Processo n.º 335/2009
Data: 1/Julho/2010
Assuntos:
- Renúncia ao direito de queixa
- Dedução do pedido cível em separado
SUMÁRIO:
1. Após o exercício do direito de queixa não é possível a ele renunciar, mas apenas desistir da queixa.
2. A dedução do pedido de indemnização cível em separado com base nos factos constantes da acusação formulada em processo penal não determina a extinção do procedimento criminal.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 335/2009
(Recurso Penal)
Data: 1/Julho/2010
Recorrente: Ministério Público
Objecto do Recurso: Acórdão condenatório da 1ª Instância
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
1. O Digno Magistrado do Ministério Público vem recorrer do douto acórdão proferido nestes autos, na parte em que condenou o arguido A pela prática de um crime de abuso de confiança p. p . p. art. 199°, n.º 1 e de um crime de burla p. p. p. art. 211°, n.º 1, ambos do C.P.M., na pena, em cúmulo jurídico, de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
Entende que a instauração de acção executiva em separado da acção penal teria feito extinguir o direito prosseguido na acção penal.
Assim, alega, em sede conclusiva:
1 - Os crimes imputados ao arguido e aqueles por que foi condenado têm natureza semi-pública;
2 - A ofendida deduziu pedido cível em acção separada, junto dos Juízos de Pequena Instância Cível de Macau;
3 - Tal pedido cível, em separado, equivale à renúncia ao respectivo procedimento criminal, nos casos de crimes de natureza semi-pública ou particular;
4 - Com o pedido de indemnização cível deduzido em separado e a consequente renúncia ao respectivo procedimento criminal carece o Ministério Público de legitimidade para o exercício da acção penal, pelo que em consequência deveria o Tribunal ter declarado extinto o respectivo procedimento criminal e ordenar o arquivamento dos autos;
5 - Ao não o fazer violou o Tribunal o disposto nos artigos 61°, n.º 2 do C.P.P.M. e artigos 199°, n° 3 e 220°, n° 1, ambos do C.P.M..
Deve, pois, ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, revogar-se o acórdão recorrido, na parte em que condenou o arguido A pela prática de um crime de abuso de confiança p. p .p. art. 199°, n.º 1 e de um crime de burla p. p. p. art. 211°, n.º 1, ambos do C.P.M. e ordenar-se o arquivamento dos autos, nessa parte, por extinção do procedimento criminal, por falta de legitimidade do MP para o exercício da acção penal.
2. O Exmo Senhor Procurador Adjunto, neste Tribunal, emite o seguinte douto parecer:
Apesar das suas judiciosas considerações, cremos que não assiste razão ao nosso Exmº Colega.
Vejamos.
Está em causa, em termos prévios, a interpretação do art. 61º, n.º 2, do C. P. Penal.
E concordamos, a propósito, com a doutrina decorrente, entre outros, do Assento do S.T.J. de Portugal, n.º 5/2000, de 19-1-2000, perante a norma correspondente do art. 72º, n.º 2, do respectivo Diploma adjectivo (cfr. DR, I-A, de 2-3-2000).
De acordo com a mesma, efectivamente, só a dedução de pedido civil antes da apresentação de queixa por crime semi-público equivale à renúncia ao direito de queixa.
O que vale por dizer, também, que a renúncia, expressa ou tácita, só pode ter lugar, tratando-se do direito de queixa, antes de este ser exercido.
Não pode confundir-se, de facto, o instituto da renúncia com o a desistência (cfr. art. 108º do C. Penal).
No sentido propugnado tem-se pronunciado, igualmente, a Doutrina (cfr., designadamente, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 131).
No caso presente, a acção cível só foi proposta após a apresentação da queixa.
Assim, a nosso ver, jamais se poderia operar, “in casu”, a pretendida extinção do procedimento criminal.
Deve, pelo exposto, ser negado provimento ao recurso.
3. Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Respiga-se do acórdão recorrido o seguinte:
”(...)
Factos provados :
Em 15 de Maio de 2006, o arguido foi contratado para condutor de entrega de cargas pela “Sociedade Limitada do Centro de Fotocópia B (XXX) ”(sociedade ofendida), situada na Rua XXX, n.º X, X, com o trabalho principal de buscar mercadorias, ou seja, papel de fotocópia embalado em caixa, segundo a lista de entrega dada pelo responsável da sociedade, na armazém da sociedade sita na Rua XXX, e entregando as para as sociedades de diferentes clientes conduzindo uma camioneta.
No período entre Junho e Agosto de 2006, o arguido tomava durante trabalho diversas vezes por possessão própria papéis de fotocópia embalado em caixa buscados na armazém.
O arguido tomou sem autorização oito caixas de papel de fotocópia embalado em caixa, com o valor total de setecentos e vinte patacas.
O arguido vendeu os oito caixas de papel de fotocópia subtraídos por ele no interior da China, adquirindo quatrocentos e tal dólares de Hongkong, que foram gastados pelo arguido como consumo diário.
Em 6 de Agosto de 2006, o arguido telefonou durante trabalho para o empregado da “Sociedade Limitada do Centro de Fotocópia B (XXX)”, dizendo que a camioneta de matrícula MG-XX-XX pertencido à sociedade sofreu avaria, e precisando de reparação imediata, o arguido sugeriu à sociedade a uma loja de reparação de automóveis que estava lhe familiar para realizar a reparação.
Ao depois, o arguido entregou uma factura à “Sociedade Limitada do Centro de Fotocópia B (XXX)” para pedir um reembolso, na qual foi escrito: em 6 de Agosto de 2006, a despesa total é de dois mil e oitenta yuan($2080,00), por substituição de bomba de água de segunda mão, cano, lâmpada de canto esquerda e remuneração para operário; a factura aludida foi o papel exclusivo com um escrito “Loja de Automóveis C (XXX)” em cima, o qual se situa na Rua XXX, Edifício XXX, n.º X, XXX, também houve uma chancela exclusiva da loja no referido papel.
Por isso, “a Sociedade Limitada do Centro de Fotocópia B (XXX)” pagou a respectiva despesa ao arguido.
De investigações resulta: “a Loja de Automóveis C” venda exclusivamente automóveis de segunda mão, nunca ofertando serviço de reparação de automóveis, e o arguido nunca entregou a camioneta de matrícula MG-XX-XX à referida loja de automóveis para realizar a reparação e substituição de peças.
Aproveitando-se da conveniência que o irmão mais velho D (XXX) trabalhava na referida loja de automóveis, o arguido secretamente tomou um papel exclusivo com o escrito “ Loja de Automóveis C”, em cima da mesa no gabinete da loja, e depois tirou da gaveta da mesa o selo exclusivo da loja de automóveis, carimbando no papel aludido, e escrevendo os projectos de reparação, para burlar dinheiro da “Sociedade Limitada do Centro de Fotocópia B (XXX)”.
Na circunstância de ter entendimento e consciência sobre as situações, o arguido possuía por próprio as mercadorias da sociedade e, inventava voluntariamente os factos, enganava outras pessoas para ganhar confiança das quais, adquiria verbas não devidas pagas por outras pessoas, possuindo ilegalmente as cargas e verbas;
O arguido entendia que não era responsável da “Loja de Automóveis C” e não tinha poder de emitir qualquer factura representando a loja de automóveis, e que nunca se tinha realizado reparação e substituição de peças para o referido furgão de carga, mas para burlar dinheiro à sociedade ofendida, inventou voluntária e conscientemente uma factura falsa, e utilizou como a verdadeira, enganando a terceira pessoa.
O arguido bem sabia que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.
*
Mais se provou :
A sociedade ofendida já recebeu a respectiva compensação através de obrigação pecuniária e processo de execução cumprido pelo Juízo de Pequenas Causas Cíveis.
Segundo o registro criminal, o arguido não é delinquente primário.
Em 28 de Fevereiro de 2003, no processo comum do tribunal singular n.º PCS-002-03-03( ora n.º CR3-03-0044-PCS) do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Base, o arguido foi condenado na multa de 150 dias, com 80 patacas por cada dia, totalmente 12.000 patacas ou 60 dias de pena de prisão, por ter praticado um crime de fuga à responsabilidade. A sentença transitou em julgamento em 10 de Março de 2003. O arguido cometeu o crime acima referido em 7 de Fevereiro em 2000. O arguido realizou a respectiva pena em 16 de Fevereiro em 2005.
O arguido era condutor de entrega de cargas a tempo parcial, auferindo cerca de 3.000,00 patacas por mês. Tendo a seu cargo a mãe e um filho de 5 anos de idade. A habilitação escolar do arguido foi quinto ano da escola primária.
*
Factos não provados:
Os restantes factos relevantes constantes da acusação, que não se conformam com os factos provados, designadamente:
No período entre Junho e Agosto de 2006, o arguido afirmava durante trabalho diversas vezes à sua sociedade que o número de papel de fotocópia embalado em caixa buscado na armazém era diferente do que escrito na lista de entrega, por isso, a sociedade ofendida tinha de repor as mercadorias diversas vezes.
De facto, as situações supra referidas nunca aconteceram, o arguido disse à sociedade ofendida que o número de mercadorias era diferente do que escrito na lista de entrega, com o objectivo de apropriar a si os excessos papéis de fotocópia embalados em caixa completados pela sociedade ofendida.
O arguido inventou os factos, e ganhou a confiança de outras pessoas, mediante o uso de engano, recebendo cargas não devidas.
(...)”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa, no fundo, por saber se a acção executiva interposta pela ofendida preenche a previsão do artigo 61º, n.º 2 do CPP.
2. Prevê esse artigo:
“(...)
No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a dedução do pedido em acção cível separada pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito.”
3. Importa distinguir a renúncia da desistência.
A desistência é o abandono do pedido formulado, da pretensão que se pretende fazer valer, no caso, do procedimento encetado.1 Cfr. art. 108º do C. Penal.
Renúncia traduz-se na perda voluntária de um direito que o renunciante demite de si, traduzindo-se num acto voluntário pelo qual uma pessoa perde um direito de que é titular, sem uma concomitante atribuição ou transferência dele para outrem.2
4. Se bem que não decisiva esta distinção começa a delinear-se uma tendência.
Tendência que vai no sentido da doutrina decorrente, entre outros, do Assento do S.T.J. de Portugal, n.º 5/2000, de 19-1-2000, perante a norma correspondente do art. 72º, n.º 2, do respectivo CPP português,3 segundo a qual só a dedução de pedido civil antes da apresentação de queixa por crime semi-público equivale à renúncia ao direito de queixa.
O que vale por dizer, também, que a renúncia, expressa ou tácita, só pode ter lugar, tratando-se do direito de queixa, antes de este ser exercido.
Tal como a Jurisprudência estivera dividida, também a Doutrina comparada. No sentido daquela uniformização de Jurisprudência citada4 e em sentido contrário.5
Importa observar que a citação da Jurisprudência e Doutrina Comparada citada não se mostra definitiva, pela razão simples de que em Portugal o correspondente artigo 72º, n.º2 do CPP, introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25/08, contém uma redacção com menção à expressão “... a prévia dedução do pedido...”, não existente em Macau.
5. A solução passa então por outro ensaio.
Voltamos à distinção entre renúncia e desistência que inculca no sentido de que aquela pressupõe o abrir mão de um direito e esta o fazer extinguir uma pretensão deduzida, o que pressupõe já a existência de um processo.
Depois, do artigo 108º do CP colhe-se exactamente esse sentido, quando no n.º 1 se alude ao facto de “O direito de queixa não poder ser exercido se o titular a ele tiver renunciado ou tiver praticado donde a renúncia necessariamente se deduza.” Há aqui claramente uma ideia de actuação prévia ao procedimento.
Em termos de interpretação histórica e sistemática parece que o legislador quis restringir o conceito do artigo 30º, parág. 1º do CPP de 1929, pois tal regra ampla permitiria ao lesado defraudar a lei e designadamente o art. 108º, n.º 2 do CP.6
Acresce que não se vê bem que o legislador concedesse duas vias de extinção de um direito - renúncia e desistência - depois de o interessado ter manifestado vontade em o exercer. Depois deste momento, a extinção, conceptualmente, deve operar ao nível do procedimento.
Somos, assim, por estas razões, a negar provimento ao recurso
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas.
Fixa-se à Exmª Defensora, a título de honorários, a adiantar pelo GABPTUI a quantia de MOP 1000,00 (mil patacas).
Macau, 1 de Julho de 2010,
João A. G. Gil de Oliveira
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
1 - Cfr. Castro Mendes, DPC, 1967, 1º, 253
2 - Ana Prata, Dicionário Jurídico, 4ª ed., 1059
3 - cfr. DR, I-A, de 2-3-2000
4 - Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, 667; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 131; José António Barreiros, Sistema e Estrutura do Proc. Penal, II, 1997, 346-348; Odete Oliveira, Problemática da Vítima de Crimes,1994, 221
5 - Leal-Henriques e Simas Santos, CPP Anotado (português), I, 2ª ed., 392 e CPP de Macau, 168
6 - Pinto de Albuquerque, Comentário ao CPP, 2ª ed., 2008, 223
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335/2009 12/12