Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 8 / 2007 (e os processos apensados n.ºs 9/2007, 17/2007, 18/2007 e 19/2007)
Recorrente: Secretário para a Segurança
Recorridos: A, B, C, D e E
1. Relatório
O chefe assistente A do Corpo de Bombeiros, os comissários do Corpo de Polícia de Segurança Pública B, C e D e o subcomissário E interpuseram os recursos contenciosos pedindo a anulação dos cinco despachos a eles respeitantes praticados pelo Secretário para a Segurança em 7 de Dezembro de 2005 em que se negou os recursos hierárquicos interpostos pelos mesmos contra a decisão do Director dos Serviços das Forças de Segurança de Macau que recusou a contagem do período de frequência dos Cursos de Formação de Oficiais para efeitos fixar os prémios de antiguidade.
O Tribunal de Segunda Instância, através dos seus acórdãos de 9 de Novembro de 2006 proferidos nos processos n.ºs 43/2006, 45/2006, 145/2006, 144/2006 e 143/2006, julgou procedentes os recursos contenciosos e anulou as decisões impugnadas, com os mesmos fundamentos.
Destes acórdãos vem agora o Secretário para a Segurança recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões nas suas alegações:
“1. O acórdão recorrido anula o despacho do Secretário para a Segurança que negou ao(s) recorrente(s) a pretensão de ver contado o período de formação no Curso de Formação de Oficiais da Escola Superior das Forças de Segurança de Macau para efeitos de atribuição de um prémio de antiguidade por cada cinco anos de serviço, e fá-lo por uma dupla ordem de razões.
a) lnsindicabilidade, do n.º 4 do artigo 101.º do EMFSM aprovado pelo DL n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro em virtude de a norma ter sido introduzida pelo Regulamento Executivo n.º 9/2004, o que é entendido como ilegal por considerar que as alterações aos decretos-leis apenas podem ser produzidas por via legislativa e não por regulamento administrativo.
b) lrrevogabilidade, nos termos ao artigo 130.º, n.º 1 do CPA, de um direito constituído na esfera jurídica do(s) recorrente(s) há mais de um ano, e como tal já insusceptível de recurso contencioso (cujo prazo máximo coincide com o limite temporal para a revogação de actos anuláveis).
2. O acórdão recorrido reconhece todavia que, não obstante considerar tratar-se de acto irrevogável pelas razões expostas em l.b) supra, a interpretação do artigo 181.º do ETAPM que subjaz à decisão recorrida é a correcta, não devendo o tempo de formação na ESFSM contar para efeitos de atribuição do prémio de antiguidade.
3. A norma recusada aplicar, porém, não constitui fundamento da decisão impugnada, sendo que a sua invocação no respectivo texto, surge apenas para fazer lembrar ao(s) recorrente (s) a não extensão do seu regime ao tempo de serviço para atribuição do prémio de antiguidade.
4. Não constituindo fundamento da decisão impugnada, nem integrando o objecto do recurso contencioso nem o respectivo pedido, a apreciação ex-ofício da legalidade da norma é surpreendente para além de violadora dos princípios do contraditório (artigo 3.º do CPC), da congruência (artigo 42.º do CPAC) da estabilidade da instância (art.º 212.º do CPC) e do dispositivo (art.º 564.º, n.º 1 do CPC).
5. Ademais de surpreender a entidade recorrida [quiçá, também o(s) recorrente (s)], exorbitando do objecto do recurso e não tendo a norma recusada aplicar constituído fundamento do despacho impugnado, a decisão de que ora se recorre resulta extravagante em relação aos fins do recurso contencioso, o qual é essencialmente de anulação, violando-se assim o artigo 20.º do CPAC.
6. Como resulta, também, e em consequência, violado o princípio da adequação formal, a que se refere o art.º 7.º do CPC, porquanto sendo despropositada a fiscalização concreta, a norma apenas poderia ser sindicada nos termos e forma prescritos no artigo 88.º do CPAC (processo de impugnação de normas).
7. Ademais, e sem que se prescinda, sempre se deverá concluir que a alteração introduzida pelo RA n.º 9/2004, ao artigo n.º 101.º do EMFSM, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, versa matéria de natureza puramente regulamentar, tem natureza interpretativa de uma norma que lhe antecede, contendo-se assim dentro dos limites da deslegalização a que opera o artigo 8.º da lei Básica, e inscrevendo-se no âmbito das competências do Chefe do Executivo que lhe confere o artigo 50.º, n.º 5 da mesma lei, cujos preceitos aqui enunciados são violados.
8. Com efeito, ela não tange a reserva de lei da Assembleia Legislativa; não versa sobre qualquer direito fundamental, não altera o núcleo essencial do normativo pré-vigente nem do diploma em que se insere; bem como daquilo que para a relação controvertida se dispõe no regime geral vigente da administração pública; consta de regulamento administrativo e não de diploma de grau inferior, pelo que, em nosso entendimento e no de alguma reconhecida doutrina, o douto Acórdão recorrido se desadequa ao disposto no artigo 8.º, da Lei Básica violando-o em consequência.
9. Por outro lado, o Tribunal a quo qualificou de Acto Administrativo constitutivo de direitos uma mera operação material de execução burocrática cuja forma jamais preenche os requisitos da existência de um Acto Administrativo, erro de qualificação jurídica que afecta o douto Acórdão, pelo menos quanto a este seu segmento decisório, do vício de violação de lei, decorrente da afronta ao disposto artigos 110.º, 112.º e 113.º, n.º 1, alínea a), c), e), g) e h) do CPA.
10. E, ao prevalecer-se da existência de um pretenso acto administrativo, efectivamente inexistente na ordem jurídica, abre caminho para a violação do Decreto-Lei n.º 59/94/M, de 5 de Dezembro, designadamente o seu artigo 7.º, relativo à prescrição do dever de repor as quantias indevidamente abonadas pela administração pública.
11. Mas mesmo que se entenda que estamos perante operações de execução, constitutivas de direitos como parece defender a doutrina dominante, tal entendimento restringe-se única e simplesmente ao conteúdo material das mesmas. Isto é, ao direito de reter para si, não as devolvendo aos cofres da fazenda pública, quantias indevidamente recebidas há mais de um ano, prazo máximo para a impugnação contenciosa.
12. Tornar esse efeito, como faz o douto Acórdão recorrido, extensivo ao direito subjectivo de ver contado como tempo de serviço elegível para atribuição de um prémio de antiguidade, o período de formação na ESFSM, é decidir contra legem, em violação do art.º 181.º do ETAPM e, bem assim, a contrário, do disposto no 130.º, n.º 1 do CPA.
13. Violado resulta, no âmbito do mesmo regime jurídico, o princípio da igualdade plasmado no artigo 5.º, n.º l do CPA em face da posição de vantagem dos recorrentes relativamente a camaradas, cuja diferença estatutária seria apenas não terem beneficiado de um lapso burocrático.
14. Em síntese, o Acórdão recorrido violou os preceitos e princípios que se escrutinam nos seguintes normativos:
- Lei Básica: Artigos 8.º e 50.º n.º 5;
- Código do Procedimento Administrativo: Artigos 5.º, 110.º, 112.º, 113.º n.º 1, alíneas a) c) e) g) e h);
- Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública: Artigo 181.º n.º 1;
- Código do Procedimento Administrativo Contencioso: Artigos 20.º, 42.º e 88.º
- Código de Processo Civil: Artigos 3.º, 7.º, 212.º e 564.º, n.º 1;
- Decreto-Lei n.º 59/94/M de 5 de Dezembro”
Pedindo que sejam julgados procedentes os recursos e revogados os acórdãos recorridos.
A Digna Procuradora-Adjunta do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância emitiu o parecer no sentido de julgar procedentes os recursos.
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
2. Fundamentos
2.1 Os factos fixados pelo Tribunal de Segunda Instância
Em todos os recursos, os factos fixados pelo Tribunal de Segunda Instância não foram impugnados nem há necessidade de alteração, pelo que partimos destes factos para apreciar os recursos nos termos dos art.ºs 652.º e 631.º, n.º 6 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis subsidiariamente por força do art.º 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Dos factos provados constam os cinco despachos, de conteúdo idêntico, proferidos em 7 de Dezembro de 2005 aos recorrentes de recurso contencioso e constituem os objectos dos respectivos recursos contenciosos. São transcritos a seguir:
“O recorrente, melhor identificado supra, o que aqui por brevidade se dá por inteiramente reproduzido, insurge-se por esta via de recurso hierárquico contra a decisão do director dos Serviços das Forças +e Segurança de Macau através da qual não considera elegível para efeitos de percepção do prémio de antiguidade – artigo 180.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro – o período de frequência do Curso de Formação de Oficiais, na Escola Superior das Forças de Segurança de Macau.
Tal decisão prevalece-se dos fundamentos constantes de Informação-proposta n.º 1153/DA/2005, formulada no Processo n.º 183-1102 da DSFSM, os quais subscrevo e faço integrar neste meu despacho. Na verdade, não pode considerar-se como extensivo ao direito de percepção do prémio de antiguidade, o direito conferido pela norma do n.º 4 do artigo 101.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau – na redacção que lhe é dada pelo RA n.º 9/2004 –, devendo a mesma conter-se nos limites estatuídos no seu n.º 5, ou seja limitada à relevância para efeitos de “calculo da pensão de aposentação ... /”. Aliás, e em rigor, uma análise sistemática do regime aplicável firma-me a convicção de que a alteração introduzida pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004, tem natureza interpretativa, porquanto, mesmo à luz da anterior redacção do artigo 101.º, parece não subsistirem dúvidas quanto à relevância jurídica do período de formação na contagem de tempo de serviço para efeitos de aposentação.
Por outro lado, se é certo que a lei não é clara quanto à natureza da remuneração conferida no Curso de Formação de Oficiais, a verdade é que a mesma jamais pode ser considerada vencimento. Daí a necessidade de haver lei que, especialmente, a tal a equipare para efeitos da relevância jurídica pretendida.
Os desvios à norma-padrão, regulados por preceitos que especializam determinadas situações jurídicas em relação ao regime geral têm, obrigatoriamente, que constar especificadamente do texto da lei. Não cabe aqui, especialmente quando da mesma resultam encargos financeiros, ficcionar-se efeitos jurídicos, mesmo com recurso à integração de lacunas. In casu não estamos, aliás, perante uma lacuna, mas sim perante a vontade do legislador que não pretendeu levar tão longe a sua benevolência. Se o pretendesse teria à luz do preceituado no artigo 181.°, n.º 2 do citado ETAPM, determinado expressamente a extensão dos efeitos retroactivos da contagem do tempo de serviço à atribuição do prémio de antiguidade.
Esta norma faz coincidir o início da contagem do tempo de serviço para efeitos de atribuição do primeiro prémio de antiguidade com a data do ingresso na função pública, não fazendo qualquer sentido que uma antiguidade, funcional, por definição, retroagisse ao tempo da discência. Aliás, para perceber tal absurdo bastaria fazer uma reflexão sobre a eventualidade de, a vingar a tese reclamada, se contar como tempo de serviço relevante para a atribuição do prémio de antiguidade, a anuidade ou a unidades correspondentes a repetição lectiva, por falta de aproveitamento escolar.
E, este, é o entendimento extensivo a todos os formandos independentemente da data do ingresso no CFO, sendo que, a haver qualquer desigualdade de tratamento, a mesma não deixará de ser reparada no sentido do que aqui se pretende estabilizar.
Nestes termos, e nos do artigo 181°, n.º 2 do ETAPM, Nego Provimento ao presente recurso hierárquico, confirmando a decisão impugnada quanto ao determina que a contagem do tempo de serviço para efeitos de atribuição do prémio de antiguidade tenha início apenas no momento do ingresso (pela posse) na função pública.”
2.2 Preterição da oportunidade do contraditório
Tendo em conta as decisões do Tribunal de Segunda Instância de anular os actos impugnados com fundamento de que a entidade recorrida aplicou o regulamento administrativo que não devia ser considerado legal e de revogar extemporaneamente a decisão já sanada de fixar a data de percepção do primeiro prémio de antiguidade, o ora recorrente, ao salientar a legalidade das respectivas normas, alega que o tribunal recorrido ultrapassou a causa de pedir, o pedido e a questão de mérito em discussão processual, alargando, assim, o âmbito de apreciação à questão de legalidade da alteração do art.º 101.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, introduzida pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004, sem que fosse permitido o exercício do poder do contraditório por parte da Administração sobre a questão.
Apesar de nunca ter sido alegada no processo a questão da possibilidade de alterar o Decreto-Lei por Regulamento Administrativo, o tribunal recorrido suscitou oficiosamente a questão e procedeu à sua apreciação, tomando como um dos fundamentos para anular os actos administrativos impugnados.
Antes de apreciar a referida questão, o Tribunal de Segunda Instância devia notificar as partes para pronunciar sobre esta questão jurídica segundo o art.º 3.º, n.º 3 do CPC, assegurando a efectivação do princípio do contraditório.
Tal norma determina com clareza que: o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
No entanto, mesmo que o tribunal recorrido não convidou as partes para pronunciar nos termos da referida norma do CPC, com possibilidade de influir na decisão de mérito do processo, o n.º 1 do art.º 147.º do mesmo Código determina apenas a nulidade processual.
Relativo à nulidade processual, o interessado deve reclamar ao relator do Tribunal de Segunda Instância no prazo legal, ao abrigo dos art.ºs 148.º e 151.º do CPC, para, no caso de procedência, anular os actos subsequentes, incluído o acórdão ora recorrido, e praticar de novo o acto processual omitido (art.º 147.º, n.º 2 do CPC), e não suscitá-la por meio de recurso. A reclamação tem por objecto a nulidade processual, o recurso um erro de julgamento.
Assim, o recorrente devia suscitar a questão por meio de reclamação. Improcedem os recursos nesta parte.
2.3 O princípio da adequação formal
O recorrente considera ainda que, fora do mecanismo de fiscalização concreta, só se pode impugnar uma norma através de impugnação de normas, meio processual previsto no art.º 88.º do CPAC. Ao proceder à apreciação da respectiva norma nos presentes autos, o Tribunal de Segunda Instância violou os princípios da adequação formal previsto no art.º 7.º, da estabilidade da instância previsto no art.º 212.º e o princípio dispositivo previsto no art.º 564.º, n.º 1, todos do CPC.
Dispõe assim o art.º 7.º do CPC:
“Quando a tramitação processual prevista na lei não se adeque às especificidades da causa, deve o juiz oficiosamente, ouvidas as partes, determinar a prática dos actos que melhor se ajustem aos fins do processo.”
Tal norma exige a correspondência entre o processo e o pedido da parte.
Mas no presente processo não existe necessidade de recorrer ao princípio da adequação forma.
O pedido de autor determina a forma do processo. Nos recursos contenciosos, os autores pediram a anulação das decisões do Secretário para a Segurança e escolheram correctamente o meio de recurso contencioso. E o Tribunal de Segunda Instância proferiu as correspectivas decisões segundo os pedidos, sem ultrapassar o âmbito do processo.
Os n.ºs 4 e 5 do art.º 101.º do EMFSM referidos nos actos impugnados foram alterados pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004. No julgamento dos recursos contenciosos, o Tribunal de Segunda Instância entende que o Chefe do Executivo não tem competência para alterar os Decretos-Leis através de Regulamento Administrativo, não considerando tal Regulamento Administrativo legal. Assim, recusou a aplicação deste e consequentemente das disposições do EMFSM alteradas por aquele Regulamento Administrativo.
Na realidade, segundo a disposição do art.º 83.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, os tribunais da Região estão sujeitos apenas à lei no julgamento. Por isso, se o tribunal entenda no julgamento que a norma que devia ser aplicada viola outra norma de hierarquia mais elevada, o tribunal deve aplicar a norma de hierarquia superior ou outra norma legal, e já não a norma de hierarquia inferior e ilegal. Trata-se de manifestação do princípio da hierarquia das leis.
Assim, salvo disposição legal em sentido diferente, qualquer que seja o tipo de processos, a instância e a fase processual, o tribunal, ao aplicar uma norma, pode apreciar a sua validade, nomeadamente se há violação de norma de hierarquia superior, oficiosamente ou a pedido, desde que não se encontra esgotado o poder jurisdicional. Se entenda que existe este vício, o tribunal já não pode aplicar a norma que teria de aplicar e reputada agora ilegal, passando a aplicar outra norma legal a fim de julgar a causa de acordo com o pedido de autor.
Recorrendo mutatis mutantis à teoria de fiscalização concreta da constitucionalidade, como afirma o Prof. Jorge Miranda:
“Apresenta-se como incidental a fiscalização inserida em processo que converge para outro resultado que não a garantia da Constituição; e nele a inconstitucionalidade é questão prejudicial ou seja, questão de Direito substantivo de que depende a decisão final a tomar no processo. ...
Observe-se que uma coisa é falar em questão prejudicial, outra coisa – noutro plano – falar em incidente de inconstitucionalidade. A questão de inconstitucionalidade não é uma questão incidental ou de Direito processual, é uma questão prejudicial ou de Direito constitucional substantivo; mas é suscitada incidentalmente em processo que tem por objecto uma questão diferente.”1
No contencioso administrativo, Santos Botelho afirma: A recusa da aplicação de normas inconstitucionais ou que contrariem outras de hierarquia superior traduz “uma emanação do princípio da hierarquia das leis e do valor superior do texto constitucional.” Em relação a regulamentos da Administração, “a título incidental qualquer tribunal poderá conhecer da legalidade dos regulamentos.”2
No entanto, é de salientar que o juízo aqui falado de que uma norma viola outra de hierarquia superior é apenas uma parte integrante da fundamentação da sentença, ou seja, um passo de todo o raciocínio lógico-jurídico da decisão final, não constituindo o conteúdo da decisão da sentença. O tribunal não pode servir deste juízo para proferir uma sentença de que uma norma seja ilegal e com força obrigatória geral. Tal juízo é válido apenas no próprio processo, já não em relação a outros processos ou até outros tribunais. A norma que se considera ilegal não se torna inválida por causa deste juízo.
Na realidade, quando o tribunal desaplica uma norma por violação de outra norma de hierarquia mais elevada, pode aplicar a norma que anteriormente regulava a matéria, uma norma subsidiariamente aplicável, ou directamente uma norma de hierarquia superior, de modo a julgar o mérito da causa.
Nos acórdãos recorridos, o Tribunal de Segunda Instância apenas considera, na parte de fundamentação, que o Regulamento Administrativo n.º 9/2004 não pode alterar o EMFSM aprovado por Decreto-Lei, limitando-se a anular os actos impugnados na parte decisória, o que está em conformidade com as disposições processuais do recurso contencioso, sem ultrapassar o âmbito do poder de jurisdição consentido neste meio processual para proferir uma sentença sobre a validade das respectivas normas.
Se o meio utilizado pelos autores fosse o de impugnação de normas previsto no art.º 88.º do CPAC, o tribunal já podia apreciar a legalidade de regulamentos administrativos impugnados por aqueles, examinando se a norma viola outra de valor não superior à lei da Assembleia Legislativa da Região. No caso afirmativo, declara-se na sentença a norma ilegal com força obrigatória geral. Só que, os autores dos presentes processos não instauraram este tipo de processo e o Tribunal de Segunda Instância também não proferiu sentença específica deste meio processual. Assim, improcede esta parte dos recursos.
2.4 Violação do princípio da estabilidade da instância e do princípio dispositivo
Em relação às partes dos acórdãos recorridos em que considera que a Administração não podia revogar as decisões de fixar as datas de percepção do primeiro prémio de antiguidade dos interessados por já ter sido sanada a ilegalidade, como um dos fundamentos para anular os actos administrativos impugnados (III Fundamentação legal da decisão, 3.), procede a questão alegada pelo recorrente sobre a violação do princípio da estabilidade da instância e do princípio dispositivo.
Nos acórdãos recorridos, o Tribunal de Segunda Instância suscitou oficiosamente o vício e procedeu à apreciação, sem que fosse alegado pelos recorrentes dos recursos contenciosos nem pelo Ministério Público.
Mas de acordo com o art.º 124.º do Código do Procedimento Administrativo, tal vício determina apenas a anulabilidade dos actos impugnados, e não a nulidade ou inexistência jurídica. No recurso contencioso, o tribunal só pode apreciar o vício determinante da anulabilidade do acto a pedido. Por isso, ao apreciar oficiosamente tal vício, o Tribunal de Segunda Instância incorreu no excesso de pronúncia. Nos termos dos art.ºs 571.º, n.º 1, al. d), segunda parte e 563.º, n.º 3 do CPC, deve-se declarar a nulidade dos acórdãos recorridos nesta parte.
2.5 O período de frequência do Curso de Formação de Oficiais e o prémio de antiguidade. O princípio do aproveitamento dos actos administrativos
Agora, o ponto em discussão consiste no seguinte: se pode ser considerado como tempo de serviço para atribuição do prémio de antiguidade o período de frequência do Curso de Formação de Oficiais da Escola Superior das Forças de Segurança de Macau (ESFSM) pelos recorrentes de recurso contencioso.
A posição dos actos impugnados é negativa. De acordo com a informação-proposta da Direcção dos Serviços das Forças de Segurança de Macau referida naqueles actos, os alunos dos cursos superiores da ESFSM não se integram nas carreiras profissionais das Forças de Segurança, isto é, não são trabalhadores da Administração Pública. Por isso, o período de frequência não pode ser considerado como tempo de serviço necessário para receber o prémio de antiguidade. O tempo de serviço para efeitos de aposentação não equivale ao do prémio de antiguidade.
A entidade recorrida, ora recorrente, ao concordar com a referida posição, salientou que o n.º 4 do art.º 101.º do EMFSM que determina a contagem do tempo de frequência do Curso de Formação de Oficiais como tempo de serviço só é válido para o cálculo da pensão de aposentação e concessão de licenças previstos no n.º 5 do mesmo artigo. Por seu lado, art.º 181.º, n.º 2 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM) faz coincidir expressamente o início da contagem do tempo de serviço para atribuição do prémio de antiguidade com o dia de ingresso na função pública. Não existe, assim, qualquer lacuna jurídica. Mas apenas que o legislador não pretendeu levar tão longe a sua benevolência. Afinal, negou provimento aos recursos hierárquicos com fundamento na referida norma do ETAPM, mantendo a decisão de contar o tempo de serviço para atribuição do prémio de antiguidade a partir do ingresso na função pública.
Nos acórdãos recorridos, o Tribunal de Segunda Instância entendeu que o Chefe do Executivo não tem competência para alterar os Decretos-Leis por meio de Regulamento Administrativo. Há vício de violação de lei porque os n.ºs 4 e 5 do art.º 101.º do EMFSM aplicados pelo ora recorrente foram alterados pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004, o que constituiu fundamento para anular os actos administrativos impugnados.
Mas o Tribunal de Segunda Instância considerou, ao mesmo tempo, que, se os alunos da ESFSM não fossem trabalhadores da Administração Pública, tendo em conta que o n.º 2 do art.º 181.º do ETAPM prescreve expressamente que a contagem do tempo de serviço para atribuição do prémio de antiguidade é feita a partir da data do ingresso na função pública, e o primitivo n.º 4 do art.º 101.º do EMFSM sobre a contagem do tempo de serviço é norma especial apenas para efeitos do cálculo da pensão de aposentação e concessão de licenças, “quando o despacho administrativo recorrido não se relaciona com a aplicação do Regulamento Administrativo n.º 9/2004 de 29 de Março, não há qualquer ilegalidade a posição jurídica sobre o critério de início de contagem do tempo de serviço para atribuição do prémio de antiguidade ao recorrente.”
Dispõe, assim, o art.º 101.º do EMFSM:
“1. Conta-se como tempo de serviço, no sentido de serviço prestado ao Território, o tempo de serviço efectivo, acrescido:
a) Do prestado no exercício de outras funções públicas;
b) Das percentagens de bonificação atribuídas por lei.
2. Conta-se ainda como tempo de serviço o da:
a) Frequência da ESFSM;
b) Prestação do SST.
3. Não é contado como tempo de serviço o correspondente às situações em que o militarizado seja considerado fora da efectividade de serviço, com excepção da situação a que se refere a alínea a) do n.º 2 do artigo 75.º
4. Para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2, conta-se todo o tempo de serviço relativo ao Curso de Formação de Oficiais, incluindo o relativo ao período anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, que aprovou o presente Estatuto.
5. O tempo de serviço constitui a base para o cálculo da pensão de aposentação e conta-se para efeito de concessão de licenças.”
O referido n.º 4 foi introduzido pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004. o primitivo n.º 4 passou para o n.º 5, mantendo o conteúdo inalterado.
Por seu lado, prescreve os art.ºs 180.º e 181.º do ETAPM:
“Artigo 180.º
(Atribuição)
1. Os funcionários e agentes em efectividade de serviço, ou em situação legal que confira direito a auferir vencimento têm direito a um prémio de antiguidade, por cada 5 anos de serviço prestado, até ao limite de 7, no montante previsto na tabela 2.
2. Os aposentados e reformados que prestem serviço à Administração do Território a qualquer título não adquirem, por esse facto, direito ao prémio de antiguidade.
Artigo 181.º
(Contagem de tempo de serviço)
1. No cômputo dos períodos para aplicação do disposto no artigo anterior é levado em conta todo o tempo de serviço que por lei deva ser considerado para efeitos de aposentação, com excepção dos acréscimos anteriormente concedidos, em virtude do exercício de funções em Macau.
2. Salvo disposição especial, a contagem do tempo de serviço para atribuição do primeiro prémio de antiguidade é feita a partir da data do ingresso na função pública.
3. Para o segundo prémio e seguintes, a contagem do tempo de serviço faz-se a partir do dia em que se complete o período imediatamente anterior.
4. Quando o tempo de serviço prestado não possa ser confirmado pela entidade onde o funcionário ou agente exerça funções recai sobre este o ónus da prova.”
O Regulamento Administrativo n.º 9/2004 alterou diversos artigos do EMFSM. Para o art.º 101.º deste Estatuto, relaciona-se apenas com o n.º 4 agora introduzido. Por isso, segundo a posição dos acórdãos recorridos, se o Regulamento Administrativo não podia ser considerado legal, no art.º 101.º do Estatuto só o n.º 4 era ilegal. Mas a norma do n.º 4 destina-se sobretudo a clarificar que o Curso de Formação de Oficiais relevante para contagem do tempo de serviço inclui o período anterior à vigência do Estatuto. Trata-se de uma norma retroactiva, que nada tem a ver com a questão em discussão nos presentes autos, nem nunca foi suscitada qualquer questão sobre o conteúdo desta norma ao longo de todo o processo.
Já o n.º 5 do art.º 101.º do Estatuto, que é o primitivo n.º 4, não será afectado pela validade do Regulamento Administrativo n.º 9/2004, pois não foi alterado o seu conteúdo.
Na verdade, o fundamento dos actos administrativos impugnados não é os n.º 4 e 5 do art.º 101.º do EMFSM, ou pelo menos não é como se refere nos acórdãos recorridos: “aplicou sobretudo o conteúdo do art.º 101.º do EMFSM resultado da alteração sobre a sua versão inicial operada por aquele Regulamento Administrativo”, mas sim a disposição do n.º 2 do art.º 181.º do ETAPM.
Embora foram referidos os n.ºs 4 e 5 do art.º 101.º do EMFSM nos actos administrativos impugnados, foi apenas para explicar a inaplicabilidade destas normas aos presentes casos e o seu sentido e âmbito de aplicação devidos, não constituindo fundamento jurídico da decisão dos mesmos actos administrativos.
Assim, a situação de ilegalidade do Regulamento Administrativo n.º 9/2004 referida nos acórdãos recorridos não se relaciona com a questão em litígio dos presentes autos.
Por outro lado, é de notar ainda que, apesar de o tribunal recorrida entender que o Regulamento Administrativo n.º 9/2004 não podia alterar o EMFSM, não se deve anular os actos administrativos impugnados segundo o princípio de aproveitamento dos actos administrativos3.
Conforme este princípio, em relação ao poder vinculado da Administração, deve negar a eficácia invalidante de vício verificado, ou seja, não anular o acto que padece este vício, quando se possa afirmar com segurança que o novo acto a praticar pela Administração em execução de sentença anulatória do recurso contencioso teria necessariamente o mesmo conteúdo idêntico ao acto anulando.
Não há dúvida que a atribuição do prémio de antiguidade a trabalhadores da Administração Pública consiste num poder vinculado, dependendo apenas do tempo de serviço do interessado, sem qualquer margem para escolha do conteúdo da decisão por parte da Administração.
Se o tribunal recorrido considera que, segundo as normas aplicáveis, isto é, o n.º 2 do art.º 181.º do ETAPM e o primitivo n.º 4 do art.º 101.º do EMFSM, “não há qualquer ilegalidade a posição jurídica sobre o critério de início de contagem do tempo de serviço para atribuição do prémio de antiguidade ao recorrente”, a Administração devia proferir decisão de conteúdo igual ao do acto impugnado na execução da sentença anulatória.
Assim, foi violado o princípio do aproveitamento dos actos administrativos pelos acórdãos recorridos.
Quanto à questão suscitada pelos recorrentes de recurso contencioso de contagem do tempo de frequência do Curso de Formação de Oficiais para o tempo de serviço necessário à percepção do prémio de antiguidade
São condições para a atribuição do prémio de antiguidade previstas nos art.ºs 180.º e 181.º do ETAPM: a efectividade de serviço, ou em situação legal que confira direito a auferir vencimento, uma unidade corresponde aos cinco anos de serviço prestado, o tempo de serviço ser contado a partir da data do ingresso na função pública. São de verificação cumulativa, não pode faltar qualquer uma delas.
Para os alunos admitidos à ESFSM sem conservar o estatuto primitivo de trabalhador da Administração Pública, só podem ingressar nos quadros das corporações das Forças de Segurança de Macau após conclusão dos Cursos de Formação de Oficiais com aproveitamento (art.º 79.º, n.º 1 do EMFSM), obtendo o estatuto de trabalhador da Administração Pública. Só a partir deste momento se verifica uma das condições para recebimento do prémio de antiguidade: o tempo de serviço ser contado a partir da data do ingresso na função pública.
A contagem do tempo de frequência na ESFSM como tempo de serviço prevista no art.º 101.º do EMFSM só é relevante para o cálculo da pensão de aposentação e concessão de licenças referidos no n.º 5 do mesmo artigo, não podendo ser contado como tempo de serviço destinado à percepção do prémio de antiguidade.
Pelo que os actos impugnados devem ser mantidos.
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em julgar procedentes os recursos jurisdicionais e:
1. Declarar nulos os acórdãos recorridos na parte em que consideraram que os actos administrativos não podiam ter alterado as datas do recebimento do prémio de antiguidade (III. Fundamentação legal da decisão, 3.);
2. Revogar na parte restante os acórdãos recorridos;
3. Em consequência, negam provimento aos recursos contenciosos.
Custas individuais pelos recorrentes dos recursos contenciosos nas duas instâncias, respectivamente com as taxa de justiça fixada em 6 UC para o recurso contencioso e em 4 UC para o recurso jurisdicional. Procuradoria em 1/4 da taxa de justiça.
Aos 30 de Abril de 2008.
Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
A Procuradora-Adjunta
presente na conferência: Song Man Lei
1 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo VI, Inconstitucionalidade e Garantia da Constituição, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 55.
2 José Manuel Santos Botelho, Contencioso Administrativo, 4ªed., Almedina, Coimbra, 2002, p. 18 e 497.
3 V. acórdãos do TUI de 17 de Dezembro de 2003 e de 10 de Maio de 2006, respectivamente dos processos n.ºs 29/2003 e 7/2006.
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Processo n.° 8 / 2007 (9, 17, 18, 19/2007) 23