Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.º 10 / 2010
Recorrente: Secretário para a Segurança
Recorrido: A
1. Relatório
A interpôs recurso contencioso contra o despacho do Secretário para a Segurança de 17 de Janeiro de 2008 que lhe determinou o cancelamento da licença de uso e porte de arma.
Por acórdão de 20 de Novembro de 2008 do Tribunal de Segunda Instância proferido no processo n.º 764/2007, foi concedido provimento ao recurso contencioso e anulado o despacho impugnado.
O Secretário para a Segurança recorreu deste acórdão para o Tribunal de Última Instância. Por seu acórdão de 29 de Junho de 2009 proferido no processo n.º 9/2009, foi revogado o acórdão recorrido e o processo devolvido ao Tribunal de Segunda Instância para, em nova pronúncia, apreciar as questões atinentes à invocação pelo acto administrativo do disposto no n.° 4 do art.° 15.° da Lei n.° 5/2006, ou seja, saber se o funcionário revela incapacidade física e/ou psíquica para o efeito de uso e porte de arma de defesa.
Em 10 de Dezembro de 2009, o Tribunal de Segunda Instância proferiu novo acórdão, julgando no mesmo sentido de anular o despacho recorrido.
Deste último acórdão vem agora o Secretário para a Segurança recorrer novamente para este Tribunal de Última Instância. Nas suas alegações concluiu pela nulidade do acórdão ora recorrido por violação do art.° 2.° da Lei Básica, no que toca ao respeito pelo princípio da separação de poderes.
O recorrido concluiu nas suas alegações pela improcedência do recurso por considerar não haver qualquer violação do princípio da separação de poderes e que a aferição da incapacidade física ou psíquica não pode ser efectuada discricionariamente.
O Ministério Público emitiu o parecer no sentido de negar provimento ao recurso com os seguintes fundamentos principais:
- Constitui o uso e porte de arma de defesa, relativamente à situação do recorrido (agente aposentado de Polícia Judiciária), um direito ope legis;
- A perda do mesmo direito não se enquadra nos poderes discricionários da Administração;
- Não se descortina que a actividade do tribunal tenha, por qualquer forma, invadido a esfera do poder executivo;
- O eventual condicionamento da actuação da Administração na matéria, em termo da protecção da segurança pública haverá de ser avaliado à luz de eventual falta de equilíbrio ou perspectiva legislativa, a que o tribunal é alheio.
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
2. Fundamentos
2.1 Matéria de facto
Foram considerados provados os seguintes factos pelo Tribunal de Segunda Instância:
“É do seguinte teor o despacho ora recorrido:
‘O recorrente impugna o despacho do Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, que lhe cancelou a licença de uso e porte de arma, prevalecendo-se da falta de fundamentação e de erro nos pressupostos de facto como causa da sua invalidade jurídica.
Em presença do respectivo processo administrativo contacto de elementos probatórios bastantes e uma motivação conforme os seguintes legais. (sic)
Com efeito, a fundamentação do acto há-de ser assente em factos adquiridos no processo, por forma a que o administrado perceba o circunstancialismo em que a sua pretensão é denegada, bem como o respectivo suporte legal. Não é o caso do despacho impugnado, do qual não se vislumbram os factos que motivam a solução legal encontrada.
Assim, nos termos do art.º 161.º do Código de Procedimento Administrativo REVOGO o despacho impugnado, todavia,
Considerando os elementos constantes do processo administrativo organizado no Corpo de Polícia de Segurança Pública, oriundo da Polícia Judiciária e que caracterizam a conduta do requerente como agressiva, referindo-o como protagonista em 8 queixas por uso abusivo da força e ainda num caso de ameaças; considerando ainda outras referências a envolvimentos e proximidade relacional com elementos conotados como o crime organizado, participando em algumas das suas iniciativas, como decorre da informação constante de fols. 34 a 39; considerando, por fim, que o requerente está aposentado e se entender que o uso e posse de arma não constitui mais-valia relevante para a sua segurança pessoal, na medida em que a tal basta a segurança que lhe proporcionam as autoridades em igualdade de circunstâncias com o comum dos cidadãos,
No uso dos poderes de tutela que me confere o art.º 4.° do Regulamento Administrativo n.º 6/1994 e bem assim a competência que me advém da Ordem Executiva n.º 13/2000, determino o cancelamento da licença de uso e porte de arma concedida ao recorrente, A o que faço nos termos gerais do art.º 31.° do Regulamento de Armas e Munições aprovado pelo DL n.º 77/99/M, com os efeitos do seu art.º 32.° e, ainda, com referência ao art.º 15.°, n.º 4 da Lei n.º 5/2006, disposição à qual se remetem, alias, as informações da Direcção da Polícia Judiciária.
Notifique o recorrente nos termos gerais do Código de Procedimento Administrativo, através do CPSP, dando ainda, conhecimento ao Tribunal de Segunda Instância para efeitos do disposto nos art.ºs 81.º, n.ºs 1 e 3 do CPAC.
Gabinete do Secretário para a Segurança da Região Administrativa Especial de Macau, aos 17 Janeiro de 2008
O Secretário para a Segurança’
Já na situação de aposentado da PJ ao recorrente foi emitido o cartão constante de fls. 34, pelo qual se assegura que o ‘portador... tem o direito ao uso e porte de arma de defesa, independentemente de licença’.
Nada consta em seu desabono do respectivo registo biográfico em termos de sanções disciplinares.
Foi classificado em 1996 em 1997 com a classificação de ‘Bom’; em 1998 com ‘Muito Bom’; em 2002, 2003, 2004 com ‘Bom’, ‘Satisfaz’ em 2004 e 2005.
Da prova produzida nos autos resultou que o recorrente lidou com investigação de casos criminais de alguma gravidade e relacionados com a criminalidade organizada, se tem manifestado receoso e intimidado, por causa disso.
Mostra-se pessoa idónea, calma, não agressiva, bondosa.
Dá-se aqui por reproduzido o teor da informação vertida a fls. 34 a 39 dos autos.”
2.2 Poder jurisdicional do tribunal
No acórdão recorrido julgou-se pela inexistência de elementos bastantes para integrar a verificação do pressuposto de alguma incapacidade física ou psíquica que possa justificar a perda do direito de uso e porte de arma do ora recorrido.
O recorrente considera que esse acórdão invadiu a esfera de discricionariedade que a lei confere à Administração para avaliação da capacidade física e psíquica para efeitos de uso e porte de arma por agente da Polícia Judiciária segundo o art.° 15.°, n.° 4 da Lei n.° 5/2006.
Mas sem razão.
Antes de mais nada, é de frisar que mesmo com o respeito pelo núcleo essencial das funções administrativas que consiste no poder de decisão quanto ao mérito do caso, o acto administrativo resultado do exercício do poder discricionário pode ser objecto de apreciação judicial no âmbito do recurso contencioso, nomeadamente com fundamento no erro manifesto ou total desrazoabilidade no respectivo exercício, nos termos do art.° 21.°, n.° 1, al. d) do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC).
Por outro lado, a norma em causa, o art.° 15.°, n.° 4 da Lei n.° 5/2006 prescreve assim: “Perdem ainda o direito ao uso e porte de arma de defesa o pessoal que a qualquer temo revele incapacidade física e/ou psíquica para o efeito.”
Não nos parece que estamos aqui perante um poder discricionário da Administração, pois a falta de capacidade física ou psíquica para o uso e porte de arma de defesa não depende de escolha ou vontade da Administração. A sua conclusão depende de factos concretos e objectivos que a revela. A apreciação feita no acórdão recorrido sobre a existência do requisito consiste apenas no controlo de legalidade do acto impugnado, sem qualquer invasão do núcleo da função administrativa não consentida por lei.
2.3 Uso e porte de arma por agente aposentado da PJ
No acto recorrido foi referido o n.º 4 do art.º 15.º da Lei n.º 5/2006 para fundamentar a decisão de cancelamento ao recorrido da licença de uso e porte de arma.
E segundo o anterior acórdão deste Tribunal proferido nos presentes autos, é esta a norma que deve ser aplicada ao caso, ou seja, ao pessoal aposentado de investigação criminal da PJ.
Prescreve assim o art.º 15.º da Lei n.º 5/2006:
“1. O pessoal referido no artigo 12.º da presente lei, bem como o pessoal de investigação criminal e auxiliar de investigação criminal, tem direito à detenção, uso e porte de arma de serviço, de calibre e tipo aprovados por despacho do Chefe do Executivo.
2. Após autorização do director, o pessoal referido no número anterior tem ainda direito ao uso e porte de arma própria de defesa, independentemente de licença, sendo, no entanto, obrigatório o seu manifesto, em conformidade com os trâmites legais.
3. O pessoal referido no n.º 1 conserva, após a sua aposentação, o direito ao uso e porte de arma de defesa, desde que nos últimos 5 anos de carreira não tenha sido punido com pena disciplinar de suspensão ou superior, cessando tal direito perante qualquer condenação, por sentença com trânsito em julgado, que revele indignidade ou falta de idoneidade moral.
4. Perdem ainda o direito ao uso e porte de arma de defesa o pessoal que a qualquer tempo revele incapacidade física e/ou psíquica para o efeito.”
Assim, constitui requisitos negativos para o pessoal aposentado de investigação criminal da PJ ser titular do direito ao uso e porte de arma de defesa:
- nos últimos 5 anos de carreira, punição com pena disciplinar de suspensão ou superior;
- qualquer condenação, por sentença com trânsito em julgado, que revele indignidade ou falta de idoneidade moral;
- incapacidade física e/ou psíquica para o efeito.
Os factos provados mostram que do registo biográfico do recorrido não consta nada em seu desabono em termos disciplinares e que não há notícia de qualquer condenação criminal.
Também não há elementos nos autos que indicam que o recorrido padece de incapacidade, quer no âmbito físico, quer psíquico.
Outros são os elementos que poderão ter alguma relevância para a apreciação do presente caso: oito queixas relacionadas com abuso de força ou de funções, mas que o recorrido não chegou a ser acusado por causa daquelas; presença em jogo de boxe em que estavam também presentes indivíduos activos de seitas de Hong Kong e de Macau.
Tais factos podem ser relevantes para examinar a indignidade ou falta de idoneidade moral do recorrido. Só que, o n.º 3 do referido art.º 15.º da Lei n.º 5/2006 exige que estes aspectos sejam revelados por condenação transitada, o que não acontece no presente caso.
Não ocorrendo os pressupostos negativos previstos no art.º 15.º da Lei n.º 5/2006, o acto impugnado deve ser anulado.
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso jurisdicional.
Sem custas por o recorrente estar legalmente isento delas.
Aos 18 de Junho de 2010
Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
A Procuradora-Adjunta
presente na conferência: Song Man Lei
Processo n.º 10 / 2010 1