Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso civil
N.º 31 / 2010
Recorrente: A
Recorrida: B
1. Relatório
B intentou uma acção declarativa comum com processo ordinário contra A, pedindo que este seja condenado a pagar à autora:
- a quantia de HKD$58.745.578,44, equivalente a MOP$60.507.945,79, a título dos juros moratórios do financiamento à taxa de 10% ao ano, acrescida de juros moratórios vincendos à mesma taxa;
- e a quantia de HKD$51.278.437,17, equivalente a MOP$52.816.790,29, a título de capital em dívida e de juros moratórios vencidos, à taxa de 6% ao ano, pela não distribuição dos lucros de HKD$240.000.000,00, acrescida de juros moratórios vincendos à mesma taxa, até ao seu efectivo e integral pagamento.
Por sentença do Tribunal Judicial de Base, foi julgada procedente o segundo pedido acima referido e improcedente o primeiro.
Inconformadas com esta decisão, ambas as partes recorreram para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão proferido no processo n.º 191/2007, para além de negar provimento aos recursos interlocutórios do réu, foi julgado procedente o recurso interposto pela autora da sentença final, por declarar nula a sentença recorrida na parte em que considerou prescrito oficiosamente o direito da autora consubstanciado no primeiro pedido, e parcialmente procedente o recurso interposto pelo réu da mesma sentença final, no sentido da necessidade de proceder à liquidação dos montantes a que a autora tem direito relativo ao segundo pedido em sede de execução de sentença.
Deste acórdão vem agora o réu recorrer para este Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões úteis nas suas alegações:
- Arguiu o ora recorrente no âmbito do recurso da sentença da 1ª instância que interpôs para o TSI um vasto conjunto de questões jurídicas.
- O tribunal recorrido não tratou das questões jurídicas postas à sua consideração, particularmente das questões que foram enunciadas e explicitadas pelo ora recorrente em sede própria.
- Conclui-se assim que a nulidade resultante de omissão de pronúncia, patologia da decisão prevista no n.º 2 do art.º 563.º do CPC, ocorre in casu porquanto a decisão é omissa ou manifestamente incompleta relativamente às questões cuja apreciação foi solicitada pelo ora recorrente.
- O tribunal a quo ajuizou mal, salvo o devido respeito, alguns dos fundamentos de defesa que sustentaram a ampliação do recurso da autora promovida pelo ora recorrente em sede de contra-alegações de recurso, para além de ter omitido pronúncia relativamente a algumas questões suscitadas e, por fim, ter condenado o ora recorrente em objecto diferente do pedido, impondo-se assim a reapreciação dessa matéria em sede do presente recurso.
- Quanto ao primeiro desses fundamentos de defesa verifica-se que foram transferidas diversas quantias para a C, no montante global de HKD$119.628.144,60, sem, no entanto, se saber se essas importâncias foram concedidas a coberto de algum empréstimo.
- Inexistindo o mútuo, decai a obrigação da C e, correlativamente, do recorrente de pagar juros moratórios.
- Não foi vertido pelo TSI um único juízo, sobre aquelas considerações de direito, sendo assim o acórdão recorrido nulo por omissão de pronúncia.
- Não ficou provado, nem sequer foi articulado expressamente pela autora, que teria sido efectivamente esta sociedade quem teria emprestado esse dinheiro a C.
- Mesmo que se aceite que foi por instruções da autora que foram transferidas para a C os montantes indicados na al. I), isso não significa, de modo algum, que tivesse sido essa sociedade a emprestar o dinheiro acima especificado e, por via disso, intitulada a receber o respectivo reembolso.
- A autora reclama na presente acção apenas o pagamento de juros moratórios, e não de juros remuneratórios.
- Ora, para que houvesse lugar a juros moratórios seria necessário, antes de mais, que a mutuária (C) ou, por hipótese, o assumptor (o ora recorrente) estivessem em mora, necessitando o mutuante (autora) para o efeito de proceder à respectiva interpelação para o pagamento, sobretudo se tomarmos em conta que não foi estipulado entre as partes qualquer prazo para o seu cumprimento.
- Inexistindo essa interpelação para pagamento do mútuo, este nunca se venceu, não havendo assim lugar ao pagamento de quaisquer juros, designadamente de natureza moratória.
- As quantias em causa foram devolvidas entre 4 de Setembro de 1992 e 4 de Janeiro de 1997, pelo que o empréstimo não se chegou a vencer em momento algum.
- Também aqui o acórdão recorrido deixou passar em claro a questão suscitada, pecando a decisão recorrida, mais uma vez, de omissão de pronúncia.
- Estamos perante uma sentença que condenou o réu, ora recorrente, em objecto diverso do pedido, se bem que em montante por liquidar, partindo do pressuposto de que o que foi efectivamente pedido foi o pagamento de juros moratórios, situação que acarreta a nulidade do acórdão recorrido.
- Termos em que se deve julgar procedente a predita arguição de nulidade por omissão de pronúncia e, consequentemente, anular o acórdão impugnado e determinar a baixa do processo ao Tribunal recorrido para que este proceda à reforma do arresto impugnado (art.º 651.º, n.º 2 do CPC).
- Caso assim não seja entendido, deve a arguição de nulidade por condenação em objecto diverso do pedido ser julgada procedente e, consequentemente, ser anulado o acórdão recorrido, nos termos conjugados da al. e) do n.º 1 do art.º 571.º e da parte final do n.º 2 do art.º 147.º, ambos do CPC, e, ao abrigo do comando expresso do art.º 651.º, n.º 1 do CPC, ser ainda julgado improcedente o pedido formulado pela autora no valor de HKD$58.745.578,44, equivalente a MOP$60.507.945,79, a título de juros moratórios respeitante ao alegado “mútuo”, pelas razões acima aludidas.
A autora apresentou contra-alegações no sentido de julgar totalmente improcedente o recurso do réu.
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
2. Fundamentos
2.1 Factos provados:
Foram considerados provados os seguintes factos pelas instâncias:
“Da Matéria de Facto Assente:
No dia 21 de Dezembro de 1990, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial das Ilhas, foi constituída a “C”, em chinês romanizado “丙”, entre o réu e os indivíduos D, E, F, G, e H (alínea A da Especificação).
As quotas dessa sociedade são distribuídas pela seguinte estrutura: 1) D - MOP$20,000.00; 2) F - MOP$20,000.00; 3) E - MOP$20,000.00; 4) G - MOP$10,000.00; 5) H - MOP$10,000.00; 6) A - MOP$20,000.00 (alínea B da Especificação).
Na constituição dessa sociedade, esses indivíduos não actuaram por conta própria, mas em representação de “I” e a autora (alínea C da Especificação).
As quotas detidas por D, E e G, correspondentes a 50% do capital social, na verdade pertenciam à autora; e as quotas detidas por F, A e H correspondentes a 50% do capital social, pertenciam à sociedade “I” (alínea D da Especificação).
Na primeira reunião, foi deliberado alterar a estrutura do capital social da “C”, ficando a autora com 45%, e a “I” com 55% (alínea E da Especificação).
A “C”, tem por objecto “a construção e fomento predial” (alínea F da Especificação).
Em finais de 1991, a C no exercício da sua actividade decidiu comprar um terreno situado na Taipa, designado por Lote XX pelo preço de HKD$170,000,000.00 (alínea G da Especificação).
O capital social da C era insuficiente para o projecto relacionado com esse terreno (alínea H da Especificação).
Para a aquisição do terreno, foram transferidas, sob instruções da autora, para a C as seguintes quantias (alínea I da Especificação):
• HKD$3,900,000.00;
• HKD$10,000,000.00;
• HKD$50,000,000.00;
• HKD$26,000,000.00, em 15 de Novembro de 1991;
• HKD$1,478,144.60, em 9 de Novembro de 1992;
• HKD$23,250,000.00, em 8 de Setembro de 1993;
• HKD$5,000,000.00.
A autora recebeu as quantias a seguir descriminadas (alínea J da Especificação) :
• HKD$3,038,355.40, em 4 de Janeiro de 1997;
• HKD$6,000,000.00, em 13 de Janeiro de 1997;
• HKD$20,000,000.00;
• HKD$30,000,000.00;
• HKD$10,000,000.00.
Da Base Instrutória
A autora é uma sociedade comercial constituída e subsistente em Hong Kong, que tem por objecto o investimento imobiliário e a importação e exportação (Resposta ao quesito 1°).
O terreno referido em G) dos factos assentes foi adquirido para aí construir um edifício habitacional (Resposta ao quesito 2°).
Face às circunstâncias referidas em H) dos factos assentes, a C decidiu recorrer ao financiamento de terceiros tendo para o efeito contactado a autora (Resposta ao quesito 3°).
A quantia de HKD$3,900,000.00 referida em I) dos factos assentes foi transferida em 30 de Novembro de 1990 à “I”, a qual transferiu posteriormente à “C” (Resposta ao quesito 4°).
A quantia de HKD$10,000,000.00 referida em I) dos factos assentes foi transferida em 10 de Outubro de 1991 (Resposta ao quesito 5°).
A quantia de HKD$50,000,000.00 referida em I) dos factos assentes foi transferida em 17 de Outubro de 1991 (Resposta ao quesito 6°).
A quantia de HKD$5,000,000.00 referida em I) dos factos assentes foi transferida em 31 de Agosto de 1993 (Resposta ao quesito 7°).
Em 5 de Julho de 1993, o réu assumiu todos os riscos do projecto relacionado com o terreno referido em G) dos factos assentes (Resposta ao quesito 9°).
Aceitando ficar a seu cargo os juros e as quantias referidas em I) dos factos assentes bem como distribuir os lucros no montante de HKD$240,000,000.00 (Resposta ao quesito 10°).
Dos lucros de HKD$240,000,000.00 caberia HKD$108,000,000.00 à autora (Resposta ao quesito 11°).
O réu aceitou ainda que, caso os lucros ultrapassassem HKD$240,000,000.00, partilharia o execedente com a C na proporção 30% para esta e de 70% para si (Resposta ao quesito 12°).
O que foi aceite pela C e pela autora (Resposta ao quesito 13°).
Em 9 de Outubro de 1996, sob solicitação da autora, o réu concordou que a autora cessaria a sua participação na C antes de 31 de Dezembro de 1996 (Resposta ao quesito 14°).
Bem como restituir à autora as quantias referidas em I) dos factos assentes e entregar os respectivos juros e os lucros (Resposta ao quesito 15°).
A autora e o réu estipularam ainda que caso este não conseguisse entregar à autora os lucros, antes de 31 de Dezembro de 1996, sobre esse montante vencer-se-iam juros à taxa de 6% ao ano a partir de Janeiro de 1997 (Resposta ao quesito 16°).
Até 31 de Dezembro de 1996, o réu não restituiu a totalidade das quantias referidas em I) dos factos assentes, não entregou os juros, nem distribuiu os lucros (Resposta ao quesito 17°).
As quantias referidas em I) dos factos assentes foram nas datas a seguir indicadas restituídas, sendo a última prestação efectuada em 4 de Janeiro de 1997, no valor de HKD$26,961,644.60 (Resposta ao quesito 18°):
• Em 4 de Setembro de 1992 - HKD$38,666,500.00;
• Em 5 de Novembro de 1996 - HKD$30,000,000.00;
• Em 20 de Dezembro de 1996 - HKD$24,000,000.00;
• Em 4 de Janeiro de 1997 - HKD$26,961,644.60.
As quantias referidas em J) dos factos assentes foram entregues pelo réu a título de lucros e juros pela não entrega tempestiva dos lucros (Resposta ao quesito 19°).
A quantia de HKD$20,000,000.00 referida em J) dos factos assentes foi entregue em 29 de Janeiro de 1997 (Resposta ao quesito 20°).
A quantia de HKD$30,000,000.00 referida em J) dos factos assentes foi entregue em 31/01/1997 (Resposta ao quesito 21°).
A quantia de HKD$10,000,000.00 referida em J) dos factos assentes foi entregue em 10 de Julho de 1997 (Resposta ao quesito 22°).”
2.2 Sobre o primeiro pedido da autora
Em relação ao primeiro pedido formulado pela autora na presente acção, ou seja, a condenação do réu no pagamento da quantia de HKD$58.745.578,44, equivalente a MOP$60.507.945,79, a título dos juros moratórios do financiamento à taxa de 10% ao ano, acrescida de juros moratórios vincendos à mesma taxa, o Tribunal Judicial de Base julgou improcedente por considerar prescrito o direito alegado pela autora.
Na apreciação do recurso interposto pela autora, o Tribunal de Segunda Instância entendeu que o réu não invocou a prescrição na contestação, e não sendo a prescrição de conhecimento oficioso, considerou que o Tribunal Judicial de Base incorreu em “pronúncia indevida” e declarou nula a sentença nesta parte nos termos do art.° 571.°, n.° 1, al. d) do Código de Processo Civil (CPC). E afinal, consta apenas da decisão do acórdão ora recorrido, na parte respeitante ao assunto em apreço, que o Tribunal de Segunda Instância julgou procedente o recurso pela autora interposto da sentença final.
Proferida a decisão neste sentido pelo Tribunal de Segunda Instância, é de observar o disposto no art.° 630.° do CPC, que dispõe a regra da substituição ao tribunal recorrido:
“1. O Tribunal de Segunda Instância conhece do objecto do recurso, mesmo que a sentença proferida na primeira instância seja declarada nula ou contrária a jurisprudência obrigatória.
2. Se o tribunal recorrido não tiver conhecido de certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, o Tribunal de Segunda Instância, se entender que o recurso procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
3. O relator, antes de ser proferida decisão, ouve cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias.”
Ora, o Tribunal Judicial de Base não apreciou o primeiro pedido da autora por considerar procedente a excepção peremptória de prescrição do direito da autora e consequentemente ficar prejudicado o conhecimento do tal pedido.
Uma vez declarada nula a sentença de primeira instância nesta parte pelo Tribunal de Segunda Instância, a este impunha-se o conhecimento do mérito do mesmo pedido por força do n.° 2 referido do art.° 630.° do CPC.
No entanto, o Tribunal de Segunda Instância limitou-se a julgar que o Tribunal Judicial de Base incorreu no excesso de pronúncia quanto à prescrição do direito da autora consubstanciado no primeiro pedido, não avançou para conhecer do seu mérito, pois, na realidade, o Tribunal de Segunda Instância não referiu nada na fundamentação do acórdão recorrido sobre o pedido, nem a final decidiu nada quanto ao seu mérito, no sentido de condenar ou absolver o réu.
Deste modo, o acórdão recorrido omitiu a questão de saber se tal pedido era ou não procedente.
Mas a autora, a própria interessada, não suscitou essa omissão de pronúncia, sendo certo que este vício não é de conhecimento oficioso, transitou assim o acórdão recorrido nesta parte.
Com a declaração de nulidade da parte da sentença de primeira instância, desaparece a pronúncia do Tribunal Judicial de Base sobre o primeiro pedido da autora. O Tribunal de Segunda Instância limitou-se a declarar nula a sentença e não apreciou o mérito daquele pedido, ou seja, não condenou o réu a pagar a respectiva quantia à autora nem absolveu o réu. E a autora, sem tomar a iniciativa de recorrer desta decisão, deixou transitada esta decisão de segunda instância. Na prática, é como se o réu tivesse sido absolvido de instância em relação ao primeiro pedido da autora.
Visto que a autora não conseguiu vencimento do recurso para o Tribunal de Segunda Instância na parte do primeiro pedido da acção, fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelo ora recorrente relativamente a este pedido.
2.3 Sobre o segundo pedido da autora
Com excepção da liquidez da quantia peticionada, foi confirmada pelo tribunal recorrido a decisão de primeira instância relativa ao segundo pedido da autora na acção em que se pede a condenação do réu no pagamento à autora da quantia de HKD$51.278.437,17, equivalente a MOP$52.816.790,29, a título de capital em dívida e de juros moratórios vencidos, à taxa de 6% ao ano, pela não distribuição dos lucros de HKD$240.000.000,00, acrescida de juros moratórios vincendos à mesma taxa, até ao seu efectivo e integral pagamento.
Assim, a parte do acórdão recorrido confirmativa da decisão de primeira instância sobre o segundo pedido da autora é irrecorrível nos temos do art.° 638.°, n.° 2 do CPC.
Já é recorrível a parte do acórdão recorrido que determinou a liquidação dos montantes do segundo pedido a que a autora tem direito em sede de execução de sentença, e só a autora, como parte vencida, tem legitimidade para recorrer desta parte do acórdão recorrido, mas não fez.
Em conclusão, deve ser negado provimento ao recurso.
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
Aos 24 de Novembro de 2010
Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
Processo n.º 31 / 2010 13