ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 22 de Setembro de 2009, condenou a arguida A, com a circunstância agravante prevista no artigo 22.º da Lei n.º 6/2004, pela prática, em autoria material e na forma consumada de:
- Um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 8.º, n. 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro, na pena de 9 (nove) anos de prisão e de MOP$20.000,00 (vinte mil patacas), ou em alternativa, em 120 (cento e vinte) dias de prisão;
- Um crime de detenção ilícita de estupefacientes para consumo pessoal, previsto e punível pelo artigo 23.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 5/91/M, na pena de 2 (dois) meses de prisão;
- Um crime de consumo de estupefacientes em lugares públicos ou de reunião, previsto e punível pelo artigo 17.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão e de MOP$10.000,00 (dez mil patacas), ou em alternativa, em 60 (sessenta) dias de prisão;
- Um crime de detenção ilícita de cachimbos e outra utensilagem, previsto e punível pelo artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, na pena de 2 (dois) meses de prisão;
Em cúmulo jurídico, foi condenada na pena única de 9 (nove) anos e 9 (nove) meses de prisão e MOP$30.000,00 (trinta mil patacas), ou em alternativa, em 180 (cento e oitenta) dias de prisão;
Em recurso interposto pela arguida o Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 11 de Fevereiro de 2010, concedeu parcial provimento ao recurso e, aplicando a lei mais favorável, condenou a arguida, com a circunstância agravante prevista no artigo 22.º da Lei n.º 6/2004, pela prática, em autoria material e na forma consumada de:
- Um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelos artigos 8.º, n.º 1, e 10.º, alínea 9) da Lei n.º 17/2009, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- Um crime de detenção ilícita de estupefacientes para consumo pessoal, previsto e punível pelo artigo 14.º da Lei n.º 17/2009, na pena de 45 (quarenta e cinco) dias de prisão;
- Um crime de consumo de estupefacientes em lugares públicos ou de reunião, previsto e punível pelo artigo 17.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão e de MOP$10.000,00 (dez mil patacas), ou em alternativa, em 6 (seis) dias de prisão;
- Um crime de detenção ilícita de cachimbos e outra utensilagem, previsto e punível pelo artigo 15.º da Lei n.º 17/2009, na pena de 45 (quarenta e cinco) dias de prisão;
Em cúmulo jurídico, foi condenada na pena única de 7 (sete) anos de prisão e MOP$10.000,00 (dez mil patacas), ou em alternativa, em 6 (seis) dias de prisão.
Ainda inconformada, recorre a arguida para este Tribunal de Última Instância (TUI), terminando com as seguintes conclusões úteis:
- A recorrente não concordou com a pena que lhe foi aplicada, pela prática do crime de tráfico ilícito de estupefacientes e, também, não concordou com o crime de consumo em lugares públicos ou de reunião que lhe foi imputado;
- É de salientar que a recorrente declarou que a sua identidade verdadeira não é A. Talvez, segundo os tribunais de primeira e segunda instância, a decisão de imputar à recorrente a prática do crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas não sofra qualquer influência da questão sobre se a recorrente seja ou não a verdadeira A;
- Contudo, se a identidade verdadeira da recorrente não fosse A, surgiria logo a dúvida relacionada às circunstâncias do crime de tráfico ilícito de estupefacientes que lhe foi imputado, mormente às circunstâncias que foram observadas na determinação da pena;
- Mesmo que os tribunais de primeira e segunda instância dêem como provado o facto de que a recorrente forneceu estupefacientes a outrem para consumir, surgiu ainda a dúvida com a questão de que serão pertencentes à recorrente os estupefacientes depositados no respectivo apartamento? Surgiu, também, a dúvida com a questão de que serão pertencentes à recorrente o quarto e a bagagem em que se encontravam os estupefacientes?
- Em conformidade com as provas encontradas no processo supramencionado, nomeadamente os depoimentos das testemunhas, o aludido apartamento é pertencente a um indivíduo que tem a identidade verdadeira A. Pelo menos, não existem presentemente provas suficientes para apurarem que a recorrente fosse arrendatária ou tivesse direito à utilização daquele apartamento, ou fosse a ocupante efectiva do mesmo.
- Deste modo, verifica-se que, na determinação da pena aplicada à recorrente, pela prática do crime de tráfico ilícito de estupefacientes o TSI não atendeu a in dubio pro reo, consequentemente, aplicou-lhe uma pena inadequada e excessivamente pesada.
- Deve considerar-se que, na determinação da pena aplicada à recorrente, o TSI violou o disposto no art.º 65° do Código Penal, ou seja, o douto Tribunal não procedeu adequadamente à determinação da medida da pena.
- É mais adequado, se o tribunal superior, nos termos do art.º 65° do CP, determine uma pena mais leve em relação à pena de 6 anos e 6 meses de prisão.
Na resposta à motivação do recurso o Ex.mo Procurador-Adjunto defendeu que se não deve conhecer do recurso na parte em que o arguido impugna a condenação pelo crime de consumo em lugares públicos, por se tratar de decisão irrecorrível para o Tribunal de Última Instância. Quanto à pena imposta pelo crime de tráfico de estupefacientes defende a rejeição do recurso.
No seu parecer, o Ex.mo Procurador-Adjunto manteve a posição já assumida na resposta à motivação.
II – Os factos
As instâncias consideraram provados e não provados os seguintes factos:
Factos provados:
A arguida A, tendo adquirido do indivíduo desconhecido os comprimidos vulgarmente designado por “ma ku” e heroína, vendeu aos tóxicos-dependente no seu domicílio, nomeadamente no [Endereço (1)] de Macau, ma ku de 40 a 80 patacas por cada comprimido e heroína de 50 patacas por cada quota.
Além do mais, a arguida A ainda deixou os tóxico-dependentes que adquiriram dela drogas a entrarem no referido apartamento para as consumirem.
A arguida A mandou por vezes a arguida B a fazer transacção no referido apartamento ou ajudar-lhe a trazer drogas para tóxico-dependentes.
Em 5 de Maio de 2008, pelas 18h45 e pouco, à porta do seu domicílio, no [Endereço (1)] de Macau, a arguida A foi interceptada pelos agentes da PJ.
Os agentes da PJ entraram no referido domicílio da arguida A, estando presentes os arguidos B, C e a testemunha D.
Os agentes da PJ encontraram numa caixa da bagagem no quarto da arguida A um saco plástico transparente em que se continha 137 comprimidos de cor vermelha, com carácter “WY”, numa mala branca encontraram um comprimido com carácter “Tou Mei Hong”, de cor azul e um guardanapo em que se embrulhava pós brancos, e além disso descobriram acima da mesa de cabeceira 1 garrafa plástica, contendo líquido, com várias palhinhas metidas no dentro, 9 palhinhas de cor, 3 palhinhas feitas com papel de alumínio, 2 seringas e 1 lâmina, e na cama 11 seringas novas, 1 pacote de palhinhas de cor.
Além disso, no mesmo domicílio, encontraram na cama doutro quarto da arguida A 1 seringa, e no caixote de lixo, 14 papéis de alumínio e 1 seringa, acima da mesa 1 rolo de papel de alumínio e 2 lâminas; por outro lado, encontraram na sala de estar, acima do frigorifico, 1 seringa e 1 saco plástico transparente branco.
Após exame laboratorial, comprova-se que os referidos comprimidos vermelhos tem peso líquido total de 13,533g, contendo Metanfetamina, substância abrangida pela tabela II-B, anexa ao DL n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro; o referido comprimido azul, com peso líquido de 0,219g, contém Hidazolam, substância abrangida pela tabela IV anexa àquele diploma; os referidos pós brancos têm peso líquido de 0,057g, contendo substância abrangida pela tabela IV anexa àquele diploma; a garrafa plástica com várias palhinhas, com líquido no volume de 115 ml, contendo heroína, substância abrangida pela tabela I-A anexa àquele diploma; verifica-se, nas 9 palhinhas de cor, 3 palhinhas feitas pelos papeis de alumínio e 2 seringas, vestígio de heroína, substância abrangida pela tabela I-A anexa àquele diploma.
Na seringa encontrada noutro quarto, verifica-se vestígio da ketamina, substância abrangida pela tabela I-A anexa ao DL n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro; e nos 14 papeis de alumínio e 1 seringa encontrados na caixote de lixo, verifica-se vestígio da heroína, substância abrangida pela tabela I-A, anexa ao mesmo Decreto-Lei; na seringa e no saco plástico transparente branco, verifica-se heroína, substância abrangida pela tabela I-A anexa ao DL n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro.
As referidas drogas foram adquiridas pela arguida A junto a um indivíduo da identidade desconhecida para serem, além do consumo pessoal, vendidos a outrem, sobretudo, com a ajuda da arguida B, aos tóxico-dependentes, inclusivamente os arguidos C, E, F e as testemunhas G, H, I, J, K etc.
Todos os utensílios acima referidos, inclusivamente a garrafa plástica com várias palhinhas, as seringas, os papeis de alumínio, as palhinhas, as palhinhas feitas com papeis de alumínio, são utilizados pela arguida A para ela consumir drogas e fornecer a outros adquirentes para consumirem no domicílio acima referido.
No referido apartamento, os agentes da PJ viram que o arguido C estava a injectar drogas com uma seringa.
Após o exame laboratorial, comprova-se que a referida seringa manchou-se do vestígio da heroína, substância abrangida pela tabela I-A anexa ao DL n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro.
A referida seringa é utensílio que o arguido C utilizou para consumir uma quota de heroína, por este adquirida, a preço de 50 patacas, à arguida A às 18h30 daquele dia, no referido domicílio desta.
Pelas 19h10 e pouco do mesmo dia, o arguido E chegou ao referido apartamento, intentou adquirir, à arguida A, uma quota de heroína, pelo preço de 50 patacas, para consumo pessoal.
Os agentes da PJ encontraram, em flagrante, uma seringa na posse do arguido E.
A referida seringa era utensílio utilizado pelo arguido E para consumir aquela droga que intentou adquirir junto à arguida A.
Pelas 19h20 do mesmo dia, o arguido F foi ao apartamento acima referido, pretendendo adquirir, à arguida A, uma quota de heroína, pelo preço de 50 patacas, para consumo pessoal.
Os agentes da PJ encontraram, em flagrante, uma seringa no bolso das calças do arguido E.
A referida seringa era utensílio utilizado pelo arguido E para consumir aquela droga que tentou adquirir junto à arguida A.
Em 6 de Maio de 2008, os agentes da PJ encontraram na posse da arguida A, um telemóvel, e na carteira dela 1710 patacas e 120 hong kong dólares.
O referido telemóvel era utensílio de contacto utilizado pela arguida A na actividade de tráfico, sendo o dinheiro obtido através do tráfico.
No mesmo dia, os agentes da PJ encontraram na posse da arguida B, 1 telemóvel.
O referido telemóvel era utensílio de contacto utilizado pela arguida B ao ajudar a arguida A a empreender as actividades de tráfico.
Os arguidos A, B, C, E e F bem conheciam as características e a natureza dos referidos produtos estupefacientes.
A arguida A, adquiriu, deteve os referidos produtos estupefacientes para, além do seu consumo pessoal, os vender com fins lucrativos.
A arguida A concordou em ceder o seu domicílio a várias pessoas para estes consumirem produtos estupefacientes, sabendo que não pode fazê-lo.
A arguida A, ao tempo da conduta acima referida, estava a permanecer ilegalmente em Macau.
A arguida B, dolorosamente comparticipou no acto de tráfico com a arguida A.
Os arguidos C, E e F sabiam bem que não podem deter as referidas seringas como utensílios para consumirem drogas,
O arguido C sabia bem que não pode adquirir os referidos produtos estupefacientes para consumo pessoal.
Os arguidos A, B, C, E e F agiram livre, voluntária e dolorosamente.
Os arguidos A, B, C, E e F sabiam bem que os seus actos eram legalmente proibidos e punidos.
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Mais se provou:
De acordo com os certidões de registo criminal, os arguidos são todos delinquentes primários.
A 1ª arguida alegou que era desempregada antes de ser preso, o seu pai é comerciante e a mãe trabalhadora da escola, tem 1 irmão mais novo que frequenta a escola secundária no ensino complementar, possui o 2.º ano do curso do ensino secundário geral.
A 2a arguida alegou que era desempregada, tem a sua filha a seu cargo, possui o curso do ensino secundário geral.
O 3.º arguido alegou que era trabalhador de decoração, sem rendimento fixo, não tem ninguém a seu cargo, possui o curso do ensino secundário geral.
O 4.º arguido alegou que era trabalhador de decoração, auferia mensalmente cerca de RMB3.000,00 a 4.000,00, sem ninguém a seu cargo, possui o curso de ensino secundário geral.
O 5.º arguido alegou que era trabalhador de movimentação de cargas, auferia mensalmente 7.000,00 patacas, tem a seu cargo a sua mãe, a mulher e a filha, possui o curso de ensino secundário geral.
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Factos não provados:
Outros factos essenciais constantes da pronúncia e contestação, desconforme com os provados são os abaixo indicados:
Os produtos estupefacientes da arguida A eram distribuídos à grande número de pessoas.
A arguida B ajudou e facilitou o acto de tráfico da arguida A, tratando-se do acto auxiliar.
III - O Direito
1. As questões a resolver
A questão a resolver é a de saber se o Acórdão recorrido aplicou à recorrente uma pena demasiado pesada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes.
Não se conhecem das questões atinentes ao julgamento da matéria de facto (identidade da recorrente, ocupação do apartamento dos autos, violação do princípio in dubio pro reo), já que o Tribunal de Última Instância não tem poder de cognição nessa matéria (artigo 47.º, n.º 2 da Lei de Bases da Organização Judiciária), salvo invocando-se erro notório na apreciação da prova, o que não foi o caso, o que sempre seria insubsistente.
Não se conhece da questão relativa ao crime de consumo de estupefacientes em lugares públicos ou de reunião, uma vez que a este crime cabe a penalidade de prisão até 8 anos, o que inviabiliza o recurso para o Tribunal de Última Instância, atento o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 390.º do Código de Processo Penal.
2. Medida da pena
Quanto à questão suscitada a propósito da medida da pena este Tribunal tem entendido que “Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada” (Acórdãos de 23 de Janeiro e 19 de Setembro de 2008 e 29 de Abril de 2009, respectivamente, nos Processos n. os 29/2008, 57/2007 e 11/2009).
Não tendo sido apontada qualquer violação de norma respeitante a vinculação legal, ou de regra de experiência e não se afigurando ser a pena completamente desproporcionada, julga-se insubsistente a pretensão da recorrente, no sentido de lhe ser atribuída uma pena inferior.
É de rejeitar, portanto, o recurso.
IV – Decisão
Face ao expendido, rejeitam o recurso.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC. Nos termos do art. 410.º n.º 4 do Código de Processo Penal, pagará 3 UC pela rejeição do recurso.
Fixam os honorários do defensor da arguida em duas mil patacas.
Macau, 14 de Abril de 2010.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
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Processo n.º 8/2010