Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso penal
N.º 23 / 2010
Recorrente: A
1. Relatório
A foi julgada no processo comum colectivo n.º CR3-09-0066-PCC do Tribunal Judicial de Base. Afinal, foi absolvida do crime de consumo de drogas previsto no art.º 23.º, al. a) do Decreto-Lei n.º 5/91/M e, por aplicação da lei penal mais favorável, foi condenada pela prática de um crime de tráfico ilícito de drogas previsto e punido pelo art.º 8.º, n.º 1 da Lei n.º 17/2009 na pena de seis anos de prisão.
Inconformada com a condenação, A recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão proferido no processo n.º 174/2010 de 22 de Abril de 2010, foi negado provimento ao recurso.
Deste acórdão vem agora a arguida recorrer para este Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões úteis nas suas alegações:
- A recorrente não está de acordo com a decisão do tribunal superior no sentido de não dever apreciar a questão de violação do princípio do contraditório por já ter sido sanada;
- Em termos teóricos, o artigo 106.º (excepto a primeira frase) e o artigo 107.º, n.º 2 do CPP são expostos duma forma exemplificativa.
- A sua intenção é a seguinte, quando se verificou uma violação da lei, situação que não se encontra expressamente prevista pela lei, mas que corresponde às situações enumeradas nos artigos 106.º e 107.º, os direitos dos cidadãos (especialmente os de arguido) serão integral e eficazmente protegidos.
- Quando o tribunal da 1.ª instância absolveu a recorrente do crime de consumo, estava por outro lado a confirmar indirectamente a prática do tráfico de todos os estupefacientes detidos, mas a recorrente não teve qualquer oportunidade de fazer defesa sobre este facto.
- Do disposto nas alíneas b) e c) do artigo 106.º do CPP resulta que, todas as situações são concretização do princípio de contraditório.
- A presença é uma necessidade meramente formal, mas é garantida pelo legislador através de lei.
- É difícil de imaginar que, o legislador apenas garante a sua presença, mas não garante a posição da arguida (recorrente) quando aparecem outros factores desfavoráveis.
- Em termos teóricos, se a situação da recorrente fosse colocada ao lado das alíneas b) e c) do artigo 106.º do CPP, ela não se revelaria incompatível de modo algum.
- Antes pelo contrário, corresponde muito à intenção do legislador no sentido de garantir os direitos da arguida (recorrente).
- Acresce que, qualquer que seja a perspectiva, a interpretação do respectivo artigo deve ser feita de acordo com o “princípio mais favorável ao arguido”.
- Assim sendo, as situações previstas no artigo 106.º do CPP são matéria do conhecimento oficioso do tribunal, mas o acórdão recorrido não se pronunciou sobre esta matéria.
- Pelo exposto, ao não se pronunciar oficiosamente sobre a violação do princípio de contraditório, o acórdão recorrido violou o espírito legislativo do artigo 106.º do CPP, ficando assim eivado do vício de nulidade do processo previsto no artigo 400.º, n.º 3 do CPP, pelo que, deve ser revogado.
- Entende a recorrente que, justamente porque as situações previstas no artigo 106.º do CPP são de conhecimento oficioso do tribunal, o tribunal deve ser julgar procedente o recurso e, proferir uma sentença mais favorável à recorrente. E se o tribunal assim não entender, deve declarar procedente o recurso e restituir os autos do processo ao TSI para novo julgamento.
O Ministério Público concluiu de seguinte forma na sua resposta:
“1. No seu acórdão, o TSI pronunciou-se sobre o “princípio de contraditório”, entendendo que “mesmo que a não comunicação da alteração de qualificação jurídica dos factos praticados pelo recorrente com base em que alguns dos factos acusados não foram provados possa implicar eventualmente a violação do princípio de contraditório previsto no artigo 308.º do CPP, o recorrente nunca arguiu esta questão, pelo que, o vício já foi sanado por não ter sido arguido”.
2. De acordo com o disposto no artigo 105.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, no que diz respeito à questão de nulidade, o princípio consagrado no sistema de recurso penal de Macau é o de legalidade, isto é, a nulidade dos actos violadores do CPP só acontece nas situações expressamente previstos na lei. Se não está prevista a nulidade, o acto constitui apenas uma irregularidade.
3. Na presente causa, não encontramos, quer nos artigos 106.º e 107.º do CPP, quer noutros preceitos legais, qualquer disposição expressa de que a não comunicação dos respectivos factos ou da alteração de qualificação jurídica às partes possa levar à nulidade dos actos processuais, nem se pode falar da nulidade insanável.
4. A alteração dos factos verificada na presente causa não se trata duma alteração substancial dos factos descritivos constantes da acusação do MP, visto que, o MP já incluiu o crime de tráfico de estupefacientes na acusação deduzida, e a alteração dos respectivos factos não faria com que se imputasse um outro crime diferente ao recorrente, nem que a pena máxima da punição fosse elevada.
5. Relativamente à alteração não substancial dos factos, o artigo 339.º, n.º 1 do CPP exige apenas que o juiz-presidente comunique a respectiva alteração ao arguido, e que lhe conceda tempo necessário para defesa quando este assim requerer.
6. Por outro lado, de acordo com a jurisprudência de Macau, o tribunal também pode alterar a qualificação jurídica dos mesmos factos, mas para este caso, tem que fazer uma aplicação analógica do artigo 339.º, n.º 1 do CPP, isto é, notificar o arguido da respectiva alteração, e conceder-lhe tempo necessário para defesa quando este assim requerer.
7. É de salientar que, o legislador não estipulou que o incumprimento do artigo 339.º CPP leve a nulidade da sentença, pelo que, ao abrigo dos artigos 105.º e 110.º do CPP, a omissão do tribunal a quo deve ser considerada como uma irregularidade, que deve ser arguida pelos interessados no prazo legal, sob pena de sanação da respectiva irregularidade.
8. Somos da opinião de que, o facto de o TJB não ter feito a respectiva notificação não leva a nulidade da sentença, e este vício não é do conhecimento oficioso, devendo ser arguido pelos interessados no prazo legal. Agora, como o recorrente não arguiu a nulidade dentro do prazo legal, o respectivo vício dá-se por sanado.
9. Pelo exposto, o recurso deve ser julgado improcedente e ser rejeitado.”
Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição assumida na resposta.
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
2. Fundamentos
2.1 Matéria de facto
Foram dados como provados pelos Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância os seguintes factos:
“Às 22h20 do dia 17 de Setembro de 2008, ao exercerem as suas funções no balcão da inspecção de bagagem das Portas do Cerco, os agentes alfandegários interceptaram a arguida A, que acabara de voltar do Interior da China a Macau.
Os agentes alfandegários encontraram no penso dentro das cuecas da arguida A 3 comprimidos de cor de laranja embrulhados com papel de estanho, e um saquinho plástico transparente, com cristal de cor branca no seu interior.
Após exame clínico, verificou-se que os respectivos comprimidos de cor de laranja estavam com o peso líquido total de 0,565g, contendo elementos de “nimetazepam”, substância abrangida pela Tabela IV do DL n.º 5/91/M; e o respectivo cristal de cor branca continha “ketamina”, substância abrangida pela Tabela II-C da mesma diploma, com o peso líquido de 28,197g (verificou-se após análise quantitativa que a ketamina estava em 26,184g, representando uma percentagem de 92,86%).
As respectivas drogas foram adquiridas pela arguida A, pelas 22h00 do mesmo dia em que foi detida, em “Spa” sito no centro comercial subterrâneo de Gongbei, junto dum indivíduo de identidade desconhecida, no preço de 1.000 patacas. As drogas não eram destinadas ao consumo próprio.
A arguida A bem sabia das características e da natureza das drogas.
A arguida A comprou, adquiriu, transportou e deteve as drogas não para o consumo próprio.
A arguida A praticou as condutas livre, voluntária, dolosa e conscientemente.
A arguida A sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Provaram-se ainda os seguintes factos:
De acordo com o CRC, a arguida não é delinquente primária: no âmbito do processo n.º CR1-07-0046-PSM, o tribunal, em 15 de Março de 2007, condenou a arguida, pelo cometimento dum crime de tráfico de quantidades diminutas, na pena de prisão de 1 ano e 2 meses, suspensa na sua execução por 2 anos, e na multa de 6.000 patacas, conversível na pena de prisão de 40 dias na falta de pagamento. A pena de multa já foi cumprida, mas ao cometer o presente crime, ainda não passou o prazo de suspensão da pena de prisão.
A arguida declarou que antes de ser detida trabalhava num casino como menina de relações-públicas, e ganhava cerca de 14.000 mensais. Não tinha encargos económicos, mas pagava à sua mãe 7.000 patacas mensais por livre iniciativa.
A arguida possui como a sua habilitação literária o 2.º ano da ensino secundário complementar.”
2.2 Nulidade insanável
A recorrente alega agora, face à questão de violação do princípio do contraditório suscitada oficiosamente pelo Tribunal de Segunda Instância, que não foi dada oportunidade para defender que todas as drogas apreendidas eram destinadas ao tráfico, em consequência da absolvição do crime de consumo de drogas, violando assim as al.s b) e c) do art.º 106.º do Código de Processo Penal (CPP) por falta de conhecimento da questão de violação do princípio do contraditório que ao tribunal recorrido cumpre apreciar oficiosamente.
No entanto, é manifesta a falta de razão da recorrente.
Em primeiro lugar, embora nunca foi arguida a violação do princípio do contraditório por não ter sido dada oportunidade à recorrente para defender de que todas as drogas apreendidas foram para tráfico, facto subsumível ao crime de tráfico ilícito de drogas previsto no art.º 8.º, n.º 1 da Lei n.º 17/2009, o Tribunal de Segunda Instância suscitou oficiosamente a questão e julgou improcedente por, a existir a violação, ter sido já sanada.
Daí resulta que o tribunal recorrido pronunciou expressamente a questão. Não há omissão de pronúncia em relação à questão a que cabe conhecer oficiosamente.
Em segundo lugar, o vício invocado agora pela recorrente não está integrado nas nulidades insanáveis previstas no art.º 106.º do CPP.
A recorrente foi acusada pelo Ministério Público pela prática de um crime de tráfico de drogas e um crime de consumo de drogas, com base no facto acusatório de que “a finalidade principal das drogas era vender ou fornecer a terceiros, e uma pequena parte era para consumo pessoal.”
O tribunal colectivo de primeira instância não deu como provado que a recorrente consumia drogas, mas provado que a sua detenção de drogas “não era para consumo pessoal”, ou seja, todas as drogas eram destinadas a tráfico. Com base nesta matéria de facto apurada, o tribunal colectivo absolveu a recorrente do crime de consumo de drogas e condenou-a pelo crime de tráfico de drogas.
Poderá entender que houve aqui alteração dos factos de acusação na parte referente à quantidade de drogas destinadas ao tráfico, nos termos do art.º 339.º, n.º 1 do CPP. É certo que o tribunal de primeira instância não procedeu à comunicação à recorrente de tal alteração para esta organizar a sua defesa. E tal vício determina a nulidade da sentença segundo o art.º 360.º, al. b) do CPP.
É natural que a alteração da quantidade de drogas integradas no crime de tráfico de drogas pode não ser percebível já no encerramento da audiência, mas o tribunal de julgamento deve tomar toda a precaução para prevenir qualquer alteração de factos acusatórios ou de pronúncia, nomeadamente quando a quantidade ou até a tipicidade da droga destinada ao tráfico for alterada em consequência da previsível absolvição do crime de consumo de drogas.
Mas esta nulidade da sentença não é enquadrável na previsão do art.º 106.º do CPP referente à nulidades insanáveis, pois, para além de já estar previsto o seu regime próprio no CPP e não ser nulidade insanável, a situação não é equivalente a qualquer um dos casos previstos naquele art.º 106.º. Mesmo a al. c) deste artigo refere à presença do arguido ou do seu defensor quando a lei exige a sua comparência, é completamente diferente as duas situações e as respectivas razões de previsão normativa.
Assim, qualquer violação do disposto no art.º 339.º, n.º 1 do CPP deve ser arguida a tempo oportuno, como no recurso perante o Tribunal de Segunda Instância no presente caso.
Na realidade, a recorrente não suscitou esta questão no recurso para o Tribunal de Segunda Instância, a eventual violação fica já sanada.
Assim, o presente recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência.
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso.
Nos termos do art.º 410.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, é a recorrente condenada a pagar 4 UC.
Custas pela recorrente com a taxa de justiça fixada em 4 UC.
Aos 9 de Junho de 2010
Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
Processo n.º 23 / 2010 1