédito. Para tal, aplicou o artigo 239.º do Código Civil de Macau, quanto à nulidade do crédito, por falta de vontade do declarante (A) no negócio.
III – O Direito
1. As questões a apreciar
As questões a apreciar são as de saber se:
- No processo onde foi emitida a decisão revidenda foram violados o princípio do contraditório e de defesa e, em consequência, o princípio da igualdade das partes;
- A mesma decisão ofende a ordem pública de Macau, ao invocar a lei de Macau – que as partes escolheram para reger o negócio – mas sem a aplicar verdadeiramente, não tendo procedido à subsunção dos factos às disposições legais mencionadas;
- O ora recorrente era parte ilegítima na acção – em que foi réu - o que viola um princípio fundamental do Direito de Macau e, portanto, a ordem pública internacional;
- A decisão revidenda bem como os documentos apresentados pelas partes demonstram que os fundamentos que levaram à decisão final ofendem os princípios fundamentais de Direito e a ordem pública de Macau.
2. O ónus da prova dos requisitos necessários para a revisão e confirmação de sentença do exterior
Para resolver qualquer das questões suscitadas importa apreciar uma outra, aliás, não tratada nas alegações das partes, que é a de saber a quem incumbe o ónus da prova dos factos na acção de revisão e confirmação de sentença do exterior.
Esta questão de direito já foi tratada no Acórdão deste TUI, de 15 de Março de 2006, no Processo n.º 2/2006, onde se disse o seguinte:
“5. Sistemas de reconhecimento de sentenças do exterior ou estrangeiras
Ensina FERRER CORREIA1 que reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem ou Estado a quo). Esses efeitos são os próprios da sentença considerada como tal – os que derivam da sua natureza de acto de jurisdição – a autoridade de caso julgado e o efeito executivo.
É também sabido que, numa perspectiva de direito comparado, existem vários tipos de soluções possíveis no que respeita ao reconhecimento de sentenças estrangeiras2:
i) Sistemas em cujo direito não se reconhecem efeitos às decisões estrangeiras, tendo sempre de intentar de novo uma acção num tribunal do país ad quem. É o caso dos países nórdicos da Europa.
ii) Noutros países, o reconhecimento só opera mediante reciprocidade, como em Espanha.
Na Inglaterra após 1933, foi instituído um sistema de registo (registration) que permite equiparar uma sentença estrangeira a uma decisão de um tribunal inglês, como base na reciprocidade reconhecida by order in Council.
iii) Em algumas ordens jurídicas, as sentenças estrangeiras são reconhecidas sem necessidade de qualquer formalidade, é o chamado reconhecimento automático. É o que acontece em França com as sentenças estrangeiras em matéria de estado e capacidade das pessoas e com certos actos de jurisdição voluntária.
iv) Há sistemas em que o reconhecimento das sentenças do exterior ou estrangeiras se dá por via do exequatur, controlo ou revisão.
a) Este controlo pode ser de mérito, no caso de haver um controlo da aplicação do direito, ou, em certos casos, podendo ocorrer uma reapreciação da matéria de facto;
b) O controlo pode ser meramente formal, como acontece em Macau e em Portugal (em ambos os casos na generalidade das situações), na Suiça e até há pouco tempo, em Itália.
6. O sistema de Macau de reconhecimento de sentenças do exterior
O nosso sistema é, em regra, de revisão meramente formal porque as condições da confirmação da sentença do exterior exigidas e enumeradas nas várias alíneas do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil - que no Código português corresponde ao art. 1096.º - “não respeitam senão à regularidade da decisão e do processo de que ela constitui o último termo”3.
Já existe, no entanto, revisão de mérito, de aplicação do direito, numa situação específica: quando a decisão tiver sido proferida contra residente de Macau, este pode impugnar o pedido de reconhecimento de sentença do exterior com fundamento em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se tivesse sido aplicado o direito material de Macau, quando por este devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos de Macau (n.º 2 do art. 1202.º do Código de Processo Civil).
No caso dos autos estamos perante a revisão formal, visto que não foi deduzida impugnação pelo requerido com fundamento nesta última norma, que protege um interesse meramente disponível e renunciável.
7. A prova dos requisitos do art. 1200.º do Código de Processo Civil
Vejamos, então, o que dispõe o art. 1200.º do Código de Processo Civil:
“Artigo 1200.º
(Requisitos necessários para a confirmação)
1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser”.
Se fosse apenas este o preceito do Código de Processo Civil a ter em conta para resolver a questão em apreço, teria o recorrente, possivelmente, razão na sua tese, já que, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, a prova dos factos constitutivos do direito alegado cabe àquele que invocar o direito (art. 335.º, n.º 1 do Código Civil).
Mas há que considerar ainda outro preceito, do Código de Processo Civil, que já vem, aliás, do Código de 1939, e que é o art. 1204.º:
“Artigo 1204.°
(Actividade oficiosa do tribunal)
O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200.°, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
O Código de 1961 continha um preceito semelhante a este (o art. 1101.º) e o mesmo acontecia no Código de 1939 (o art. 1105.º), com uma diferença respeitante à revisão de mérito, a que há pouco se fez referência, mas irrelevante na matéria que nos ocupa.
Pois bem, o art. 1200.º contem seis requisitos necessários para a confirmação da decisão proferida por tribunal do exterior. Mas o art. 1204.º faz uma nítida distinção entre os requisitos das alíneas a) e f) do n.º 1 do art. 1200.º (respectivamente, que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão e que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública) – impondo a sua verificação oficiosa pelo tribunal – e os restantes requisitos do art. 1200.º - entre os quais os dois que estão em causa, a propósito dos quais o tribunal só deve negar oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum desses requisitos.
Foi por causa desta distinção que a doutrina começou a defender que o requerente está dispensado da prova directa destes quatro requisitos, que se devem presumir verificados. Assim é que ALBERTO DOS REIS4 defendeu o seguinte na vigência do Código de 1939:
“Desde que o tribunal só deve negar oficiosamente a confirmação quando o exame do processo ou o conhecimento derivado do exercício da função o convencer de que falta algum dos requisitos exigidos nos n.os 2.º, 3.º, 4.º e 5.º do art. 1102.º, segue-se que, não se verificando os casos apontados, presume-se que esses requisitos concorrem; entendida assim a disposição, é claro que o requerente está dispensado de fazer a prova positiva e directa dos requisitos indicados”.
Também FERRER CORREIA5, na vigência do Código de 1961, se pronunciou em idêntico sentido:
“36. 2.º - Trânsito em julgado. – O segundo requisito de confirmação é o que consta do art. 1096.º, al. b): “Para que a sentença seja confirmada é necessário que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida”.
Para que a sentença possa ser confirmada é necessário, portanto, que seja uma sentença definitiva, uma sentença da qual não caiba recurso ordinário, segundo a lei do tribunal de origem.
Mas será necessário que a parte interessada faça a prova do trânsito em julgado?
O tribunal só negará oficiosamente a confirmação se pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções apurar que falta o requisito da alínea b), ou seja, se apurar que a sentença ainda não transitou em julgado.
...
O simples facto de não constar do processo a prova de que a sentença transitou em julgado não é, pois, suficiente para o tribunal recusar a confirmação. Em tal hipótese, há-de o tribunal presumir que o trânsito em julgado ocorreu”.
O mesmo autor, nas recentes lições do ano 20006, mantém o mesmo entendimento:
“O simples facto de não constar do processo a prova do trânsito em julgado não constitui impedimento à confirmação; tal impedimento existirá, contudo, se o tribunal, por conhecimento derivado do exercício das suas funções, chegar à conclusão de que no caso vertente esse requisito falta. É esta a solução mais consentânea com o preceito do art. 1101.º”.
Também RODRIGUES BASTOS 7 se pronuncia no mesmo sentido.
E da mesma opinião é a restante doutrina internacional privatista.
Assim, MARQUES DOS SANTOS 8abonando o entendimento de Alberto dos Reis e Ferrer Correia, já mencionados, escreve:
“Tal doutrina parece-nos ser aceitável, na medida em que se entenda que, só por si, a não existência, no processo, de prova de que a sentença estrangeira transitou em julgado não é bastante para ser recusada a confirmação, podendo, porém, esta vir a ser negada sem que a parte contrária tenha de provar que não houve trânsito em julgado, desde que o tribunal português de revisão, por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta o requisito da alínea b) do artigo 1096.º do Código”.
LUÍS DE LIMA PINHEIRO9 emitiu idêntica opinião.
Em contrário só se conhece a doutrina de MACHADO VILELA10, expressa na vigência do Código de Processo Civil de 1876, para quem deve ser o requerente a provar todos os requisitos de confirmação de sentença estrangeira. Mas neste Código (arts. 1087.º a 1091.º) não havia preceito semelhante ao actual art. 1204.º, pelo que se aceita que, nesse caso, valessem as regras gerais do ónus da prova. Não é o caso do direito vigente, como já se disse”.
Em conclusão, é de sufragar o entendimento tomado pelo nosso anterior Acórdão, na sequência da jurisprudência do Tribunal Superior de Justiça (expressa, por exemplo, no Acórdão de 25 de Fevereiro de 1998, no Processo n.º 78611) e abonado pela doutrina, de que se devem considerar verificados os requisitos das alíneas b), c), d) e) do n.º 1 do art. 1200.º, na falta de prova em contrário, por parte do requerido, sem prejuízo de o tribunal dever negar a confirmação quando pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções apure que falta algum deles.
3. Violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes
Doravante, utilizaremos os seguintes termos:
Recorrente – B, recorrente no presente recurso jurisdicional, que foi réu na acção cível, adiante referida e que se pretende rever e confirmar;
Acção cível – acção em que foi réu B, que correu termos no Tribunal de Segunda Instância do Município de Foshan, da Província de Guangdong, do Interior da China, cuja sentença decidiu declarar nulo o contrato de penhor de uma quota social de A, constituído a favor do B.
- Processo crime - processo crime que correu termos em Tribunal do Interior da China, no qual B foi condenado como autor de crime de burla.
O recorrente – réu na acção cível que se pretende rever e confirmar – foi citado em tal acção e teve oportunidade de se defender, o que não discute.
Mas segundo ele, na acção cível houve violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, dado que os factos dados como provados na acção cível assentam apenas nos factos dados provados em sentença de processo crime, que correu termos, também, em Tribunal do Interior da China, no qual o recorrente foi condenado como autor de crime de burla.
Acrescenta que na acção cível não se procedeu a um verdadeiro julgamento, com audição de testemunhas e que no processo crime não teve oportunidade de se defender.
É o que se irá averiguar.
Era ao recorrente que incumbia provar os factos que estão na base dos requisitos da alínea e) do n.º 1 do artigo 1200.º do Código de Processo Civil: de que na acção cível não foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.
Incumbia-lhe, portanto, provar:
- Que no processo crime não teve oportunidade de se defender;
- Que os factos dados como provados na acção cível assentam apenas nos factos dados provados em sentença de processo crime.
Quanto ao primeiro facto a prova é zero. Não há, nos autos, qualquer facto relativamente ao modo como decorreu o processo crime.
Quanto ao segundo facto, não só o recorrente não o prova, como o contrário é que está provado. Resulta da sentença da acção cível que os factos dados como provados assentaram em documentos juntos pelas partes na acção, em depoimentos de testemunhas e no confronto das partes na audiência de julgamento. E o Tribunal deu, ainda, como provado que, no processo crime, o recorrente foi condenado numa pena de 12 anos de prisão, como autor do crime de burla, pelos factos que são a causa de pedir da acção cível.
Não tem, pois, qualquer fundamento a tese do recorrente que os factos provados na acção cível apenas o foram porque considerados provados no processo crime.
Improcede, assim, a questão suscitada.
4. Aplicação do Direito de Macau. Nulidade do penhor por nulidade da obrigação principal
Alega o recorrente que a decisão revidenda ofende a ordem pública de Macau, ao invocar a lei de Macau – que as partes escolheram para reger o negócio – mas sem a aplicar verdadeiramente, não tendo procedido à subsunção dos factos às disposições legais mencionadas.
Vejamos, primeiro, o que é que se decidiu na acção cível.
Na acção cível, intentada por A contra B, o primeiro alegara que as duas partes e outros constituíram em Macau uma sociedade comercial mais tarde designada de [Companhia (2)], Limitada, na qual o primeiro tinha uma quota de 45%.
Após vicissitudes várias, B convenceu A a outorgar-lhe uma procuração, além do mais, com todos os poderes relativamente à mencionada quota social, para facilitar a gestão social.
Com a procuração, B falseou a existência de um débito de A a seu favor no montante de MOP$50,000,000.00 (cinquenta milhões de patacas) e outorgou, por escritura pública um penhor da quota de A a seu favor, como garantia do mencionado crédito, que era falso, tudo sem o conhecimento de A.
A sentença diz, ainda, que A não podia ter contraído o crédito junto de B porque, na alegada data, estava em prisão disciplinar à ordem da Secção do Partido Comunista da China, do Bairro de Nanhai, do Municipio de Foshan.
A sentença da acção cível entendeu ser aplicável o Direito substantivo de Macau ao litígio e julgou procedente o pedido, declarando nulo o penhor da quota de 45% da sociedade. Para tanto decidiu que, sendo o direito de crédito nulo - no montante de MOP$ 50,000,000.00 (cinquenta milhões de patacas) - nulo era o penhor que garantia o crédito. Para tal, aplicou o artigo 239.º do Código Civil de Macau, quanto à nulidade do crédito, por falta de vontade do declarante (A) no negócio.
Pois bem, independentemente do acerto na chamada à colação do artigo 239.º do Código Civil de Macau, o Tribunal do Município de Foshan aplicou correctamente o Direito de Macau aos factos que considerou provados. Na verdade, não se tendo constituído o crédito, por ser nulo - no montante de MOP$ 50,000,000.00 (cinquenta milhões de patacas) – a favor do B, também o penhor que o garantia não se constituiu.
O penhor é uma garantia real que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou de créditos ou outros direitos, pertencentes ao devedor ou a terceiro (artigo 662.º, n.º 1 do Código Civil).
Como explica LUÍS MENEZES LEITÃO12 “apesar da sua natureza real, o penhor é considerado uma garantia acessória do crédito, pelo que a sua constituição, manutenção e extinção ficam dependentes da constituição, manutenção e extinção do crédito garantido”.
Assim tal como a fiança, que também é uma garantia acessória, o penhor não é válido se o não for a obrigação principal.
Independentemente da fundamentação, a sentença da acção cível decidiu de acordo com o Direito de Macau.
Improcede a questão suscitada.
5. Legitimidade do ora recorrente como réu na acção cível
O ora recorrente (réu na acção cível) considera que era parte ilegítima nesta acção, o que, segundo ele, violaria um princípio fundamental do Direito de Macau e, portanto, a ordem pública internacional.
A sua tese é a de que, por força da sequela e da prevalência dos direitos reais, consistindo o penhor num direito real de garantia, a acção cível deveria ter sido proposta contra a [Companhia (1)] e não contra o ora recorrente. Isto porque o ora recorrido transmitiu a quota sobre a qual recaía o penhor (na [Companhia (2)] – Participações Sociais e Investimento, Limitada) em 3 de Agosto de 2000, a C e este transmitiu esta mesma quota, em 12 de Junho de 2001, à mencionada [Companhia (1)]. E é esta a actual titular da quota penhorada.
Vejamos.
Há aqui uma manifesta confusão do recorrente.
O penhor é um direito real de garantia, constituído por contrato, pelo qual o autor do penhor (que pode ser o devedor ou terceiro), dono de uma coisa ou de um direito, confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, com preferência sobre os demais credores, pelo valor daquela coisa ou direito.
O autor do penhor - que era o devedor - foi o ora recorrido A.
O recorrente B é o credor pignoratício, é a pessoa a favor de quem foi constituído o penhor. É o titular do penhor.
A proprietária actual da quota penhorada é a [Companhia (1)]. Esta é a dona da coisa empenhada.
Como se mete pelos olhos dentro, quem tem interesse em contradizer – como se expressava com propriedade o n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil de 1961, a propósito da legitimidade processual - uma acção visando a declaração de nulidade do penhor é o credor pignoratício, é o único prejudicado com a procedência da acção, que conduz à extinção do seu direito de garantia. Quem tem interesse em contradizer é o réu. Ora, o recorrente foi réu na acção cível.
A [Companhia (1)] só tem interesse na declaração de nulidade do penhor, pelo que ela, não só não é prejudicada com esta declaração, como é evidentemente beneficiada. É que, sendo a dona da coisa empenhada, tem manifesto interesse na extinção do penhor.
A legitimidade passiva na acção era, assim, incontroversa, mesmo perante a lei de Macau. Era do ora recorrente B, na qualidade de credor pignoratício.
Improcede a questão suscitada, sem necessitar, portanto, de se apurar se eventual ilegitimidade processual à luz da lei de Macau, em acção proposta no exterior, constitui ofensa da ordem pública ou violação de princípio fundamental de Direito de Macau, para efeitos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 1200.º do Código de Processo Civil e da alínea 6) do artigo 11.º do Acordo sobre a Confirmação e Execução Recíprocas de Decisões Judiciais em Matéria Civil e Comercial entre o Interior da China e a Região Administrativa Especial de Macau.
Falecem, assim, todos os fundamentos de impugnação do Acórdão recorrido.
IV – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
Macau, 11 de Fevereiro de 2010.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, I, Coimbra, Almedina, 2000, p. 454 e Lições de Direito Internacional Privado, Aditamentos, Coimbra, lições policopiadas, 1973, p. 4.
2 Nesta matéria seguimos o texto de ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997 (alterações ao regime anterior), em Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, Coimbra, Almedina, 1998, p. 310 e seg. e em Aspectos do Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p. 107 e seg.
3 FERRER CORREIA, Lições..., p. 466.
4 ALBERTO DOS REIS, Processos Especiais, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, reimpressão, p. 163.
5 FERRER CORREIA, Lições... Aditamentos, p. 105 e 106.
6 FERRER CORREIA, Lições..., p. 477.
7 J. RODRIGUES BASTOS, Notas..., Volume IV, 2.ª ed., 2005, p. 256.
8 ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, Revisão..., em Estudos..., p. 324 e em Aspectos ..., p. 119.
9 LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, Volume III, Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, Coimbra, Almedina, 2002, p. 364 e 365.
10 MACHADO VILELA, Tratado Elementar (Teórico e Prático) de Direito Internacional Privado, Livro I, Coimbra, Coimbra editora, 1921, p. 666 e 667.
11 Tribunal Superior de Justiça de Macau, Jurisprudência, 1998, I Tomo, p. 118.
12 LUÍS MENEZES LEITÃO, Direitos Reais, Coimbra, Almedina, 2009, p. 447. Cfr., também, do mesmo autor, Garantias das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2008, 2.ª edição, p. 190 e 191.
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1
Processo n.º 43/2009