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  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
  I – Relatório
  O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 9 de Dezembro de 2009, condenou o 1.º arguido A pela prática, em co-autoria material, na forma consumada de:
  - Um crime de usura para jogo, previsto e punível pelo artigo 219.º, n.º 1 do Código Penal e pelo artigo 13.º da Lei n.º 8/96/M, de 22 de Julho, na pena de 10 (dez) meses de prisão e na proibição de entrada em casinos pelo período de 5 (cinco) anos;
  - Um crime de ofensa grave à integridade física, previsto e punível pelo artigo 138.º, alínea d) do Código Penal na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
  - Um crime de colocação em perigo da vida de outra pessoa, de que resultou a morte, previsto e punível pelo artigo 135.º, n.º 1, alínea a) e n.º 4 do Código Penal na pena de 10 (dez) anos de prisão;
  Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 13 (treze) anos de prisão e na proibição de entrada em casinos pelo período de 5 (cinco) anos.
  O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 25 de Março de 2010, negou provimento ao recurso interposto pelo arguido.
  Inconformado, recorre o arguido para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo que sejam os autos remetidos ao Tribunal Judicial de Base para apuramento do facto “causa da morte da vítima”. Caso não seja assim considerado, seja revogado o Acórdão recorrido e, em consequência, se conclua que o Recorrente cometeu um crime de usura, um crime de ofensas graves à integridade física agravado pelo resultado e um crime de omissão de socorro, aplicando-se, em cúmulo jurídico, uma pena não superior a 8 anos.
  Formula as seguintes conclusões úteis:
  - Com base no relatório pericial de autópsia, o Tribunal recorrido deu por provado que, em 2 de Março de 2008, “Os 1.°, 2° e 3° arguidos voltaram a bater na cabeça e nas várias partes do corpo da vítima, com socos e ponta-de-pes, até a mesma cair no chão, ficando desmaiada e inconsciente” e “As condutas acima referidas dos 1.º, 2° e 3° arguidos produziram directa e necessariamente uma lesão na cabeça da vítima, até a mesma ficar desmaiada e sem capacidade de se salvar”.
  - Tais factos deveriam ter sido enquadrados no art.º 138.º, alínea d), conjugado com o art.° 139.°, n.° 1, alínea b), ambos do Código Penal, isto é, com a conduta levada a cabo pelo 1.º arguido, ora Recorrente (em conjugação de esforços dos 2.° e 3.° arguidos), cometeu o crime de “ofensa grave à integridade física, com agravação pelo resultado (morte)”.
  - Quanto aos factos ocorridos em 8 de Março de 2008, em que participou o 1.° arguido, ora Recorrente, juntamente com os 2.° e 3.° arguidos o enquadramento jurídico-penal feito não se encontra correcta, pois não estão preenchidos os requisitos do crime de “exposição e abandono” do art.º 135.° do Código Penal.
  - O bem jurídico protegido neste tipo de ilícito é a vida humana, tratando-se de um crime de perigo concreto e para se dar por verificado, torna-se necessária uma deslocação espacial produzida pelo agente, resultando dessa deslocação um agravamento de riscos de forma a que a vítima fique numa situação em que seja incapaz de, por si só, defender-se.
  - Face aos factos dados por provados no que a esta questão refere, o Recorrente e seus co-arguidos cometeram o crime de “omissão de auxilio”, previsto e punido pela conjugação dos n.ºs 1 e 2 do art.º 194.° do Código Penal, porque, no dia 8 de Março de 2008, não a deslocaram para outro local diferente daquele onde deixaram a vítima depois de a terem ofendido corporalmente, no dia 2 de Março de 2008.
  - Nos termos do artigo 149.°, n.º 1, do Código Processo Penai de Macau, o princípio da prova pericial constitui uma limitação ao princípio da livre convicção do julgador.
  - Conforme resulta do relatório médico-legal, não se retira a conclusão de que a morte da vítima foi motivada por atraso no tratamento médico ou por falta de socorro, conforme se fez consignar no douto Ac. recorrido.
  - O Tribunal a quo concluiu que, se a vítima tivesse recebido o tratamento médico mais cedo, a lesão de que padecera teria sarado e a vítima ter-se-ia salvado.
  - O Tribunal a quo violou o princípio da prova pericial, ao não fundamentar a razão por que divergiu da conclusão constante do relatório de autópsia - prova bastante e suficiente para se conhecer da causa da morte da vítima nos autos em apreciação.
  A Ex.ma Procuradora-Adjunta respondeu à motivação, dizendo ser irrecorrível o Acórdão recorrido na parte em que condenou o recorrente pela prática, em co-autoria material, na forma consumada de um crime de ofensa grave à integridade física, previsto e punível pelo artigo 138.º, alínea d) do Código Penal, manifestando-se, quanto ao restante, pela improcedência do recurso.
  No seu parecer, o Ex.mo Procurador-Adjunto entende que deve ser julgado improcedente o recurso.
  
  II – Os factos
  As instâncias consideraram provados e não provados os seguintes factos:
  Em determinado dia de 2007, os arguidos A, B e C concederam empréstimo à vítima D para jogar, com a condição de que por cada empréstimo se pode pedir dinheiro emprestado no valor entre dez e vinte mil e, de dez em dez dias deve ser cobrado mil dólares por cada empréstimo de dez mil.
  A vítima D concordou pedindo aos supracitados arguidos que lhe emprestassem vinte mil dólares de Hong Kong.
  Os arguidos A, B e C entregaram montante emprestado em numerário de vinte mil dólares de Hong Kong à vítima D.
  A vítima D, após ter perdido todo o montante emprestado acima referido, sempre não reembolsou o montante aos arguidos A e B.
  Em Março de 2008, o arguido A determinou juntar os arguidos B e C para recuperar junto da vítima D a dívida, tendo combinado que se a mesma não conseguisse liquidar a dívida, todos iriam batê-la como servir-lhe lição.
  No dia 2 de Março de 2008, pelas 20H56, o arguido A telefonou à vítima D para se encontrar na paragem de autocarro à frente do início da Rua de João de Araújo.
  Naquele dia, cerca das 21H00, o arguido A, conduzindo o seu veículo particular de cor preta de matricula MK-XX-XX, transportou os arguidos B e C, para ir ao supracitado local combinado.
  A vítima D, ao sair da casa, falou com seu irmão mais novo E para apresentar queixa à Polícia, caso ela não voltasse a casa naquela noite.
  A vítima, ao entrar e sentar-se no banco traseiro do supracitado veículo do arguido A, telefonou ao seu irmão mais novo E sobre o número de matricula do referido veículo.
  No referido veículo, o arguido A sempre insistiu em perguntar à vítima D quando ela conseguia reembolsar dinheiro e, quando a vítima respondeu que não tinha capacidade de liquidar a dívida, o arguido B que se sentia ao lado da vítima, deu bofetada à vítima. Enquanto o arguido C, agachado no assento de passageiro dianteiro, também virou-se batendo com punhos na cabeça da vítima.
  No decurso do caminho, o arguido A exigiu à vítima que telefonasse à sua amiga F para angariar dinheiro.
  Dado que a vítima D não conseguia angariar dinheiro, os arguidos B e C continuaram a bater a vítima D.
  Conduzindo o veículo até à povoação de Ká Hó, o arguido A parou o veículo em frente do Templo “Três Sábios” junto do antigo Centro de Formação Juvenil Dom Bosco, ordenou os arguidos B e C, mas também pessoalmente, para continuar a bater a vítima. E mais ordenou os arguidos B e C para puxar a vítima D para fora do veículo.
  Depois, os arguidos A, B e C, em conjunto, deram à vítima socos e pontapés nas várias partes do seu corpo.
  Em seguida, o arguido A, conjuntamente com os arguidos B e C levaram a vítima para o veículo. O arguido A levou o veículo para a antiga Leprosaria de Ká Hó, a fim de procurar um local retirado para continuar a agredir a vítima.
  O arguido A estacionou o seu veículo junto da antiga Leprosaria de Ká Hó, conjuntamente com os arguidos B e C, puxaram a vítima para fora do veículo.
  Os arguidos A, B e C, novamente deram socos e pontapés na cabeça e nas várias partes do corpo da vítima até que a mesma caiu no chão, desmaiando e perdendo a sua consciência.
  Os supracitados actos dos arguidos A, B e C causaram directa e necessariamente à vítima que ficou ferida gravemente na cabeça, perdendo a consciência e sua capacidade de auto socorro.
  Segundo as instruções dadas pelo arguido A, os arguidos B e C levaram a vítima D para dentro de uma casa de pedra desocupada sita nas proximidades da antiga leprosaria de Ká Hó, tendo-a deixado no lugar perto da porta da referida casa, e fechado a porta, voltado para o local onde estava estacionado o veículo do arguido A.
  Ao ver que a vítima D deixou a sua mala de mão e sapatos no chão, o arguido C tirou os referidos objectos pertencentes à vítima, no intuito de que a vítima não tinha sapatos para calçar quando acordasse.
  Depois, o arguido A conduziu o seu veículo, transportando os arguidos B e C ao deixar o local.
  Quando passaram por debaixo da Ponte de Amizade em direcção a Macau, o arguido A ordenou ao arguido C para deitar a mala da vítima no mar.
  No mesmo dia, pelas 22H45, os arguidos A, B e C, através do posto fronteiriço das Portas do Cerco, saíram de Macau.
  No dia 3 de Março de 2008, E, irmão mais novo da vítima E, segundo o pedido dela, apresentou queixa na polícia para auxílio por não ter visto o regresso a casa da sua irmã.
  No dia 6 de Março de 2008, pelas 21H40, o arguido A foi interceptado no Posto Fronteiriço das Portas do Cerco, tendo sido conduzido à Polícia Judiciária.
  No dia 7 de Março, agentes da Polícia Judiciária encontraram na posse do arguido A, um telemóvel de cor cinzenta escura, da marca “Nokia”, e RMB 19.000 em numerário.
  O supracitado telemóvel foi retido pelo arguido em 2 de Março de 2008, altura em que a vítima D telefonou para sua amiga F, tendo o arguido também utilizado o referido telemóvel para falar com a F.
  Após feita peritagem, o supracitado telemóvel foi avaliado em 50 patacas.
  E a quantia acima referida serve de utensílio e rendimento, da actividade de usura em casino prestada pelo arguido.
  No mesmo dia, o supracitado veículo de cor preta, pertencente ao arguido A também foi apreendido pelos agentes da Polícia Judiciária.
  No dia 8 de Março de 2008, o arguido exigiu aos arguidos B e C que voltassem a Macau, para se descolarem à supracitada casa de pedra desocupada sita nas proximidades da antiga Leprosaria de Ká Hó, a fim de saber a situação da vítima D.
  Dentro da supracitada casa de pedra, os arguidos A, B e C verificaram que a vítima D se encontrava ainda deitada no chão sem ter reacção.
  Não tendo os arguidos A, B e C levado a vítima ao hospital para socorro e tratamento, mas sim abandonaram imediatamente o local, e seguidamente no mesmo dia, através do posto fronteiriço das Portas do Cerco, regressaram ao Interior da China, a fim de eximir-se das perseguições e investigações da polícia.
  No dia 16 de Março de 2008, cerca das 10H00, a vítima foi descoberta e conduzida ao hospital para socorro e tratamento, tendo, contudo, sido declarada a sua morte às 19H00 do mesmo dia.
  Após exame feito pelos médicos legais, confirmou-se que o sinal vital da vítima se encontrava débil no momento em que foi transportada ao hospital e a sua morte foi devido aos choques na região temporal do lado direito, que provocaram contusão no cérebro e hematoma subdural.
  Os arguidos A, B e C agiram voluntária, livre e conscientemente ao praticarem os supracitados actos.
  Bem sabendo que não se pode, de comum acordo e em conjugação de esforços, facultar à vítima D, dinheiro ou qualquer outro meio destinado ao jogo, no intuito de obter para si interesses pecuniários inadequados.
  Os arguidos A, B e C tinham perfeito conhecimento de que, não se pode, de comum acordo e em conjugação de esforços, agredir a vítima D, no intuito de causar-lhe lesões graves à integridade física.
  Os mesmos arguidos, sabendo bem que não se pode, de comum acordo e em conjugação de esforços, abandonar no local pouco frequentado há 14 dias a vítima D com lesões graves sem capacidade de auto socorro por ter sido agredida pelos ditos arguidos, daí resultando a morte da vítima devido aos socorro e tratamentos tardios.
  Os mesmos arguidos sabiam bem que os seus actos eram proibidos e punidos por lei.
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  MAIS SE PROVOU:
  O 1° arguido A não é primário. 1) No Proc. n.º660/97 do 3° Juízo, pela prática de um crime de ofensa simples à integridade física, o arguido foi condenado na pena de 7 meses de prisão, com suspensão de execução da pena por 3 anos após ter indemnizado o ofendido. Já foi executada a referida pena. 2) No Proc. n.°PCS-069-00-1, pela prática de um crime de ofensa simples à integridade física, foi condenado na pena de 8 meses de prisão, com suspensão de execução da pena por 2 anos. Já foi executada a referida pena. 3) No Proc. n.ºCR3-05-0278-PCS, foi condenado na pena de 9 meses pela prática de um crime de usura para jogo, com suspensão de execução da pena por 3 anos. No momento em que praticou o facto imputados nos autos, não decorreu ainda o prazo da suspensão de execução da pena.
  De acordo com o registo criminal, os 2° e 3° arguidos são primários.
  O 1° arguido declarou que, antes de preso preventivo, exerceu como bate-fichas, auferindo mensalmente cerca de 20.000 patacas. Necessita de sustentar seus pais, e tem como habilitações literárias 3a classe do ensino primário.
  O 2° arguido declarou que, antes de ser preso preventivamente, exerceu como guarda de segurança de casino, auferindo mensalmente um salário de 7.000 patacas.
  Faleceu o seu pai quando o arguido era pequeno. Necessita de tomar cuidados da sua mãe e uma filha. Tem como habilitações literárias 8° ano de escolaridade.
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  FACTOS NÃO PROVADOS:
  Quanto ao outro facto relevante constante da Acusação, que não corresponde à verdade, em particular, é o seguinte:
  O 1 ° arguido tirou da mala da vítima o seu telemóvel apropriando-se deste.
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  CONVICÇÃO DO TRIBUNAL
  O 1° arguido prestou declarações na audiência de julgamento, tendo o mesmo, de livre vontade e fora de qualquer coacção, confessado parcialmente a prática dos factos que lhe são imputados, tendo, contudo, evitado os factos relevantes mas sim factos sem importância.
  O 2° arguido prestou declarações na audiência de julgamento, tendo o mesmo, de livre vontade e fora de qualquer coacção, confessado parcialmente a prática dos factos que lhe são imputados, tendo, contudo, evitado factos relevantes mas sim factos sem importância.
  O 3° arguido encontra-se em parte incerta, estando ausente à audiência de julgamento.
  O irmão mais novo da vítima contou a cena respeitante a que a vítima saiu de casa naquele dia e depois falou com ele ao telefone.
  A amiga da vítima F contou o decurso respeitante a que naquele dia, a vítima lhe telefonou para angariar dinheiro e na altura um indivíduo desconhecido lhe exigiu para liquidar a dívida em nome da vitima.
  Segundo as declarações prestadas pelos vários agentes policiais na audiência de julgamento, tendo os mesmos referido de forma clara e objectiva o decurso e resultados da investigação sobre o caso.
  Segundo o respectivo relatório de exame médico legal, foram confirmadas as lesões e a causa de morte da vítima devido aos choques na região temporal do lado direito, provocando contusão no cérebro e hematoma subdural.
  O presente Tribunal Colectivo, após ter feito sintetizada e objectivamente análise dos depoimentos prestados pelos dois arguidos presentes e pelas testemunhas na audiência de julgamento, bem como, das provas de documento, de apreensão e demais outras provas, deu assim por provados os factos imputados aos dois arguidos.
  
  III - O Direito
  1. As questões a resolver
  São duas as questões a resolver.
  A primeira a de saber se o Acórdão do Tribunal Colectivo enferma de contradição insanável da fundamentação (entre factos provados), por ter havido violação do princípio da prova pericial.
  A segunda questão consiste em saber se houve erro de direito da decisão, ao ter o arguido sido condenado pelo crime previsto e punível pelo artigo 135.º, n.º 1, alínea a) e n.º 4 do Código Penal (crime de colocação em perigo da vida de outra pessoa, de que resultou a morte) em vez de ter sido punido pela prática do crime previsto e punível pelo artigo 194.º n. os 1 e 2 do Código Penal (omissão de auxílio).
  Não se conhece da questão relativa à punição pela prática de um crime de ofensa grave à integridade física, previsto e punível pelo artigo 138.º, alínea d) do Código Penal, nos termos do disposto da alínea g) do n.º 1 do artigo 390.º do Código de Processo Penal.
  
  2. Contradição insanável da fundamentação e violação do princípio da prova pericial
  Não há qualquer contradição entre o relatório da autópsia e a causa da morte da vítima indicada pelo Tribunal Colectivo.
  O relatório da autópsia indica como causa da morte as lesões decorrentes de golpes na parte temporal direita, que provocaram contusão no cérebro e hematoma subdural. O realatório da autópsia não indica – como não tinha que indicar – se a vítima teria sobrevivido se tivesse socorrida imediatamente, sujeita a intervenção cirúrgica, se não estivesse estado 14 dias abandonada, sem tratamento e certamente sem ingerir alimentos ou água.
  Não é esse o objecto da autópsia.
  O Tribunal Colectivo considerou que a morte da vítima foi causada, não só pelas lesões directas, como pelo facto de ter estado abandonada durante 14 dias sem socorro e tratamento. Não há qualquer contradição com o relatório da autópsia, pelo que não havia necessidade de fundamentar divergência - nos termos do artigo 149.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - que não existia.
  Improcede a questão suscitada.
  
  3. Crime de colocação em perigo da vida de outra pessoa, de que resultou a morte
  Relacionada com as agressões e a morte da vitima, foi o recorrente condenado como co-autor dos seguintes 2 crimes:
  - Um crime previsto e punível pelo artigo 138.º, alínea d) do Código Penal - ofensa grave à integridade física – crime punível com a penalidade de 2 a 10 anos de prisão;
  - Um crime previsto e punível pelo artigo 135.º, n.º 1, alínea a) e n.º 4 do Código Penal - crime de colocação em perigo da vida de outra pessoa, de que resultou a morte - crime punível com a penalidade de 5 a 15 anos de prisão.
  Em vez destas incriminações, entende o recorrente que deveria ter sido condenado como co-autor dos seguintes 2 crimes:
  - Um crime previsto e punível pelos artigos 138.º, alínea d) e 139.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal - ofensa grave à integridade física de que resultou a morte - crime punível com a penalidade de 5 a 15 anos de prisão;
  - Um crime previsto e punível pelo artigo 194.º, n. os 1 e 2 do Código Penal - omissão de auxílio - crime punível com a penalidade de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
  Considera o recorrente que a sua conduta não integra o crime previsto e punível pelo artigo 135.º, n.º 1, alínea a) e n.º 4 do Código Penal, porque o bem protegido neste crime é a vida humana. Acrescenta o recorrente que, quanto à alínea a), o agente tem de colocar em perigo a vida de uma pessoa, o que implica ter havido deslocação espacial produzida pelo agente, resultando dessa deslocação um agravamento de riscos de forma a que a vítima fique numa situação em que seja incapaz de, por si só, defender-se.
  Dispõe o artigo 135.º do Código Penal:
“Artigo 135.º
(Exposição ou abandono)
  1. Quem colocar em perigo a vida de outra pessoa,
  a) expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se, ou
  b) abandonando-a sem defesa, em razão da idade, deficiência física ou doença, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
  2. ...
  3. ...
  4. Se do facto resultar a morte, o agente é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos”.
  
  Os elementos objectivos do crime previsto na alínea a) do n.º 1 e no n.º 4 são, pois:
  - Colocação em perigo da vida de outra pessoa;
  - Por meio de exposição em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se;
  - Do facto do agente resultar a morte da vítima.
  Os factos provados integram todos os elementos do crime.
  Na verdade, o recorrente e seus comparsas, no dia 2 de Março de 2008, após agredirem brutalmente a vítima, o que integra a prática de outro crime pelo qual foram condenados, deixaram-na, com perda de consciência, dentro de uma casa de pedra desocupada junto da antiga leprosaria de Ká Hó, que é, como é do conhecimento geral, um local relativamente ermo.
  No dia 6 de Março de 2008, o recorrente foi detido pela Polícia Judiciária face ao desaparecimento da vítima, mas libertado posteriormente.
  No dia 8 de Março de 2008, o recorrente e seus dois comparsas voltaram à casa onde haviam deixado a vítima e constataram que esta se encontrava ainda deitada no chão sem ter reacção.
  No dia 8 de Março de 2008, o recorrente e seus dois comparsas fugiram para o Interior da China.
  No dia 16 de Março de 2008, a vítima foi encontrada na mencionada casa, ainda com vida, mas viria a morrer no mesmo dia.
  O recorrente e os outros dois indivíduos deixaram a vítima gravemente ferida num local, donde ela não podia sair, nem pedir socorro. Colocaram, manifestamente, em perigo a vida da vítima, que acabou por morrer por causa do facto do recorrente e dos outros dois.
  Ainda que se entenda, como defende o recorrente1, que o artigo 135.º, n.º 1, alínea a) exige deslocação espacial da vítima, esta até existiu.
  Praticaram, portanto, o crime pelo qual foram condenados.
  Há uma relação entre as normas dos artigos 135.º - sobretudo na modalidade da alínea b) do n.º 1, que agora não está em causa - e 194.º (omissão de auxílio). Mas no caso da alínea a) do n.º 1 do artigo 135.º exige-se uma acção, no sentido de pôr em perigo a vida de outra pessoa, expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se, que não se verifica nos casos do artigo 194.º, que são crimes de omissão.
  Em conclusão, o recurso não merece provimento.
  
  IV – Decisão
  Face ao expendido, não se conhece do recurso na parte relativa à punição pela prática de um crime de ofensa grave à integridade física, previsto e punível pelo artigo 138.º, alínea d) do Código Penal e nega-se provimento ao recurso, quanto ao restante.
  Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC e em MOP$1,000.00 os honorários ao ilustre Defensor.
  Macau, 2 de Junho de 2010.
   Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
  
1 Nesta parte, mas não só, seguindo a tese de J. M. DAMIÃO DA CUNHA, Comentário Conimbricence do Código Penal, Coimbra Editora, Tomo I, p. 119, que não cita.
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Processo n.º 20/2010