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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso laboral
N.º 42 / 2009

Recorrentes: A
Dr. B, mandatário dessa Companhia
Recorrido: C







   1. Relatório
   Na presente acção de processo civil de trabalho relativo a acidentes de trabalho, intentada pelo trabalhador C contra a A, o Tribunal Judicial de Base julgou procedente a acção e condenou a ré a pagar ao autor a quantia de MOP$205.289,93, acrescida de juros vencidos e vincendos desde a citação até integral e efectivo pagamento.
   Inconformada com parte desta decisão, a ré recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Na pendência do recurso foi suscitada oficiosamente a questão de litigância de má fé da recorrente por ter sido verificada a discrepância entre o conteúdo da cláusula 4) das condições da apólice e o que foi alegado no ponto 48 das alegações do recurso e na ponto XXI das respectivas conclusões.
   Por acórdão de 12 de Novembro de 2009 do processo n.º 650/2009, o Tribunal de Segunda Instância, para além de julgar parcialmente procedente o recurso, condenou a recorrente pela litigância de má fé no pagamento de 10 UC por ter deduzido oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar e ordenou a comunicação à Associação de Advogados de Macau por entender que o mandatário tinha responsabilidade pessoal.
   Desta parte de decisão sobre a litigância de má fé vêm agora a A e o seu mandatário Dr. B recorrer para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. Os recorrentes não fizeram uso malicioso e abusivo do processo.
   2. A conduta dos recorrentes não traduz uma alteração consciente da verdade dos factos.
   3. Com efeito, os recorrentes manifestaram ao longo de todo o processo uma postura processualmente correcta, em cooperação com o tribunal, fornecendo de boa fé todas as informações relevantes para uma boa decisão da causa, incluindo haverem junto o próprio documento em que se alicerça a sua condenação enquanto litigantes de má fé.
   4. A junção deste documento logo com a apresentação da sua primeira peça processual, a contestação, demonstra, pelo menos, que os recorrentes em momento algum do processo pretenderam ofender o interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela própria justiça o qual, por via do mesmo documento e apesar da posição alegada pela recorrente naquela peça, permaneceu intacto.
   5. Tanto que o Tribunal de 1ª Instância não concluiu pela litigância de má fé dos ora recorrentes.
   6. A questão que está no cerne da condenação em litigância de má fé é uma questão lateral, sendo a sua procedência ou improcedência praticamente irrelevante, para as partes.
   7. Estão em causa 105 dólares de Hong Kong, ou, no máximo, se incluídas as despesas de deslocação entre Macau e Hong Kong, cerca de 800/900 patacas ao câmbio legal.
   8. A Cláusula 4) da apólice em questão está escrita em fonte extremamente reduzida, sendo que a parte relevante se resume a poucas palavras e só muito excepcionalmente é incluída neste tipo de seguros.
   9. A recorrente incluiu no mesmo n.º 48 da petição de recurso as despesas contraídas “fora de Macau”, englobando simultaneamente as contraídas na China continental e as contraídas em Hong Kong, tendo, até, obtido o provimento do recurso quanto às primeiras.
   10. O argumento censurado foi utilizado pela recorrente em segunda linha e apenas para o caso de não se conceder provimento ao n.º 46 da mesma peça, nos termos do qual, estando provado que o autor violou o n.° 1 do art.º 31.º do Decreto-Lei n.° 45/94/M, de 14 de Agosto, cessaria a obrigação de indemnização atinente àquelas despesas médicas, fossem as mesmas contraídas dentro ou fora da RAEM.
   11. No instituto processual da litigância de má fé, imperativos de justiça e equidade pedem moderação e contenção ao decisor.
   12. E por todo o exposto, com base no todo, tendo em conta a integralidade da sua conduta processual, a decisão mais justa sem contender com a lei é, salvo melhor opinião, a de considerar que os recorrentes laboraram num erro desculpável e não no dolo ou na negligência grave.
   Disposições legais violadas pelo douto acórdão recorrido: art.ºs 385.º e 388.º do Código de Processo Civil.”
   Pedindo que o presente recurso seja julgado procedente e revogado o acórdão recorrido na parte impugnada.
   
   O Ministério Público, em representação do trabalhador, emitiu as seguintes alegações:
   “Assiste, a nosso ver, razão aos recorrentes.
   
   O objecto do presente recurso consiste em saber se se está, in casu, perante uma situação de litigância de má fé.
   Nos termos do disposto no art.º 385.°, n.° 2, al. a), do C. P. Civil – disposição em que se baseou a decisão recorrida – “diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave ... tiver deduzido oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar”.
   E, tendo-se como adquirida a discrepância entre o teor da cláusula 4) da apólice junta com a contestação e o ponto n.° 48 das alegações de recurso, a questão que se coloca é a da verificação do dolo ou da negligência grave.
   Nesse âmbito, todavia, impõe-se, em nosso juízo, atentas as circunstâncias do caso, afastar a primeira alternativa – isto é, a consciência, por parte dos recorrentes, da sua falta de razão.
   Afigura-se incontroversa, entretanto, a emergência de uma actuação negligente.
   Deverá, então, essa negligência ter-se como “grave”?
   O conceito de negligência grave, por via da sua indeterminação, só pode ser preenchido por recurso à actividade interpretativa da Doutrina e da Jurisprudência.
   Corresponde, essencialmente, como é sabido, ao conceito de negligência grosseira.
   
   Na doutrina portuguesa, Cavaleiro de Ferreira, ainda que criticando a adopção desse conceito, ensina que tal negligência “deve corresponder à culpa temerária” (cfr. Lições de Direito Penal, Verbo, 1992, pg. 310).
   E Maia Gonçalves, na esteira de Cuello Calón, afirma, igualmente, que se trata de “uma negligência temerária, bem conhecida do direito espanhol, de contornos mal definidos, mas que a doutrina e a jurisprudência do país vizinho definem como podendo consistir na falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das aconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos actos correntes da vida ... ” (cfr. Código Penal Português, 10ª Ed., pg. 145).
   Na doutrina alemã, Jescheck, referindo-se à negligência temerária, expende que a mesma ocorre quando se infringe, em medida anormalmente alta, o dever de cuidado ou quando o autor não presta atenção ao que no caso era evidente para qualquer um (cfr. Tratado de Derecho Penal, Parte General, Comares-Granada, 1993, pg. 517).
   A jurisprudência portuguesa tem-se pronunciado, também, no sentido de que a expressão negligência grosseira corresponde à figura de culpa temerária (cfr., por todos, ac. da R. E., de 19-11-91, CJ, XVI, 5, 260).
   No caso sub judice, não ocorre, no nosso entender, a temeridade que a negligência em causa pressupõe.
   E há, a propósito, dois elementos que devem ser chamados à colação.
   O primeiro, como se sublinha nas alegações dos recorrentes, prende-se com a “especificidade” ou “excepcionalidade” da cláusula em apreço.
   O segundo, mais relevante, tem a ver com o facto de a aposição em foco se reportar a uma quantia diminuta – com “um impacto praticamente nulo relativamente ao todo”, como acentuam os mesmos.
   Os elementos em causa tiveram naturais reflexos no dever objectivo de cuidado que impendia sobre os recorrentes.
   Sempre se deverá atentar, por outro lado, que se tratou, na perspectiva apontada, de uma negligência “marginal”.
   Não se revela, assim, na nossa óptica, uma atitude “particularmente censurável de leviandade ou descuido" (cfr. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, pg.381).
   Deve, pelo exposto, o recurso ser julgado procedente.”
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   No acórdão ora recorrido, o Tribunal de Segunda Instância condenou a ré recorrente como litigante de má fé por entender que esta impugnou a sentença de primeira instância, alegando falsamente a inexistência de uma cláusula que efectivamente existe, deduziu assim oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar e o seu mandatário tinha responsabilidade pessoal por ter sustentado a inexistência de tal cláusula.
   
   Está em causa o pagamento das despesas médicas e de deslocação do autor, trabalhador vítima do acidente de trabalho, no valor total de MOP$2.247,89, que a recorrente, no recurso para o Tribunal de Segunda Instância, rejeitou a sua responsabilidade por entender que devia ser o autor a pagar estas despesas por se recusar a ser examinado por médico da confiança da recorrente, alegando a violação do art.º 31.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 40/95/M.
   Como fundamento subsidiário da questão suscitada, a recorrente continua a alegar nos n.ºs 47 e 48 das suas alegações do recurso, que motivou a condenação por litigância de má fé:
   “47. Por outro lado, mesmo que assim se não entendesse, para além do montante de MOP$990,00, correspondente às despesas médicas incorridas em favor do Hospital, as demais despesas dizem respeito a danos patrimoniais ocorridos fora de Macau, mais concretamente, na China e em Hong Kong.
   48. Assim, o quantitativo de MOP$1.257,89 (MOP$2.247,89 – MOP$990,00), deve ser excluído da obrigação de indemnização a cargo da recorrente, porque, nos termos da apólice junta aos autos, não existe cláusula especial que estenda o âmbito territorial de cobertura dos danos patrimoniais, para fora da RAEM.”
   Nas respectivas conclusões, o n.º XXI tem o mesmo teor.
   
   Realmente, segundo o n.° 4 da apólice junta pela recorrente com a sua contestação a fls. 188:
   “This policy is extended to cover medical expenses incurred in Hong Kong. ...”
   Assim, é evidente que o referido fundamento subsidiário está em manifesta contradição com o teor desta cláusula da apólice.
   
   Sobre a litigância de má fé dispõe o art.º 385.°, n.° 2 do Código de Processo Civil (CPC):
   “2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
   a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
   b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
   c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
   d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
   
   Efectivamente, segundo o art.° 9.° do CPC, as partes devem agir de acordo com os ditames da boa fé, não devendo, designadamente, formular pedidos ilegais, articular factos contrários à verdade, requerer diligências meramente dilatórias e omitir o dever da cooperação.
   
   A condenação por litigância de má fé pressupõe um juízo de censura sobre o comportamento contrário à ideia de um processo justo e leal, adoptado por participante processual, procurando moralizar a lide e uma maior responsabilização das partes na condução do processo.
   Segundo a definição da al. a) do n.º 2 do art.º 385.º do CPC, deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar é uma das condutas integráveis na litigância de má fé, relacionada com o dever da parte de indagar, antes de propor a acção, da fundamentação da sua pretensão.
   E o corpo deste número determina que a conduta de má fé pode ser praticada tanto por dolo como por negligência grave.
   “Se se prova que a parte sabia que a sua pretensão ou defesa careciam de fundamento e que, não obstante este conhecimento, as deduziu, a parte agirá dolosamente. A pretensão e a defesa são, em concreto, absolutamente injustificadas.”
   Se “a parte apenas deduziu a pretensão que não tem fundamento, não porque assim quis, sabendo que a situação era de falta de fundamentação, mas porque, ao não indagar se a sua pretensão era fundamentada, no plano do facto e do direito, acaba por praticar uma acção” negligentemente, ou seja, em violação dos deveres de indagação e cuidado. E para que seja condenável por litigância de má fé, deverá que ela ter agido com culpa grave ou negligência grosseira.1
   
   No recurso para a segunda instância, tendo por objecto parte da decisão de primeira instância, a ré companhia de seguros, ora recorrente, suscitou duas questões: uma consiste em impugnar o facto dado como provado em que foi fixada a duração de incapacidade temporária absoluta da vítima e outra a responsabilidade de pagamento das despesas médicas e de deslocação da mesma vítima, matéria que originou a condenação por litigância de má fé.
   É certo que a recorrente defende a ausência de obrigação de pagamento de despesas ocorridas fora da Região, quando o ponto n.° 4 da apólice aponta que as despesas médicas ocorridas em Hong Kong são incluídas no âmbito do seguro.
   Ora, dos autos não resulta que a recorrente actuou com dolo, ou seja, com a intenção de alegar no recurso uma questão que não tinha fundamento fáctico.
   A recorrente justificou que se tratava de um lapso manifesto.
   Atendendo a estratégica da defesa da recorrente, o modo como esta alegou a ausência de responsabilidade das despesas nas alegações do recurso para a segunda instância, o relativo grau de importância da cláusula da apólice em causa no todo o pedido indemnizatório do autor, e a diferença entre o valor das referidas despesas (MOP$1.257,89) e o de indemnização arbitrada pela primeira instância (MOP$205.289,93), não nos parece evidente que a recorrente pretendia litigar de forma marcadamente injusta ou desonesta. Ao invés, mais parece que a recorrente suscitou a questão por falta de atenção, não conferiu com o cuidado devido os termos concretos da apólice para fundamentar o recurso.
   Não há dúvida que a recorrente actuou com negligência, pois como profissional forense, tem naturalmente a obrigação de inteirar todo o conteúdo, nos seus precisos termos, de documentos relevantes para a decisão da causa, de modo a evitar erros na alegação de matérias da causa.
   No entanto, a negligência da recorrente no caso concreto não é grave ou grosseira que justifica a condenação por litigância de má fé, razão pela qual deve ser revogada a respectiva parte da decisão no acórdão recorrido.
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso e revogar o acórdão recorrido nas partes em que a recorrente foi condenado pela litigância de má fé com a comunicação à Associação de Advogados de Macau e no pagamento das custas do respectivo incidente.
   Sem custas nesta instância.
   
   Aos 13 de Janeiro de 2010
   

Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Cfr. Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 393 a 395.
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Processo n.º 42 / 2009 11