Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.º 7 / 2010
Recorrente: Secretário para a Segurança
Recorrido: A
1. Relatório
A interpôs recurso contencioso contra a decisão do Secretário para a Segurança de 18 de Dezembro de 2007 que lhe negou provimento ao recurso hierárquico da decisão do Director da Polícia Judiciária que negou o direito de uso e porte de arma de defesa previsto no art.° 15.°, n.° 3 da Lei n.° 5/2006 e do cartão de identificação do pessoal aposentado da PJ.
Por acórdão de 12 de Novembro de 2009 proferido no processo n.º 57/2008, o Tribunal de Segunda Instância concedeu provimento ao presente recurso contencioso e anulou o despacho recorrido.
Deste acórdão vem agora o Secretário para a Segurança recorrer para este Tribunal de Última Instância, alegando essencialmente o seguinte:
- A sanidade mental revelada pela perícia médica refere-se ao momento em que o recorrido foi avaliado;
- Mas o juízo deve ser sempre de prognose e cabe às entidades competentes avaliar os riscos com a ponderação da personalidade dos utentes das armas;
- A manutenção do acórdão recorrido condiciona a futura actuação da direcção da Polícia Judiciária, obrigando-a a agir pela presunção da incapacidade e obrigar a que todos aqueles seus agentes que se desliguem do serviço apresentem atestado médico referindo especificamente a sua capacidade para a fruição do direito ao uso e porte de arma de defesa, o que fragiliza a competência própria do Director da Polícia Judiciária e traduz uma afrontosa limitação dos poderes discricionários da Administração nesta particular matéria;
- Concluindo que o acórdão recorrido é nulo por violação do princípio da separação de poderes.
O recorrido não apresentou alegações.
O Ministério Público emitiu o parecer com as seguintes principais posições:
- A invocada violação da separação de poderes carece de qualquer fundamento;
- Temos dificuldade em configurar sequer como discricionário o poder de concessão do direito de uso e porte de arma estabelecido no art.° 15.° da Lei n.° 5/2006;
- A conclusão sobre o erro nos pressupostos factuais subjacentes ao acto impugnado não se vê minimamente infirmada pelo recorrente;
- Pugnando pelo não provimento do presente recurso jurisdicional.
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
2. Fundamentos
2.1 Factos provados:
Foram considerados provados os seguintes factos pelo Tribunal de Segunda Instância:
“O despacho recorrido louvou-se na seguinte informação:
‘B, Director da Polícia Judiciária, nos autos de recurso hierárquico necessário acima indicados em que é recorrente A, exercendo o seu direito de intervenção do autor do acto recorrido através do direito de pronúncia a que alude o n.º 1 do art.º 159.º do Código do Procedimento Administrativo, vem dizer o seguinte:
I – Delimitação do recurso
O ora recorrente, subinspector da PJ, aposentado voluntariamente desde 23 de Outubro de 2007, recorre do despacho do Director da Polícia Judiciária que lhe foi notificado e que lhe nega o direito de uso e porte de arma de defesa a que alude o n.º 3 do art.º 15.º da Lei n.º 5/2006 e do cartão de identificação do pessoal aposentado constante do Anexo IV ao Despacho do Chefe do Executivo n.º 281/2006.
Vem o ora recorrente, inconformado com o teor do despacho recorrido, interpor recurso hierárquico necessário para o Exmo. Senhor Secretário para a Segurança, o que faz nos termos e com os fundamentos constantes da sua petição de recurso e que aqui se dão por inteiramente reproduzidos.
O recurso é apresentado em 30.11.2007, dentro do prazo de 30 dias a contar da notificação da decisão (31.10 .2007) referida.
O ora requerente pede a anulação do acto administrativo, nos termos do art.º 124.º do C.P.A..
Não se impugnam os art.ºs 1.º a 6.º e 12.º a 14.º, e respectivas conclusões, daquela petição de recurso, porquanto corresponderem à verdade.
II – Legalidade do acto recorrido
1) Enquadramento legal
O art.º 15.º da Lei n.º 5/2006, relativo ao uso e porte de arma, prevê o seguinte:
‘1. O pessoal referido no art.º 12.º da presente lei, bem como o pessoal de investigação criminal e auxiliar de investigação criminal, tem direito à detenção, uso e porte de arma de serviço, de calibre e tipo aprovados por despacho do Chefe do Executivo.
2. ...
3. O pessoal referido no n.º 1 conserva, após a sua aposentação, o direito ao uso e porte de arma de defesa, desde que nos últimos 5 anos de carreira não tenha sido punido com pena disciplinar de suspensão ou superior, cessando tal direito perante qualquer condenação, por sentença com trânsito em julgado, que revele indignidade ou falta de idoneidade moral.
4. Perdem ainda o direito ao uso e porte de arma de defesa o pessoal que a qualquer tempo revele incapacidade física e/ou psíquica para o efeito.’
O art.º 40.º do Regulamento Administrativo n.º 9/2006, relativo a direitos e regalias do pessoal aposentado, prevê o seguinte:
‘Ao pessoal de direcção e chefia com funções policiais, de investigação criminal e auxiliar de investigação criminal, quando aposentado por motivo diverso do de aplicação de pena disciplinar, é atribuído um cartão de identificação para reconhecimento da sua qualidade e dos direitos de que goza, de modelo aprovado por despacho do Chefe do Executivo.’
O cartão supra referido é o constante do Anexo IV ao Despacho do Chefe do Executivo n.º 281/2006 e tem inscrito no seu verso o seguinte:
‘O presente cartão assegura o reconhecimento da identidade do seu portador, na situação de aposentado dos quadros da Polícia Judiciária, e confere ao seu titular o direito ao uso e porte de arma de defesa, independentemente de licença, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 15.º da Lei n.º 5/2006.’
2) Factos assentes
O ora recorrente, subinspector da PJ, requereu, nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 263.º do ETAPM, a aposentação voluntária com efeitos desde 23 de Outubro de 2007, tendo esse pedido sido deferido por despacho do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança de 09.07.2007, exarado na proposta n.º XXX IDGP/DPA/2007, de XX.XX.2007.
Do registo biográfico do ora recorrente constam faltas dadas por doença do foro psiquiátrico nos períodos de 01.09.2005 a 09.09.2005 e 22.11.2005 a 02.01.2006, conforme cópia dos atestados médicos respectivos.
Em 26 de Outubro de 2007 foi elaborada informação do Chefe do Departamento de Gestão e Planeamento, considerando inconveniente que o ora recorrente continue a possuir arma de defesa e a respectiva licença de uso e porte de arma, consubstanciada na titularidade do cartão de aposentado já referido, atenta a sua incapacidade psíquica para o efeito.
Sobre esta informação foi exarado o despacho do Director da Polícia Judiciária aqui recorrido e que confirmou a proposta contida naquela informação.
3) Aplicação da lei
O n.º 4 do art.º 15.º da Lei n.º 5/2006 prevê que possam perder o direito ao uso e porte de arma de defesa o pessoal que a qualquer tempo revele incapacidade física e/ou psíquica para o efeito.
Perante as faltas dadas ao serviço pelo ora recorrente, por motivo de doença do foro psiquiátrico e perante a informação prestada pelo Chefe do Departamento de Gestão e Planeamento acerca da condição físico-psíquica do ora recorrente, decidiu o Director da Polícia Judiciária não autorizar a titularidade da arma de defesa pretendida.
Atenta a condição de aposentado, pretendia ainda o ora recorrente que lhe fosse emitido o cartão de aposentado de modelo constante do Anexo IV ao Despacho do Chefe do Executivo n.º 281/2006.
Sucede que esse cartão assegura o reconhecimento da identidade do seu portador, na situação de aposentado dos quadros da Polícia Judiciária, e confere ao seu titular o direito ao uso e porte de arma de defesa, independentemente de licença, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 15.º da Lei n.º 5/2006.
É evidente que este cartão não é mais que possibilidade legal de ter direito ao uso e porte de arma de defesa, independentemente de licença.
Se a decisão do Director da Polícia Judiciária foi no sentido de não permitir o uso e porte de arma de defesa a que alude o n.º 3 do art.º 15.º da Lei n.º 5/2006, não faz sentido que seja emitido o cartão de aposentado a que alude o art.º 40.º do Regulamento Administrativo n.º 9/2006, atenta a sua conexão.
Digamos que não pode ser atribuído o direito ao uso e porte de arma de defesa em causa sem a titularidade do cartão de aposentado nem pode ser emitido tal cartão sem que tenha que ser atribuída a mesma arma de defesa ao seu titular.
Efectivamente, os direitos conferidos aos trabalhadores na situação de aposentados dos quadros da Polícia Judiciária relativos ao uso e porte de arma e respectivo cartão de aposentado tem condicionantes e só devem ser atribuídos tais direitos perante a completa idoneidade dos trabalhadores em causa, quer do foro físico, quer do foro psíquico.
Não nos parece, pois, ferida de qualquer ilegalidade a decisão do Director da Polícia Judiciária de retirar tais direitos a um trabalhador que durante vários anos revelou incapacidade para exercer funções de investigação criminal em virtude de falta de idoneidade psíquica.
Pelo que deve considerar-se improcedente o recurso interposto, mantendo-se o acto recorrido, com as consequências legais daí resultantes.
III – Conclusões
1. Os pressupostos processuais encontram-se devidamente preenchidos, tendo o recurso sido apresentado em tempo e por parte legítima;
2. O ora recorrente recorre do despacho do Director da Polícia Judiciária que lhe nega o direito de uso e porte de arma de defesa e do cartão de identificação do pessoal aposentado;
3. Do registo biográfico do ora recorrente constam faltas dadas por doença do foro psiquiátrico nos períodos de 01.09.2005 a 09.09.2005 e 22.11.2005 a 02.01.2006;
4. Foi elaborada informação do Chefe do DGP considerando inconveniente que o ora recorrente continue a possuir arma de defesa e o respectivo cartão de aposentado, atenta a sua incapacidade psíquica para o efeito;
5. Perante tais factos, decidiu o Director da PJ não autorizar a titularidade da arma de defesa pretendida;
6. Se a decisão do Director da PJ foi no sentido de não permitir o uso e porte de arma de defesa, não faz sentido que seja emitido o cartão de aposentado, atenta a sua conexão;
7. Os direitos conferidos aos trabalhadores aposentados dos quadros da PJ relativos ao uso e porte de arma e cartão de aposentado tem condicionantes e só devem ser atribuídos perante a sua completa idoneidade, quer do foro físico, quer do foro psíquico;
8. Não está ferida de qualquer ilegalidade a decisão do Director da PJ de retirar tais direitos a um trabalhador que durante vários anos revelou incapacidade para exercer funções de investigação criminal em virtude de falta de idoneidade psíquica;
Nestes termos, e nos demais de direito aplicáveis, deve considerar-se improcedente o recurso interposto, mantendo-se o acto recorrido, com as consequências legais daí resultantes.
Junta: Petição de recurso e nove documentos.
O Director da Polícia Judiciária”
2.2 Uso e porte de arma por agente aposentado da PJ – incapacidade física e/ou psíquica para o efeito
Está em causa a autorização do uso e porte de arma própria de defesa do agente aposentado da PJ, ora recorrido, que foi negada pelo acto impugnado e ao mesmo tempo lhe negou ainda a emissão do cartão de identificação do pessoal aposentado da PJ porque o cartão confere ao seu titular o direito ao uso e porte de arma de defesa, independentemente de licença, nos termos do n.° 3 do art.° 15.° da Lei n.° 5/2006.
O direito ao uso e porte de arma própria de defesa do pessoal aposentado de investigação criminal da PJ está regulado no art.° 15.° da Lei n.° 5/2006:
“1. O pessoal referido no artigo 12.º da presente lei, bem como o pessoal de investigação criminal e auxiliar de investigação criminal, tem direito à detenção, uso e porte de arma de serviço, de calibre e tipo aprovados por despacho do Chefe do Executivo.
2. Após autorização do director, o pessoal referido no número anterior tem ainda direito ao uso e porte de arma própria de defesa, independentemente de licença, sendo, no entanto, obrigatório o seu manifesto, em conformidade com os trâmites legais.
3. O pessoal referido no n.º 1 conserva, após a sua aposentação, o direito ao uso e porte de arma de defesa, desde que nos últimos 5 anos de carreira não tenha sido punido com pena disciplinar de suspensão ou superior, cessando tal direito perante qualquer condenação, por sentença com trânsito em julgado, que revele indignidade ou falta de idoneidade moral.
4. Perdem ainda o direito ao uso e porte de arma de defesa o pessoal que a qualquer tempo revele incapacidade física e/ou psíquica para o efeito.”
Segundo o acto impugnado, a decisão de não autorização da titularidade de arma de defesa pretendida pelo recorrido fundamentou-se nas faltas dadas ao serviço por este devido à doença do foro psiquiátrico e perante a informação prestada pelo Chefe do Departamento de Gestão e Planeamento da PJ acerca da condição físico-psíquica do mesmo.
Concretamente, ainda de acordo com o acto, do registo biográfico do ora recorrido constam faltas por doença do foro psiquiátrico nos períodos dos dias 1 a 9 de Setembro de 2005 e de 22 de Novembro de 2005 a 2 de Janeiro de 2006, conforme cópia dos atestados médicos respectivos.
E na informação de 26 de Outubro de 2007 elaborada pelo Chefe do Departamento de Gestão e Planeamento considera-se inconveniente que o recorrido continue a possuir arma de defesa, atenta a sua incapacidade psíquica para o efeito.
Assim, é o requisito negativo de incapacidade física e psíquica previsto no n.º 4 do art.º 15.º da Lei n.º 5/2006 que está agora em causa.
No entanto, os elementos dos autos não parecem suficientes para concluir que o recorrido revela incapacidade física e / ou psíquica para o uso e porte de arma de defesa.
Pois com apenas as faltas do serviço por doença do foro psiquiátrico nos dois períodos que totalizam 51 dias nos finais do ano 2005 não permitem saber qual é a situação psíquica real do recorrido.
E a informação do Chefe do Departamento de Gestão e Planeamento da PJ é manifestamente conclusiva, sem quaisquer elementos concretos que sustentam esta conclusão.
Por outro lado, não parece que estamos perante um poder discricionário da Administração, pois o juízo de incapacidade física ou psíquica não depende de livre escolha ou vontade da Administração, mas deve basear em elementos concretos que permitem formar seguramente tal juízo, por exemplo, através de exame médico ou outros elementos capazes de revelar a situação psíquica do interessado.
Não há qualquer violação do princípio de separação de poderes.
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso jurisdicional.
Sem custas por o recorrente estar legalmente isento delas.
Aos 18 de Junho de 2010
Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
A Procuradora-Adjunta
presente na conferência: Song Man Lei
Processo n.º 7 / 2010 12