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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A interpôs recurso contencioso de anulação do acto de indeferimento tácito imputado ao Secretário para a Economia e Finanças, do recurso hierárquico do despacho do Director da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos de 9 de Março de 2009, que indeferiu o pagamento de gratificações inerentes ao exercício de chefia funcional.
Por acórdão de 10 de Dezembro de 2009, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) concedeu provimento ao recurso e anulou o acto recorrido.
Inconformado, interpõe o Secretário para a Economia e Finanças recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:

  1. O interessado foi, ao longo de cerca de 18 anos, sendo notificado mensalmente dos montantes que Administração entendia que lhe eram devidos em cada mês a título de vencimentos, gratificações e abonos, nunca tendo impugnado esses actos;
  2. A última dessas notificações foi efectuada cerca de 9 meses antes do requerimento apresentado ao director dos serviços pedindo o pagamento das gratificações devidas à chefia funcional e que não haviam sido pagas durante as ausências do interessado;
  3. Os sucessivos actos de processamento de vencimentos, gratificações e abonos foram-se consolidando na ordem jurídica como caso decidido, e quando o interessado interpôs o seu recurso contencioso há muito que tinha caducado o direito de o fazer;
  4. O acto do director da Inspecção e Coordenação de Jogos que apreciou o requerimento do particular de 16.12.2008 foi um acto meramente confirmativo desses actos anteriores;
  5. O recurso hierárquico interposto desse despacho para o SEF não foi objecto de uma verdadeira decisão, pois o indeferimento tácito constitui meramente um mecanismo destinado a permitir aos particulares recorrer contenciosamente quando a Administração não decida dentro de certo prazo;
  6. Assim, no fundo, o recurso contencioso teve materialmente por objecto o acto do DICJ de confirmação dos processamentos de vencimentos, gratificações e abonos;
  7. Contudo os actos confirmativos são contenciosamente irrecorríveis, pelo que o recurso contencioso deveria ter sido rejeitado pelo TSI;
  8. A caducidade do direito de recorrer contenciosamente e, em geral, a irrecorribilidade do acto são de conhecimento oficioso;
  9. Ao abrigo do DL 86/89/M a Administração, durante as ausências do titular de uma chefia funcional, não tinha base legal para pagar a gratificação prevista no seu art. 21.°, n.º 2, simultaneamente ao titular e ao seu substituto, dependendo pois essa gratificação do exercício efectivo de funções.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer em que se pronuncia pela não confirmatividade do despacho Director da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos e, quanto ao mérito, pelo provimento do recurso.
Ouvido sobre se tinha sido notificado dos actos mensais de processamento de vencimentos, o ora recorrido concordou que fora mensalmente notificado dos mesmos.

II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
- A é inspector especialista do quadro da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos;
- desde 01.03.1990, até 05.03.2008, exerceu, na referida Direcção, funções de “chefia funcional” (ao abrigo do art. 21 ° do D.L. n° 86/89/M);
- por despacho do Director da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos datado de 05.03.2008, foi o ora recorrente destituído das referidas funções (de chefia funcional);
- em 16.12.2008, e em expediente dirigido ao Director da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, requereu o ora recorrente que fossem pagas as gratificações inerentes à sua chefia funcional e que lhe foram retiradas em virtude das suas ausências por doença ou férias;
- em 06.03.2009, apresentou o recorrente idêntico pedido;
- sobre o peticionado, elaborou-se a informação nº XX/XXX/XXXX, datada de 13.03.2009, com o teor seguinte:
“I- Pedido
Em requerimento apresentado pelo senhor inspector A, inspector especialista do 3° escalão, do quadro da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, veio o mesmo solicitar o pagamento das gratificações inerentes à chefia funcional indevidamente retiradas ao requerente aquando das suas ausências, quer por motivo de doença, ou férias, por ter exercido a função de chefia funcional de acordo com o artigo 21.°, nº2, do Decreto-Lei nº86/89/M, de 21 de Dezembro, e ao abrigo da mesma norma e do Ofício-Circular n.° XXXXXXXXXX/DTJ, de 26/03/2008, da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública.
II- Apreciação do Pedido:
1. O inspector A, é inspector especialista, do 3.º escalão, do quadro da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos.
2. O inspector A, inspector especialista, 3.° escalão, exerceu as funções de chefia funcional nos termos do artigo 21.° do Decreto-Lei nº 86/89/M, de 21 de Dezembro, desde 1 de Março de 1990 até à data de 5 de Março de 2008.
3. Por despacho do senhor director da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, contido na informação n.° XX/XXXXX/XX, foi o mesmo destituído da chefia funcional, em 5 de Março de 2008.
4. O oficio circular n.° XXXXXXXXXX/XXX, da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública, a que o requerente faz referência para fundamentar o seu pedido, foi proferido em 26/03/2008.
5. O oficio supra identificado, não tem efeitos retroactivos, e consequentemente só se aplica para o futuro, e não para as situações passadas, ou seja, a aceitar-se as orientações do Direcção de Serviços de Administração e Função Pública, que não são vinculativas, o pedido do requerente já não se encontra abrangido, dado que o mesmo cessou a chefia funcional em 5 de Março de 2008.
6. A orientação anterior da Direcção dos Serviços de Administração e Função Publica, era contrária ao pagamento das gratificações da chefia funcional quando o titular estava ausente por motivo de férias ou doença, com fundamento na falta de base legal para o efeito, nos termos do oficio 03464/DTJ, de que se junta cópia para os devidos efeitos legais.
7. No mesmo sentido, se pronunciava a Direcção dos Serviços de Finanças no seu oficio XXX/SP/DDP/DCP/2001, que se junta cópia para os devidos efeitos legais.
8. A lei aplicável não foi alterada, apenas a interpretação que a Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública faz dela.
9. Sem prejuízo, e salvo melhor opinião, sempre se dirá que nos termos do artigo 21.º do Decreto-Lei nº86/89/M, de 21 de Dezembro, não previu o legislador qualquer norma que conferisse à chefia funcional remuneração nas suas ausências, por motivos de férias ou doença, pelo que somos de parecer que tal atribuição é contrária à letra e ao espírito da lei, e consequentemente contrária ao princípio da legalidade, na sua dupla vertente de conformidade e compatibilidade nos termos expressos no artigo 3° do Código do Procedimento Administrativo, ou seja, a lei funciona não apenas como limite mas também como fundamento da actuação administrativa.
10. A gratificação atribuída ao exercício da chefia funcional está ligada ao exercício efectivo da junção, e não à retribuição de um cargo, ou uma categoria específica do trabalhador, pelo que aplicar analogicamente o regime das substituições em sede de cargos, é no mínimo errónea, e contrária ao espírito e à letra da lei.
11. Por último, cumpre chamar a atenção, de que sendo o parecer negativo à pretensão formulada pelo requerente pelas razões acima expostas, ou seja, o de indeferir a pretensão formulada, sempre se deverá ouvir o interessado em sede de audiência nos termos do artigo 93.° do Código do Procedimento Administrativo, antes de tomar a decisão final, informando o interessado do sentido provável da decisão.
12. A audiência dos interessados nos termos do artigo 93.°, n.°2, do Código do Procedimento Administrativo pode ser oral ou escrita.
13. Pelo exposto, dada a natureza jurídica das questões em apreciação, nomeadamente, em concreto a interpretação de normas jurídicas, sugere-se que a audiência de interessados seja escrita nos termos do artigo 94.° do Código do Procedimento Administrativo.
III - Conclusão:
Nestes termos, deve a pretensão do requerente ser indeferida, nos termos acima expostos, e conceder-se o prazo de 10 dias para o interessado oferecer o que por bem lhe oferecer dizer nos termos do artigo 93.° do Código do Procedimento Administrativo.”;
- após decisão concordante do Director da Inspecção e Coordenação de Jogos, foi o ora recorrente notificado em conformidade, e, após resposta, proferiu-se a decisão seguinte:
“Cumprido no procedimento administrativo a audiência de interessados, sem que o interessado tenha deduzido qualquer fundamento relevante para a decisão do pedido formulado, indefiro o pedido apresentado pelo senhor inspector A, inspector especialista, do 3.º escalão da DICJ, nos requerimentos apresentados no dia 16 de Dezembro de 2009, e reiterado no dia 06 de Março de 2009, com os fundamentos constantes na informação n.º XX/XXX/XXXX, para a qual se remete para os devidos efeitos legais, com a minha declaração de concordância, nos termos e para os efeitos do artigo 114.º e 115.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo.
Notifique-se.
Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, aos 19 de Março de 2009.”;
- notificado do assim decidido no mesmo dia 19.03.2009, em 14.04.2009, interpôs o ora recorrente recurso hierárquico para o Secretário para a Economia e Finanças;
- seguidamente, em 19.05.2009, ao ora recorrente foi endereçado expediente com o teor seguinte:
“Notificação da Remessa do Recurso Hierárquico ao Exmo. Senhor Secretário para a Assunto Economia e Finanças.
Vimos pela presente notificar V. Exa de que o Recurso Hierárquico do despacho nº XX/XXX/XXXX, foi remetido imediatamente ao Exmo. Senhor Secretário para a Economia e Finanças, para apreciação e decisão, por oficio datado do dia 15 de Abril de 2009.
O recurso hierárquico baixou ao autor do acto em 16/4/2009, para se pronunciar nos termos do artigo 159.° do Código do Procedimento administrativo, o qual o fez por informação datada de 30 de Abril de 2009, tendo nessa data remetido novamente o Recurso Hierárquico ao senhor Secretário para a Economia e Finanças para efeitos de decisão, pelo que se procede nesta data à notificação da remessa do processo para os efeitos do artigo 159.° do Código do Procedimento Administrativo. (...)"
- e, em 27.05.2009, o expediente seguinte:
“Acusamos a recepção da sua carta datada de 20 do corrente. Encarrega-me Sua Exa. o Secretário para a Economia e Finanças de informar V. Exa. que, tendo em conta a existência de dúvidas quanto ao pagamento das gratificações inerentes à chefia funcional retiradas aquando da sua ausência, foi remetido o referido caso à Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública para que se pronunciasse sobre a matéria em causa e que, por isso, foi determinada a prorrogação do prazo para a decisão do referido recurso hierárquico, nos termos do n.º 2 do Artigo 162.º do Código do Procedimento Administrativo.”
- perante a ausência de decisão do seu recurso hierárquico, em 11.08.2009 interpôs recurso contencioso.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
São duas as questões a decidir.
A primeira consiste em saber se o acto recorrido é meramente confirmativo – e, portanto, irrecorrível contenciosamente – dos actos de processamento de abonos, que não contemplavam a gratificação pretendida.
Embora esta questão apenas tenha sido suscitada nas alegações para o TUI, impõe-se dela conhecer por ser de conhecimento oficioso, sendo que sobre a mesma ainda não recaiu pronúncia. Decidimos neste sentido nos Acórdãos de 27 de Novembro de 2002 e de 16 de Novembro de 2005, respectivamente, nos Processos n.os 13/2002 e 22/2005.
Suposta a improcedência da anterior, a segunda questão é a de saber se o titular de chefia funcional tinha direito à respectiva gratificação, durante as suas ausências por doença ou férias.

2. Acto meramente confirmativo
O ora recorrido, funcionário da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, exerceu funções de chefia funcional desde 01.03.1990 até 05.03.2008, sendo-lhe paga a respectiva gratificação, excepto quando em férias ou na situação de doença.
O interessado, a quem era mensalmente entregue a nota de abonos e descontos, conformou-se sempre com tal situação.
Apenas em 16.12.2008, requereu que fossem pagas as gratificações inerentes à chefia funcional respeitantes às suas ausências por doença ou férias (dos 18 anos em que exerceu funções).
  O que foi indeferido por despacho de 19 de Março de 2009, de que recorreu hierarquicamente e, sem resposta, interpôs o recurso contencioso dos autos.
Trata-se de saber se o acto de indeferimento tácito é meramente confirmativo dos sucessivos actos de processamento dos abonos, desde 01.03.1990 até 05.03.2008, data em que o funcionário exerceu as funções em causa, actos esses que processaram, entre outros, os pagamentos da gratificação inerente à chefia funcional, mas não quando o interessado estava ausente por doença ou férias.
O acto administrativo meramente confirmativo é o que se limita a confirmar outro acto anterior que seja impugnável, sem nada acrescentar ou tirar ao seu conteúdo, de modo a que o acto meramente confirmativo não tira nem põe nas situações criadas pelo acto confirmado1.
  Como se sabe, o acto meramente confirmativo não é susceptível de recurso contencioso, uma vez que se limita a reproduzir o sentido do acto confirmado – embora por vezes, com argumentação diversa2 - sendo este impugnável contenciosamente, e visando-se com esta regra impedir que se defraude a norma que fixa prazos peremptórios para o recurso contencioso de actos anuláveis, o n.º 2 do artigo 25.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC).
  É o que resulta do artigo 31.º do CPAC, onde se dispõe:

Artigo 31.º
(Recurso de acto meramente confirmativo)

 1. O recurso é rejeitado com fundamento na natureza meramente confirmativa do acto recorrido quando o acto confirmado tenha sido objecto de notificação ao recorrente de publicação imposta por lei ou de impugnação administrativa ou contenciosa interposta por aquele.
 2. O acto que decida impugnação administrativa necessária não tem, para os efeitos do disposto no presente Código, natureza meramente confirmativa.

Cabe, portanto, apurar as seguintes questões:
- Constituem os sucessivos actos de processamento dos abonos, desde 01.03.1990 até 05.03.2008, actos administrativos?
- Foram tais actos objecto de notificação ao funcionário?
- Tais actos consolidaram-se na Ordem Jurídica, por constituírem caso decidido ou caso resolvido?
- Pode o acto de indeferimento tácito do recurso hierárquico interposto de despacho que negou os requeridos pagamentos, constituir acto meramente confirmativo dos actos de processamento, atento o n.º 2 do artigo 31.º atrás transcrito?

3. Actos de processamento de abonos
A jurisprudência portuguesa3 tem considerado cada acto de processamento de abonos, designadamente, de vencimentos dos funcionários, como verdadeiro acto administrativo, quando define a situação jurídica do respectivo funcionário perante a Administração, no período a que o acto respeita.
Tem, por isso, entendido que cada acto de processamento de vencimento se consolida na ordem jurídica como caso decidido ou caso resolvido, se não for impugnado oportunamente, graciosa ou contenciosamente.
Como requisitos para tal configuração exige-se que o acto de processamento contenha uma definição inovatória e voluntária, por parte da Administração e que o conteúdo do acto tenha sido levado ao conhecimento do interessado através de notificação.
Complementarmente, considera-se que cada acto de processamento de vencimento não define para o futuro o estatuto remuneratório do interessado, confinando-se ao período a que respeita a sua eficácia, pelo que a sua consolidação não afecta actos posteriores. Por isso se tem entendido que cada acto de processamento não é confirmativo de anteriores actos, respeitantes a períodos antecedentes, ainda que com o mesmo conteúdo4.
A qualificação de cada acto de processamento de abonos, designadamente, de vencimentos dos funcionários, como acto administrativo, não é pacífica na doutrina.
MARIA FERNANDA MAÇÃS5 entende que quando o acto de processamento de abono enferma de erro de cálculo ou erro burocrático do serviço processador não se pode dizer que constitua um acto administrativo. Também, quando existe uma prévia definição jurídica da situação do interessado por meio de um acto administrativo, seguido de actos de processamento, estes constituem meros actos de execução, não sendo, pois, actos administrativos constitutivos de direitos. Já quando o processamento de vencimentos ocorre na sequência de aplicação de regras gerais definidas pelos serviços para toda uma categoria de situações, aqueles actos de processamento assumem-se como actos definidores, concretizadores, da medida do direito para o caso concreto e como tal, são actos administrativos constitutivos de direitos.
Para J. C. VIEIRA DE ANDRADE6, “... deve excluir-se à partida a existência de um acto administrativo propriamente dito, que tenha de ser impugnado, em todas aquelas situações em que esteja em causa o mero cumprimento ou incumprimento (por omissão ou recusa, total ou parcial) de obrigações legais ou contratuais (pecuniárias, de prestação de facto ou de coisa) por parte da Administração Pública – a recusa ou o incumprimento de uma obrigação pública não é, muitas vezes, uma decisão administrativa, mas um mero facto ilícito.
Um exemplo interessante é o da massa dos actos de processamento de vencimentos e abonos de funcionários, que, sendo tradicionalmente tomados pela jurisprudência como actos administrativos, não constituem, em regra, senão actos materiais de execução, de verificação mensal com efeitos contabilístico-finaceiros, realizados pelos serviços, em regra por tratamento informático, não sendo, a não ser em casos especiais, decisões de autoridade que definam a situação jurídica do interessado.
Não devem, por isso, com tal fundamento, estar sujeitos ao prazo de impugnação de dois meses, nem formar caso decidido passado um ano, seja a favor de particular (como parece, de resto, resultar da norma legal que permite ao Estado exigir a reposição de verbas indevidamente pagas no prazo de cinco anos), seja a favor da administração (que não deve poder negar-se a pagar aquilo a que o funcionário tenha direitos dentro dos prazos gerais de prescrição”.
Que posição tomar?
Tanto quanto foi possível investigar, os tribunais superiores de Macau nunca tomaram posição expressa sobre a questão em apreço.
O artigo 110.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), dispõe que, para os efeitos do próprio diploma legal em causa, “... consideram-se actos administrativos as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”.
E o artigo 28.º, n.º 1, do CPAC considera que “São actos administrativos contenciosamente recorríveis os que, produzindo efeitos externos, não se encontram sujeitos a impugnação administrativa necessária”.
O acto administrativo constitui uma estatuição autoritária da Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.
“Para que um acto jurídico defina situações jurídicas é, na verdade, condição necessária, embora não suficiente, que ele possua um conteúdo decisório, não se esgotando na emissão de uma declaração de ciência, um juízo de valor ou uma opinião”7. É necessário que “exprimam uma resolução que determine o rumo de acontecimentos ou o sentido de condutas a adoptar”8.
Ora, cada acto de processamento de abonos define a situação individual e concreta do funcionário a que respeita, no período a que o mesmo se refere.
Não constitui, nem uma declaração de ciência, nem um juízo de valor, nem uma opinião. Configura, antes, uma decisão, um acto de autoridade da Administração.
É certo que, actualmente, tais actos de processamento de abonos são executados por meios informáticos, mas esta circunstância não transforma a sua natureza.
Também os actos de liquidação de impostos são feitos por tratamento informático e nunca se duvidou que constituem actos tributários, contenciosamente recorríveis.
Por conseguinte, consideramos correcta a doutrina que qualifica o acto de processamento de abono como acto administrativo.

4. O caso dos autos
As notas de abonos e descontos emitidas pela Direcção dos Serviços de Finanças foram entregues mensalmente ao ora recorrido. Ele próprio o confirmou.
Quer isto dizer que o funcionário em questão foi notificado dos actos de processamento dos abonos, que não incluíram o pagamento da gratificação relativa à chefia funcional durante os seus períodos de férias e doença.
O ora recorrido não impugnou tais actos, que se firmaram, assim, na Ordem Jurídica como casos decididos ou casos resolvidos.
Por outro lado, entende-se que cada acto de processamento de vencimento não definiu para o futuro o estatuto remuneratório do interessado, produzindo efeitos apenas no período a que respeita, pelo que a sua consolidação não afecta actos posteriores.
Deste modo, cada acto de processamento não é confirmativo de anteriores actos, respeitantes a períodos antecedentes, ainda que com o mesmo conteúdo, porque cada acto se refere a uma diferente situação jurídica.

5. Se um acto que decida impugnação administrativa necessária pode ser meramente confirmativo
Estamos em condições de saber se o acto contenciosamente recorrido é meramente confirmativo dos actos de processamento dos abonos em causa.
O n.º 2 do artigo 31.º dispõe que o acto que decida impugnação administrativa necessária não tem, para os efeitos do disposto no Código, natureza meramente confirmativa. O que significa que não pode ser impedido o recurso contencioso com este fundamento.
Quer isto dizer que um acto que decida recurso hierárquico necessário nunca pode constituir acto meramente confirmativo?
Seguramente que não é essa a interpretação da norma.
Pois que relação existe entre a necessidade de a palavra final da Administração, em, certo caso, ser de um nível mais elevado – é isso que está em causa na impugnação administrativa necessária – e actos impugnáveis anteriores se terem consolidado, por falta de oportuna impugnação contenciosa, que é o fundamento da impossibilidade de impugnação contenciosa dos actos meramente confirmativos?
Nenhuma relação, como é evidente.
Logo, não faria nenhum sentido que os actos sujeitos a impugnação hierárquica necessária e os que conhecem das impugnações pudessem ser livremente sindicáveis contenciosamente, ainda que confirmassem actos anteriores não impugnados contenciosamente em tempo.
O que o n.º 2 do artigo 31.º pretende significar é que o acto administrativo que decide recurso hierárquico necessário nunca pode constituir acto meramente confirmativo do acto administrativo que foi objecto do recurso hierárquico, pois isso equivaleria a impedir o recurso contencioso do acto que, em impugnação graciosa, negasse provimento ao acto do subalterno, que não era contenciosamente recorrível por sua própria natureza.
Mas quando, como é o caso, tanto o acto administrativo que foi objecto do recurso hierárquico (o acto expresso do Director da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos), como o acto tácito de indeferimento (do Secretário para a Economia e Finanças), se limitam a confirmar os actos de processamento de abonos, é evidente que nada obsta a que considere que ambos são actos meramente confirmativos destes últimos e, por isso, o acto de indeferimento tácito não é impugnável contenciosamente por esta razão (o acto do Director não era sindicável contenciosamente por outra razão, por não ser um acto verticalmente definitivo), visto que o ora recorrido teve oportunidade de impugnar, em seu tempo, os actos de abono. Mas não o fez, pelo que estes se consolidaram na Ordem Jurídica.
Admitir, agora, a impugnação contenciosa dos actos que se limitaram a manter os actos de processamento de abonos seria defraudar a norma que impõe prazos curtos para o recurso contencioso de actos administrativos meramente anuláveis.
Por isso, se impõe a rejeição do recurso contencioso.

IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso jurisdicional e rejeitam o recurso contencioso por o acto de indeferimento tácito, imputado ao Secretário para a Economia e Finanças, ser meramente confirmativo.
Custas pelo ora recorrido A nas duas instâncias.

Macau, 15 de Junho de 2010.

   Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei

1 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, 10.ª edição, Tomo I, p. 452.
2 Não cabe aqui aprofundar esta questão, por não necessária para a resolução do caso.
3 Entre muitos, cfr. o Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 21 de Setembro de 2000, BMJ 499-150. No mesmo sentido, o Acórdão do mesmo Tribunal de 31 de Outubro de 2008, no Processo n.º 49/2008. E, também do Pleno da Secção do mesmo Tribunal, o Acórdão de 5 de Junho de 2008, no Diário da República, I Série, de 14 de Outubro de 2009.
4 Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do STA, de 9 de Dezembro de 1998, BMJ 482-89.
5 MARIA FERNANDA MAÇÃS, Dever de reposição e direito a não repor, anotação ao Acórdão do STA, de 24 de Setembro de 1996, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 0, p. 62.
6 J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Algumas reflexões a propósito da sobrevivência do conceito de “acto administrativo” no nosso tempo, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra Editora, 2001, p. 1214.
7 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Considerações em torno do conceito de acto administrativo impugnável, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no Centenário do Seu Nascimento, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2006, II Volume, p. 284.
     8 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Considerações em torno do conceito..., p. 286.
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Processo n.º 22/2010